Colonialismos, descolonizações e crises na África
Bittencourt, Marcelo
A África passou por uma experiência colonial relativamente curta no tempo decorrido,
mas muito intensa no sentido das mudanças econômicas, sociais e culturais. A expansão
colonial européia sobre o continente africano adquiriu maior vigor na virada do século
XIX para o XX, quando precisou defrontar diversas resistências pulverizadas de maior
ou menor envergadura, mas ainda sem os desenhos das lutas políticas nacionais que se
delineariam a partir de meados do século XX. Passado pouco mais de meio século, a
dominação colonial européia enfrentaria um desejo de independência mais consistente
por parte dos africanos. Desejo esse que se transformaria numa inadiável realidade no
pós-Segunda Guerra, em especial a partir dos anos 1950.
Além do reconhecimento da curta duração da dominação colonial na África, que
ressalta a velocidade da transformação econômica, social e cultural, deve-se considerar
as variantes locais e regionais, que tornam necessária a análise de cada momento e
espaço geográfico específico para a avaliação do processo como um todo. O estudo de
cada situação colonial, acrescido da análise comparativa, permite entender que as elites
políticas das novas nações africanas foram quase inevitavelmente oriundas das áreas de
maior contato com a exploração colonial, em grande parte urbanizadas e capazes de
implementar uma perspectiva nacional. Nesse sentido, o contato com o colonialismo foi
fundamental para que essas elites pudessem pensar-se como argelinas, angolanas,
nigerianas ou quenianas.
A idéia de um pertencimento nacional dificilmente poderia surgir, nos anos 1950 e
1960, entre os africanos que viviam nas áreas rurais, mais próximos aos laços
familiares, étnicos e de solidariedade, vínculos fundamentais e quase únicos na sua
estratégia de vida e visão de mundo. O descompasso entre uma visão
desenvolvimentista redentora e acelerada e as experiências marcadas pelas práticas
locais, quando muito regionais, guiaria as opções dessas lideranças políticas africanas
no pós-Segunda Guerra.
Freqüentemente, esse embate datado entre "desenvolvimentistas" e "tradicionalistas"
influenciou a historiografia sobre o colonialismo e as lutas anticoloniais, que tendeu a
desvalorizar os enfrentamentos de caráter local e muitas vezes étnico, caracterizando-os
como conservadores e tribais e contrapondo-os à modernidade dos partidos políticos e
movimentos de libertação que, ao menos no campo do discurso, e em muitos casos só
mesmo nesse terreno, explicitavam sua perspectiva nacional.
Fortalecido o desejo de independência, a postura anticolonial tenderia a se concentrar
em dois cenários: luta política e luta militar. No primeiro caso, os africanos buscaram
negociar com a metrópole, que se abriu ao diálogo por estar ciente de seu poderio e das
relações econômicas e comerciais existentes com as colônias sob seu controle.
Desenvolveu-se, assim, uma crescente luta no campo da reivindicação política,
resultando, sem prejuízo de momentos de tensão e violência, incluindo prisões e
assassinatos, na discussão e na obtenção das independências. O cenário alternativo foi o
da inexistência de uma margem mínima de negociação, em que a metrópole fazia crer
ser impossível, porque na sua ótica ser descabida, qualquer pretensão à independência.
Fechadas as portas da política, não restaria outro caminho além do embate militar.
A análise mais acurada do fenômeno da descolonização no continente africano deve
impedir uma perspectiva superficial que tenda a associar formas de governo existentes
na Europa com os desfechos das disputas políticas ocorridas na África. Mais uma vez, é
preciso ter atenção ao tempo e ao espaço. A mesma França que negociou com suas
colônias da África ocidental e equatorial, em 1958, um plebiscito sobre a manutenção
das mesmas nos quadros da União Francesa, levou adiante, na Argélia, oito longos anos
de guerra (1954-1962) contra a independência capitaneada pela FLN (Front de
Libération Nationale). Para entender o porquê desse comportamento divergente, é
fundamental recordar que mais de 1 milhão de europeus residiam na Argélia, sendo esse
montante composto por mais de 700 mil franceses.
Com a Inglaterra não seria diferente. No ano de 1951, enquanto negociava com Kwame
N'krumah sua libertação e passagem a primeiro-ministro na Costa do Ouro, futuro
Gana, num sistema de semi-autonomia, o governo inglês nomeava um missionário
britânico como representante dos quenianos e prendia Jomo Kenyatta. A mesma
Inglaterra que, em 1956, combatia a guerra dos Mau Mau (1952-1956), no Quênia,
gerando um número de mortos superior a 10 mil entre os africanos, sendo o número de
detidos em campos de reeducação superior a 50 mil, cedia ao desejo de independência
do Gana, proclamada no ano seguinte. Vale lembrar que, na antiga Costa do Ouro, a
economia agro-exportadora baseada no cacau, além de perder valor no mercado
internacional, sempre teve a sua produção na mão dos africanos, enquanto as nobres
culturas do café, chá e tabaco existentes no Quênia eram um monopólio dos
aproximadamente 30 mil colonos brancos.
Ainda assim, cabe realçar que o número de conflitos anticoloniais prolongados na
África foi pequeno. Para além do drama argelino, os casos mais conhecidos seriam os
das colônias portuguesas, à exceção do arquipélago de Cabo Verde e das ilhas de São
Tomé e Príncipe. Angola, Guiné-Bissau e Moçambique enfrentariam longas guerras de
libertação, iniciadas respectivamente em 1961, 1963 e 1964, e só extintas após o
esgotamento da tropa portuguesa nas três frentes de batalha, fundamental para a
insurgência da Revolução dos Cravos. O mais frágil dos impérios europeus – e
certamente tal condição contribuiu para isso – foi o último a abandonar o continente.
Obtida a libertação, as novas nações africanas teriam que defrontar um cenário
internacional pouco amistoso. No tocante às relações internacionais, a bipolarização do
mundo nos anos 1960 ditava as regras. É evidente que margens de negociação existiam,
mas estas tendiam a escassear com o avanço das independências e das necessidades de
apoio daí surgidas. No interior dos países africanos faltava crédito de curto, médio e
longo prazo, capacidade de endividamento, recursos humanos, medicamentos, alimentos
e tudo o mais que se possa imaginar para a operacionalidade dos novos Estados. Na
ausência de ajudas desinteressadas, prevaleceria o jogo duro das alianças políticoeconômicas sempre pautadas pelo desejo da exclusividade.
Capitalistas e socialistas, conservadores e modernizadores, direita e esquerda
compartilharam o mesmo sonho desenvolvimentista no continente africano. A opção
mais comum para pavimentar esse caminho seria a do partido único, sem alternância
prevista ou partilha do poder, assegurando-lhes um eficaz mecanismo de preservação
dos seus respectivos regimes.
Entretanto, os diferentes países recém-independentes não se mostraram próximos
apenas na busca do desenvolvimento. O passado colonial deixou marcas profundas na
sua estrutura de produção. Suas economias, construídas para a exportação de matériasprimas, agrícolas e minerais, tinham grande dificuldade, mesmo quando estimuladas
pelos novos projetos, para escapar do modelo exportador. A diretriz básica continuaria
sendo a expansão da agricultura para exportação, num formato muito parecido com o
colonial.
As estratégias, entretanto, não seriam as mesmas. Afinal, ainda que os dirigentes de
todos os países recém-independentes visassem o ideal de desenvolvimento, as
perspectivas sobre as sociedades que deveriam ser construídas eram bem diferentes. Por
fim, vale dizer que essas elites pensavam poder muito, já que controlavam os governos,
promulgavam leis, estabeleciam metas e raramente escutavam opiniões discordantes.
Mas os resultados de suas ações, em grande medida derivados desse terrível parentesco
entre colonialismo e descolonização, foram marcados por uma cruel seqüência de crises.
Marcelo Bittencourt é professor de história da África junto ao Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense (UFF)
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A África passou por uma experiência colonial