1 CADERNOS DE ESTUDOS JURÍDICOS MATER DEI ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CORPO DISCENTE DO CURSO DE DIREITO DA FACULDADE MATER DEI ISSN 1677-3454 COMPOSIÇÃO DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI : DR. EDITOR : GUIDO VICTOR GUERRA PROF. FLORI ANTONIO TASCA SUPERVISOR EDITORIAL : PROF. DIRCEU ANTONIO RUARO CONSELHO EDITORIAL : PROF. ALCIONE LUIZ PARZIANELLO PROF. ANDREY HERGET PROFª.ANGÉLICA SOCCA CESAR RECUERO PROF. ANTONIO GERALDO SCUPINARI PROF. CÁSSIO LISANDRO TELLES PROF. CELIO ARMANDO JANCZESKI PROF. EDGAR DOMINGOS MENEGATTI PROF. ERLON ANTONIO MEDEIROS PROF. FERNANDO ELEUTÉRIO PROF. FRANCISCO ADILSON DE ALMEIDA FILHO PROF. GENÍRIO JOÃO FÁVERO PROF. GÉRI NATALINO DUTRA PROF. JEDERSON SUZIN PROF. JORGE DA SILVA GIULIAN PROF. JUAREZ MATIAS SOARES PROF. LEONARDO RIBAS TAVARES PROFª.MAGDA DEMARTINI TASCA PROF. NILSON DE FARIAS PROF. NORIVAL JOÃO CENCI PROF. RODRIGO CORONA MENEGASSI PROF. RUDI RIGO BÜRKLE PROFª.SILVANA DE MELLO GUZZO SECRETÁRIA EDITORIAL : MARISOL TOMASINI DUTRA 2 REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA : PROFª. SETEMBRINA ZUCCHI NUNES VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA : PROFª. THELMA BELMONTE SUMÁRIO APRESENTAÇÃO EDITORIAL IMUNIDADE PARLAMENTAR: TRIBUNOS DA PLEBE E CONGRESSISTAS BRASILEIROS – ACADÊMICO DIRCEU DIMAS PEREIRA ESCRAVIDÃO E LIBERDADE : UMA LIÇÃO ROMANA – ACADÊMICA CLAUDIA ZIPPIN FERRI A PROPRIEDADE PARTICULAR E O SEU FIM SOCIAL EM RELAÇÃO À PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE – ACADÊMICA ROSANI MARLY HADLICH ULIANO A CONDIÇÃO DA MULHER NO CASAMENTO – ACADÊMICA AQUILÉA ADRIANA DE OLIVEIRA FILIAÇÃO : VISÃO CRÍTICA A PARTIR DO DIREITO ROMANO – ACADÊMICA RAQUEL TEIXEIRA DE LIMA MERCOSUL E GLOBALIZAÇÃO – ACADÊMICAS RAFAELA CALGARO e CLÁUDIA FRIGERI O MERCOSUL INSERE O BRASIL NA GLOBALIZAÇÃO PELA PORTA DA FRENTE? – ACADÊMICOS (AS) ELIZANGELA ROZANSKI, FERNANDO CALZA, FRANCIELE DA ROZA COLA e LUIZ FERNANDO SCHUCHOVSKI 3 APRESENTAÇÃO A Faculdade Mater Dei apresenta com orgulho o primeiro volume dos CADERNOS DE ESTUDOS JURÍDICOS MATER DEI, ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CORPO DISCENTE DO CURSO DE DIREITO DA FACULDADE MATER DEI, publicado virtualmente na home page da FACULDADE MATER DEI ( www.materdei.edu.br ), com inscrição no ISSN de Brasília – DF, sob número 1677 – 3454, com periodicidade anual. A publicação demonstra o compromisso da Faculdade Mater Dei com a Educação Jurídica de qualidade, que proporcione aos Acadêmicos sólida formação profissional, conjugando no processo educativo atividades de ensino, pesquisa e extensão. Ao lado da REVISTA JURÍDICA MATER DEI – ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CORPO DOCENTE DO CURSO DE DIREITO DA FACULDADE MATER DEI – a presente publicação retrata o propósito do CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI, de transpor o modelo tradicional de Curso Jurídico que “reproduz o saber”, incentivando a “construção” e a “reconstrução” diuturna do conhecimento jurídico. A FACULDADE MATER DEI confia que a semente hoje plantada renderá bons frutos, pois o compromisso de nossa Instituição extrapola a mera formação de técnicos para o “mercado de trabalho”, sendo missão de nossa Instituição “moldar o caráter cívico” dos Acadêmicos, ensejando a iniciação científica, ferramenta indispensável na construção do conhecimento. DR. GUIDO VICTOR GUERRA 4 DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI EDITORIAL Para além do simples “Ensino Jurídico”, o Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei objetiva proporcionar a seus Acadêmicos o acesso a uma sólida “Educação Jurídica”, comprometida com o aprendizado fundada em pesquisa, marca distintiva desta Instituição de Ensino Superior. “Cadernos de Estudos Jurídicos Mater Dei” é a publicação que sintetiza a produção dos Acadêmicos do Curso de Bacharelado em Direito, desenvolvida durante as Disciplinas ofertadas como requisitos de avaliação e incentivo à iniciação científica. Os trabalhos são orientados e selecionados pelos respectivos Professores das Disciplinas, servindo como exemplos das atividades docentes desenvolvidas no Curso. O “Órgão de Divulgação da Produção Científica do Corpo Discente do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei” tem Conselho Editorial (composto por todos os Docentes do Curso), com competência para apreciar os textos indicados a publicação, dentre outras funções regimentais. Com tal iniciativa, a Faculdade Mater Dei demonstra estar comprometida com a excelência da Educação, concretizando os ideais enunciados no Projeto do Curso que tramitou no MEC. O Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei é a prova de que é possível aliar o ensino à pesquisa; é possível vencer o desafio da busca de um processo educativo dinâmico e eficiente, no o Acadêmico seja “construtor de seu próprio conhecimento”. PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA COORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI 5 EDITOR DOS CADERNOS DE ESTUDOS JURÍDICOS MATER DEI COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI ARTIGOS IMUNIDADE PARLAMENTAR : TRIBUNOS DA PLEBE E CONGRESSISTAS BRASILEIROS ( * ) DIRCEU DIMAS PEREIRA Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei. Vereador em Pato Branco-PR. ( * ) Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Flori Antonio Tasca na disciplina Direito Romano, do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei, no ano 2000. RESUMO – O artigo trata da proteção dos parlamentares contra possíveis abusos intentados contra ele pelos demais poderes do Estado ou pelo próprio povo. O texto aborda aspectos históricos do tema, analisando-o à luz do Direito Constitucional brasileiro. Fundado em doutrina especializada, o autor ressalta a importância da Imunidade Parlamentar para a garantia do processo legislativo, questionando seus limites e sugerindo alternativas à sua aplicação, ressaltando que a proteção é concedida aos representantes do povo, visando o melhor exercício da função legislativa. PARLIAMENTARY IMMUNITY : TRIBUNES OF COMMON PEOPLE AND BRAZILIAN CONGRESSMEN – ABSTRACT - The article deals with the protection of the legislative officers against possible abuses intended against them by the other powers of the State or by the people themselves. The text approaches historical aspects of the subject, analyzing it under the light of the Brazilian Constitutional Law. Grounded 6 on specialized doctrine, the author emphasizes the importance of the Parliamentary Immunity for the guarantee of the legislative process, questioning its limits and suggesting alternatives to its application, pointing out that protection is granted to the representatives of the people, aiming at the best exercise of the legislative function. INTRODUÇÃO A sociologia jurídica nos ensina que o direito acompanha a evolução das sociedades e que nelas se insere como fato social capaz de influenciar a evolução humana. O homem, como ser socialmente organizado, tem necessidade de se relacionar com seu semelhante e com o grupo ao qual se encontra vinculado. À medida que esse grupo cresce, é necessário estabelecer-se um conjunto de regras orientadoras dos comportamentos individual e social. Como todos tem o direito de manifestar suas expectativas e opiniões, mas nem todos podem participar da elaboração da norma, que não permite participação excessivamente numerosa, elege-se representantes, em número razoável, que em nome de seus representados têm legitimidade para legislar. Na sociedade romana, no período da república, os plebeus viviam em grande desvantagem em relação aos patrícios, tanto econômica como politicamente. Em sinal de protesto organizaram uma grande greve e retiraramse da cidade. Sem mão-de-obra, a cidade ficou paralisada. Para solucionar o problema, os patrícios enviaram um representante, para negociar a volta dos trabalhadores às suas atividades. Como resultado, muitas reivindicações dos plebeus foram atendidas pelos patrícios, nascendo daí, como uma das conquistas mais importantes da época, a figura do tribuno da plebe, eleito para representar o povo, no senado romano. No início do século XIX, o pensador positivista francês Auguste Comte prega a independência dos poderes do Estado. Devendo este compreender os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. Aos poucos difundiu-se esta 7 doutrina e hoje, a maioria dos Estados adota este sistema, incluindo-se entre eles o Brasil. O direito, atento à sua função reguladora dos interesses sociais, trata de proteger esta relação que se estabelece entre representados e representantes e destes com o poder ao qual está vinculado, assim como os demais poderes do Estado. Já no direito romano, os tribunos da plebe, que apareceram por volta do século V a.C., gozavam de inviolabilidade e imunidade, o que se observa atualmente, no direito brasileiro, que oferece imunidade parlamentar ao nosso legislador. No estudo do direito romano encontramos abordagens que mencionam a distinção atribuída ao tribuno da plebe. O mesmo ocorre no direito brasileiro, em relação ao nosso legislador. Todavia, é preciso conhecer a finalidade de tal distinção. Interrogar a quem ela interessa. Se tem sua origem no senso comum. Quais são os seus limites, normativo e real. E por fim, qual a relação existente entre a concepção de imunidade daquela época (República Romana) e da atual (Legislativo Brasileiro). Da mesma forma, um estudo completo do assunto exige uma abordagem ampla, de todos os sistemas legislativos, que adotaram e adotam a imunidade parlamentar como instrumento de proteção ao legislador, ao longo da história até os nossos dias, assim como a evolução do entendimento jurídico no período. Desta forma, optou-se pela delimitação do tema a dois períodos bem determinados, assim como a pesquisa será restrita ao tribuno da plebe, no período da república romana e ao legislador brasileiro a partir da Constituição Federal de 05/10/1988. De modo geral, a pesquisa busca a compreensão e a identificação das normas e da doutrina relativa ao tema. Em seu desenvolvimento pretende levantar minuciosamente as situações em que o representante do povo encontra-se amparado pela lei, assim como aquelas em que está sujeito à lei, destacando os pontos divergentes entre diversos autores e especialistas do direito, como forma de contribuir para uma análise crítica do sistema. 8 Especificamente, a pesquisa fixar-se-á no estudo do direito romano, especialmente em sua história política, limitada à atuação e às prerrogativas do tribuno da plebe. Em relação ao direito constitucional brasileiro, procurará concentrar-se nas imunidades parlamentares de deputados e senadores, a partir da CF/88, na expectativa de estabelecer relação e identificar influência do direito romano sobre nosso direito, nesse particular. As informações obtidas através de referências bibliográficas consultadas, dão conta de que o magistrado romano e o legislador brasileiro são invioláveis em seus atos, palavras, opiniões e votos. Em função disso não podem ser acusados, presos, ou punidos. Nas disposições doutrinárias, ilustres autores defendem a relevância da medida, levando em conta, além da segurança do legislador, a sua liberdade para exprimir a vontade de seus representados, mesmo que para isso precise transigir com o poder do Estado e que nesta função lhe seja imperioso expressar opiniões fundadas em informações confidenciais, que lhe forem confiadas. Renomados juristas discutem, em certa medida, os limites determinados pela norma, apresentando uma perspectiva sobre a qual se pode vislumbrar os aspectos positivos e negativos do dispositivo, permitindo em tese, a propositura de alternativas para sua adequação. No mundo contemporâneo, em que a grande maioria dos países adota o sistema de governo composto pelos três poderes propostos por Comte, onde o legislativo desempenha papel fundamental, pesquisar-se os aspectos da imunidade parlamentar, é, sem dúvida, trazer à luz uma das mais antigas preocupações do direito. Trata-se de descobrir, na norma positivada, a manifestação da vontade popular, que deseja proteger seus representantes, alcançando com isso objetivo bem maior: a proteção dos direitos coletivos. O assunto interessa sobremaneira sob dois aspectos: enquanto se propõe a estudar os aspectos jurídicos, depara-se ao mesmo tempo com o processo político desenvolvido pela sociedade, numa convivência interdependente, onde não se pode conceber a existência de um isolado do outro. 9 No exercício da cidadania, o homem precisa ter conhecimento de tudo o que o direito coloca à sua disposição. Este, embora sendo dirigido ao legislador, é também um direito do povo e como tal deve estar disponível ao seu conhecimento. Como um dos objetivos da ciência do direito é estar em constante evolução, a pesquisa pretende contribuir para a determinação da necessidade de manutenção do sistema vigente ou da reformulação de conceitos e modificação da norma. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA O interesse pelo assunto fundamenta-se em duas premissas básicas, quais sejam: a identificação da validade do Instituto como forma de proteger as atividades dos parlamentares, e, a análise de seus atributos vinculados ao questionamento de que sua existência propicie aos beneficiados, comportamentos nocivos à sociedade enquanto detentores de mandato, mediante utilização em proveito próprio do benefício instituído. Como não poderia deixar de ser, a base de sustentação teórica de um trabalho desta natureza foi extraída de obras escritas por eminentes doutrinadores, que se dedicam ao estudo da história do Direito, especialmente do Direito Romano e suas relações com o Direito contemporâneo, assim como estudiosos das relações dos poderes constituídos com os demais poderes e com as pessoas de modo geral. Igualmente, buscou-se no Direito Constitucional, brasileiro e comparado, especificamente na Carta Magna de 05/10/1988, a raiz da previsão legal determinada pelo legislador constituinte. Para realização do trabalho procurou-se, inicialmente, identificar obras que apresentassem referências à existência do Tribuno da Plebe, no sistema político romano, a forma pela qual eram conduzidos ao poder, suas atribuições, prerrogativas e relações com os demais poderes e com o povo. Referida pesquisa fundamenta-se na concepção de tratar-se o Tribuno da Plebe, do primeiro representante do povo a gozar de inviolabilidade e imunidade no desempenho de sua função. Na mesma trilha, buscou-se a existência de obras que contemplassem o Instituto nos períodos do Império 10 Romano e na Idade Média, encontrando referência ao mesmo apenas superficialmente no final do Século XIV. Aliás, tal referência sofre contestação, quando Wade afirma em sua obra Direito Constitucional, que o exemplo aludido não se referia à Câmara dos Comuns e que o mesmo “veio surgindo lentamente pela prática da política inglesa, até afirmar-se definitivamente com o seu Bill of Rights de 1689”. A partir daí, constatou-se em diversas obras, referências às imunidades parlamentares nos mais diversos países, entre eles a República Democrática Alemã, a Bulgária, a União Soviética, a República Popular da China, entre outros, fixando-se finalmente, no Direito Constitucional brasileiro, numa rápida visão das constituições de 1824, 1891, 1934, 1967 e especialmente a de 1988, cuja aplicação prática vivemos em nossos dias. A pesquisa foi organizada através de fichamento das obras, análise de pontos de vista dos autores e interpretação da idéia central dos textos, objetivando identificar pontos convergentes e pontos divergentes, que pudessem servir de base para a proposição de alternativas ao modelo vigente. Em função das características do presente trabalho, até o momento não foi possível a realização de pesquisa de campo, a qual poderá ser de grande valia, notadamente se forem ouvidos ocupantes de mandato que estejam ou que tenham estado no exercício dos mesmos e membros da comunidade que expressem opinião devidamente embasada sobre o assunto. Convém ressaltar que as informações encontradas e catalogadas são relativamente escassas, porém, permitem a formação de um conceito sólido acerca do Instituto, bem como a abertura de discussão em torno de sua aplicação e validade, de acordo com as informações apresentadas a seguir. ASPECTOS DOUTRINÁRIOS E LEGISLATIVOS Considerando o legado do Direito Romano, do qual o ocidente é herdeiro cultural, extraímos da obra de CRETELLA JR., o seguinte: “Situação da plebe e a figura do tribuno: ao passo que os patrícios têm todas as regalias, a plebe, ao contrário, está em posição 11 bastante desvantajosa, em Roma, principalmente, do ponto de vista econômico e político. Como conseqüência, greve de grandes proporções agita os plebeus, que se retiram, em massa, para o monte sagrado. Sem a participação da parte mais numerosa e trabalhadora da Cidade, esta entra em crise. Patrícios e plebeus resolvem fazer um acordo, sendo atendidas diversas reivindicações da plebe, a mais importante das quais é a criação do tribuno da plebe, representante do povo, no senado romano. Criados em 494, os tribunos da plebe eram magistrados plebeus, invioláveis, sagrados, com o direito de veto contra decisões a serem tomadas. Podem opôr-se até mesmo às decisões dos cônsules e dos senadores. Não podem dormir fora de Roma e devem manter sempre abertas as portas de suas casas, prontos para intervenção imediata, a qualquer hora do dia ou da noite, a favor dos plebeus. Têm a seu dispor o mesmo recurso que os cônsules – a intercessio – podendo com esta colocar em crise a poderosa máquina do Estado romano. O tribuno da plebe não pode ser acusado, preso, nem punido. Tem imunidades totais, chamadas imunidades parlamentares”. ( CRETELLA JR., 1988, p. 40 e 41). Esta informação nos permite visualizar o Tribuno da Plebe no exercício de seu mandato, na condição de representante do povo, revestido de obrigações para com os seus representados, porém, gozando de prerrogativas que lhe garantem proteção para o pleno exercício de suas funções. Ainda acerca das características, atribuições e prerrogativas do Tribuno da Plebe, encontramos em HARVEY: "TRIBUNOS DA PLEBE: em Roma, originariamente em número de dois, aumentados, posteriormente, para cinco e em seguida para dez, eram magistrados de nascimento plebeu livre incumbidos de proteger o povo, possuindo para isso o poder de veto, graças ao qual podiam sustar a ação de qualquer ouro magistrado. Sua pessoa era inviolável. Esses tribunos tinham poderes para convocar reuniões dos plebeus com o objetivo de discutir assuntos 12 de interesse público a proporem mudanças na lei. Eram eleitos anualmente , mas ignora-se o órgão que os elegia. Um patrício podia tornar-se tribuno da plebe fazendo-se adotar por uma família plebéia. Após a sua proeminência inicial, o tribunato perdeu sua importância e passou a ser um instrumento do Senado, até reviver em decorrência da ação dos Gracos. Depois dessa fase ele tornou-se uma fonte de grande inquietação para a classe dominante. Sula reduziu-lhes os poderes restringindo o alcance do veto e proibindo a promoção a cargos mais elevados de qualquer cidadão romano que tivesse exercido o tribunato. Entretanto esses privilégios foram restaurados, dentro dos dez anos seguintes à morte de Sula, e os tribunos desempenharam um papel saliente na proteção dos interesses de Júlio César, em Roma, durante sua permanência na Gália, como governador. Na época imperial, os imperadores receberam a tribunicia potestas, e os tribunos propriamente ditos perderam toda a importância”. (HARVEY, Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina, p.501). Postas estas informações, é preciso encontrar, no Direito brasileiro contemporâneo, o modelo de funcionamento dos poderes constituídos, quais suas semelhanças e diferenças com o sistema político romano, notadamente no que tange às imunidades. Inicialmente vamos encontrar referências na Constituição da República, que em relação aos deputados e senadores brasileiros, em seu Artigo 53, assim dispõe: “Art. 53. Os deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos. [. . .] § 1º - Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa. § 2º - O indeferimento do pedido de licença ou a ausência de deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato. 13 § 3º - No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos serão remetidos, dentro de vinte e quatro horas, à Casa respectiva, para que, pelo voto secreto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão e autorize, ou não, a formação de culpa. § 4º - Os Deputados e Senadores serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. § 5º - Os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações. § 6º - A incorporação às Forças Armadas de Deputados e Senadores, embora militares e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença da Casa respectiva. § 7º - As imunidades de Deputados e Senadores subsistirão durante o Estado de Sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos, praticados fora do recinto do Congresso, que sejam incompatíveis com a execução da medida”. Tais disposições não permitem uma compreensão clara do propósito da norma, estimulando o interessado a buscar em outras fontes, em especial na doutrina, os elementos necessários ao seu entendimento. Importante contribuição encontramos na obra de Luiz Roberto BARROSO, da qual extraímos o seguinte: “Imunidade material ou inviolabilidade: a proteção constitucional somente alcança os atos praticados pelo parlamentar no exercício de seu mandato. A prerrogativa compreende, todavia, atos praticados fora do Congresso, inclusive pela imprensa, desde que logicamente vinculados com o exercício do mandato. Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa. O depoimento prestado por membro do 14 Congresso Nacional a uma Comissão Parlamentar de Inquérito está protegido pela cláusula de inviolabilidade. Imunidade formal ou processual: a licença é a condição para instalação do processo-crime. O indeferimento da licença ou a ausência de deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato. No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos serão remetidos à Casa respectiva, para que, pelo voto secreto resolva-se pela prisão e autorizese ou não a formação de culpa. Os deputados serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Os deputados e senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações. A incorporação às Forças Armadas de deputados e senadores, embora militares e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença de sua Casa respectiva. As imunidades de deputados e senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos, praticados fora do recinto do Congresso, que sejam incompatíveis com a execução da medida.(BARROSO, 1998, p. 164 a 167)”. Na mesma linha, encontramos valorosos comentários a respeito do assunto, demonstrando de forma clara, o seu entendimento, acerca do dispositivo constitucional, na obra de Pinto FERREIRA, cujo pensamento pode ser assim transcrito: “História: sobre a origem das imunidades parlamentares, alguns doutrinadores apontam o ano de 1397, na Inglaterra. Entretanto, o instituto veio surgindo lentamente da prática política inglesa, para afirmar-se plenamente vitorioso com o seu Bill of Rights de 1689. Da Inglaterra o instituto se propagou para os Estados Unidos. No Brasil o instituto existe desde a Constituição de 1824. Imunidades da Constituição de 1988: assegura inviolabilidade e imunidade dos deputados e senadores. Estes são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos. Os membros do Congresso Nacional não 15 podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados sem prévia licença de sua Casa. O indeferimento da licença suspende a prescrição enquanto durar o mandato. As imunidades subsistem durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva. Democracias Marxistas: nenhum deputado do Soviet Supremo podia ser processado na justiça nem preso sem o consentimento do Soviet e sem permissão do Presidium. Diversas constituições das chamadas Democracias marxistas garantiam as imunidades formais e materiais. Direito Constitucional Moderno: trata-se de um instituto que tem plena atualidade; distinguindo-se entre imunidade e inviolabilidade que, a imunidade é uma prerrogativa pertencente aos senadores e deputados de só serem processados com autorização da Casa Legislativa respectiva, já a inviolabilidade é a exclusão de punibilidade de certos atos de difamação, injúria e calúnia. Os vereadores não gozam de imunidade parlamentar, somente de inviolabilidade.(FERREIRA, 1998, p. 345 à 347)”. Talvez, a obra mais interessante acerca do dispositivo constitucional, seja “Comentários à Constituição do Brasil” de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, na qual encontra-se definido o conceito de imunidade parlamentar como sendo “o elemento preponderante para a independência do Poder Legislativo”. É o dispositivo que assegura ao parlamentar as condições necessárias ao bom desempenho de suas funções, para as quais é imperiosa a plena liberdade de expressão (do pensamento, das palavras, da discussão, do voto). São privilégios ou prerrogativas imprescindíveis ao mister condicional de representar interesses alheios, e, conseqüentemente conflitivos e antagônicos e o exercício da normal vida parlamentar. Define ainda que: “para a incidência do princípio da imunidade material é necessária a satisfação de dois requisitos: em primeiro lugar, o crime por ele praticado há de ser no exercício do mandato; em 16 segundo lugar, haverá de ser um daqueles crimes passíveis de materialização por via de opiniões, palavras e votos”. O dispositivo legal trata tanto da imunidade material quanto da imunidade formal, sendo ambas definidas da seguinte forma: a primeira trata da tipificação do crime, ou seja, tudo aquilo que for realizado em função do exercício do mandato, que seria crime para o cidadão comum, não o é para a parlamentar; a segunda trata de impedir que o parlamentar seja preso ou processado, a não ser em caso de flagrante de crime inafiançável. Observa também, que a sustação da ação processual na vigência do mandato, determinada pela não concessão da licença para o seu prosseguimento, suspende também a prescrição, que passa a contar, a partir do momento da extinção do mandato. De posse do material acima referido, assim como de outras obras que serviram de apoio, procurou-se deflagrar um processo de compreensão e síntese, capaz de oferecer um julgamento consistente da operação do Instituto bem como, uma nova visão de sua aplicação, no mundo contemporâneo. PRINCÍPIOS DO INSTITUTO E SUA APLICAÇÃO Retomando os termos Inviolabilidade e Imunidade Parlamentar, é necessário estabelecer-se, inicialmente, a diferença entre ambas: a primeira se refere às funções parlamentares, ou seja, a latitude da imunidade material, aquela que impede a própria formação do caráter delituoso do comportamento; a Segunda, protege os congressistas contra a prisão ou processo, que contra eles possa se intentar. Já no período da República Romana, os Tribunos da Plebe eram invioláveis em suas funções. Perderam, aos poucos, suas prerrogativas e deixaram de existir, no período imperial. Com o aparecimento das Câmaras ou parlamentos, no final da idade média, início da idade moderna, reapareceram as imunidades parlamentares, que se observam até o presente, guardadas as características próprias de cada Nação. 17 A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu Artigo 53, trata da inviolabilidade dos (Congressistas) Deputados e Senadores, atribuindo-lhes a prerrogativa em relação às opiniões, palavras e votos. Dispõe ainda em seus parágrafos, que os mesmos não podem ser presos ou processados, a não ser em situações especiais, atribuindo-lhes foro especial para julgamento, o qual ocorrerá, durante o exercício do mandato, somente com autorização da respectiva casa. Observa ainda que, a imunidade é preservada, inclusive durante o Estado de Sítio. O princípio fundamental, que norteia a medida, é o de que, se deve assegurar ao parlamentar a mais ampla liberdade de expressão, no desempenho de sua função, protegendo-o contra possíveis abusos por parte dos outros poderes ou do próprio povo. Voltando ao conceito defendido por Comte, de que o Estado deve se desenvolver por meio da subdivisão do poder em três áreas distintas, executivo, legislativo e judiciário, porém harmônicos entre si, o questionamento que se levanta é: por que há necessidade de um poder buscar proteção contra o outro? Teriam o Executivo e o Judiciário poder de império em relação ao legislativo? Já foi possível observar que, nos governos absolutistas desapareceram as imunidades. Neste caso a ocorrência é evidente, levando-se em conta a inexistência de parlamento. Entretanto, quando este existe, verificamos também, ainda que simbolicamente, a existência da proteção institucional ao representante do povo. Em análise correlata, observa-se a preocupação do legislador em proteger igualmente os funcionários do governo, ocupantes de cargos integrantes de atribuições exclusivas de Estado. Tal preocupação, assim como, a que se manifesta através das imunidades parlamentares, visa proteger o beneficiado contra ações, ameaças, coação ou qualquer forma de constrangimento no exercício de suas funções. Daí se depreende que o benefício existe em razão da função e não da pessoa. O Estado é constituído pelo povo. Seus dirigentes, em todos os poderes, devem defender o povo. O legislativo, em especial, na qualidade de Poder Fiscalizador, além de Legislativo, é o que está mais próximo do povo e representa suas aspirações 18 na formulação de leis e na fiscalização do Executivo. Por isso, necessita de proteção especial, além daquela à disposição do cidadão comum, para que possa expressar-se livremente, com eloqüente veemência, usando de todos os recursos para bem desempenhar seu papel. A prerrogativa que lhe dá a imunidade formal, de não ser preso, nem processado sem autorização da respectiva casa, não significa que ficará impune, pois não é esta a finalidade objetiva do preceito legal. O ato continuará a configurar crime, aguardando tãosomente o momento oportuno para sofrer a sanção cabível. A imunidade parlamentar, é, então, medida justa e válida dentro do sistema de governo brasileiro. Segundo estudiosos do Direito, trata-se de preceito constitucional dos mais modernos, restando apenas questionar seus limites. CONCLUSÃO No mundo contemporâneo as transformações sociais acontecem muito rapidamente e de maneira imprevisível, que se tornam difíceis de projetar mudanças significativas planejadas a longo prazo. O Direito, de modo geral, tende a ser conservador. Mesmo que se verifique, na prática, uma evolução social tendente a modificar costumes e procedimentos, as normas jurídicas tardam a assimilar os efeitos dos comportamentos para se constituírem em instrumento regulador dessas relações. O Direito, via de regra, não alcança os acontecimentos em transição, ocupando-se de situações perfeitamente determinadas e devidamente normatizadas. O argumento acima pretende inferir na constatação da existência de comportamentos intencionais ou não, lesivos ao Instituto das Imunidades Parlamentares. No cotidiano dos brasileiros, tem sido comum observar-se parlamentares, que se utilizam da proteção, na busca da defesa de interesses particulares, no mais das vezes, escusos, para os quais o remédio não poderia ser a imunidade, mas sim o contrário. O povo, ao eleger seus representantes, muitas vezes desconhecem as verdadeiras intenções de seus candidatos, os 19 quais após a diplomação, já sob a proteção constitucional, demonstram seus verdadeiros interesses. Somos favoráveis à democracia e aos ideais democráticos. Acreditamos na plena liberdade de defesa do acusado. Defendemos porém, que aqueles que estejam respondendo a processo judicial, independente de sua natureza, não possam ser candidatos a cargo eletivo. Compreendemos que, sobre eles paira a presunção de inocência, mas por outro lado, em igual medida, pode se presumir a culpa. Igualmente, se no curso do exercício do mandato, o Congressista for acusado de cometimento de crime comum, deverá sujeitar-se a julgamento na condição de licenciado, mesmo que, para isso, se estabeleça rito de julgamento sumário, permanecendo efetiva a inviolabilidade material, protegendo-o em relação aos atos praticados exclusivamente no desempenho da função parlamentar. Essa conformação normativa, em nosso entendimento, salvo melhor juízo, classificaria melhor os componentes do parlamento, dando maior credibilidade aos seus membros e ao próprio Poder, representando melhor e com maior justiça o povo. Resta, ainda, como sugestão, a ampliação da pesquisa, com a oitiva de parlamentares em exercício, ex-parlamentares e cidadãos do povo, para se levantar melhor juízo das ocorrências reais verificadas no Congresso, bem como as expectativas em relação ao futuro, o qual sabemos incerto e sempre sujeito a mudanças velozes e surpreendentes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 5.ª ed. Rio de Janeiro. Forense, 1983. • BARROSO, Luiz Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada. São Paulo. Saraiva, 1998. • BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de Outubro de 1988. Celso Ribeiro Bastos/Ives Gandra Martins. São Paulo. Saraiva, 1995. 20 • CRETELLA JUNIOR, José. Curso de direito romano. 22.ª ed. Rio de Janeiro. Forense, 1988. • FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 9.ª ed. São Paulo. Saraiva, 1998. • HORTA, Raul Machado, Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte. Del Rey, 1995. • OLIVEIRA, Dr. Juarez de. PINTO, Antônio Luiz de Toledo. WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos. Constituição da República Federativa do Brasil. 22.ª ed. São Paulo. Saraiva, 1999. ESCRAVIDÃO E LIBERDADE : UMA LIÇÃO ROMANA ( * ) CLAUDIA ZIPPIN FERRI Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei ( * ) Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Flori Antonio Tasca na disciplina Direito Romano, do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei, no ano 2000. RESUMO – O artigo aborda o tema em perspectiva crítica, ressaltando o valor da liberdade e exemplificando a dominação pelo instituto jurídico da escravidão. Analisando historicamente a servidão, a autora estuda o tema à luz do Direito Romano, destacando a importância do status libertatis e tratando de outros aspectos de relevância. Cuida também o texto da escravidão na Idade Moderna e na Idade Contemporânea, afirmando o valor da liberdade como essencial à dignidade dos seres humanos. SLAVERY AND FREEDOM : A ROMAN LESSON – ABSTRACT - The article approaches the subject under a critical perspective, pointing out the value of freedom and exemplifying the domination by the legal institute of slavery. Analyzing historically the servitude, the author studies the subject under the light of the Roman Law, emphasizing the importance of the status libertatis and dealing with other aspects of 21 relevance. The text also takes care of the slavery in the Modern and Contemporary Ages, affirming the value of freedom as an essential condition to the dignity of the human beings. INTRODUÇÃO O tema escravidão parece ficar incompleto sem abordagem ao tema liberdade. Uma rápida visão histórica demonstra que, embora a primeira pareça ter estado sempre presente no seio da humanidade a liberdade sempre foi a regra e a escravidão só existiu em razão da força. A dificuldade desta pesquisa, não se encontra em mostrar a escravidão e suas formas, mas em conceituar e descrever a liberdade. Enquanto que a escravidão apresenta-se como um fato material com conseqüências morais, fruto da ambição e crueldade humana, a liberdade transcende a matéria, pois não existe na simples destruição do cativeiro, dos grilhões ou na extinção da servidão. Tomemos como referência os escravos brasileiros, após a libertação em 13 de maio de 1888, embora livres da condição de escravos, continuavam vítimas de preconceito racial e, considere-se ainda que, a vida em uma terra de costumes, língua e religião completamente diferentes da realidade de seus países de origem ,não favorecia esses negros libertos para que reconstruíssem suas vidas no Brasil. Assim sendo, a abolição da escravatura não significou necessariamente, a liberdade desse povo, mas o começo de sua luta pela conquista da mesma. Descrever a escravidão, é mostrar a face menos digna do ser humano, a qual ultrapassa, constantemente, as fronteiras do bom-senso buscando atender sua ganância desenfreada sem preocupações éticas e morais. Compreender o sentido da liberdade é mergulhar na alma humana, buscando entender a sua essência e seus anseios mais íntimos. Penetrando a história da humanidade, a chaga moral mais deprimente, parece ser a instituição jurídica da escravidão. Buscando conhecê-la em toda sua extensão, necessário pesquisar no seio do povo romano, uma vez que, a constância das guerras entre Roma e outros povos, culminou com o ponto máximo da escravidão, na história da 22 humanidade. Esta pesquisa tenta resgatar a história da escravidão entre os romanos e os processos de humanização dessa instituição, de forma a se reconhecer mais uma contribuição da sabedoria desse povo. Quanto à liberdade, esta pesquisa busca conceituá-la e responder a questão: diante da aproximação do terceiro milênio, são os seres humanos realmente livres? Os fatos pesquisados podem ser surpreendentes, mostrando que, a realidade parece, constantemente, superar a ficção. A ESCRAVIDÃO A escravidão é definida como a situação social do indivíduo, ou grupo, obrigado sob coação a servir a outro indivíduo, ou grupo, que tem sobre ele direito de propriedade, inclusive o de lhe atribuir valor de mercadoria. O senhor pode apropriar-se, na sua totalidade, do produto do trabalho do escravo. As origens da escravidão ligam-se à sedentarização e, portanto, à revolução neolítica, de que advêm a pastorícia e a agricultura. Não se encontram vestígios de escravidão, em muitas sociedades primitivas, e contemporâneas. Os povos recoletores e caçadores não a praticaram, sendo, além disso, diminuto seu papel na sociedade de pescadores. A primeira referência histórica à escravidão data, de 5 mil anos, é uma inscrição suméria conhecida como o "O Pecado do Jardineiro" a qual encontra-se no museu de Antiguidades Orientais em Istambul. Os sumérios escravizavam seus prisioneiros de guerras para trabalhar na lavoura. Nos relatos históricos das escrituras, a escravidão é constantemente mencionada nas rotinas dos diversos povos e em diferentes épocas, destacando-se no livro Gênesis a história de José, filho predileto de Jacó, vendido como escravo pelos próprios irmãos a mercadores de Madiam que o venderam no Egito a Putifar, chefe da guarda real. O povo judeu também aparece escravizado na antiga Babilônia e posteriormente no Egito. Segundo Aristóteles, alguns homens são escravos por natureza, nascidos para servir, para fazer o que são mandados e absolutamente incapazes de autogoverno. É impossível avaliar a importância econômica do trabalho escravo para as civilizações antigas pré-clássicas por 23 falta de dados seguros, embora se possa imaginar ter sido de longe, inferior a que se constatou na Grécia e em Roma. Na Grécia, eram abundantes os escravos, e de baixo preço, devido a constância das guerras. Todavia, o período de maior abastecimento de escravos ocorreu em Roma, na época da conquista das regiões mediterrâneas, pelos romanos, o qual sofreu declínio no período da paz de Augusto, para voltar a incrementar-se, a partir do século III d.C., com as guerras de Roma contra os bárbaros. A escravidão atingiu seu ponto máximo, em Roma, nos séculos II - I a.C., período em que se faz maior o poderio dos latifundiários romanos e, no qual, se registram violentas revoltas no braço servil. No final do império romano começou a formar-se a organização feudal, convertendo-se o escravo em servo da gleba. A escravidão transformou-se em servidão e o contingente de escravos na Europa, na Idade Média, ficou limitado, período no qual o mundo muçulmano se torna o principal utilizador de escravos. O Corão não condenava a escravidão, mas aconselhava que os escravos fossem tratados com humanidade e considerava ato piedoso e meritório sua manumissão. Em fins da idade média, a prática da escravidão volta a surgir, no mundo, através das colônias européias da América, atingindo proporções gigantescas com as explorações portuguesas no litoral africano. No Brasil, a escravidão foi oficialmente abolida em 1888 e, após a Segunda Guerra Mundial, a escravidão passou a ser reprovada e combatida em todos os países, no entanto, os seres humanos insistem em escravizarem-se mutuamente, contrariando todos os princípios da ética e da moral. A ESCRAVIDÃO EM ROMA Na civilização romana antiga, o Status Libertatis era o maior bem, mas a escravidão parecia uma necessidade social para sustentar uma população ociosa. O escravo era res-persona, despojado, portanto, de personalidade jurídica por encontrar-se em poder de alguém, de quem integrava o patrimônio. Não havia entre o escravo, sua mulher e os filhos, relações de parentesco, para quaisquer fins. Os escravos eram essenciais para o desempenho de trabalhos domésticos e atividades agrícolas. Eram utilizados também para 24 desempenhar funções de secretários, pedagogos e médicos, quando eram inteligentes e cultos, principalmente os escravos gregos. Os escravos faziam parte da família e muitas vezes se afeiçoavam aos seus senhores, sobretudo quando eram bem tratados. Um exemplo clássico de bondade e solicitude do amo para com o seu escravo, é o de Cícero em relação ao seu escravo Tirão. Por outro lado, sabe-se que o povo romano era, por natureza, muito cruel. Os romanos não conheciam a virtude da humanidade e os escravos eram utilizados, também, para espetáculos e jogos, dentre os quais destacavam-se as lutas de gladiadores, organizadas com grande luxo. As mais cruéis cenas divertiam o povo romano nas lutas para as quais os gladiadores eram treinados na arte de se matarem mutuamente. Haviam ainda as lutas contra feras e as corridas de carros. A população escrava era muito grande e as fontes de escravidão eram principalmente, o nascimento e o cativeiro. Filhos de escravas eram escravos também e todo o prisioneiro de guerra, quando não era morto, convertia-se em escravo. As guerras Púnicas que ocorreram entre os romanos e cartagineses foram grande fonte de escravidão, especialmente a terceira guerra, na qual os romanos destruíram completamente Cártago e transformaram mais de 40.000 cartagineses em escravos. Além das condições mencionadas, perdiam a condição de liberdade, os soldados romanos desertores; os que não se inscreviam no censo; o devedor que não saldasse sua dívida era convertido em escravo do credor e a prisão em flagrante daquele que praticasse furto culminava na venda do mesmo como escravo, pela vítima do furto. No período do império, tornam-se escravos os condenados a trabalhos forçados e às feras do circo. Mais tarde, tornava escrava a mulher livre, que houvesse mantido relação com escravos, convertendo-se a mesma em escrava do senhor do seu amante. Assim também se procedia com o homem que se fazia vender como escravo por um cúmplice, no intuito de mais tarde usufruírem do dinheiro da venda, esse era entregue como escravo ao comprador, como forma de castigo. O liberto ingrato recaia também na escravidão. A prática da escravidão, na Roma antiga, durou mais de um século, e, assim sendo, evoluiu a ponto de se humanizar. A medida que o tempo passa, é 25 permitido ao escravo, representar seu senhor em certos atos jurídicos, desde que, com o objetivo de aumentar o patrimônio, nunca de diminuí-lo. Permite-se também, que o senhor confie aos cuidados do escravo a gestão de pecúlio, cuja propriedade, porém, continua com o primeiro. No final da república, sob a influência do cristianismo, a situação do escravo se modifica para melhor. Proíbe-se aos senhores abandonar seus escravos recém-nascidos, velhos e doentes; apenas com ordem do magistrado pode o senhor atirar seus escravos às feras; não se permite que o escravo seja maltratado ou morto sem motivo e não se atiram mais os escravos aos tanques para serem devorados pelas moréias. O escravo podia adquirir o status liberatis pela manumissão, a qual poderia se dar de forma solene ou não solene. A manumissão ou alforria era o ato jurídico pelo qual o senhor outorgava a liberdade a seu escravo. O escravo que adquiria a liberdade era chamado liberto ou libertino. Essa situação jurídica era diferente da situação do ingênuo, representada pelo ser humano, que jamais esteve em situação de escravo. As formas solenes de manumissão ocorriam pelo censo, pela vindicta e pelo testamento. Pelo censo o escravo passava a ser liberto quando o senhor lhe permitia inscrever-se nos registros do recenseamento, o qual ocorria de 5 em 5 anos, não sendo portanto uma forma eficiente de manumissão devido a sua limitação pelo longo período; o senhor podia determinar em testamento, que seu escravo fosse liberto; a terceira forma consistia em uma espécie de encenação, na qual, o escravo, o senhor e um amigo do mesmo dirigiam-se ao magistrado e em sua presença, o amigo tocava o escravo com uma varinha dizendo: "declaro este homem livre". O senhor calava-se e, desta forma o magistrado declarava livre o escravo sob o raciocínio, de que, o silêncio do senhor representava o consentimento do mesmo. Outras formas de manumissão podiam ocorrer sem nenhum processo formal. Uma forma não solene ocorria diante de amigos, depois da ceia na qual o escravo tomasse assento à mesa. Através de uma carta dirigida ao escravo, comunicando-lhe que estava livre, também se dava a manumissão e, por influência do cristianismo surge, mais tarde, uma nova forma de manumissão 26 realizada nos templos, por meio de uma declaração solene do sacerdote, diante do proprietário do escravo e dos fiéis, os quais serviam como testemunhas. O certo, historicamente, é que a escravidão foi o fator fundamental da decadência do mundo romano, o qual só pôde prosperar na medida em que lhe foi possível abastecer-se de escravos. A ESCRAVIDÃO NA IDADE MODERNA Em fins da Idade Média, prepara-se o advento de uma época de escravidão intensa nas colônias européias da América. O tráfico atingiu proporções extraordinárias, a partir das explorações portuguesas no litoral africano. Em 1444, os portugueses começaram adquirir escravos negros do Sudão e, no século XVI, Lisboa e Sevilha atingem o desenvolvimento máximo como mercados de escravos. O indígena mostra-se indócil ao trabalho servil, no continente americano e são defendidos pelos missionários. A maioria se revolta e foge para as florestas, além de resistirem mal às doenças transmitidas pelos europeus e à exploração a que estes o submetem. O escravo negro passou a ser a solução para os colonizadores, os quais ligaram-se ao surto da economia açucareira. O apogeu do tráfico negreiro é atingido no século XVIII, com o constante aumento do uso de produtos tropicais na Europa. As principais regiões fornecedoras eram o golfo da Guiné (Senegal, Gâmbia, Rios do Sul, Costa dos Grãos, Costa de Marfim, Costa do Ouro, Ouidah e os Popo, Porto Novo e Badagry, Benim, Calabar, Camarões, Gabão, cabo López), a região da Angola (Loango, Congo, Luanda, Angola e Benguela) e Moçambique, na costa oriental. Apesar do grande comércio surgido com a escravidão negra, começaram a surgir movimentos contrários, tendo como trabalho pioneiro na criação de uma opinião abolicionista a Society of Friends (Sociedade dos Amigos), ou quacres, que em 1774 fundaram na Pennsylvânia, a primeira associação contra o tráfico de escravos. Em 1787, na Inglaterra é fundada a Society for the Abolition of the Slave Trade (Associação para a Abolição do 27 Tráfico de Escravos). Surge na França a Société des Amis des Noirs (Sociedade dos Amigos dos Negros), mas o primeiro país a abolir o tráfico de escravos foi a Dinamarca. Entre os fatos de maior relevância, na evolução histórica do movimento abolicionista pode-se citar: a revolta de escravos que levaria à independência do Haiti, cuja repercussão na França culminou com a proclamação da abolição da escravidão nas colônias francesas; a proibição do tráfico de escravos por navios britânicos e a importação dos mesmos para as colônias inglesas; a renúncia ao tráfico pela Suécia e pelos Países Baixos entre 1813 a 1814; a aprovação da lei no Reino Unido em 1833, a qual libertou todos os escravos de suas colônias; a proibição aos franceses de possuírem escravos, mesmo em países estrangeiros; abolição adotada no México (1829), Portugal (1858), EUA (1865). Em Cuba e no Brasil foram sendo tomadas diferentes medidas legais de cunho abolicionista, respectivamente, entre 1880/1886 e 1871/1888. A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL O primeiro negro no Brasil chegou com a armada de Martim Afonso e em 1549, negros e mulatos acompanharam Tomé de Souza, na edificação da cidade de Salvador. Esses indivíduos foram os precursores de milhões de negros africanos, que foram trazidos para o Brasil por dois séculos e meio. Na época do descobrimento, Portugal já estava na posse dos arquipélagos da Madeira e do Cabo Verde, do litoral da Guiné, das ilhas São Tomé e Príncipe, da embocadura do Zaire e Moçambique e, havia instalado uma fortaleza na costa do Ouro (Gana), começando em seguida a conquistar Angola. Várias tribos, que habitavam esses pontos vieram escravos para o Brasil, desembarcados nos principais portos, para a lavoura e fábricas de açúcar. A sucessiva mudança de interesse econômico principal, do açúcar para o ouro e do ouro para o café, impôs demorado e variado contato lingüístico, religioso e sexual entre os brancos e negros das mais diversas nações africanas. 28 Durante a escravidão, distinguia-se o negro boçal ou novo, recém chegado da África, ainda sem conhecimento dos costumes do país; o negro ladino, africano, mas já com experiência da sociedade brasileira, e o negro crioulo, nascido e criado no Brasil. Uns e outros precisaram ajustar-se às condições vigentes no Novo Mundo, e, essa adaptação forçada preparou o caminho para sua ascensão social, com o estabelecimento de relações primárias de confiança e respeito mútuos entre senhor e escravo. O negro conquistava de muitas maneiras a liberdade, a qual era precária e, constantemente, ameaçada pelo arbítrio dos brancos. Haviam negros forros, beneficiados pelos senhores, em geral em testamento, e o negro liberto, o qual comprava sua liberdade ou a obtinha em virtude da lei ou de promessa do governo por serviços especiais. Em geral, a alforria contemplava velhos, doentes e inabilitados. Algumas libertações foram fruto da bondade de senhores, mas a grande maioria não passava de uma situação de conveniência para os mesmos, os quais eximiam-se de alimentá-los e vesti-los quando sua estabilidade financeira encontrava-se em risco. O certo é que as libertações conseguidas no plano individual acabaram por motivar o plano coletivo. Nos fins do império, o advogado João Marques argumentou habilmente em favor de muitos negros de filiação desconhecida (o brasileiro só seria escravo se nascido de ventre escravo), obtendo nos tribunais a libertação dos mesmos. A grande maioria, no entanto não teve a mesma sorte, ficando a mercê de seu senhor, o qual dispunha de sua vestimenta, alimentação, moradia, do seu tempo e mesmo de suas relações sexuais. Castigos atrozes e aviltantes eram impostos aos negros, tais como o tronco, vira-mundo, cepo, libambo, peia, gonilha e as brutalidades mais terríveis, como pontapés no ventre de escravas gestantes, olhos vazados e dentes quebrados a martelo, emparedamento em vida, mutilações e outras. Esses abusos ocorreram especialmente enquanto o tráfico não sofria limitações internacionais e a mercadoria humana era abundante e barata. A vida útil do escravo era de aproximadamente de 7 a 10 anos, uma vez que o trabalho estafante, de 14 horas diárias sob o sol e os maus tratos transformavam o negro em verdadeiro trapo humano, mas, enquanto lhes restava alguma energia, organizavam-se 29 em quilombos, promovendo levantes locais e abandono em massa das fazendas. Além do negro de campo, havia o negro de ofício, que ocupava um escalão ligeiramente superior. Surgiram os negros barbeiros, ferreiros, pedreiros, marceneiros, seleiros, canoeiros e mulheres costureiras. Esses negros eram poupados da enxada e dos castigos corporais. O negro começou também a integrar a família dos senhores, desempenhando funções de pajem, moço de recados, capanga, babá, cozinheira e outros. Eram as crias da casa, afilhados, homens de confiança e outras denominações que refletiam relações amistosas e serviam de ostentação do senhor, como sinal de riqueza e poder. Muitos desses negros aprenderam a ler e reuniram pecúlio suficiente para uma vida mais ou menos folgada. Outra prática da época, além da venda, era o aluguel de escravos. Segue como ilustração um anúncio de venda de escrava veiculado em 1850: "uma linda parda muito prendada, perfeitíssima costureira de cortar e fazer camisas de homem e vestidos de senhoras, de qualquer moda, que lhe apresente, borda, marca e faz crivo com toda perfeição, enfeita chapéus para senhora, como qualquer francesa, engoma o melhor possível, é boa doceira, penteia e veste uma senhora com toda a delicadeza, enfim, é uma mucama prendada no último ponto, por ter aprendido em um colégio...." A partir de 1871, surge no Brasil, a campanha do abolicionismo, visando a extinção do trabalho escravo. A maior figura dessa campanha foi Joaquim Nabuco. Participaram ainda: Castro Alves, Tavares Bastos, Joaquim Serra, José Mariano Carneiro da Cunha, Luís Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, entre outros. Incentivados pelo processo de urbanização, pela expansão das atividades industriais e pela valorização do trabalho assalariado, os abolicionistas publicavam jornais, promoviam comícios e organizavam associações, como a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, a Associação Central Emancipacionista e a confederação Abolicionista. Data desse período o periódico veiculado em Salvador e Rio de Janeiro, denominado O Abolicionista. As maiores conquistas desses abolicionistas foram a lei do Ventre-Livre (1871) e a lei do Sexagenário (1885), culminando 30 com a lei nº 3.353, denominada lei Áurea (13 de maio de 1888). As duas primeiras leis foram discutíveis, porque a primeira, embora libertasse os filhos de escravas nascidos, a partir daquela data, limitava sua liberdade até a maioridade: a segunda fazia pouco sentido, uma vez que, um escravo explorado desde o nascimento dificilmente alcançava a idade de 60 anos. A lei Áurea, por sua vez extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil. Com o passar do tempo, o negro influenciou sobremaneira os costumes brasileiros, trazendo como resultado social uma miscigenação, que deu uma característica especial e única a esse povo. Muito mais do que as leis, as condições sociais e econômicas, ajudadas pelo esforço individual e coletivo dos negros, propiciaram e prepararam a progressiva elevação do escravo a cidadão. Tendo finalmente cessado a escravidão negra no Brasil, restou na história uma nódoa, feita de muita luta, suor e sangue. A ESCRAVIDÃO NA IDADE CONTEMPORÂNEA Em 1945, com a fundação da ONU, a reprovação do princípio da escravidão tornou-se mundial. Em 1948, o artigo 4º, da Declaração dos Direitos do Homem, proclamava: "Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas". Assim sendo, a escravidão, ou qualquer tipo de submissão humana que se assemelhe, é combatida em todos os países. No Brasil, a lei penal considera crime contra a pessoa, reduzir alguém à condição de escravo (CP, art. 149). No entanto, o Código Penal de 1890, o qual foi editado após a concretização do ideal preconizado pelo movimento abolicionista, não cuidou expressamente do delito, que só retornou ao ordenamento jurídico com a promulgação do Código de 1940, ainda em vigor. Referido Código, em seu artigo 149 dispõe o seguinte: "Reduzir alguém à condição análoga à de escravo: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos". Falar sobre escravidão em vésperas do Terceiro Milênio parece uma força de expressão para enfatizar condições adversas de trabalho legalmente constituído, cujo salário seja considerado baixo ou insatisfatório. No entanto, de 31 quando em quando aparecem circunstâncias nas quais se comprovam a subsistência de formas disfarçadas ou claras de escravidão e servidão inclusive no Brasil. Esse tipo de escravidão, embora combatido, é real e subsiste com características próprias para a época, em geral, praticado contra pessoas analfabetas e desempregadas, iludidas com falsas promessas de empregos. Essas pessoas, levadas a trabalhar em fazendas passam a sofrer maus tratos, aprisionamento, castigos e muitas vezes são mortas. O número de escravos existentes na Índia e Paquistão são exorbitantes. Na Índia, estima-se que existam 10 milhões de pessoas em regime de escravidão e, no Paquistão, o governo admite que há 20 milhões de escravos, apesar de seus esforços para combater essa prática histórica no país. Calculase que no Nepal existam 100 mil escravos e, no Brasil, o ritmo da escravidão amazônica vem até diminuindo, graças ao empenho do governo em estourar as senzalas. Com base em dados colhidos pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, sabe-se que, de 1995 para cá, foram libertados 777 (setecentos e setenta e sete) brasileiros do cativeiro e estima-se que haja vários outros vivendo nessa situação aviltante. Esses brasileiros libertados trabalhavam como escravos em fazendas em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, sul do Maranhão e Pará, e eram homens, mulheres e crianças. Considerando-se só os casos absolutamente comprovados, de gente escravizada que foi libertada, o número total de 777 sugere que as pessoas nessa situação, cheguem a alguns milhares. Existe ainda uma estimativa de que entre os atuais escravos, 18% sejam assassinados. Antônio Pereira da Silva, de 27 anos, tentou fugir da condição de escravo em uma fazenda do sul do Pará. Após duas noites na mata amazônica foi capturado e, de volta à fazenda, com os pulsos amarrados, levou uma surra de cipó durante 30 minutos e um soco que rasgou-lhe o queixo. Antônio voltou a fugir, mas, recapturado, passou três dias a pão e água, na cela de uma delegacia, e dali, saiu de volta para a fazenda. Antônio foi libertado em fevereiro de 1998. Ednaldo Silva Santos, de 32 anos, trabalhou como escravo por mais de sete meses e foi libertado com mais doze homens, duas mulheres 32 e duas crianças. Ednaldo conta "Se o sujeito se negasse a trabalhar, o patrão mandava matar e enterrar na fazenda mesmo". Guilherme Pedro Neto de 51 anos conta "Fui mais que um escravo, eu era um animal. Num ano, no início da década de 70 eu fui vendido três vezes". A situação da mulher escrava é ainda pior, uma vez que, além do trabalho em regime de servidão, a mulher sofre abusos sexuais. Raimunda Chaves de 27 anos, passou mais de um ano trabalhando numa fazenda em São Félix do Xingu, no Pará, em troca de dois pratos de comida. Raimunda sofreu abuso sexual três vezes por parte dos capangas. Pensou em suicídio, mas um dia conseguiu fugir, deixando para trás o marido, do qual nunca mais teve notícias. O exemplo mais recente de servidão no Brasil foi noticiado no dia 29 de março de 2000, no programa Fantástico. A matéria mencionou 80 (oitenta) pessoas descobertas por fiscais do trabalho e policias federais, em regime de semi-escravidão. Esses trabalhadores recebiam 70 centavos por dia de trabalho e foram libertados no dia 15 do mesmo mês e ano. A LIBERDADE A fortíssima influência da idéia de liberdade, através da história, tem estabelecido, para tal assunto, uma posição privilegiada e constante no pensamento humano. O relacionamento com a liberdade, encarada como um dado essencial, tem sido tomado, freqüentemente, como critério para julgar instituições, sistemas e formas de ordem. A liberdade tem sido entendida em termos religiosos, metafísicos, psicológicos e sociais. Discutiu-se exaustivamente, nos séculos XVII e XVIII sobretudo, a relação da liberdade (livre-arbítrio) com o determinismo. Tem-se tomado a liberdade, como inerente ao homem, como razão e finalidade da história e como conteúdo fundamental da vida social. O liberalismo ocidental moderno, conduzido e vivido pela burguesia, colocou como um valor básico a liberdade. A liberdade individual seria algo irrecusável e a partir dela, por via do consenso da lei, se edificariam o progresso social, a justiça política e o equilíbrio das instituições. Assim sendo, 33 todos os problemas humanos passaram a ser discutidos sob esse aspecto, desde a Revolução Industrial. Sob o ponto de vista religioso, existem três conotações de liberdade na Bíblia: liberdade como oposição à escravidão (de natureza espiritual), liberdade no sentido de oposição à escravidão no sentido material (o cativeiro do Egito) e a liberdade como libertação e salvação, formando uma carga afetiva elaborada em torno da idéia nuclear de verdade: "A verdade vos libertará". Os textos bíblicos, especialmente o Novo Testamento revelam uma hierarquia de valores, como verdade, justiça, liberdade, fé, ciência, profecia e amor, sendo este colocado no ápice, ou seja, na projeção do humano em direção do transcendente. Compreende-se assim, na tipologia cristã, o amor como valor superior à liberdade. Em um sentido, compreende-se a liberdade como autodeterminação ou autocasualidade, ou seja, liberdade como ausência de limitação; como necessidade fundada na autocasualidade e, como possibilidade e opção. O primeiro conceito é de Aristóteles, o segundo é espinosista e o terceiro, da filosofia moderna, caracterizado como liberdade do querer, ou livre-arbítrio e como liberdade de fazer. O livre-arbítrio está relacionado com a liberdade nos seus critérios psicológicos e morais. Em sentido psicológico, se opõe ao determinismo e a fatalidade, e, em sentido ético, é fundamento da responsabilidade, a liberdade da consciência moral. Para São Tomás de Aquino, a verdadeira liberdade é a que se eleva com a consciência individual e social, ao mesmo tempo, em que, o homem se sente livre antes e depois da ação. Segundo John Locke, "We are born free as we are born rational" (nós somos nascidos livres assim como nascemos racionais); "And the liberty of acting according to our own will, never from compulsion by the will of others, is grounded on the possession of reason" (e a liberdade de agir, segundo nossa própria vontade, jamais da compulsão pela vontade dos outros, é fundada pela posse da razão). Define então a liberdade como um poder, o qual gera uma ação, de acordo com sua vontade. Stuart Mill define o homem como um "agente livre e inteligente" (free and intelligent man) e diz que ele está sempre à procura da felicidade, tendo a razão por seu guia. Segundo Hegel, o conceito 34 de liberdade pode ser variado, dentro das idéias da racionalidade, da filosofia, do direito, da moral e do espírito, terminando por conceituar que "o estado é a realidade da liberdade concreta". LIBERDADE, LIVRE ARBÍTRIO E RESPONSABILIDADE O mundo parece apontar ao homem, um assustador número de possibilidades, tendo em vista sua enorme complexidade. Observando-se esse conjunto de sistema de normas, imposição de caminhos, controle de expectativas, falta de horizontes, violência, dor, medo, repressão, condicionamentos educacionais, sociais e morais, pergunta-se o homem consegue realmente ser livre. Diante das oportunidades do mundo, o ser humano tem sempre que procurar por alternativas a escolher, e é na consciência plena de si mesmo que estabelece as condições básicas de sua libertação. A consciência, junto da vontade, possibilitam a liberdade do homem e essa liberdade implica em responsabilidade, ou seja, o homem é responsável por sua liberdade e por causa dela. A liberdade, compreendida como um fator existente, além das limitações da matéria é patrimônio individual conquistado com esforços próprios, cabendo a cada indivíduo determinar se é realmente livre. A LIÇÃO ROMANA A liberdade entre o povo romano era, na verdade, muito relativa e restrita. Ser livre para esse povo era simplesmente a condição de não ser escravo, não estando sob o domínio de outrem. Nas cidades antigas como Roma, a onipotência do império tornava a liberdade individual praticamente impossível. O cidadão estava submetido à cidade sob todos os aspectos. Nada no homem era independente, até seu corpo pertencia ao estado, uma vez que o serviço militar era obrigatório até os 46 anos. A fortuna do cidadão também estava sempre à disposição do estado, e este, não tolerava cidadãos disformes 35 ou monstruosos, reservando-se o direito de exigir que, os pais matassem seus filhos nascidos nessas condições. O corpo e a alma do cidadão eram considerados propriedades do estado, mesmo porque, não havia liberdade religiosa, de educação ou da vida privada. Como exemplo dessa realidade pode-se citar uma lei criada em Roma, que permitia matar todo o homem que tivesse intenção de tornar-se rei. A crueldade também era uma constante na vida e nos costumes dos romanos. A prática do suicídio era comum entre eles, especialmente a fim de evitar os suplícios e as humilhações impostas aos vencidos. São exemplos de suicídas: Aníbal, Demóstenes, Cleópatra, Marco Antonio e outros. Os romanos não conheciam a virtude da humanidade e costumavam abusar da natureza humana no trato aos seus filhos e seus escravos. A escravidão, como já mencionada anteriormente, era uma instituição juridicamente válida, mas apesar da natureza cruel do romano, a noção de justiça parecia estar arraigada naquele povo. Somando-se a isso as idéias de humanidade veiculada pelo cristianismo que acabaram por vencer os costumes mais aviltantes e as hipóteses de manumissão foram gradativamente aumentando. A lição romana constitui-se exatamente neste fato: Se um povo cruel e de costumes desumanos rendeu-se aos apelos de uma idéia nova e redentora, passando a reconhecer a liberdade e valorizar a vida humana, os povos que o sucederam não poderiam ter igualado-se a eles na prática da escravidão. Ocorre ainda, que, afirmar que os povos da Idade Moderna igualaram-se aos romanos, na prática da escravidão, é, no mínimo, uma generosidade, pois a crueldade dos primeiros, parece ter, de longe, superado a dos romanos. Diante do exposto, o que pensar dos indivíduos que na atualidade ainda se valem da força para escravizar os mais fracos? Esta parece ser uma questão para que se reflita a respeito e não para ser respondida, buscando, se necessário, o modelo romano de justiça e progresso moral. CONCLUSÃO 36 Sendo o homem um ser imperfeito e incapaz de distinguir precisamente o certo do errado, necessários são os contrastes para que se perceba o valor de certos bens. Com os erros cometidos no passado, adquire-se consciência no presente, a fim de se construir um futuro melhor. O registro da escravidão na história mundial, abre uma grande brecha, na consciência humana, convidando os homens a se questionarem a respeito do valor da liberdade. Infelizmente, a liberdade que é assegurada por lei, muitas vezes é sufocada pela ambição desenfreada dos homens. Anomalias sociais frequentemente, vêm à tona, mostrando que o uso da força ainda persiste no comportamento humano e que o valor da palavra liberdade não é compreendido por todos. A liberdade vai muito mais além de grilhões partidos, de leis abolicionistas, de atos solenes de manumissão. A liberdade é a condição na qual o ser humano tem preservada sua dignidade e seu direito de exercer seu livre arbítrio. Segundo Adlai Stevenson, "Um homem faminto não é um homem livre" e essa condição pode se estender ao homem analfabeto, ao desempregado, ao enclausurado nos limites de seu próprio lar a fim de fugir da violência urbana, ao trabalhador que precisa sobreviver com seu salário mínimo e outros tantos. Não há dúvidas que, a escravidão e/ou servidão, sempre estiveram presentes entre os povos, que praticavam a crueldade e a força bruta como forma de obtenção de vantagens, e para manterem seus estilos de vida sem no entanto fazerem uso de seus próprios esforços. Essa prática representava a vontade da maioria, mas sempre encontrou oposição e/ou reprovação nas diversas épocas, como se luzes esparsas estivessem presentes no seio da humanidade, tentando iluminar os períodos mais trevosos. A consciência do valor da vida humana e da importância da liberdade tem dado ao homem, a dignidade, que ele precisa para superar os obstáculos materiais impostos pelas limitações naturais e sociais presentes no mundo. A liberdade, quando acompanhada de responsabilidade, confere ao indivíduo, o poder de fazer ou de deixar de fazer e de escolher, segundo sua própria determinação, sem ferir a liberdade do próximo. O indivíduo, que se orienta exclusivamente, sob inspiração do desejo, não é livre, pois está 37 constantemente aprisionado pelos vícios e paixões, tornando-se um escravo de si mesmo. Feliz, verdadeiramente, é o homem consciente, que orienta-se na busca da liberdade olhando para seu interior. Feliz é aquele que compreende que está ante e não sob os problemas e injunções da vida. Feliz é aquele que consegue estar no mundo sem ser do mundo, edificando com dignidade seu próprio destino e construindo sob a inspiração do amor sua liberdade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a pessoa. São Paulo, SP, Saraiva, 1997. • COULANGES, Fustel de. Tradução de Edson Bini. A Cidade Antiga Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: EDIPRO. 1998. • CRETELA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense. 1997. • MAIOR, Armando Souto. História Antiga. São Paulo: Nacional. 1962. • MOTENSQUIEU. 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A PROPRIEDADE PARTICULAR E O SEU FIM SOCIAL EM RELAÇÃO À PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE ( * ) ROSANI MARLY HADLICH ULIANO ACADÊMICA DE DIREITO ( * ) Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Flori Antonio Tasca na disciplina Direito Romano, do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei, no ano 2000. RESUMO – O texto aborda o tema da propriedade privada e seu fim social em relação ao meio ambiente, abordando as origens da propriedade no Direito Romano e traçando a evolução do instituto até os presentes dias. O artigo trata do tema à luz do Direito Constitucional brasileiro, referindo-se a autora às Constituições anteriores e ao texto constitucional vigente, com destaque para a submissão da propriedade privada ao cumprimento de sua função social. THE PRIVATE PROPERTY AND ITS SOCIAL AIM IN RELATION TO THE PROTECTION OF THE ENVIRONMENT - ABSTRACT - The text approaches the subject of the private property and its social aim in relation to the environment, approaching the origins of the property in the Roman Law and tracing the evolution of the institute until the present days. The article deals with the subject under the light of the Brazilian Constitutional Law, mentioning the previous Constitutions and the in 39 force constitutional text, with prominence to the submission of the private property to the fulfillment of its social function. INTRODUÇÃO No final desse século, ocorreu uma grande valorização dos bens ambientais, em todo o mundo. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, definiu no art. 225, caput, que todos têm direito ao meio ambiente, ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Já o direito de propriedade é um tema bastante antigo. No estudo do Direito Romano, a propriedade apresentava caráter absoluto e individualista, passando, historicamente, a se vincular ao bem comum. O homem convivendo e organizando-se em cidades, passa a normatizar os comportamentos, estabelecendo, através do Direito, as condutas que regem a vida em sociedade, de tal forma a garantir a sobrevivência dessa nova estrutura. É na relação do homem com o homem e com o uso que faz da sua propriedade que, o homem manifesta a sua interferência direta no meio ambiente. É de todo errado, pensar que, o proprietário de parcela de terras, tanto em área urbana como rural, tem sobre a coisa, o poder absoluto de usá-la como bem entender, baseado no direito de propriedade. O atual sistema jurídico brasileiro eleva o fim social da propriedade e a proteção do meio ambiente à categoria de princípios constitucionais. Mesmo no direito romano, o proprietário já estava sujeito às limitações legais impostas pelo Estado, em função de motivos de ordem pública, higiênica e outras, como manter espaços entre as construções, respeitar direitos de vizinhança e de aproveitamento de águas. A questão fundamental desse estudo é mostrar que, através do tempo regularam-se limites no uso da propriedade privada, visando o bem comum. 40 Com o uso correto da propriedade, o homem atende a sua função social, garante não só a convivência em sociedade, mas preserva o maior patrimônio da humanidade: o ar, a terra e tudo o que sobre ela há: as matas, a biodiversidade, os animais, e a água considerada maior riqueza natural do III milênio. Este estudo busca subsídios para esclarecer a origem da função social da propriedade, baseado na avaliação do conceito de uso da propriedade privada e sua função social no Direito Romano. Apresentar uma noção da evolução histórica do direito de propriedade com fim social, nas constituições brasileiras, até garantir a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. DIREITO DE PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE Atualmente, o direito de propriedade está inserido num contexto social, tratando-se de um tema bastante interessante e complexo. O direito de propriedade 1 é o direito que o proprietário do bem possui de usar, gozar e dispôr da coisa, e de reinvindicá-la de quem quer que injustamente a possua, conforme disposto na CF: art. 5o , XXII a XXVI, e 170, II; CC: art. 524. O direito de propriedade, que é assegurado pela Constituição Federal estabelece uma relação da propriedade com a sociedade (art. 5o ., XXIII e art. 170, III e IV, ambos da CF/88). A propriedade não fica constando simplesmente como um direito e uma garantia individual, mas, no dizer de José Afonso da Silva, citado por AGUIAR (1995, p.7), passa a ter uma função social como “elemento da estrutura e do regime jurídico da propriedade, sendo princípio 1 Conforme Joaquim Castro Aguiar, “ o direito de propriedade, num sentido amplo, é direito patrimonial, daí por que se costuma denominá-lo de direito ao patrimônio, reservando-se a expressão direito de propriedade aos direitos relacionados com a propriedade real, a propriedade em sentido estrito como utilizada pelo direito civil. Sendo chamado de domínio o direito de propriedade stricto sensu. Não é tratado nesse estudo, o direito de propriedade lato sensu ou seja, o direito ao patrimônio. Nesse trabalho, será utilizada a expressão direito de propriedade stricto sensu indicando domínio, ou seja a propriedade como direito real”. AGUIAR, Joaquim Castro. Direito da cidade. São Paulo: Renover, 1995. p. 02. 41 ordenador da propriedade privada, que incide no conteúdo do direito de propriedade”. 2 A propriedade atenderá a sua função social (CF. art. 5 o , XXIII). Segundo Marco Aurélio Greco, citado por AGUIAR (1995, p. 6), “a função social de um bem não é algo abstrato, e hipoteticamente, aferível, nem está sujeito a padrões indeterminados e genéricos, mas, ao revés, só é perceptível no caso concreto, em razão das peculiaridades de cada situação, variando, portanto, de local para local.” 3 Sendo, o Brasil, um país de tão diferentes realidades geográficas, sócioeconômicas e culturais, o entendimento jurídico das normas, que dispõe sobre a matéria, podem gerar muitas interpretações. Segundo, José Afonso da Silva, a propriedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares; há a propriedade rural e a urbana, a propriedade pública e a privada. Por isso, o princípio da função social atua diversamente, tendo em vista a destinação do bem do objeto da propriedade. “O princípio da função social da propriedade tem sido mal definido, na doutrina brasileira, obscurecido, não raro, pela confusão, que dele se faz com os sistemas de limitação da propriedade. Não se confundem, porém. Limitações dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário, enquanto a função social interfere com a estrutura do direito mesmo”.4 e 5 Propriedade privada, função social e meio ambiente formam uma tríade complexa, cujo resultado da soma deve garantir os interesses coletivos. Mas, o que se observa é um conflito potencial de interesses entre direito de propriedade e meio ambiente. 2 AGUIAR, Joaquim Castro. Obra citada. p.7. AGUIAR, Joaquim Castro. Obra citada. p. 6 4 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 64-65. 5 “ A propriedade urbana está destinada ao exercício das funções urbanísticas, ou seja, para cumprir sua função social deve propiciar habitação (moradia), condições adequadas de trabalho, recreação e de circulação humana, realizar em suma as funções sociais da cidade.” SILVA, José Afonso da. Obra citada. p. 67. Já “a propriedade rural cumpre sua função social quando atende, simultaneamente, os seguintes requisitos: I - o aproveitamento racional e adequado; II - a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente; III - a exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores”. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 1997. p. 155. O autor complementa, esclarecendo que o aproveitamento racional e 3 42 Segundo, Paulo Afonso Leme Machado, considerado o pai do direito ambiental no Brasil, “o conteúdo da propriedade não reside num só elemento. Há, sem dúvida, o elemento individual, que possibilita gozo e lucro para o proprietário. Mas outros elementos aglutinam-se a esse: além do fator social, há o componente ambiental.”6 Em várias bibliografias, pode-se encontrar a seguinte afirmação: “Reconhecer que a propriedade também tem uma função social é não tratar a propriedade como um ente isolado na sociedade. Afirmar que a propriedade privada tem uma função social, não é transformá-la em vítima da sociedade. Evita-se assim a propriedade agressora das outras propriedades - pública ou privada- pois inexiste, juridicamente, apoio para a propriedade, que agrida a sociedade, que fira os direitos dos outros cidadãos.” 7 Assim como nas demais áreas, do atual sistema jurídico brasileiro, o “direito de propriedade e direito do meio ambiente utilizam, pois, a lei para definir seus contornos, suas necessidades e suas aspirações. Esses direitosdeveres podem ajustar-se e estar conciliados, mas se estiverem em colisão, teremos que confrontar as normas jurídicas de cada um desses institutos, para saber qual deles deverá ter a prioridade ou a supremacia .” 8 O problema porém, não está apenas na interpretação e aplicação das normas jurídicas existentes. Há necessidade de implementar um processo mais eficaz para garantir a convergência desses interesses. Nesse momento, é fundamental a intervenção estatal, através de políticas públicas de meio ambiente. A integração dos órgãos ambientais federal, estadual e implantação nos municípios dos Planos Diretores Físico Territoriais, incluindo a variável ambiental, podem ser instrumentos na aplicação e eficácia dessas garantias constitucionais. adequado significa, em última análise, “o uso sustentável da terra agrícola, a prática de manejo agrícola que preserve o solo como patrimônio natural desta e das futuras gerações”. 6 7 8 Idem ibidem. p. 127. LEME MACHADO, Paulo Afonso. Estudo do Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 126. 43 “Cada indivíduo tem o direito de ter um patrimônio e de resguardá-lo, embora esse direito não esteja imune à intervenção estatal.” 9 O direito de propriedade está limitado a disposições legais e a condicionantes administrativas do poder público, a quem incumbe preservar o meio ambiente, “bem de uso comum do povo, valor este carregador de interesse público, em seu grau máximo”.10 Dessa forma, se vê com clareza que inexiste, juridicamente, apoio para a propriedade que agrida a sociedade, que fira os direitos dos outros cidadãos”.11 Portanto, o uso da propriedade privada apresenta uma função social no interesse da proteção ambiental. O TEMA NO DIREITO ROMANO No estudo da propriedade no Direito Romano, os romanos não definiram o direito de propriedade. Só a partir da Idade Média é que os juristas , de textos que não se referiam à propriedade, procuram extrair-lhe o conceito, deduzindo que, a propriedade seria o ius udendi et abutendi re sua (direito de usar e abusar da sua coisa). Porém, no mundo romano, situa-se a propriedade no centro do sistema, girando-lhe ao redor toda a ordem jurídica e econômica.12 Tratava-se o direito de propriedade como o maior dos poderes permitidos por lei. Inicialmente, a propriedade, um direito absoluto e exclusivo, que permitia ao proprietário utilizar a coisa como bem entender, inclusive de destruí-la, em virtude do jus obutendi, que é o direito que o proprietário tem de abusar da coisa, alterando-lhe a “substância rerum” (incendiar casas, matas; 9 AGUIAR, Joaquim Castro. Direito da Cidade. São Paulo: Renovar, 1995. p. 2. MILARÉ & BENJAMIN. Estudo Prévio de Impacto Ambiental: Teoria , Prática e Legislação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 106. 11 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 117. 11 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 117. 12 CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o Direito Romano e o Direito Civil Brasileiro. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense. 1999. p. 168. 10 44 abater árvores: matar animais). O caráter exclusivo significava que o proprietário, e mais ninguém, podia dispôr da coisa. 13 O traço absoluto do direito de propriedade é posto em evidência através dos três jura que o caracterizam: o direito de usar (“jus utendi”), de fruir (“jus fruendi”- o direito de aproveitar os frutos e os produtos da coisa ) e de abusar da coisa (“jus abutendi”). Mesmo assim, na Lei das XII Tábuas, já se verificaram algumas restrições, quanto ao uso do terreno, não permitindo sua utilização integral, mas mantendo-se espaços livres - confinium - para a circulação. Sendo terreno com uma construção, deveria haver em volta da casa, um espaço - ambitus. 14 “O traço individualista dos primeiros tempos, vai sofrendo contínuas atenuações, cedendo lugar à penetração do elemento social. Do individual para o social - eis o novo sentido inequívoco do direito de propriedade, no império romano.”15 Durante o período em que vigorou o direito romano, inicialmente, o direito de propriedade era tido como um poder absoluto e ilimitado da pessoa sobre a coisa, com sentido exclusivamente individualista, até a concepção justinianeia, arejada por um novo e altruísta sentido social. 16 Com o tempo, modifica-se essa noção de direito absoluto, influenciado pelo cristianismo, e a propriedade é vista como um bem, que acarreta para o titular, direitos, mas também, deveres e obrigações morais. Na época feudal, o direito de propriedade adquire novos traços, o mesmo acontecendo no final do séc. XVIII.17 Já, “no mundo contemporâneo, por força da evolução social e jurídica, mais e mais os poderes derivados do direito de propriedade são estatuídos pelas Constituições, leis e jurisprudência, de modo bem delimitado”.18 13 CRETELLA JUNIOR, J. Obra citada. p. 171 Idem ibidem. 15 Idem ibidem. p. 173. 16 Idem ibidem. p. 168. 17 Idem ibidem. p. 172-173. 18 BENJAMIN, Antônio Hermann V. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da Reserva Legal e das áreas de preservação permanente. In: 5 anos após a Eco 92 - Congresso Internacional de Direito Ambiental, Anais Proceedings, 199- . p. 16. 14 45 “Em nossos dias, o direito de propriedade torna-se uma função social, que interessa à coletividade, afastando-se, de uma vez por todas, a nota absoluta, perpétua, exclusiva que, na concepção romana, tornava aquele direito uma potestade quase soberana e inatingível”. Segundo J Cretella Júnior, no Direito Romano, a propriedade é o direito ou faculdade, que liga o homem a uma coisa, baseada nos atributos do dominium ,direito que possibilita a seu titular extrair da coisa toda utilidade que esta lhe possa proporcionar. “Propriedade é o poder jurídico, geral e potencialmente absoluto, de uma pessoa sobre uma coisa corpórea”.19 Essa idéia de que o titular tem o domínio absoluto sobre a sua propriedade, se manifesta, ainda hoje, especialmente no que diz respeito à área ambiental. Os bens ambientais, principalmente a terra, as matas e mesmo os animais silvestres são entendidos como patrimônio pertencente exclusivamente ao seu titular, quando na verdade, há muitas limitações legais nesse uso. Pode-se confirmar isso através das palavras do Prof. Antônio Hermann Benjamin: “Em regiões menos evoluídas (e até noutras já bem desenvolvidas), o conceito popular de propriedade confunde-se com um hipotético direito do seu titular de usar aquilo, que é seu como bem lhe convier ou aprouver , prerrogativa essa que lhe dá um poder intocável de desmatar onde e quando pretender, de lotear o imóvel ou explorar o seu subsolo sempre que lhe for oportuno, enfim, de aproveitar, livremente, os recursos naturais existentes na propriedade”.20 Está profundamente arraigado em nossa cultura esse pensamento de poder absoluto do titular sobre a propriedade, assim como, no Direito Romano, quando a propriedade representava a verdadeira dominação da pessoa sobre a coisa, permitindo ao proprietário utilizá-la como bem entendia, inclusive destruí-la. 21 Existe portanto, um entendimento equivocado. O uso da propriedade privada está sujeito às limitações do poder público para garantir a proteção do 19 Idem ibidem. p. 169. BENJAMIN, Antônio Hermann V. Obra citada. p. 16 21 CRETELLA JÚNIOR. J. Obra citada. p. 170. 20 46 meio ambiente. “Na perspectiva ambiental contemporânea - na esteira da aceitação da tese de que o domínio não mais se reveste do caráter absoluto e intangível, de que outrora se impregnava, é bom ressaltar que, entre os direitos associados à propriedade, não está o poder de transformar o ‘estado natural’ da res ou de destruí-la. Nenhum proprietário tem o direito ilimitado e inato de alterar a configuração natural de sua propriedade, dando-lhe características que antes não dispunha, carecendo para tal do concurso do Poder Público.” 22 Quais são os limites no direito de propriedade necessários para justificar a sua função social diante da atual perspectiva da tutela ambiental? Já que : “a Constituição não confere a ninguém o direito de beneficiar-se de todos os usos possíveis e imagináveis de sua propriedade... Além disso, se é certo que a ordem jurídica reconhece ao proprietário o direito de usar sua propriedade, nem por isso assegura-lhe, sempre, e, necessariamente, o melhor, o mais lucrativo ou mesmo o mais aprazível uso possível”. 23 Sabe-se, hoje, que a função social da propriedade está na base da proteção do meio ambiente. Surge daí a necessidade do entendimento da evolução do direito de uso da propriedade privada e o seu fim social. Portanto, a partir de que momento, a propriedade privada passa a adquirir uma função social de interesse ambiental? E nesse contexto, até que ponto o ordenamento jurídico, através da aplicação do direito urbanístico pode representar um importante instrumento na regulação do uso da propriedade privada urbana, na proteção do meio ambiente? Demonstrar que as políticas públicas de meio ambiente, especialmente as municipais, podem ter papel fundamental na eficácia da aplicação da função social da propriedade na proteção do meio ambiente. A idéia de aplicação dos limites dos direitos à propriedade, deve ser inserida na legislação urbanística municipal para alcançar melhor eficácia na aplicação do direito ambiental. 24 22 BENJAMIN, Antônio Hermann V. Obra citada. p. 18 Idem ibidem. p. 25. 24 Atualmente no Brasil, além dos preceitos constitucionais, a legislação ordinária é que regulamenta a proteção ambiental. Algumas constituições estaduais já apresentam em suas cartas referências ao texto ambiental. Porém, quanto aos municípios, as realidades geográficas e sócio econômicas são muito diferentes. Nos grandes centros há toda uma legislação implementada no Plano Diretor Físico Territorial. 23 47 EVOLUÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE Nas leituras preliminares de textos de direito romano, observa-se a evolução de um direito de propriedade absoluto para um direito de propriedade sujeito ao interesse público e ao bem comum. Mesmo nos tempos do Império Romano, o direito de propriedade, já, caminhava do sentido individual para o social. Entre os nômades, não havia o sentimento da propriedade individual, pois ela era coletiva e todos os membros da tribo possuíam os mesmos direitos. Os homens utilizavam os bens para satisfazer suas necessidades físicas imediatas. Apropriar-se de uma parcela de terras surgiu progressivamente, como fato imperioso para vencer as adversidades da natureza. “ A concepção da propriedade era tida como direito natural coletivo, no qual todos tinham o direito de possuí-la, e sem valor econômico individual.” Com o passar dos tempos, a propriedade começou a despertar o interesse dos homens, que se aperceberam do aspecto econômico e absorveram a idéia que aquela “coisa” representava poder, riqueza e status. E no dizer de Clóvis Beviláqua, citado por Fabíola Santos Albuquerque “originou-se, então, na sociedade humana, o phenomeno econômico-jurídico da propriedade” (sic).25 Observa-se que, a partir do momento, em que o homem vive em cidades e se relaciona com as demais pessoas e com o próprio ambiente, ele passa a ter que aceitar, para a sua convivência, regras de conduta com função social, inclusive com relação ao uso da propriedade privada. “A Lei das XII Tábuas foi a primeira organização jurídica escrita entre os romanos e contemplou diversos institutos, entre eles a propriedade. Tamanha sua relevância, que se tornou fonte de todo direito público e privado”. A estrutura familiar baseava-se na autoridade do pater familias, que detinha todo o poder sobre pessoas e coisas, “daí alguns doutrinadores identificarem como Enquanto que nos pequenos municípios, nem sequer existem Planos Diretores Municipais, disposições com fim de proteção ambiental, ou mesmo toda essa preocupação de proteção ao meio ambiente inexiste. 25 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Direito de propriedade e meio ambiente. Curitiba: Juruá, 1999. p.23. 48 sendo este momento em que a propriedade adquiriu forma individual.” 26 A propriedade quiritária, reconhecida pelo direito romano e concedida somente aos cidadãos romanos, passou a ser instituição de direito civil, designada pelo termo diminium, sendo proprietas um termo mais raro e bastante tardio.27 Na idade média, durante o predomínio do sistema feudal, no período do absolutismo monárquico na Europa, caracterizava-se a coexistência de proprietários sobre um único bem, propriedade comum e propriedade individual do solo, o senhor tinha a posse legal e o servo a posse útil.28 Na Idade Moderna, com o início do movimento iluminista, houve o ressurgimento do Direito romano, como direito do nascente Estado Moderno. Os glosadores passaram a aplicar do direito romano, retomando os termos com relação a propriedade e a definição pelo seu conteúdo: o direito de uso, gozo e abuso, como oposição ao regime feudal.29 Em razão das codificações liberais, na formação do Estado liberal, a concepção individualista de propriedade ressalta-se e propriedade como direito comum estatal cai em desuso. “O direito à propriedade privada, atrelada à idéia de liberdade, tem uma conotação tão marcante com a pessoa que é tida como corolário da própria personalidade.” Ressurge a propriedade como direito absoluto e inviolável, passando a nortear o novo arcabouço jurídico, reproduzido quando da Revolução Francesa, absorvido como modelo de propriedade e consagrado pelo Código Civil francês de 1804. A propriedade passa ao mesmo plano da liberdade individual como direitos naturais e imprescritíveis do homem, e tal liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outro, sujeitando-se apenas aos limites determinados por lei, mediante a garantia legal de que a desapropriação somente é possível mediante justa e prévia indenização pelo poder público. A idéia do direito de propriedade, como decorrente do direito natural serviu de justificativa para seu caráter absoluto e individualista, que foi acolhido pelo Código Civil Brasileiro. 26 Idem, p.23. Idem, p. 25. 28 Idem, p. 27. 27 49 Quando da codificação civil, fruto do Estado liberal, o estatuto jurídico estava voltado à tutela dos direitos individuais da classe burguesa, regulando as relações privadas, família, contrato e propriedade. Já no Estado social, a proprieade está inserida em um viés de cunho igualitário, cujo exercício deve ser condicionado às exigências legais e sempre em prol do bem comum. A propriedade é integrante de um complexo de componentes políticos, econômicos e sociais. “O advento do Estado social decorre exatamente da ingerência do Estado nas relações individuais”. Mas nem todos se sujeitam a aceitar o social sobre o particular, especialmente na área ambiental. São exemplo do desseirtuamento contra a ordem júridica a justificativa conservadora de que as leis ambientais que regulamentam o fim social da propriedade ferem esse direito absoluto, ensejando, portanto, altas indenizações mediante desapropriação indireta, alegando prejuízos causadados ao seu titular por restrições no uso da propriedade tanto urbana quanto rural. Verifica-se que, em todos os momentos, o direito de propriedade está sujeito às transformações sociais e esse uso tem uma repercussão não somente individual, mas coletiva. Com a revolução industrial o processo de degradação ambiental intensificou-se de tal forma que muitos, hoje, pensam apenas em efeito estufa, camada de ozônio e degelo das geleiras dos pólos, esquecendo-se de que a propriedade é o primeiro bem sujeito às nossas ações de interferência, no meio ambiente. Que não são somente as fábricas, as indústrias e os grandes empreeendimentos que causam interferências ambientais, mas o próprio crescimento das cidades, com todo o seu afluxo de matéria e energia gera impactos ambientias muito mais profundos e de difícil controle. A certificaçao ambiental internacional da série ISO 14.000 já alcançou os grandes meios de produção no Brasil. Porém, os centros urbanos crescem incontroláveis, com a degradação do ambiente e há perda da qualidade de vida.30 29 30 Idem ibidem. Idem, p. 55. 50 DIREITO DE PROPRIEDADE CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E PROCESSO LEGISLATIVO NAS 31 Constituição de 1824 Prevê garantias individuais à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Garante o direito de propriedade, em toda a plenitude, definido que, somente por lei, serão designados casos em que esta possa sofrer indenização. Constituição de 1891 Garante a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, mantendo-se este em toda a plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia; Constituição de 1934 Ressalta as garantias do Estado social, sendo a primeira constituição que coloca o interesse social ou coletivo como uma nova dimensão da propriedade privada: (art. 113, 17) “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma em que a lei determinar...” Constituição de 1937 Apesar de ser uma constituição de origem ditatorial, não deixou de reconhecer que, o direito de propriedade devia ter seu conteúdo e limites definidos nas leis. Constituição de 1946 No título V, Da Ordem Econômica e Social, encontra-se o art. 147 que diz, na primeira frase: “O uso da propriedade será condicionado ao bem estar social”. Constituição de 1967 O art. 157 diz: “A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social com base nos seguintes princípios: (...) III – função social da propriedade." 51 Emenda Constitucional n. 1/ 1969 O art. 160 diz: “A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: (...) III- função social da propriedade”. Constituição Federal de 1988 O direito de propriedade passa a ter seu conteúdo e seus limites expressos pelo Poder Legislativo e não mais pelo poder executivo como nas outras constituições anteriores. O direito de propriedade é matéria reservada `a lei. No título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, encontramos: XXII – “é garantido o direito de propriedade"; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”. Essa valorização do emprego do processo legislativo, isto é, da lei, ocorreu também no capítulo do meio ambiente. Aliás, é a primeira constituição que apresenta um capítulo dedicado, exclusivamente, ao meio ambiente. Portanto, direito de propriedade e direito do meio ambiente utilizam a lei para definir seus contornos. “O conteúdo da propriedade não reside num só elemento. Há, sem dúvida, o elemento individual, que possibilita gozo e lucro para o proprietário. Mas outros elementos aglutinam-se a esse: componente ambiental”. além do fator social, há o 32 A ninguém cabe o direito de poluir ou desmatar. As ações individuais sobre o meio ambiente estão sujeitas às limitações sobre a propriedade privada, previstas em lei, autorizadas pelo poder público e fiscalizadas pelo Ministério Público e coletividade em geral. O DIREITO DE PROPRIEDADE E A CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição Federal de 1988 foi a primeira, que dedica um capítulo ao meio ambiente, expressa no caput do art. 225, que todos têm direito ao meio ambiente, ecologicamente, equilibrado, bem de uso comum do povo e 31 LEME MACHADO, Paulo Afonso. Estudo de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 120126. 32 Idem p. 127. 52 essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se a Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Comparado ao direito romano, atualmente, “a função social da propriedade é princípio basilar da ordem econômica e social., o que é esclarecido através da seguinte citação: “Ao afirmar que a função social da propriedade é princípio basilar da ordem econômica e social, a Carta do País deixou explícito que, a propriedade e que, portanto, todas as suas expressões naturais - o uso, o gozo e a disposição do bem - não só podem, mas devem, ser regulados de maneira tal que, se assujeitem às conveniências sociais e que se alinhem nesta destinação, de tal modo que, a propriedade cumpra efetivamente, uma função social”. 33 Cabe a cada um cumprir a sua parte, na preservação ambiental, mas está nas mãos do governo a responsabilidade da aplicação da legislação ambiental brasileira para que se cumpram os preceitos constitucionais de a propriedade atender a sua função social. Não está porém, nas mãos do governo, a maior parcela de terras. As terras têm dono, a propriedade é privada. Portanto, a ação primeira no cumprimento do preceito constitucional fundamental para a proteção do meio ambiente, está nas mãos dos particulares. A responsabilidade individual de cada proprietário é muito maior do que se pensa. O papel do Estado como interventor nesse processo, tornou-se imprescindível, exatamente, porque o proprietário usou e abusou dos seus “direitos”, 34 durante séculos. O correto manejo no uso dos recursos naturais é o que se busca. O desenvolvimento sustentado, cujo princípio fundamental é usar o meio ambiente sem prejudicar ou inviabilizar o seu uso pelas futuras gerações, é o modelo de desenvolvimento ideal perseguido por todas as nações do mundo. É urgente portanto, a adoção de práticas públicas de administração ambiental, em todas as esferas do governo. 33 34 35 A aplicação da legislação BENJAMIN, Antônio Hermann V. Obra citada. p. 24 Entenda-se “direitos” como uso abusivo da coisa, jus abutendi. Atualmente é bastante complexa a questão das competências. A Constituição Federal de 1988 previu dois tipos de competência para legislar com referência a cada um dos membros da Federação: a União 35 53 ambiental constitucional e ordinária, a qual, a maioria dos proprietários não quer se sujeitar, gera conflitos de interesses, ensejando prevalecer o interesse do particular sobre o interesse coletivo. Esse fato, repetidamente, termina em litígio, com discussões jurídicas acerca do interesse que deve prevalecer: o interesse particular ou o fim social? Tal fenômeno ocorre, não nas altas esferas do governo, mas no dia-adia dos cidadãos, desconhecedores do nosso direito brasileiro, leigos no assunto, tendo enraizado em suas mentes o direito de propriedade absoluta, e que, ao governo, só lhe interessa cercear tal direito. Tal conflito ocorre justamente no município, onde as relações entre o uso da propriedade privada e o fim social se manifestam e se concretizam. É ali que o homem vive seu dia-a-dia, e é o poder público municipal quem lhe presta o primeiro serviço, normalmente, através de um ato administrativo como uma autorização ou licença36 para a prestação de algum serviço ou execução de benfeitoria, que invariavelmente, interfere na qualidade ambiental. Por isso, uma das soluções para esses conflitos de interesses pode estar na criação e aplicação da legislação ambiental municipal, inserida no plano diretor físico territorial, instrumento básico e imprescindível para o desenvolvimento da cidade, visando aperfeiçoar e definir a sua expansão, conforme previsto no art. 182 da C.F., obrigatório para todos os municípios com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes. É através da aplicação da legislação urbanística municipal que, o proprietário se submete aos procedimentos básicos, que garantem o fim social da sua propriedade. Quando o proprietário deseja construir uma indústria, fábrica, galpão, ou comércio; promover parcelamento do solo (loteamentos), tem competência privativa e concorrente; os Estados e o Distrito Federal têm competência concorrente e suplementar; e os Municípios têm competência para legislar sobre assuntos de interesse local e para suplementar a legislação federal e estadual. LEME MACHADO, Paulo Afonso. Estudo do direito ambiental . São Paulo: Malheiros. 1993. p. 138. 36 Os termos licença e autorização têm sentidos diferentes. Segundo SILVA.(1997), “licença” é pertinente quando pré-existe o direito subjetivo ao exercício da atividade, desde que atendidas as exigências impostas em leis; é um ato que pressupõe que aquele em favor de quem é liberada seja titular de direito. Já a autorização é ato precário e discricionário, ato administrativo unilateral quando o direito ao exercício da atividade vai nascer com o ato da autoridade. Também conforme LEME MACHADO, 1996. 54 deve cumprir os procedimentos de licenciamento, 37 que em muitos municípios brasileiros já incluem a análise de viabilidade para implantação de atividades de acordo como o seu potencial de degradação ambiental, procurando conciliar sempre o desenvolvimento econômico-social com a proteção ao meio ambiente. No direito ambiental, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado radicaliza-se”. É com base nesse princípio que a disciplina ambiental vem criando uma série de instrumentos de controle do uso e 38 aproveitamento da propriedade. E é nesse momento, quando da obrigatoriedade dos municípios de cumprirem o art. 182 da CF. na elaboração do seu plano diretor, que deve-se viabilizar a implementação da legislação urbanística voltada para o fim social. O plano não deve resumir-se meramente num plano de ordenamento físico territorial, como é verificado na maioria dos municípios brasileiros, mas deve incluir a variável ambiental para efetivamente disciplinar o uso da propriedade privada para o fim social e a proteção ambiental. Tal fenômeno observa-se principalmente na região do extremo oeste catarinense, onde normalmente os municípios são novos, colonizados por famílias de madeireiros, e cuja formação se deu, praticamente, em função da exploração dos recursos florestais, especialmente, do pinheiro brasileiro, a Aracucária angustilfolia, hoje protegida por lei específica, tal foi sua devastação. De todo o Estado de Santa Catarina, a região do extremo oeste é a mais desflorestada. A ocupação primeira, portanto, dá-se pela exploração dos recursos naturais, na qual o homem apropria-se de tudo que lhe possa trazer lucro imediato, seguindo-se uma cultura com falta de técnicas de uso e manejo do solo agrícola. 37 O licenciamento ambiental para implantação de atividades potencialmente poluidoras está previsto no art. 225, caput e parág. 1.o , IV da C.F. A avaliação de impactos ambientais é um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, (Lei 6.938/81). Trata-se do EIA - Estudo Prévio de Impacto Ambiental, que o legislador constitucional brasileiro, pela primeira vez na história do constitucionalismo mundial, deu assento, em sede de Constituição nacional. MILARÉ & BENJAMIN. Estudo Prévio de Impacto Ambiental: Teoria, Prática e Legislação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p.99. 38 Idem ibidem. p.107. 55 Atualmente, esses pequenos e médios municípios, com uma agricultura mais centralizada e especializada, procuram a faceta da industrialização, buscando atrair indústrias para incremento da arrecadação e possibilidade de absorção de mão de obra desqualificada. Nessa fase do processo, porém, é fundamental a implantação concomitante de princípios básicos de urbanização, que levem em conta a manutenção ou mesmo a melhoria da qualidade ambiental, especialmente da água e do ar. Não criando, simplesmente, as zonas industriais, mas adequando o espaço físico do município à sua conformação geográfica, levando-se em conta a escassez dos recursos hídricos, a disposição adequada dos resíduos domiciliares e agro industriais e a manutenção de áreas verdes, cumprindo- se o disposto na lei 6.766/79, que regulamenta o uso e a ocupação do solo urbano. A preservação ambiental passa, necessariamente, pelo fim social da propriedade privada. Portanto, o presente estudo partiu do princípio que, a obrigação de resguardar o meio ambiente não infringe o direito de propriedade, e que a conservação do meio ambiente é bem de interesse coletivo e riqueza dos povos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Direito de propriedade e meio ambiente. Curitiba: Juruá, 1999. • AGUIAR, Joaquim Castro. Direito da Cidade. São Paulo: Renovar, 1995. • BENJAMIN, Antônio Hermann V. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da Reserva Legal e das áreas de preservação permanente. In: 5 anos após a Eco-92 - Congresso Internacional de Direito Ambiental, Anais Proceedings, 199_. p. 11-36. • CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. 22. ed. 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O texto expõe as desigualdades entre as pessoas no sistema familiar (e social) romano, descrevendo as diversas modalidades de casamento e tratando de outros aspectos relevantes da organização da família. A autora traça paralelo entre aspectos históricos e atuais do casamento, esboçando o novo modelo de Direito de Família brasileiro a partir da vigente Constituição. THE CONDITION OF THE WOMAN IN THE MARRIAGE – ABSTRACT - The article deals with the condition of the woman in the marriage under a historical perspective from the Roman Law, focusing on the ius naturalis principles and the ius civile rules. The text exposes the inequalities among the people in the Roman familiar system (and social), describing the several modalities of marriage and conferring attention to other relevant aspects of the family organization. The author establishes a parallel between historical and current aspects of the marriage, 58 sketching the new model of the Brazilian Family Law from the in force Constitution. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem a finalidade de acrescentar às discussões em torno do tratamento social dispensado à mulher casada, as interferências ocorridas ao longo da história, envolvendo a análise jurídica do período de formação do Direito Romano e da era atual. Os momentos do Direito Romano, nos quais a figura feminina surge como integrante da sociedade são apresentados, definindo as diversas condições impostas à mulher naquela sociedade patriarcal. A família romana era uma comunidade política em miniatura. Seu chefe, juiz, sacerdote era o “paterfamilias” que exercia um poder quase absoluto sobre a mulher, os filhos, os clientes e escravos e o domínio sobre todo o patrimônio e um pequeno território. E o Estado, pelo menos até a época clássica, não interferia senão, esporadicamente, na família, sendo sua jurisdição paralela à jurisdição doméstica. A unidade política correspondia a unidade doméstica e a família romana visava, antes de tudo, a impetrar objetivos que interna e externamente, se assemelhavam ao do Estado, visão esta, que a pesquisa pretende expor através dos fatos pesquisados. No estudo, serão analisados os direitos e deveres concernentes à mulher casada, na atualidade, e as disposições legais que as regulam. A Constituição Federal do Brasil de 1988, contemplou a família instituindo normas, que subsidiária ou indiretamente tratam de seus interesses, porém, o constituinte foi precipitado, quando, tratou da igualdade dos direitos e deveres do marido e da mulher, na sociedade conjugal ao revolucionar complexa tradição com texto tão simplista e auto-aplicável. Tradicionalmente, homem e mulher têm sido analisados separadamente, dentro de uma visão dicotômica, há séculos instalada e, a condição hodierna 59 da mulher, no casamento, revela que, a igualdade prevista na Carta Magna não dissolve plenamente as diferenças existentes. Mesmo que, superficialmente, pretende-se, através desta pesquisa, relatar a evolução condicional da mulher no casamento, social e juridicamente. HISTÓRICO O Direito moderno reconhece a igualdade de direitos, prevista no Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.”. No entanto, ao se analisar a história do Direito Romano surge a figura feminina submissa ao homem. Conhecer a origem do Direito, exige, dos estudiosos, buscar, através das pesquisas, o conhecimento das lutas e ideais dos povos na Antiguidade. É através da compreensão das regras utilizadas pelos grupos sociais para definir o comportamento dos indivíduos que, se pode entender o desenvolvimento e a aplicabilidade do Direito. Embora se conheça o Direito, na história dos povos da Antigüidade e que estes eram governados por um sistema de Leis, a importância que o Direito Romano tem, na formação do Direito aplicado em nossa época, é fundamental, tendo em vista que, os institutos romanos são fontes constantes do Direito atual. No pensamento romano, encontra-se a idéia da existência de um Direito, baseado na natureza humana, como ser individual ou coletivo, daí haver dito Justiniano: “Vejamos antes as pessoas, pois é conhecer pouco o Direito se desconhecemos as pessoas, em razão das quais ele foi constituído” ( “Et prius de personis videamus. Nam parum est jus nosse, si personae, quarum causa constitutum est, ignorentur.” – Institutas, I, 2, 12). 60 Também Hermogeniano, ensina que, toda ordem jurídica é estabelecida por causa dos homens ( “Omne jus constitutum est causa moninum.” – Digestas, I, 5, 2), embora nem todos os homens tenham capacidade jurídica, tendo em vista que no Direito Romano a condição de homem não basta para atribuir a capacidade, diferentemente, do que ocorre no Direito moderno. Para o Direito Romano, no entanto, não há paridade jurídica a todos os seres humanos e a desigualdade entre homens e mulheres é definida já na constituição da família, caracterizada pela figura patriarcal. É compreensível, por exemplo, que o código romano, a fim de restringir os direitos das mulheres, invoque “a imbecilidade, a fragilidade do sexo”, no momento em que, pelo enfraquecimento da família, ela se torna um perigo para os herdeiros masculinos. É compreensível que, no século XVI, a fim de manter a mulher casada sob tutela, apele-se para a autoridade de Santo Agostinho, declarando que “a mulher é um animal que não é nem firme nem estável”, enquanto à celibatária se reconhece o direito de gerir seus bens. Montaigne compreendeu muito bem a arbitrariedade e a injustiça do destino imposto à mulher: “Não carecem de razão as mulheres, quando recusam as regras que se introduziram no mundo, tanto mais quanto foram os homens que as fizeram sem elas. Há, naturalmente, desentendimentos e disputas entre elas e nós”. A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, mas ainda para a ciência. Desde os primórdios, ao investigar a sociedade, na Grécia antiga, a ciência da economia doméstica tem três ramos – um trata das relações entre senhor e escravo, outro das relações entre pais e filhos e outro das relações entre marido e mulher, pois fazia parte da economia doméstica o comando da mulher e dos filhos pelo chefe da família ( dela e deles como criaturas livres, embora não com a mesma forma de comando, mas o da mulher de maneira democrática e o dos filhos monarquicamente); com efeito, o macho era naturalmente mais apto para o comando do que a fêmea. As qualidades das mulheres eram reconhecidas, porém, consideravam que elas não possuíam autoridade plena para comandar. 61 A MULHER CASADA NO DIREITO ROMANO A constituição da família romana tem sua base no casamento que é definido naquele Direito por De Francisci, citado por Leite, Eduardo de Oliveira (1991, p.57), como sendo “a convivência do homem e da mulher com a intenção de ser esposo e esposa, de Ter filhos e constituir uma sociedade íntima e perpétua” e Costa, citado também por Leite, Eduardo de Oliveira(1991, p.57) informa: “Entre as relações de submissão familiar, se destaca mais que qualquer outra, a existente entre o homem e a mulher unidos para procriar filhos e continuadores, por meio, precisamente, do casamento”. A fundação da família romana (esponsais) se dava na concretização de promessas recíprocas de casamento futuro. Era realizado no Direito antigo entre o “paterfamilias” dos noivos, se eles fossem “alieni juris”, entre o noivo e o tutor do noiva se fossem “sui juris”, ou , tivessem qualidades diferentes, entre um dos noivos e o “paterfamilias” do outro. O consentimento dos próprios noivos era relevante, pois o filho podia discordar da escolha paterna amplamente, mas a filha apenas quando pudesse alegar indignidade ou torpeza. A “sponsalia” era, por meio de um contrato verbal efetuada. A partir desta gerava-se a obrigação de contrair o casamento, ocorrendo em caso de inadimplência de uma das partes a condenação por ação de “sponsu” a ressarcir o dano causado pelo rompimento iníquo. No Direito clássico os esponsais contudo, não geram qualquer vínculo jurídico, a cláusula que obriga o noivo a pagar a indenização, na hipótese de dissolver o noivado (stipulatio poenae) é nula, visto como se deve resguardar a pureza dos consentimentos. No Baixo Império obrigatoriedade, devido à os esponsais voltam a adquirir uma certa introdução no Direito romano de um instituto de origem oriental, as “arrhae sponsaliciae”. São quantias que os noivos trocam entre si e que se destinam a garantir a promessa de matrimônio e servir de pena no caso de inadimplemento. O inadimplemento perde as "arras" que deu 62 e restitui as que recebeu no quádruplo e, mais tarde, no dobro do valor, mas se tem motivo justificado , limita-se a restituir as recebidas. O matrimônio romano foi sempre monogâmico. O casamento era considerado pelos romanos como a união entre o homem e a mulher com o fim de estabelecer uma comunhão de vida íntima e duradoura. No modo jurídico era um estado de fato que não surgia, como o atual, da troca inicial de consentimentos , mas da permanência da união com características matrimoniais. Essas características eram a convivência e a intenção de ser marido e mulher. A colocação da mulher à disposição de seu marido era indispensável sendo a entrada da mulher na casa de seu marido a melhor prova. Para que o casamento fosse válido, o Direito romano exigia requisitos. O primeiro, concernia à idade. O homem deveria ser pubes (púbere), e a mulher viripotens (núbil). No direito romano a puberdade e a nubilidade verificavam-se na base do desenvolvimento físico, ou “habitus corporis”. Mais tarde Justiniano, seguindo a opinião dos Proculianos, determinou que a puberdade datasse dos catorze anos e a nubilidade dos doze anos. Quanto a idade máxima , as leis caducárias haviam aconselhado os sessenta e os cinqüenta anos respectivamente para homens e para mulheres. O direito Justiniano não admitiu limite máximo de idade. O segundo se baseava no consentimento. Era indispensável o consentimento dos esposos e, se não fossem “sui juris”, o consentimento daqueles que os tivessem sob poder, “in potestate”. Para “filius familias” era obrigatório o consentimento do “paterfamilias”, mas para a “filia familias” bastava o consentimento tácito, ou subentendido. Em caso do veto por parte de um “paterfamilias” com conseqüente insatisfação de um ou dos noivos era previsto em lei o ato de recorrer ao pretor , que intervinha para obter o consentimento necessário. Em caso de deficiência mental do “paterfamilias”, era dispensado o consentimento para as filhas. No casamento no Direito clássico, caso o pai fosse prisioneiro de guerra, o filho podia casar-se sem o seu consentimento, enquanto no Direito justiniano essa possibilidade se estendeu a todos os casos, mas o filho e a filha somente 63 poderiam matrimoniar-se antes de esgotado o prazo de três anos se com alguém digno da aprovação paterna. O terceiro requisito era o “connubium” ou faculdade de contrair casamento válido segundo o “jus civile”. Essa faculdade desapareceu por motivos oriundos do parentesco , da afinidade, da diferença de condição social ou de outra natureza. No Direito antigo, o matrimônio é também proibido entre parentes em linha colateral até o sexto grau. No Império essa proibição se atenua, pois é permitido o casamento entre primos-irmãos (quarto grau), com dispensa imperial; esse casamento foi mais tarde vedado e depois permitido na época de Justiniano, mesmo sem dispensa. Não era permitido casamento entre tio e a sobrinha ou entre sobrinho e tia. A afinidade é impedimento ao matrimônio. Impossibilita o casamento entre sogra e genro, sogro e nora, padrasto e enteada, madrasta e enteando. Na época cristã a proibição alcança a linha colateral, vale dizer , o casamento entre cunhados e cunhadas. Era proibido o casamento entre patrícios e plebeus e entre ingênuos e libertos. Mas essas leis desapareceram com a Lei da Canuléia e esta, com a Lei Iulia de “maritandis ordinibus”. Uma “oratio” de Marco Aurélio e Cômodo determinou que, o tutor e seus dependentes não poderiam casar-se com a pupila antes de prestadas as contas da tutela e de decorrido o prazo da “restitutio in integrum” em favor do menor; no direito Pós-clássico, desaparecia o impedimento, quando o matrimônio tivesse sido desejado pelo pai. O casamento, como é de conhecimento geral, não excluía a mulher de sua família de origem, se ela fosse “alieni juris”, ou do poder dos tutores, enquanto ele existiu, se ela fosse “sui iuris”. O homem adquiria nenhuma “potestas” sobre a mulher, mas o marido podia repudiar a adúltera e promover sua condenação criminal. O pai podia matar a filha adúltera e o cúmplice surpreendido em flagrante. Os filhos procriados durante o casamento eram filhos legítimos e cidadãos romanos e ingressavam na “patria potestas” do marido ou do “pater” deste. A mulher prendia-se aos filhos pelos elos da cognação, que não derivavam propriamente do matrimônio. O casamento se 64 dissolvia pela morte de um dos cônjuges, pelo desaparecimento do “connubium”, pela superveniência do impedimento e pelo divórcio. Dissolvia-se o matrimônio com o desaparecimento da intenção dos cônjuges de serem marido e mulher. Nota-se que o casamento romano tinha base nitidamente consensual. Sendo fundado num acordo, que se devia sempre renovar e permanecer, extinguia-se quando esse acordo cessasse . O divórcio decorria , portanto , da natureza consensual do matrimônio e exigia igualmente o firme propósito de separação definitiva. Pode-se definir o “divortium” como a dissolução do casamento provocada pela vontade de um dos cônjuges ou de ambos. Os divórcios eram, no Direito antigo, muito pouco freqüentes. O repúdio da mulher pelo marido era autorizado, quando a mulher era adúltera, bebia vinho ou abortava. Durante o Direito clássico, não se chegou a estabelecer um elenco de causas permissíveis e punitivas do divórcio. Apenas no Império cristão é que se iniciam as tentativas de combate ao divórcio. As pessoa sujeitas a um único poder por nascimento ou por um ato jurídico constituíam a família romana. O ato jurídico, em virtude do qual, alguém podia entrar numa família era a “conventio in manum”. Ingresso da mulher na família romana – A mulher, pela “conventio in manum”, ingressava na família do marido, sujeitando-se à “manus”(poder marital) deste, ou, se ele fosse “alieni juris” (pessoa que se submetia ao domínio de outra), de seu “pater”. A “conventio in manum” ocorria por um dos três seguintes modos: - “confarreatio” – cerimônia religiosa, com formalidades complexas, realizada na presença do Supremo Sacerdote de Júpiter, do Sumo Pontífice e de dez testemunhas, na qual, em síntese, os noivos, simbolizando sua vontade de viverem em comum, dividiam e comiam um bolo, havendo a prolação de certas palavras solenes e a observância de determinados ritos religiosos; - “coemptio” – cerimônia em que, utilizando-se dos ritos da “mancipatio”, se celebrava uma venda fictícia, provavelmente da mulher, por si mesma, ao marido; 65 - “usus” – modo de aquisição da “manus” que se assemelhava ao usucapião, pois o marido, pela “usus”, adquiria a “manus” sobre a mulher se vivesse em comum com ela durante um ano inteiro; a mulher, porém, podia evitar a “conventio in manum” pelo “usus” se, durante o ano, se afastasse da casa do marido três noites consecutivas. Desses modos de aquisição da “manus”- e os autores divergem profundamente sobre a ordem em que eles surgiram – o primeiro a cair em desuso foi o “usus”, que no tempo de Gaio, já era simples reminiscência histórica; a “confarreatio” persistiu mais tempo, possivelmente, até a implantação do Cristianismo, como religião oficial do Império Romano e a “coemptio” desaparece inteiramente no século IV d.C.. Os efeitos da “conventio in manum” - A “conventio in manum”, pela qual se adquiria o poder marital, produzia efeitos quanto à pessoa da mulher e quanto aos seus bens. Quanto à pessoa da mulher, eram esses: - A mulher ingressava na família do marido “in loco filiae”(como se fosse filha dele, e, conseqüentemente, com relação aos seus próprios filhos, é considerada como irmã deles “in loco sororis”, tornando-se assim, para todos os efeitos, sua parenta agnada; em virtude disso, ela se desvincula da família de origem, deixando de ser agnada, também para todos os efeitos, dos membros desta, embora continue cognada deles (e isso porque o parentesco consangüíneo não se extingue com a “conventio in manum”). - Assim sendo, a mulher sofre uma “capitis diminutio minima” (desvalorização de seu status): se é “sui juris”, torna-se “alieni juris”; se “alieni juris” continua a sê-lo, porém, na família do marido. - O marido adquire a “manus” passando a ter sobre a mulher poderes semelhantes aos que possui com relação aos seus filhos: a) “ius vitae et necis” – direito de vida e de morte; b) “ius vendendi” – direito de vender; c) “ius noxae dandi”- a mulher poderia sofrer abandono moral. A extinção da “manus” – A manus é independente do casamento, portanto, embora nos termos romanos não haja referência direta a essa 66 conseqüência, é de supor-se que o divórcio dissolvesse o matrimônio, mas não extinguisse a “manus”, o que só ocorria quando se verificasse modos diretos ou indiretos. A condição patriarcal submete a mulher à submissão ao marido a partir do casamento, o qual determina que a esposa deve pertencer à família do marido a fim de dar continuidade aos descendentes, tem caráter monogâmico e prevê sanção à prática de adultério. Nota-se que, inicialmente, o casamento não era previsto juridicamente, havia somente a intenção das pessoas em viver maritalmente e a convivência confirmava esta intenção. Os princípios do casamento, como união do homem e da mulher, garantindo a legitimidade dos descendentes são definidos no “Corpus Juris Civilis” de Justiniano, apesar de não depender da intervenção dos poderes públicos. A sociedade romana considerava a dignidade feminina, através do esposo, ou seja, de sua condição de esposa. É o homem que garante uma posição social e a mulher apenas colabora com o sustento da família através do dote, que entrega ao marido. O ato do casamento era particular e mesmo com a noção imposta pelo Cristianismo de ser uma união divina e humana somada as formalidades religiosas, não deixou de ser um ato informal. A negociação dos casamentos normalmente, dava-se entre os pais de famílias e produzia efeitos de Direito mas não havia um ato jurídico. Na realidade, a sociedade procedia informalmente, mas reconhecia a validade dos acordos a fim de, principalmente, garantir a sobrevivência da família através da procriação. A respeito da posição da mulher na família romana, percebe-se a submissão em relação ao marido. Dentro da família todos os poderes irradiam da pessoa do “sui juris”, do “pater” (pessoa com poder, domínio sobre os bens e demais membros da família). Ao continuar a análise da história do Direito Romano aparece a figura feminina no campo abrangido pelos institutos da tutela e curatela, a qual é considerada incapaz. 67 José Cretella Junior relaciona as seguintes pessoas “sui juris”(pessoas que não se encontram submetidos a nenhum poder doméstico) que ficavam sob tutela e curatela em Roma : sob tutela (impúberes dos dois sexos e as mulheres púberes, em tutela perpétua)... e também cita a Lei das XII Tábuas que previa os seguintes tipos incapazes de fato : ... 2º - as “ feminae”,” mulieres” (em razão do sexo são incapazes perpétuas). O instituto da tutela para as mulheres púberes só veio a desaparecer no Baixo Império, apesar de, a tutela das mulheres não se desenvolver como ocorreu com a tutela dos impúberes. No Direito Romano, a capacidade de fato implica, necessariamente, à capacidade jurídica; à recíproca, entretanto, não é verdadeira. A regra geral é a de que as pessoas físicas são capazes de fato, porém, há fatores que acarretam a incapacidade e entre eles citamos: - a idade - o sexo - a alienação mental - a prodigalidade O sexo influiu na capacidade de fato até o século IV d. C., época em que as mulheres passaram a ser capazes. É o conflito entre a família e o estado que define a história da mulher romana, no instituto do casamento. O caráter arcaico do poder que o “paterfamilias” tinha sobre seus descendentes era revelado pela total, completa e duradoura sujeição destes àquele, sujeição esta que tornava a situação dos descendentes semelhante à dos escravos, enquanto o “paterfamilias” vivesse. A organização familiar romana repousava na autoridade incontestada do “paterfamilias” em sua casa e na disciplina imposta que nela existia. Do ponto de vista patrimonial, o pátrio poder implicava a centralização de todos os direitos patrimoniais na pessoa do “paterfamilias”. No direito clássico, este era a única pessoa capaz de ter direitos e obrigações. A união duradoura entre marido e mulher, como base do grupo familiar, é a idéia fundamental no direito romano, mesmo assim, há grande diferença entre as concepções romanas e modernas a respeito. O poder marital, por 68 exemplo, era um reflexo eventual, mas não absoluto, do matrimônio, ou seja, desde os tempos antigos havia a possibilidade de haver uma união sem o poder marital ( “manus”), no entanto, o marido exercia certa autoridade sobre a mulher, cabendo-lhe a chefia na direção da vida familiar. Era ele quem estabelecia o domicílio da família e a ele cabia, também, a obrigação de prover o sustento dos seus. Tinha o marido meios judiciais para defender a mulher contra atos injuriosos de outrem e podia, por outro lado, exigir o retorno da mulher ao lar conjugal. A MULHER CASADA NO DIREITO MODERNO O Código Civil atual, abrange as relações entre pessoas unidas pelo matrimônio ou pelo parentesco – relações pessoais, compilando-as no chamado Direito de Família. O casamento é, indubitavelmente, o centro de onde irradiam as normas básicas do direito de família, que constituem o direito matrimonial. Este abrange normas concernentes à validade do casamento (como as que disciplinam os impedimentos matrimoniais, a celebração, prova, nulidade e anulabilidade do casamento); as relações pessoais entre os cônjuges, com a imposição de direitos e deveres recíprocos, bem como as suas relações econômicas, que chegam até a constituir um autêntico instituto, que é o regime de bens entre os cônjuges; e à dissolução da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial. O moderno Direito de família rege-se pelos seguintes princípios: a) Princípio da “ratio” do matrimônio, segundo o qual o fundamento básico do casamento e da vida conjugal é a afeição entre os cônjuges e a necessidade de que perdure completa comunhão de vida, sendo a separação judicial e o divórcio uma decorrência da extinção da “affectio”, uma vez que a comunhão espiritual e material de vida entre marido e mulher não pode ser mantida ou reconstituída. b) Princípio da igualdade jurídica dos cônjuges, no que atina ao exercício de seus direitos, que revolucionou o governo da família 69 organizada sobre a base patriarcal. Com esse princípio desaparece o poder marital e a autocracia do chefe de família é substituída por um sistema em que as decisões devem ser tomadas de comum acordo entre marido e mulher, pois os tempos atuais requerem que a mulher e o marido exerçam igualmente os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal. Juridicamente, o poder do marido é substituído pela autoridade conjunta e indivisa, não mais se justificando a submissão legal da mulher, ante o que dispõe a Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, a respeito da situação jurídica da mulher casada, e a Constituição Federal, artigo 226, parágrafo 5º. A análise da situação sócio-econômica das famílias, atualmente, revela a participação mais freqüente da mulher no mercado de trabalho, situação esta que tem como conseqüência a incorporação da mulher casada aos deveres familiares, à frente do sustento e manutenção da família. Evidentemente, que os dados estatísticos, que comprovam a participação da mulher como “chefe de família” não analisam em que condições enfrentam esta responsabilidade. Com base em acontecimentos recentes ocorridos na Europa em referência às medidas de discriminação positiva, em favor das mulheres, para que estas venham a ocupar o mesmo espaço que os homens no mercado de trabalho discute-se não a questão de capacidade, mas sim, o que está evidente, é que existe uma real desigualdade no mercado de trabalho causada por motivos biológicos. A diretiva 76/207/CEE (Comunidade Econômica Européia – União Européia) estabelece que, o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres não impede a adoção ou manutenção de medidas, visando a promover a igualdade de chances entre homens e mulheres. Esta diretiva autoriza certas derrogações a igualdade de tratamento, como por exemplo, quando se fala da proteção a maternidade. O Estado pode favorecer as mulheres em virtude de sua condição biológica e por ocasião da relação particular entre a mãe e a criança no período após o parto. No Brasil, a Lei nº 9504/97, estabelece em seu artigo 10, parágrafo 3º, que trinta por cento e no máximo setenta por cento das vagas serão destinadas para candidaturas 70 de cada sexo. A Lei não diz qual o sexo seria o privilegiado, mas ela o induz à interpretação como “reserva feminina”. De tal interpretação resulta a existência de uma discriminação positiva em favor das mulheres. As regras sobre a discriminação positiva visam reservar às mulheres o uso de certos direitos tendo em vista o seu papel atual de compartilhar com o homem as mesmas obrigações no casamento. Com a evolução do direito, depreende-se que o matrimônio não é apenas a formalização ou legalização da união sexual, mas a conjunção de matéria e espírito de dois seres de sexo diferentes para atingirem a plenitude do desenvolvimento de sua personalidade, através de companheirismo e amor. Para que se configure esta concepção foram necessárias transformações sociais e jurídicas, no que diz respeito à mulher e sua posição no casamento. O Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62) outorga à mulher a condição de colaboradora do marido, que ainda mantém a chefia na direção material e moral da família, tendo em vista o interesse comum do casal e dos filhos; estabelece o exercício conjunto do pátrio poder; confere à mulher o direito de colaborar na administração do matrimônio comum; autoriza a mulher a exercer a profissão que quiser; dá à mulher que exerce profissão fora do lar autonomia econômica e franqueia-lhe constituir um patrimônio reservado, livremente administrado por ela, permitindo-lhe dispor, como bem entender, do produto de seu trabalho, podendo até defender a sua parte, no acervo comum, contra credores do marido; permite que a mulher escolha o domicílio conjugal de acordo com o marido; determina que a mulher não necessita de autorização marital para praticar atos que o marido sem a sua outorga pode realizar; dispõe que a mulher, qualquer que seja o regime de bens, concorra para o sustento da família; prescreve que a mulher pode administrar os bens dos filhos, se assim for deliberado pelo casal. Consentini, em “Droit de famille” (p. 501), já observava que estas transformações não são suficientes; outras reivindicações tornam-se necessárias para compor o quadro da equiparação e da autonomia da mulher, quadro este, que não se completará sem a dupla regulamentação de relações pessoais e patrimoniais, mediante participação mais direta e intensa nos 71 direitos e obrigações inerentes ao pátrio poder, à tutela, e uma ingerência maior na economia doméstica. A Constituição Federal de 1988, no artigo 226, parágrafo 5º, estabeleceu a igualdade no exercício dos direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal, que deverá servir de parâmetro à legislação ordinária, que não poderá ser antinômica a esse princípio. Os cônjuges deverão exercer conjuntamente, os direitos e deveres relativos à sociedade conjugal, não podendo um cercear o exercício do direito do outro. Não se vislumbra, porém, na nova Constituição Federal, ante o artigo 5º, inciso I, que propugna a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, que é uma norma geral, uma isonomia entre marido e mulher relativa aos seus direitos e deveres, pois o artigo 226, parágrafo 5º, da Lei Maior, sendo uma norma especial que prevalece sobre a geral, refere-se ao igual exercício dos direitos e deveres do marido e da mulher, na sociedade conjugal, arrolados no Código Civil, artigos 233 a 240, ainda vigentes. Logo, não nos parece que tais normas contidas no nosso Código Civil tenham perdido o seu sentido, fazendo, por exemplo, com que não haja diferença na idade núbil, com que o marido passe a ter o direito de adotar os apelidos de sua mulher, com que a mulher perca a reserva de bens e ante o caráter de especialidade do preceito constitucional, não se poderá afirmar que não há mais discriminação em separado dos direitos e deveres da mulher e do marido, em face de a Carta Magna não tê-los igualado em direitos e deveres e sim no exercício desses. Enfatize-se a desnecessidade de haver uma norma específica quando a Constituição já determina no seu Título II – Dos Direitos e Garantias Individuais – artigo 5º que: “Todos são iguais perante a Lei... I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Seguindo-se um elenco protetor da igualdade em geral. São quase uma centena de itens exaustivos da atividade humana, garantida pela proibição de qualquer discriminação. A tradição é o grande obstáculo para a boa exegese da norma jurídica, por ser inibidora da percepção das inovações. É enraizado na tradição que o marido continua exercitando, como sempre o fez e com o habituado consenso 72 comunitário, o seu costumeiro – mas agora caduco – poder/dever de representar a família e de administrar os bens comuns do casal e os particulares da mulher. Por isso, grande parte da comunidade, sequer se deu conta da guinada constitucional que extinguiu qualquer representação isolada, no entanto, a ausência de parâmetros norteadores para o Direito, encontra nesse desconhecimento, o tempo necessário para adequar-se legalmente. CONCLUSÃO No Direito Romano, a figura do “pater” estabelece, na esfera social e familiar, que a posição de domínio prevalece por tantos períodos da história, pela concepção histórica criada desde a Antiguidade, em face do homem representar a disciplina, dotar de coragem para enfrentar o inimigo, possuir o poder financeiro e o privilégio da sabedoria. Na atualidade, após revoluções feministas e o reconhecimento de igualdade pelo Direito moderno, parece ainda perdurar um sentimento discriminatório em relação à ascensão feminina na sociedade. Encontrar o elo que justifica ainda perdurar as diferenças sociais existentes e a distinção conjugal entre indivíduos considerados iguais perante a Lei, através da explanação histórico-social das transformações ocorridas e da concepção pré existente da autoridade masculina, é essencial para reconhecer a influência permanente do Direito Romano em nosso sistema jurídico. É válido rever o princípio de que toda pessoa física tem personalidade jurídica, mas nem sempre, no entanto, ela pode, por si mesma, adquirir e exercer direitos ou contrair obrigações. Para isso é preciso que ela tenha o que, modernamente se denomina capacidade de fato, isto é, aptidão para praticar, por si só, atos que produzam efeitos jurídicos. Poderíamos atacar a questão da “condição jurídica da mulher” através do novo texto constitucional, ou seja, determinar em que medida dois preceitos – o Artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal e o Artigo 226, parágrafo 5º do Código Civil Brasileiro, irão influenciar na legislação ordinária, seja para modificá-la, seja para complementá-la, tendo em vista que ambos tratam da 73 igualdade entre homens e mulheres, como citado anteriormente, no entanto, entendendo que a nova Constituição do Brasil, mais realista, consagrou os princípios da absoluta igualdade entre os cônjuges e entre os filhos, bem como o princípio da pluralidade de entidades familiares, que romperam, de forma definitiva, a estrutura da família patriarcal e inauguraram a tão desejada adequação do Direito à realidade social, podemos compreender, revendo à luz da filosofia existencial, os dados históricos e da etnografia, como a hierarquia dos sexos se estabeleceu. Certa ou errada, a norma igualitária está vigente e exigível. Mesmo que sepulte toda uma tradição que impregna as relações conjugais e muitos dos usos e costumes. Mesmo que a sociedade teime em não aceitar novas regras e alterar a concepção de desigualdade entre marido e mulher. Não adianta temer pelas conseqüências, pois a oportunidade da discussão no mérito se esvaiu com sua promulgação. Derrogou a disciplina legal diversificadora dos direitos e deveres na sociedade conjugal. Se a sociedade e a tradição são obstáculos para a efetiva aplicação de igualdades de direitos e deveres entre homens e mulheres, há de perdurar o pensamento de que “se um é privilegiado, domina o outro e tudo faz para mantê-lo na opressão”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 7ª ed. Vol. 1 e 5ª ed. Vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1998. • ARISTÓTELES. Política. 3ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. • BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 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O núcleo do estudo é a filiação, trabalhando o tema à luz do Direito Romano, com ênfase para as modalidades de filiação, cuidando a autora, ainda, de outros institutos jurídicos importantes, como a legitimação. A filiação no Direito Civil brasileiro é objeto de considerações, em especial a antiga classificação dos filhos em legítimos e ilegítimos, culminando o texto com a exposição do tema à luz da Constituição Federal e de outras leis esparsas. FILIATION: CRITICAL VISION FROM THE ROMAN LAW – SUMMARY - The article approaches filiation on the basis of the fundamental notions of the Family Law, analyzing relevant aspects of the old family (Roman) and the modern family. The nucleus of study is filiation and it is analyzed under the light of the Roman Law, with emphasis to the filiation modalities. The author also approaches other important legal institutes, as the legitimation. Filiation in the Brazilian Civil Law is object of consideration, in special the old classification of legitimate and 76 illegitimate children; the text culminates with the exposition of the subject under the light of the Federal Constitution and other scattered laws. INTRODUÇÃO Os filhos advindos de relações ilícitas, desde a época do Direito Romano até poucos anos atrás, não tinham os mesmos direitos que os filhos legítimos e eram discriminados, sendo até vistos como fruto do pecado e tidos como impuros. Com as transformações sociais, principalmente nas formas de relacionamentos pessoais e sexuais, como também com os constantes avanços da medicina, a precariedade da legislação era patente, pois ficaram frágeis alguns princípios tidos como inabaláveis. Para o Direito Romano, enraizado no patriarcado, o pater familias, o estado de filiação era questão importante, por se projetar no Direito de Sucessões. O Brasil foi também atingido pelo reflexo desse critério e até pouco tempo atrás o Código Civil, nos artigos 332, 337 e 344, hoje revogados, ainda estabelecia a legitimação de parentesco. Atualmente há igualdade de tratamento e de direito entre os filhos embora mais didático que prático - mas deve-se lembrar que essa conquista é muito recente e que a estrutura legal e os comportamentos das pessoas, desde a época do Direito Romano, sempre foram patriarcais. Por isso a necessidade de se acompanhar desde aquela época as mudanças ocorridas nessa matéria jurídica. Assim, esta pesquisa versará sobre as mudanças, desde o Direito Romano, no que concerne à filiação. Porque mesmo que não mais vigore certas considerações legais, tem-se que conhecer as antigas disposições, suas origens, para se entender seus avanços. Espera-se que este trabalho colabore para o estudo sobre a filiação, suas raízes, evolução e efeitos, dando uma parcela de contribuição na tentativa de desnudar preconceitos ainda tão cravados na sociedade. Preconceitos 77 esses que constrangem os filhos, embora sejam eles apenas frutos das relações de seus pais. CAPÍTULO I - FAMÍLIA E O DIREITO DE FAMÍLIA : NOÇÕES FUNDAMENTAIS O DIREITO DE FAMÍLIA É um ramo do Direito Civil de suma importância, gerando discussões acaloradas. Essa relevância se dá porque aí se discute direitos e deveres da base da sociedade: a família, conforme reza o artigo 226 da Constituição Federal: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Todas as pessoas estão ligadas e dependem de uma família, como diz EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE: “... todos nós nos encontramos, irremediavelmente, dependentes de um grupo familiar, portanto, vinculados, desde o nascimento até a morte, ao Direito de Família” (LEITE, 1997, p. 9).39 Segundo JOSÉ LAMARTINE CORREA DE OLIVEIRA E FRANCISCO FERREIRA MUNIZ: “... o Direito de Família é um conjunto de normas jurídicas que regulam as relações entre pessoas ligadas pelo vínculo do casamento, do parentesco, da afinidade ou da adoção”. (OLIVEIRA et al, 1990, p. 9) 40 As discussões também decorrem da dinâmica de um direito que evolui constantemente, tentando acompanhar os passos da evolução humana. O TERMO FAMÍLIA A palavra Família tem origem romana, do osco famel, famulus, servidor, escravo, denominava os fammulus ou criadagem da casa. Hoje significa a comunidade formada por pessoas unidas pelo sangue ou afinidade. É uma sociedade natural, pois preexiste ao Direito e ao Estado. 39 LEITE, Eduardo de Oliveira. Síntese de Direito Civil. Curitiba: JM Editora, 1997, pág. 9. OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1990, pág. 9. 40 78 A FAMÍLIA ROMANA No Direito Romano família era o grupo de pessoas que vivia sob a pátria potestas do paterfamilias. Só que pater, nesta expressão, não significava pai, mas sim chefe. Sua base era patriarcal, tendo o paterfamilias o domínium in domo em caráter vitalício. A sua patria potestas não acabava com o casamento nem com a maioridade dos filhos. O paterfamilias não necessariamente era o pai biológico, mas o chefe. Assim um celibatário ou um impúbere poderiam sê-lo. Submetiam-se à patria potestas do paterfamilias: a) a materfamilias ou mulher casada sob o poder marital (manus); b) o filusfamilias e a filiafamilia, nascidos do casamento do pater ou por este adotados; c) os descendentes do filiufamilias e a mulher deste, cum manu; e d) os escravos e as pessoas em mancipio, assemelhados aos escravos. O poder do paterfamilias era absoluto, tendo poder de vida e morte sobre seus filhos. A FAMÍLIA MODERNA Antes da Constituição Federal de 1988, família era considerada a comunidade formada pelo casal (sociedade conjugal) ou pelo casal e os filhos (sociedade doméstica). Ao casar-se o filho, ou a filha, forma um nova família, da qual se torna o chefe, de modo que os filhos não são subordinados ao avô, mas ao pai. O pátrio poder era exercido pelo marido, conforme art. 380, caput, do Código Civil: “Durante o casamento, compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores passará o outro a exercê-lo com exclusividade”. 79 A Carta Magna vigente, através do seu art. 226, deu maior amplitude ao conceito de família, abrangendo a família havida fora do casamento, como também aquela composta por um dos progenitores e seus descendentes. Essa modificação foi importantíssima e assegurou os direitos dos filhos até aqui chamados de bastardos, como também reconheceu como entidade familiar a união estável. O parágrafo 5º do mesmo artigo, veio a igualar os direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal, caindo por terra o pátrio poder que era exercido pelo homem. CONCEITO DE FILIAÇÃO Segundo WALTER GASPAR “filiação é vínculo existente entre pais e filhos.” 41 Também diz ele que “em sentido genérico traduz a descendência em linha reta, como se dá quando alguém faz referência à filiação de uma pessoa a seus ancestrais”. (WALTER, 1996, p. 179).42 CAPÍTULO II - A FILIAÇÃO NO DIREITO ROMANO Para os romanos existiam dois tipos de parentesco: agnação, que era o parentesco civil, aos olhos da lei e cognação, que era baseado na comunidade de sangue. Como este trabalho versa sobre filiação, não será mencionado aqui qualquer outro parentesco, inclusive a adoção, restringindo-se apenas aos filhos consanguíneos. Para o Direito Romano a família era composta por pessoas sub unius potestate aut natura aut iure subiectae, isto é, sujeitas a um único poder por nascimento ou por ato jurídico. ESPÉCIES DE FILIAÇÃO 41 GASPAR, Walter: Resumo de Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1996, pág 179. 42 GASPAR, Walter: Resumo de Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1996, pág 179 80 Pelo nascimento entravam numa família os filhos procriados pelo paterfamilias e seus descendentes masculinos, sendo que os descendentes das mulheres pertenciam à família dos pais delas. Para ser considerado filho a criança deveria nascer cento e oitenta dias após o matrimônio ou então até dez meses da sua dissolução. Fora disso a paternidade teria que ser provada. Três são as categorias de filhos que se encontram no direito romano: os iusti ou legitimi, os uulgo quaesiti (também denominados uulgo concepti ou spurii) e os naturales liberi. Sendo a primeira considerada legítima e as duas últimas ilegítimas. OS IUSTI OU LEGITIMI São os filhos nascidos de justas núpcias (iustae nuptiae), isto é, de casamento legítimo, contraído de acordo com o direito civil. Seguiam a condição do pai. Tinham, pais e filhos, direitos e deveres entre si. OS UULGO QUAESITI Também chamados de uulgo concepti ou spurii, são os filhos gerados de união ilegítima. Não tinham eles juridicamente um pai, pois não era permitido o reconhecimento ou legitimação desses filhos. Portanto, não havia direitos e deveres entre pai e filho, uma vez que para o pai o filho era estranho. Seguiam então, esses filhos, a condição da mãe, tendo os mesmos direitos que os filhos legítimos dela. OS NATURALES LIBERI Eram os filhos naturais advindos do concubinato. Eram os únicos que podiam entrar na família através da legitimação. 81 DA LEGITIMAÇÃO Legitimação era a permissão dada pelos Imperadores Cristãos ao pai de adquirir o Pátrio Poder de seu filho natural, nascido de concubinato. A legitimação excluía os filhos incestuosos e os nascidos de pessoas que não podiam se casar, devido a qualquer união legal ou temporária (uulgo quaesiti). Realizava-se a legitimação de três formas: por matrimônio subseqüente (per subsequens matrimonium), por oblação à cúria (per oblationem curiae) e por rescrito do príncipe (per rescriptum principis). POR MATRIMÔNIO SUBSEQÜENTE Às pessoas que viviam em concubinato, bastavam legitimar sua união em iustae nuptiae. Se o filho fosse sui iuris ele teria que concordar, se fosse menor, bastava não se opôr. Legitimada a situação dos pais, regularizada estaria a dos filhos. Com esta legitimação ficavam os filhos naturais em absoluta igualdade com os filhos legítimos. POR OBLAÇÃO À CÚRIA Essa espécie de legitimação resultou da necessidade de angariar cobradores de impostos, os decuriões. Consistia no oferecimento do filho natural à cúria de sua cidade natal, para que ele se tornasse um decurião. Como o cargo exigia muita responsabilidade, o pai dava ao filho vinte e cinco jeiras de terra para garantir o cumprimento de seus deveres. Caso se tratasse de filha, esta era oferecida a um futuro decurião ou um já decurião, com a instituição de um dote equivalente. O filho não se tornava parente dos membros da família do pai. 82 RESCRITO DO PRÍNCIPE Era a legitimação do filho natural pedida pelo pai ao Imperador desde que esse não tivesse filhos legítimos e o casamento subseqüente fosse impossível. Considerava-se impossível o casamento subseqüente no caso de morte, desaparecimento ou casamento da mulher com outro. Também era requisito para o deferimento do Imperador, a anuência do legitimado. CAPÍTULO III - A FILIAÇÃO NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO O Código Civil Brasileiro de 1916 fazia distinções entre parentesco, estando este estruturado rigidamente e intransponivelmente em legítimo e ilegítimo. A filiação ilegítima se subdividia em naturais e espúrios e este último em incestuosos e adulterino. FILIAÇÃO LEGÍTIMA O Código Civil estatuía, em seu art. 337, que “são legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, ou mesmo nulo, se se contraiu de boa fé”. Portanto, filho legítimo é aquele advindo de justae nuptiae. FILIAÇÃO ILEGÍTIMA São os filhos procriados por pessoas não casadas uma com a outra, ou seja, decorrentes de relações extramatrimoniais (não derivadas de casamento). Os filhos ilegítimos classificam-se em: 1) Naturais: Filhos gerados por pessoas que, embora não casados entre si, não estavam impedidas de casar uma com a outra no momento da concepção; e 83 2) Espúrios: filhos oriundos de pessoas que estavam impedidos de contrair matrimônio na ocasião da concepção. Assim são os espúrios: a) adulterinos: decorrentes da violação do dever de fidelidade, ou seja, um dos pais já é casado com outra pessoa; nascem de casal impedido de casar em virtude de casamento anterior (art. 183, VI do CC), resultando de um adultério; e b) incestuosos: nascidos de homem e mulher que não podiam convolar núpcias, à época da concepção, devido ao parentesco natural, civil ou afim. O impedimento, neste caso, decorre de parentesco próximo dos genitores, ou de afinidade. Os casos são descritos no artigo 183 do Código Civil. DA LEGITIMAÇÃO Filhos legitimados são aqueles que adquirem o status de legítimo. A esse instituto, previsto nos artigos 352 a 354 do Código Civil, chama-se legitimação, tornando legítimos os filhos de pessoas que vieram mais tarde a se casar. Com a legitimação os filhos legitimados se equiparam com os legítimos. Dá-se a legitimação de filho concebido ou depois de havido o filho. Além de dar ao filho legitimado a mesma situação jurídica do filho legítimo, a legitimação tinha por escopo ainda, estabelecer o parentesco legítimo em linha reta. Os filhos incestuosos não podiam ser legitimados, pois o impedimento matrimonial subsiste o tempo todo. DO RECONHECIMENTO DO FILHO ILEGÍTIMO O Código Civil permitia o reconhecimento dos filhos naturais. Quanto aos adulterinos e incestuosos era vedado esse diploma legal. Em 1942, o Decreto-lei nº 4.737, veio a autorizar o reconhecimento da prole oriunda de pessoas “desquitadas”, prescrevendo no seu artigo 1º que 84 após o desquite, o filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio, poderia ser reconhecido ou demandar que declarasse sua filiação. Negava-se ao filho incestuoso. A Lei 883/49 estendeu a possibilidade do reconhecimento voluntário ou judicial aos filhos adulterinos ou de ação para que se lhe declare a filiação, quando for dissolvida a sociedade conjugal, sem especificar a causa. Assim, não interessando a causa (morte, separação dos cônjuges, etc.), era possível reconhecimento do filho adulterino. Continuava negando o reconhecimento ao filho incestuoso. A Lei 6.515/77, em seu art. 51, acrescentou um parágrafo único ao art. 1º da Lei 883/49, passando a vigorar com as seguintes declarações: “ainda na vigência do casamento, qualquer dos cônjuges poderá reconhecer o filho havido fora do matrimônio, em testamento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho, e, nessa parte, irrevogável”. Apesar de alguns entenderem que a expressão “filho havido fora do casamento” englobava também os incestuosos, estes ainda não tinham o direito de serem reconhecidos. O Código Civil, em seu artigo 357, estabelecia que o reconhecimento do filho natural se efetuava por: a) no próprio termo de nascimento; b) mediante escritura pública; e c) por testamento. Não admitindo ainda, aos filhos incestuosos, o reconhecimento. Só acabou a discriminação e diferenças entre as filiações com a promulgação da Constituição Federal de 1988. CAPÍTULO IV - A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 A matéria do reconhecimento dos filhos, de fundamental importância antes da Constituição de 1988, perdeu praticamente seu interesse após a promulgação dessa Constituição e da legislação ordinária que alterou profundamente a filiação. 85 O disposto no artigo 227, § 6º da Constituição Federal estabelece: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Os princípios aí existentes de unidade de filiação e de igualdade de tratamento entre os filhos, vem pôr fim a distinção odiosa que havia no Brasil, adotando a concepção unitária, já existente em outros países. Esse dispositivo constitucional deu embasamento a criação de novas leis, protegendo ainda mais o interesse do filho, não mais no propósito de proteger a chamada família legítima. LEI Nº 7.841/89 Revogou o artigo 358 do Código Civil, que proibia o reconhecimento de filhos adulterinos ou incestuosos, colocando, dessa forma, igualdade em seus direitos. LEI Nº 8.069/90 – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA) Em seu artigo 20, de igual teor ao art. 227, § 6º da CRFB, veio à reforçar a anulação de diferença de tratamento entre filhos havidos dentro ou fora do casamento. Também em seu importantíssimo artigo 26, essa lei diz: “os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecimentos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura pública ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação”. Acabava-se de vez com a impossibilidade dos filhos adulterinos ou incestuosos de serem reconhecidos. Segundo ainda seu artigo 27, o reconhecimento do estado de filho é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. 86 LEI Nº 8.560/92 Lei esta que veio a regular a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento. Descreve que tal reconhecimento é irrevogável e será feito das formas seguintes: a) no registro de nascimento; b) por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; c) por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; d) por manifestação expressa e direta perante o juiz, ainda que o reconhecimento haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Proíbe o seu artigo 5º, fazer referência no registro de nascimento, à natureza da filiação e o estado civil de seus pais. Proíbe também em seu artigo 6º, fazer constar indícios de que a concepção é decorrente de relação extraconjugal. Portanto, está assegurado a todos os filhos, independente de quais circunstâncias foram concebidos, garantindo-lhes o direito ao nome e a um pai, assegurando-lhes através de segredo de justiça, a igualdade de direitos sem discriminação. Como bem mencionou PEREIRA, citado por LEITE (1197, p. 183): “Uma das mais deploráveis hipocrisias naquele ramo de Direito, de efeitos perniciosíssimos, consiste em punir os filhos ilegítimos por eventos no tocante aos quais não têm quaisquer responsabilidade”.43 CONCLUSÃO A família é a célula básica da sociedade. Sendo o alicerce de toda a organização social, é preciso conceder-lhe maior proteção e propiciar melhores condições de vida às novas gerações. 43 LEITE, Eduardo de Oliveira. Síntese de Direito Civil. Curitiba: JM Editora, 1997, pág. 183. 87 O Estado, preocupado em salvaguardar a Família, sempre deu proteção especial a ela. Mas eram poucas as disposições que se referiam à família surgida à margem do casamento, proibindo inclusive o reconhecimento de filhos incestuosos e adulterinos. Conforme visto, o direito positivo brasileiro evoluiu acentuadamente no sentido de maior proteção à “família ilegítima”, acompanhado pela renovadora jurisprudência. As mudanças sociais fizeram com que se mudasse a legislação, não permitindo que crianças nascidas fora do casamento, tão normal hoje em dia, fossem discriminadas por isso. A pesquisa buscou acompanhar essas renovações legais, contribuindo para a compreensão da terminologia usada pela população e também por autores de livros de direito. Hoje, pode-se reconhecer a paternidade de todos os filhos, sejam eles, como antes se denominavam, legítimos, ilegítimos, naturais, espúrios, adulterinos ou incestuosos. Afinal, este direito de reconhecimento do estado de filho é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. Embora não se admita mais distinções e discriminações entre os filhos, essa proibição, como já exposto, é mais didática que prática. Muitas crianças nascidas à margem do casamento ainda são e serão discriminadas, principalmente as nascidas de adultério ou concebidas por uma única relação sexual, não tendo seus pais compromisso amoroso. Essas crianças ainda serão, por muito tempo, chamadas de bastardas, principalmente se a família de um de seus pais não aceitá-las. Infelizmente, quem acaba sofrendo as conseqüências de atos impensados são as crianças, que crescem sendo discriminadas, tendo muitas vezes, que esperar durante muito tempo para que sejam reconhecidas como filhas, o que acarreta traumas e dores que perduram pela vida inteira. Esses filhos havidos fora do casamento, ainda tem que suportar durante sua vida, pessoas de mentalidade pequena e sem qualquer vestígio de humanidade, que no alto de sua ignorância, os discriminam. 88 Há que se salientar aqui, que essa discriminação tem origem nos dogmas católicos e nos pecados que a Igreja sempre procurou apresentar a todos como sendo diabólicos e repugnantes. Mas isso é outro assunto que se fosse tratado, mesmo que superficialmente, originaria outro trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • • • • • • • • • • • • • • • • • ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 6ª ed., vol II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997. CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revista Forense, 157. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 14ª ed., 5º vol. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. GASPAR, Walter. Resumo de Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1996. LEITE, Eduardo de Oliveira. Síntese de Direito Civil. Curitiba: JM Editora, 1997. MEDEIROS, Noé de. Lições de Direito Civil. 5ª vol., Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições Ltda, 1997. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. 3ª ed., vol. 9, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971. MUNIZ, Francisco José Ferreira. Textos de Direito Civil. Curitiba: Juruá Editora, 1998. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 16ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998. OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1990. OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de Direito de Família. 2ª ed., Curitiba: Editora Juruá, 1998. PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de Direito Romano. Tomo I, Parte Introdutória e Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora Renovar, 1997. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998. RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Direito de Família. 21ª ed., volume 6, São Paulo: Saraiva, 1995. SANTOS NETO, José Antonio de Paulo. Do Pátrio Poder. Editora Revista dos Tribunais, 1994. WALD, Arnoldo. Direito de Família. 11ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. 89 MERCOSUL E GLOBALIZAÇÃO ( * ) RAFAELA CALGARO e CLÁUDIA FRIGERI Acadêmicas do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei ( * ) Trabalho orientado pelo Prof. Célio Armando Janczeski na disciplina Direito Constitucional, do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei, no ano 2000. RESUMO – O artigo trata do fenômeno da globalização e do surgimento de blocos econômicos, com a análise destacada de vários aspectos do Mercado Comum do Sul e de outros blocos regionais. As autoras cuidam da globalização como realidade econômica das empresas, tratando ainda das conseqüências geradas para o Estado, como a alteração do papel historicamente desempenhado. O texto desenvolve reflexão crítica acerca de facetas positivas e negativas da globalização. MERCOSUL AND GLOBALIZATION - SUMMARY - The article deals with the phenomenon of globalization and the raising of economic blocks, with an emphatic analysis of some aspects of the Common Market of the South and of other regional blocks. The authors approach globalization as an economic reality of companies, analyzing the consequences generated to the State, as the alteration of the role historically performed. The text develops a critical reflection concerning positive and negative aspects of globalization. MERCOSUL A associação de várias economias é vital para se obter tecnologias mais 90 avançadas por um preço menor, tornando os produtos mais baratos e competitivos internacionalmente. Só assim colocamos nossos produtos à disposição do resto do mundo, e aqui, também haverá uma “injeção” de produtos estrangeiros com preços menores, obrigando os fabricantes a melhorarem a qualidade e o preço de seus produtos para concorrerem com os internacionais. Em razão disso, sem dúvida, os grandes beneficiados serão os consumidores, que terão mais opções a preços menores, além de se tornarem acessíveis a muitos consumidores de classe média e baixa. O MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) foi criado em 1991 pelo Tratado de Assunção, com o objetivo de: implantar a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos; coordenação de posições conjuntas em foros internacionais; coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais e harmonização das legislações nacionais, para uma maior integração entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O MERCOSUL segue uma nova tendência no mundo moderno, que é a união de várias nações em grupos ou blocos, para fortalecê-los e melhor competir com os outros países e blocos econômicos. Passados quase dez anos, do Tratado de Assunção, muitos acordos, protocolos, foram firmados, procurando solucionar as divergências existentes. Os principais desafios estão entre as economias do Brasil e da Argentina. O que vemos é um apego dos dois governos às suas posições, um excessivo protecionismo. O primeiro período do bloco teve progressos significativos, mas agora, observamos problemas no cumprimento da agenda negociada em 1995. Somente um sistema arbitral, neutro e confiável é capaz de solucionar as controvérsias existentes. Diante de um panorama de crescente marginalização econômica, política e estratégica, causada sobretudo pelas mudanças na estrutura e no funcionamento do sistema econômico mundial, e em face de uma evidente perda de espaço comercial, de redução do fluxo de investimentos e de dificuldades de acesso à tecnologias de ponta, Brasil e Argentina viram-se diante da necessidade de redefinirem sua inserção internacional e regional. Dentro dessa nova estratégia, a integração passa a ter papel importante na criação do comércio, na obtenção de maior eficiência com vista à competição 91 no mercado internacional e na própria transformação dos sistemas produtivos nacionais. Em 20 de julho de 1986, foi assinada a “Ata de Integração BrasileiroArgentina”, que estabeleceu os princípios fundamentais do “Programa de Integração e Cooperação Econômica — PICE “. O objetivo do PICE foi o de propiciar a formação de um espaço econômico comum, por meio da abertura seletiva dos mercados, brasileiro e argentino. A partir de 1995, com o estabelecimento da União Aduaneira, a tarifa externa comum foi implantada em níveis, que inibem a transformação do MERCOSUL em um agrupamento econômico isolado, o que fugiria ao objeto principal da integração, que é o de promover a inserção competitiva do Grupo dos Quatro, no mercado internacional, em sintonia com sua condição de bloco regional aberto. Atualmente, a Tarifa Externa Comum, que varia de 0% a 20%, tem patamares médios de cerca de 15%, o que coloca o MERCOSUL entre os espaços econômicos mais abertos do mundo. Miguel Anacoreta Correia disse que, a longo prazo o MERCOSUL é um mercado mais promissor até do que o chinês, que encabeça, hoje, as pretensões empresariais no cenário internacional. “O único caso que supera o MERCOSUL é o chinês. Mas o MERCOSUL tem uma sustentabilidade superior e ultrapassará os chineses com o tempo”, afirmou Correia, destacando que o Brasil desponta como líder real desse processo. Para o diretor da Comissão Européia, o Brasil, agora, está no leme de sua economia. “O Brasil vai dar certo”, garantiu. Quanto ao Chile, este, inicialmente, não se interessou pelo MERCOSUL, já que não queria perder suas vantagens comerciais no intercâmbio com o NAFTA e a Bacia do Pacífico, mas as coisas mudaram, hoje, é um parceiro não membro do MERCOSUL. Já, a Bolívia, solicitou a adesão gradual ao MERCOSUL, sendo que este faz parte do Pacto Andino e o Tratado de Assunção e não pretende deixar estes blocos. Apesar disso, as relações estão se estreitando, especialmente com a construção de um gasoduto Brasil-Bolívia. Entre as vantagens do Brasil no MERCOSUL está um parque industrial grande e desenvolvido, o maior potencial turístico – especialmente em Santa 92 Catarina que atrai um grande número de Argentinos. Há possibilidade de grandes empresas brasileiras expandirem seus mercados, maior interesse dos investimentos estrangeiros. Mas precisamos sanar algumas falhas graves como a desvantagem da agricultura e das rodovias e portos que, na Argentina e Chile estão em melhores condições. Já os obstáculos à implantação da livre concorrência do MERCOSUL, estão na existência de economias fechadas e protecionistas, principalmente no Brasil e Argentina; dificuldades na competição empresarial, inexperiência e falta de cultura de concorrência; divergências jurídicas; dependência do Estado para a tomada de decisões e políticas econômicas como o tabelamento e congelamento de preços e inflação elevada. DOS BLOCOS ECONÔMICOS Os blocos econômicos são associações de países, geralmente de uma mesma região geográfica, que procuram estabelecer relações comerciais, com zonas de livre comércio. UNIÃO EUROPÉIA O primeiro bloco econômico, foi a Comunidade Econômica Européia (atual União Européia), que surgiu em 1957, e hoje, conta com 15 países membros. Todos os países, que estão nesse mercado, abriram suas fronteiras alfandegárias, unificaram suas economias e avançaram muito, politicamente. Com a unificação da Europa, as empresas estão ocupando um mercado mais amplo, mas devem prioritariamente adquirir produtos/insumos que são fabricados dentro da união. O grande problema deste bloco é o desemprego, onde a mão-de-obra ociosa é enorme. Mas, devemos lembrar que o União Européia tem quase meio século de ajustes e que muitos obstáculos foram ultrapassados. 93 NAFTA O Acordo de Livre Comércio da América do Norte, composto por Estados Unidos, Canadá e México, surgiu em 1992, e tem como objetivo eliminar as barreiras alfandegárias e proteger os produtos ali fabricados. Este bloco econômico está esbarrando em muitas diferenças sociais, especialmente no grande número de desempregados no México, que faz com que o custo de mão-de-obra seja mais baixo e acaba atraindo empresas dos Estados Unidos e do Canadá. TIGRES ASIÁTICOS Dos Tigres Asiáticos fazem parte o Japão, China, Formosa, Cingapura, Hongkong e Coréia do Sul, tendo um PIB de 4,25 trilhões de dólares, e um mercado consumidor de 1.295 bilhões de pessoas. O Japão é a grande força, pois tem uma economia super competitiva e destina recursos aos demais, com o objetivo de se tornar um bloco que tenha competição na economia mundial e que ocupe parte dela. As indústrias e exportações estão concentradas em produtos têxteis e eletrônicos, cujo mercado consumidor está voltado para a Ásia, Europa e América do Norte. Este crescimento está sustentado na cultura formalista, que valoriza a disciplina e a ordem, na intervenção do Estado em diversos setores econômicos, na mão-de-obra barata, na estabilidade política. A política destes países, onde a estabilidade é prioridade, atrai muitos investimentos estrangeiros. OUTROS BLOCOS ECONÔMICOS - Asean — Associação das Nações do Sudoeste Asiático, composto por sete países, foi criado em 1967, e tem um PIB total de 541.075 milhões de dólares. 94 - Apec — Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico, composto de 17 países e um território, foi criado em 1989 e tem um PIB de 14 bilhões de dólares. - Caricom — Comunidade do Caribe e Mercado Comum, composto por 12 países e 03 territórios, foi criado em 1973. - Pacto Andino — formado pela Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, foi criado em 1969; ALCA A Área de Livre Comércio das Américas - ALCA, enfrenta problemas e divergências entre países como Estados Unidos, Canadá e os do Mercosul. A consolidação deste bloco dependerá de muitas negociações, afinal as diferenças econômicas e sociais são enormes. No plano mundial, as relações comerciais são reguladas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que substitui o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), criado em 1947. A organização vem promovendo o aumento no volume de comércio internacional por meio da redução geral de barreiras alfandegárias. Este movimento, no entanto, é acompanhado pelo fortalecimento dos blocos econômicos, que buscam manter maiores privilégios aos países-membros. GLOBALIZAÇÃO A globalização é um fenômeno econômico ligado às empresas e não aos países. Traz vantagens e desvantagens, nos países desenvolvidos, as demissões estão cada vez mais freqüentes, pois o componente, matéria-prima, mão-de-obra é muito caro, o que era feito nesse país passou a ser feito em vários outros países. A globalização forçou a formação de blocos econômicos para tornar os custos mais baratos e manter a economia dos países desenvolvidos, dentro de um padrão normal de crescimento. 95 Possivelmente, a primeira noção, que nos vem à mente, ao falarmos da globalização econômica é a da sempre crescente expansão dos fluxos financeiros internacionais e de seu impacto sobre as políticas monetária e cambial das economias nacionais. Os efeitos da dimensão financeira da globalização são de certa forma controversos. Se, por um lado, a mobilidade dos fluxos financeiros, através das fronteiras nacionais, pode ser vista como uma forma eficiente de destinar recursos, internacionalmente, e de canalizá-los para países emergentes, por outro, a volatilidade dos capitais de curto prazo e a possibilidade de seu uso para ataques especulativos contra moedas são considerados como uma nova forma de ameaça à estabilidade econômica dos países. Noutras palavras, o movimento virtualmente desimpedido de grandes volumes de capitais ,cria, ao mesmo tempo, oportunidades e riscos. O acirramento da competição entre as nações não excluiu, contudo, a cooperação, que pode assumir várias formas. A principal delas tem a integração regional. A criação de mercados ampliados, seja sob a de zona de livre-comércio, seja, num patamar mais avançado, de unificação aduaneira, transformou-se num instrumento fundamental para os países em desenvolvimento, no quadro da globalização. No caso do Brasil, o MERCOSUL tornou-se, no espaço de menos de uma década, no principal projeto da diplomacia nacional. O MERCOSUL atrai, hoje, para a região, um volume crescente de investimentos de grande porte, com impacto muito importante na geração de novos empregos. Assim, as políticas de integração regional são mecanismos decisivos de combate aos efeitos mais danosos da globalização. Também intimamente ligada à questão da globalização é a limitação que se impõe à capacidade dos Estados de escolher estratégias diferenciadas de desenvolvimento, de adotar políticas macroeconômicas, ou ainda, de sustentar fórmulas rígidas na relação entre o Capital e o Trabalho. Os mercados de capital passaram a atuar como verdadeiros vigilantes das gestões nacionais: qualquer medida, por mais correta do ponto de vista interno, que possa sinalizar um passo em falso ou contrariar o interesse dos investidores externos tem como conseqüência a revoada dos capitais de curto prazo, com sérios efeitos para a saúde do sistema financeiro de determinado país. 96 A globalização está longe de ser um fenômeno, que avança de modo uniforme no plano internacional. Seu ritmo financeiro, por exemplo, é diferente do comercial e as conseqüências sociológicas da modernização induzida pela globalização é a dispersão de interesses, a fragmentação do Trabalho e do Capital. A posição competitiva de um país em relação aos demais é, cada vez mais, determinada pela qualidade dos recursos humanos, pelo conhecimento, pela ciência e tecnologia aplicadas à produção. A globalização também tem contribuído para alterar o papel do Estado: a ênfase da ação governamental está agora dirigida para a criação e sustentação de condições estruturais de competitividade em escala global. Isso envolve canalizar investimentos para a infra-estrutura e para os serviços públicos básicos, entre os quais educação e saúde, retirando o Estado da função de produtor de bens, de repositor principal do sistema produtivo, sendo que este é comprovadamente, ineficaz e não tem natureza essencialmente pública. O Estado deve intervir menos e melhor, tendo opções cada vez mais restritas em termos de política econômica, em decorrência das necessárias disciplina fiscal e austeridade de gastos públicos. É equivocado considerar que, a globalização seja resultante unicamente das forças de mercado. Os contornos, dentro dos quais, o mercado atua, são definidos politicamente. O jogo de poder entre as nações não está ausente, assim como não está a possibilidade de cooperação econômica definida por Governos. As negociações de comércio exterior ainda são conduzidas por meio do diálogo entre Estados em foros por eles criados, em particular as que dizem respeito à definição das regras que balizam a competição. O poder econômico é um fator determinante nessas negociações, bem como na solução de disputas comerciais bilaterais. Em alguns casos, as potências econômicas invocam sua influência para desrespeitar as regras multilaterais por elas próprias propostas. A questão dos subsídios à agricultura ilustra este ponto. Por outro lado, os movimentos recentes de criação de processos de integração regional, a que os anos 90 têm assistido, são também iniciativas com as quais, os Governos tentam influenciar a direção da 97 globalização econômica. É justamente o reconhecimento de que há “limites” ao mercado o qual permite que os países em desenvolvimento, atuem politicamente na defesa de seus interesses nacionais. No entanto, as formas de atuação, de regular o processo de globalização, variam entre os diferentes países em desenvolvimento. Queiramos ou não, a globalização econômica é uma nova ordem internacional. Precisamos aceitar este fato com sentido de realismo; do contrário, nossas ações estarão destituídas de qualquer impacto efetivo. Isto não significa inércia política, mas uma perspectiva inteiramente nova sobre as formas de agir na cena internacional. Temos de admitir que, a participação na economia global pode ser positiva, que o sistema internacional não é, necessariamente, hostil. Mas, para aproveitar as oportunidades, é preciso ir com cuidado. O sucesso da integração na economia global depende, de um lado, da articulação diplomática e da construção de parcerias comerciais adequadas, e, de outro, da realização de reformas internas, em cada país, em desenvolvimento, democraticamente conduzidas. É certo que a globalização produziu uma janela de oportunidades para que mais países pudessem ingressar nas principais correntes da economia mundial. Os Tigres Asiáticos e mesmo o Japão são exemplos significativos. Estes países souberam aproveitar as oportunidades dadas pela economia mundial, através da adoção de um conjunto de políticas, que incluem, entre outras, o desenvolvimento de uma força de trabalho bem treinada e qualificada, aumento substancial da taxa de poupança doméstica, e implementação de modelos voltados para a exportação e baseados na intervenção estatal seletiva em alguns setores. Para outros países em desenvolvimento mais complexos, como o Brasil, a integração na economia global está sendo feita à custa de maior esforço de ajuste interno e numa época de competição internacional mais acirrada. A globalização significa competição com base em maiores níveis de produtividade, ou seja, maior produção por unidade de trabalho. O desemprego 98 resulta assim dos mesmos motivos que levam uma economia a ser competitiva. Lidar com a complexa questão do desemprego é um desafio com o qual se defrontam praticamente todos os países que participam da economia global. A resposta a esse desafio, certamente, não deve ser encontrada numa reação à globalização, seja mediante um fechamento da economia ao comércio com parceiros externos, o que apenas agrava a marginalização de um país, seja mediante o estabelecimento de regras muito rígidas nas relações de trabalho, passo que, corre o risco de, em vez de estimular, dificultar a criação de empregos. Apesar de que dificilmente se poderia considerar a criação de empregos uma responsabilidade direta dos Governos, estes dispõem de uma ampla gama de possibilidades de ação para atacar o problema, como a promoção do crescimento econômico sustentado, promover programas destinados ao retreinamento, tornar mais flexível o conjunto de regras relativas às relações de trabalho, onde, empresas e trabalhadores negociassem livremente, concessão de créditos pelos bancos estatais e a inclusão de incentivos na legislação tributária e verificar como a economia informal gera empregos e qual a melhor solução a ser adotada. Como já foi dito, a globalização gerou a exclusão dos países pobres que ainda não compartilham os benefícios do processo. Criou também a marginalização, nos países ricos, e naqueles em desenvolvimento, que se encontram integrados na economia mundial. Mas a globalização também multiplicou a riqueza, desencadeando forças produtivas numa escala sem precedentes. Não podemos renunciar aos elementos positivos da globalização, às possibilidades de maior riqueza, por ela oferecidas, e reverter o relógio da História, supondo que seja possível fazê-lo. O MERCOSUL tem um grande desafio, unir seus membros e fortalecêlos para que possamos amenizar os aspectos negativos trazidos pela globalização, mas ao mesmo tempo, nos fortalecermos para que consigamos aproveitar todas as vantagens, que a globalização mundial nos traz. Sem dúvidas, a médio e a longo prazo poderemos comemorar os beneficios que a globalização trouxe para todos os países integrantes do MERCOSUL, assim 99 nos consolidaremos como um bloco forte e capaz de competir saudavelmente com os demais blocos econômicos. O MERCOSUL INSERE O BRASIL NA GLOBALIZAÇÃO PELA PORTA DA FRENTE ? ( * ) ELIZANGELA ROZANSKI, FERNANDO CALZA, FRANCIELE COLA e LUIZ FERNANDO SCHUCHOVSKI Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei ( * ) Trabalho orientado pelo Prof. Célio Armando Janczeski na disciplina Direito Constitucional, do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei, no ano 2000 RESUMO – O texto parte da constatação da existência do fenômeno da globalização e sua progressiva e veloz expansão no mundo moderno. Os autores criticam as conseqüências nocivas da globalização, como a redução da população menos favorecida à condição de “fonte de mão de obra”. Temas como o “Consenso de Washington” e outros pertinentes traçam cenário difícil para os países pobres no mundo globalizado, principalmente em face do protecionismo dos países ricos a seus mercados, assinalando os autores a necessidade do fortalecimento do Mercosul para a competitividade global. DOES MERCOSUL INSERT BRAZIL INTO GLOBALIZATION THROUGH THE FRONT DOOR ? - SUMMARY - The text starts from the existence of the globalization phenomenon and its gradual and quick expansion in the modern world. The authors criticize the harmful consequences of globalization, such as the reduction of the less-favored population to the condition of “source of manpower”. Subjects as the 100 “Consensus of Washington” and other pertinent ones establish a difficult scenery for the poor countries in the globalized world, mainly in face of the protectionism of rich countries to their own markets. The authors emphasize the necessity of invigoration of the Mercosul for the global competitiveness. Independente da concordância ou não, da unanimidade ou não, a globalização existe e ocorre em nosso meio, de forma veloz e progressiva, reversível apenas com isolamento auto imputado pelo país que o desejar. Assim, devemos entender o dito popular “para o que não tem remédio, remediado está”, pois isolamento levaria a retrocesso. Se não vejamos: os fabricantes de automóveis, de eletrodomésticos, de maquinários para indústrias de transformação primária, são nacionais? Não. E os bancos, as empresas de petróleo, de telecomunicações, a tecnologia, as patentes? Também não. São internacionais, têm apenas sócios que visam basicamente os lucros. A conseqüência é o caos social cada vez mais próximo, pois a busca irracional da otimização da produção e da produtividade tem levado a geração de trustes, articulações de dumping, e a formação de cartéis, deixando o ser humano em último plano, que só interessa como fonte de mão-de-obra e como mercado consumidor, principalmente em países subjugados como o nosso. Nos ditos ricos, no grupo dos sete ( G-7 ), os governos impedem ações desta natureza protegendo suas empresas. Lembremo-nos um pouco da imposição que estes países fizeram, no recente “Consenso de Washington”, quando então definiram lO pontos de obrigatórios para os demais poderem manter relações com eles e com seus mercados. Verdadeiras “pérolas”, afrontam desde a soberania pela exigência de privatização e mudanças nos direitos trabalhistas, até alterações no sistema financeiro e no previdenciário ( que mercado fabuloso pretendem abocanhar, não?!) Destacamos aqui, não sermos contrário à participação da iniciativa privada em explorar telecomunicações, sistemas de saneamento, transporte ferroviário, exploração do petróleo, energia elétrica, estradas e outros mais. 101 Apenas causa estranheza a forma como isto vem ocorrendo no Brasil. Quando tudo está pronto, entrega-se a quem quiser, pagando o que quiser, esquecendo os anos de capital empregado na abertura de fronteiras, de estradas, da construção de barragens, na pesquisa e prospecções. Ora, quer-se explorar a energia elétrica, ótimo! Defina o local, compense a sociedade pela interferência à natureza e cave, construa, invista, produza e então venda, a preço razoável, sua energia. Faça uma nova e moderna estrada e cobre seu pedágio. Mas nas usinas e estradas que o imposto construiu, não. Nas telecomunicações que já estão operando, não. Além do que, permitir fazê-lo é burrice, pois quem dará o referencial ao preço cobrado de nosso povo? Uma “ANNEL”, uma “APEL” uma “ANA”... Pura bazófia. Já implodiram o sistema cooperativo agropecuário para eliminar referenciais! Se alguém pensa que será diferente, olhe o valor da assinatura básica da linha telefônica, as obras X as taxas cobradas como pedágio de estradas nossas. Em se permitindo explorar a atividade, privatizar exige realmente vender? E a arrecadação que estas empresas dão ao governo compensar-se-á com o quê? E, se serão lucrativas para particulares, por que não assim fazê-las para o povo brasileiro? Na realidade, temos que analisar profundamente o que disse o Dr. Ministro das Relações Exteriores — Luiz Felipe Lampreia sobre essa onda de globalização e de real liberalização comercial mundial. Há um descompasso entre a retórica do livre comércio e a prática protecionista dos países desenvolvidos, que impõe perdas àquilo que temos aptidões e condições técnicas de produzir, até mesmo sem subsídios à produção e à exportação, pelo constante expediente utilizado travestido de internacionalismo humanitário (ambientais, trabalhistas ) e barreiras técnico-sanitárias . Afinal, quem no mundo produz cana-de-açúcar, café, laranja, milho, frango, suíno, bovino (a campo), entre outras, mais barato e de boa qualidade como o Brasil? Mas não: “autorizam” a comercializar o que não prejudique suas produções, e que não tenha valor agregado significativo, para que isto aconteça no “benevolente” importador, onde então gerará empregos e divisas. Para melhor entendimento, um simples exemplo: produzimos e exportamos cacau, soja, açúcar, frutas tropicais, fios de seda – mas importamos finos 102 chocolates suíços, ricamente embalados em laços de seda. E acrescente-se à compreensão do exemplo: a média de valor agregado ao produto primário brasileiro é de quatro vezes; na Holanda nove, ou seja: mais riquezas e mais empregos lá. Uma das maneiras de minimizar essa verdadeira opressão é a união com nossos pares, iniciando pelo MERCOSUL: países latinos, agropecuária similar, com um PIB de quase U$ 1,5 bilhão e um mercado de aproximadamente 210 milhões de habitantes. Arestas vêm sendo amparadas, pois o livre comércio pretendido exige mais de 8500 dos produtos sem taxas e a definição destes produtos está ocorrendo. Concretizada a zona de livre comércio, busca-se a união aduaneira, com uma tarifa externa comum, para a seqüente eliminação de restrições a bens e serviços. Faltará, então, a reforma legislativa, bastante delicada, à medida que, poderá confundir-se com princípios de soberania. Teremos então, perante o resto do mundo, um maior volume de produção e com uma série de produtos com estratégica necessidade pelo mercado mundial, o que deverá ampliar nosso poder de barganha. Consolidada a pretensão destes objetivos do MERCOSUL, sem necessidade alguma da moeda comum ( haja visto a crise do EURO como moeda comum da CEE, e que pode levar ao colapso da economia mundial), pela porta da frente poderemos vir a efetivar a participação no ALCA, até 2005 como pretendido, mas não para vivê-lo e sim com ele conviver, exigindo nos acordos de seu estabelecimento a comercialização de produtos prontos, com máximo valor agregado e não apenas como fornecedor de matérias-primas básicas à geração de empregos e recursos pelos demais!