António Diógenes e as fronteiras do Romance Antigo:
a questão da literatura fragmentária*
JOSÉ CARLOS ARAÚJO
Universidade de Lisboa
[email protected]
RESUMO: António Diógenes, autor de uma narrativa perdida (T
π ρ
Θούλην πιστα) transmitida de forma fragmentária por Fócio, é comummente
considerado entre as fontes principais das Verae Historiae de Luciano. Procuraremos
rever as questões fundamentais da sua integração no contexto da literatura
paradoxográfica de finais do séc. I, a sua relação com o cânone utópico e o género
romanesco e o seu programa literário, bem como as implicações possíveis
estabelecidas com obras precedentes e a sua contribuição para o alargamento e
história da recepção da prosa ficcional grega na época imperial.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Grega Imperial; Paradoxografia; António
Diógenes; Luciano.
Entre as diversas narrativas ficcionais que na Antiguidade acompanharam o
desenvolvimento e cristalização da forma a que hoje convencionalmente chamamos
‘romance’, i.e. na sua forma ideal, representada pelas obras conservadas na
íntegra,1 podemos distinguir textos de carácter biográfico, com maior ou menor
preponderância de elementos ficcionais e romanescos – as Historiae Alexandri Magni
de Quinto Cúrcio, a Vita Alexandri Regis Macedonum de Pseudo-Calístenes ou a
Historia Apollonii Regis Tyri, tradicionalmente atribuída a Pseudo-Xenofonte, que
apresenta sucessivos pontos de contacto com os romances conservados –, textos de
estrutura romanesca cujo conteúdo inusitado poderá indiciar tanto uma intenção
paródica como uma corrente literária paralela, como o Satyricon de Petrónio (cujo
* - O presente texto corresponde, com ligeiras alterações, às reflexões sobre os fragmentos de António Diógenes
por mim apresentadas em Dezembro de 2009 no âmbito da cadeira de Literatura Grega IV da Licenciatura em
Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, leccionada pela Senhora Prof.ª Doutora
Marília Pulquério Futre Pinheiro, a quem agradeço o acompanhamento atento e as sugestões que dispensou à
minha leitura dos πιστα e que muito a beneficiaram, bem como o seu apoio constante para o aprofundamento do
meu interesse pelos fragmentos da prosa ficcional grega e pela paradoxografia antiga.
1
- De acordo com John Morgan, ‘the extant complete texts notoriously conform to a canonical stereotype, with a
beautiful upper-class, heterosexual couple meeting and falling in love at first sight, only to be separated, exposed
to the ordeals of shipwreck, piracy and the attentions of unwelcome lovers, through all of which they preserve their
chastity and devotion unsullied, until, in the inevitable happy ending, they are reunited, to live happily ever after.
This narrative schema clearly acts as the didactic embodiment of a set of ideal values and wishes about the way
the world ought to be.’ (J.R. MORGAN, ‘On the fringes of the Canon: work on the fragments of Ancient Greek Fiction
1936-1994’, in W. HAASE & H. TEMPORINI (edd.), Aufstieg und Niedergang der römischen Welt II.34.4, Berlin & New
York, Walter de Gruyter, 1998, p. 3295). Sobre o ‘romance ideal’ – que, como notou Tim Whitmarsh (in T.
WHITMARSH (ed.), Cambridge Companion to the Greek and Roman Novel, Cambridge, Cambridge University Press,
2008, p. 6), ‘does not exist in practice’ – vide S. GOLDHILL, ‘Genre’, in T. WHITMARSH (ed.), op. cit, p. 194.
2
título patenteia uma clara influência grega),2 o chamado Romance de Iolau ou os
Phoinicica de Loliano,3 narrativas de carácter utópico – Iambulo e Evémero são os
exemplos mais bem conhecidos4 – e ainda textos que, pelo seu conteúdo, se
poderão agrupar com maior segurança de acordo com a sua natureza
paradoxográfica do que atendendo à diversidade da sua estrutura narrativa. Este
último porventura o grupo mais heterogéneo e de mais incerta classificação, devido
à abundância de testemunhos e fragmentos de autores paradoxográficos
remontando ao final da época clássica e ao período helenístico, não raro de
informação lacunar, e à volubilidade dos critérios que lhes são aplicáveis, inclui,
ainda assim, obras de tão notória influência romanesca que já Erwin Rohde, na
primeira tentativa moderna de estabelecimento de um cânone hierárquico para o
2
- O romance de Petrónio apresenta numerosas personagens com nomes gregos, baseia-se em narrativas de
carácter erótico que encontram os seus modelos numa tradição de origem milésia e adopta uma forma
prosimétrica conhecida como sátira menipeia (a partir do nome de Menipo de Gádara, seu criador), de longa
pervivência na literatura latina tardia e medieval – em particular nas obras de Marciano Capela (De Nuptiis Mercurii
et Philologiae) e Boécio (De Consolatione Philosophiae), de conteúdo marcadamente diverso de Petrónio. Também
o título é de influência grega, em primeiro lugar por pressupor um jogo de palavras entre Σατυρικ ν (adjectivo
formado a partir de σάτυρος) e a Satura latina – que à data se encontrava já, com os hexâmetros desconcertantes
de Pérsio, numa fase avançada de desenvolvimento – e ainda por adoptar o genitivo plural grego Satyricon <libri>
(a utilização deste genitivo não é, todavia, consensual, e o título original poderia ser simplesmente Satyrica; há, no
entanto, utilizações semelhantes, de que os Georgicon libri de Vergílio serão exemplo suficiente). Entre a vasta
bibliografia sobre os problemas do género no romance de Petrónio, vide em particular os estudos fundamentais de
A. COLLIGNON, Étude sur Pétrone. La Critique Littéraire, l’Imitation et la Parodie dans le Satiricon, Paris, Hachette,
1892; R. HEINZE, ‘Petron und der griechische Roman’, Hermes XXXIV (1899), pp. 494-519; Martin ROSENBLÜTH,
Beiträge zur Quellenkunde von Petrons Satiren (diss.), Berlin, 1909; F.F. ABBOTT, ‘The origin of the realistic
Romance among the Romans’, Classical Philology VI (1911), pp. 257-270; C.W. MENDELL, ‘Petronius and the Greek
Romance’, CPh XII (1917), pp. 158-172; W. KROLL, ‘Die Kreuzung der Gattungen’, in IDEM, Studien zum
Verständnis der römischen Literatur, Stuttgart, Metzler, 1924, pp. 202-224; R. CAHEN, Le Satiricon et ses Origines
(Annales de l’Université de Lyon NS XXXVIII), Lyon, Rey, 1925; B.E. PERRY, ‘Petronius and the comic Romance’, CPh
XX (1925), pp. 31-49 e o cap. V (‘Petronius and his Satyricon’) do seu estudo The Ancient Romances. A Literaryhistorical Account of their Origins (Sather Classical Lectures XXXVII), Berkeley, University of California Press, 1967,
pp. 186-209; E. PARATORE, Il Satyricon di Petronio, Firenze, Le Monnier, 1933; Gilbert HIGHET, ‘Petronius the
moralist’, Transactions and Proceedings of the American Philological Association LXXII (1941), pp. 176-194; J.P.
SULLIVAN, The Satyricon of Petronius. A Literary Study, London, Faber, 1968, IDEM, ‘Petronius’ Satyricon and its
Neronian context’, ANRW II.32.3 (1985), pp. 1666-1686; G.N. SANDY, ‘Satire in the Satyricon’, American Journal of
Philology XC (1969), pp. 293-303, IDEM, ‘Petronius and the tradition of the interpolated narrative’, TPAPhA CI
(1970), pp. 463-476; P.G. WALSH, The Roman Novel. The Satyricon of Petronius and the Metamorphoses of
Apuleius, Cambridge, Cambridge University Press, 1970; F. ZEITLIN, ‘Petronius as paradox: anarchy and artistic
integrity’, TPAPhA CII (1971), pp. 631-684; R. ASTBURY, ‘Petronius, P. Oxy. 3010, and Menippean Satire’, CPh LXXII
(1977), pp. 22-31; G.B. CONTE, The Hidden Author. An Interpretation of Petronius’ Satyricon (Sather Classical
Lectures LX), Berkeley, University of California Press, 1996; de académicos portugueses, os estudos reunidos por
F. OLIVEIRA, P. FEDELI & D. LEÃO (edd.), O Romance Antigo. Origens de um Género Literário, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2005, e C. TEIXEIRA, D. LEÃO & P. FERREIRA, The Satyricon of Petronius. Genre, Wandering and Style
(Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis – CECH), Coimbra, Imprensa da Universidade, 2008.
3
- Morgan salienta o seu impacto na abertura do campo ficcional grego: ‘Discoveries like the Phoinikika of Lollianus
or the so called Iolaus Romance have revealed that fiction of quite a different kind existed in Ancient Greek:
sensational, sexually explicit, low-life, sometimes overtly comic, sometimes combining prose and verse.’ (MORGAN,
op. cit., pp. 3295-96). Sobre os Phoinicica de Loliano como paradigma dos romances sem elevação, vide Ewen L.
BOWIE, ‘The Greek Novel’, in P.E. EASTERLING & B.M.W. KNOX (edd.), The Cambridge History of Classical Literature,
Cambridge, Cambridge University Press, 1985, vol. I.4, p. 126.
4
- Ambas são narrativas helenísticas. A Historia Sacra ( ερ
ναγραφή) de Evémero de Messena foi conservada
através do resumo de Diodoro Sículo (Bibl. Hist. V.41-46, VI.1-2 = Fr. Gr. Hist. 63); podem encontrar-se ecos da
sua influência em Cícero (Nat. Deor. III.53 ssq.). A utopia de Iambulo, de concepção verdadeiramente ‘socialista’
avant la lettre, foi também conservada por Diodoro (Bibl. Hist. II.55-60); o seu carácter utópico, com elementos de
Reisefabulistik, constituiu um dos primeiros alvos reconhecidos da paródia de Luciano (Ver. Hist. I.3): vide Niklas
HOLZBERG, ‘Novel-like works of extended prose fiction II. Utopias and fantastic travel: Euhemerus, Iambulus’, in
Gareth SCHMELING (ed.), The Novel in the Ancient World (Mnemosyne Suppl. CLIX), Leiden, Brill, 20032, pp. 621628; para uma análise do conteúdo da utopia de Evémero, vide Marília FUTRE PINHEIRO, ‘Do Mito à Utopia: viagem ao
mundo do imaginário grego’, in AAVV., Actas do V Cogresso da APEC (Antiguidade Clássica e Nós: Herança e
Identidade Cultural), Braga, 2006, pp. 569-581; sobre o contexto e os aspectos formais da produção utópica
helenística, vide EADEM, ‘Utopia and utopias: a study on a literary genre in Antiquity’, in S.N. BYRNE, E.P. CUEVA & J.
ALVARES (edd.), Ancient Narrative. Authors, Authority, and Interpreters (Suppl. V), Groningen, Barkhuis, 2006, pp.
147-171.
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
3
único género ausente da teorização literária da Antiguidade,5 lhes concedeu um
lugar privilegiado na reconstrução hipotética do percurso literário do romance, mais
tarde revelada incorrecta.6
O carácter marginal do género romanesco na Antiguidade é um dos principais
móbiles, quer teóricos quer empíricos, a par da diversidade e proximidade de
formas literárias paralelas, da incerteza no estabelecimento de uma estratigrafia
formal que a um tempo reúna e distinga o conjunto completo destas narrativas.
Mesmo o princípio de que aprioristicamente partimos, ou o que procuramos
determinar, é in limine incerto; nas palavras de Morgan, “we have no way of
knowing whether, or to what extent, the wide spectrum of literary fiction would
have been perceived as a unitary whole”.7 Em todo o caso, a diversidade da sua
herança literária é evidente: “it is clear that this last-born in the litter of classical
genres was forever self-consciously labouring to legitimise itself, and that its
appropriation of other authors and forms is better understood as the negotiation of
a respectable position within a self-validating literary tradition.”8
Parte da hipótese de Rohde é, contudo, harmonizável com as mais recentes
teorias sobre a diversidade temática do cânone romanesco e prende-se com duas
obras em especial: as Verae Historiae de Luciano de Samósata (ca. 160) e os
Incredibilia de Thule Insula (T
π ρ Θούλην πιστα) de António Diógenes (sécs. III d.C.). Contrariamente às Verae Historiae, de que se preserva o texto completo, a
obra de Diógenes foi-nos transmitida apenas por um epítome elaborado pelo
patriarca bizantino Fócio em meados do sec. IX e por alguns fragmentos
papiráceos.9 O seu resumo, contudo, não é isento de problemas: os vinte e quatro
livros dos Incredibilia, segundo o modelo homérico da Odisseia,10 apresentavam
uma estrutura complexa, em que se podem distinguir numerosas narrativas
autodiegéticas subordinadas por encaixe em sete níveis diferentes; o estado em que
podemos lê-los, muito abreviado e organizado de forma algo displicente, não deixou
ainda de levantar dúvidas quanto à sua fiabilidade.11 Afigura-se mais do que
5
- Esta lacuna na teorização literária antiga manifesta-se, e.g., na inexistência de uma designação original para o
género; as mais próximas do nosso anacronismo, aceite embora unanimemente, são λόγος, διήγηµα (equivalente
ao Lat. narratio), σύγγραµµα (Cáriton), γραφή (Longo), µύθος (Aquiles Tácio), σύνταγµα (Heliodoro) ou πλάσµατα
(usado pejorativamente por Juliano, Ep. 89b). Sobre a definição do género e a distinção de τόπος, vide GOLDHILL,
op. cit., pp. 188-190; Brian P. REARDON, ‘Aspects of the Greek Novel’, Greece and Rome NS XXIII (1976), pp. 119120.
6
- Rohde considerava o desenvolvimento do Romance grego dependente da Segunda Sofística e iniciado com
António Diógenes, que colocava no séc. I, concluindo-o com Cáriton, no séc. V. A datação proposta para Cáriton foi
invalidada no início do século XX por descobertas papirológicas que fixaram um terminus ante quem muito anterior,
bem como a relação com a Segunda Sofística, após a descoberta de fragmentos do romance assírio de Nino e
Semíramis, não apenas pré-sofístico como também provavelmente helenístico (vide B.E. PERRY, The Ancient
Romances, pp. 150-180). A tese inicial (Erwin ROHDE, Der griechische Roman und seine Vorläufer, Leipzig, 1876
(reed. Hildesheim, Georg Olms, 19745), pp. 249-296) apresenta, no entanto, pontos de contacto com análises mais
recentes, como as de Bowersock (vide infra).
7
- MORGAN, op. cit., p. 3296.
8
- IDEM, ‘Intertextuality’, in T. WHITMARSH (ed.), op. cit., p. 219.
9
- PHOT. Bibl. cod. 166 (140-9). A autenticidade dos fragmentos conhecidos em papiro não é consensual. A
exposição clássica sobre Diógenes, anterior ainda às descobertas papirológicas, é a de W. SCHMID, ‘Antonius (49)
Diogenes’, RE I (1894), coll. 2615 ssq.
10
- Segundo as estimativas modernas, a dimensão dos Incredibilia, pouco menor do que a Guerra e Paz de Tolstoi,
poderia apenas ser comparada com a obra de Jâmblico.
11
- Entre numerosas convenções novelísticas, como as mortes falsas (vide infra), Diógenes recorre profusamente à
apresentação da narrativa através de histórias contadas pelas próprias personagens. O seu contributo para a
complexificação da estrutura convencional do romance é importante: “Antonius has consciously improved on the
normal romantic, paratactic concatenation of adventures by replacing Τύχη as motor of the plot with the pursuit by
Paapis” (MORGAN, op. cit., p. 3311). É também a maldade, à semelhança de Páapis nos Incredibilia, que preside ao
desenrolar da acção dos Babyloniaca de Jâmblico (transmitidos por PHOT. Bibl. Cod. 94 ad fin., 78b44). Para uma
exposição das questões concernentes à interferência do sumário bizantino na percepção moderna da estrutura
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possível a hipótese, não verificável a partir dos restantes testemunhos, de que
Fócio tenha inconscientemente truncado a narrativa – a inocuidade do conteúdo não
levanta, de resto, a questão da sua omissão deliberada –, situação em que poderia
ser necessário alterar parte da especulação moderna acerca do âmbito e dos
propósitos da obra, como, e.g., a influência neopitagórica,12 cuja exposição doutrinal
foi entrevista na sobreposição de tópicos paradoxográficos a um plano narrativo; se
esta perspectiva, embora não totalmente inverosímil, não levantasse problemas
conceptuais tão relevantes,13 anteciparia a génese da Vita Apolonii de Filóstrato.14
Desde a leitura de Fócio, que conservava na sua biblioteca o último exemplar
identificável na história da literatura grega dos Incredibilia de Thule Insula, que se
estabeleceu um princípio de Quellenforschung que se manteve sempre como o
ponto fundamental do seu estudo: o erudito bizantino identificou imediatamente
António Diógenes como a ‘fonte e raiz’ (πηγ κα
ίζα) das Verae Historiae. Esta
informação, corroborada por um escólio a Luciano,15 foi desde então genericamente
aceite como terminus ante quem para a datação da actividade do autor. Os
paralelos são, sem dúvida, evidentes: a obra de Diógenes, devedora das narrativas
de viagens (Reisefabulistik) do período helenístico, a que acrescenta elementos
utópicos e uma intriga romanesca complexa estreitamente relacionada com a ficção
erótica dos romancistas conservados, continha, no seu último livro, o registo dos
verdadeiros πιστα, i.e. a experiência fabulosa de Dínias além-Tule, consistindo
numa visita à Lua. Esta foi vista, já desde Fócio, como a origem da mesma visita
presente nas Verae Historiae, à falta de outros exemplos mais evidentes que
permitissem integrá-la com maior amplitude num conjunto de tópicos
paradoxográficos.16 A sua obra foi, assim, considerada quer tão intencionalmente
paródica como a de Luciano, quer, integrando os elementos de inclinação
neopitagórica a que a ideia de vida na Lua não é alheia, a fonte ‘séria’ implícita das
Verae Historiae, a par de Iambulo, nomeado no proémio.17
diegética original, vide Thomas HÄGG, Narrative Technique in Ancient Greek Romances. Studies of Chariton,
Xenophon Ephesius, and Achilles Tatius (Acta Instituti Atheniensis Regni Sueciae VIII), Stockholm, Almqvist &
Wiksell, 1971, pp. 319 ssq. Fócio dedica visivelmente pouco do seu resumo à exposição do conteúdo filosófico da
obra de Diógenes, o que pode em si mesmo ser visto como um indício de valorização da sua componente narrativa.
12
- O Pitagorismo revive, após dois séculos de aparente apagamento, como um culto e uma forma de vida e não
como uma escola filosófica formalmente organizada. Sobre o Neopitagorismo em particular, vide E.R. DODDS, The
Greeks and the Irrational (Sather Classical Lectures XXV), Berkeley, University of California Press, 1962r, pp. 247
ssq.
13
- MORGAN (‘On the Fringes of the Canon’, pp. 3310 ssq.) viu em passos específicos do enredo dos Incredibilia
elementos de possível relevo para a história do Pitagorismo antigo, considerando que “there is an authentic
Pythagorean dimension to the treatment of the two wonder-men, Zalmoxis and Astraios, the latter of whom in
particular serves as a counterpart to the evil Paapis (…), but there is also much that is typically novelistic and
essentially secular, and, most importantly, there is nothing to suggest that the Pythagorean content extended into
the framing story, whose central themes of passion and magic derive from literature or folklore, not from religion,
and whose journeys are typical Reisefabulistik rather than spiritual allegory.” (Idem, Ibidem, p. 3316), citando
ainda as conclusões de Fauth: “there is no warrant for interpreting the Apista in its totality as serious Pythagorean
work. Rather, philosophy is one element in a subtle and complex synthesis of human experience.” (W. FAUTH,
‘Astraios und Zamolxis: über Spüren pythagoreischer Aretalogie im Thule-Roman des Antonius Diogenes’, Hermes
CVI (1978), pp. 220-241, apud MORGAN, op. cit. 3317). Segundo Thomas HÄGG (The Novel in Antiquity, Berkeley,
University of California Press, 1991r, p. 120), “whether there was in addition a serious Pythagorean tendency, as
has been asserted, cannot be deduced from the summary.” Do mesmo modo, os mais recentes editores do corpus
fragmentário do romance grego consideram impossível encontrar vestígios de um Pitagorismo sistemático na obra
de Diógenes a partir dos seus fragmentos (Susan A. STEPHENS & John J. WINKLER (edd.), Ancient Greek Novels. The
Fragments, Princeton, Princeton University Press, 1994, pp. 112-14). Sobre o respeito pela verdade absoluta como
marca fundamental do Pitagorismo, vide infra.
14
- PHILOSTR. Vitae Soph. I.22.524.
15
- Scholia in Luciani Ver. Hist. II.12.
16
- PHOT. Bibl. cod. 111a 8.
17
- Um estudioso em particular, Reyhl, tentou demonstrar, partindo da paródia literária que pressupõe muito literal
por parte de Luciano, que as Verae Historiae nos poderão oferecer uma imagem definida da obra de António
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
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Rohde viu em António Diógenes uma fase de transição entre a
Reisefabulistik e o romance erótico, incorporando na sua teoria do género de
carácter evolucionista a conjectura original de Fócio sobre o lugar histórico dos
Incredibilia.18 Segundo a sua tese, o Romance grego derivaria de duas correntes
inicialmente distintas, a narrativa de viagens e as histórias amorosas, que se teriam
fundido pela primeira vez na obra de Diógenes. Recentemente John Winkler
salientou não apenas a incongruência desta perspectiva, mas ainda a estranheza de
que se reveste a importância com que se estabeleceu.19 A questão do género é mais
ampla e evidencia-se, como Morgan notou, através do carácter pluritemático da
narrativa: “pre-existent forms of erotic novel, Reisefabulistik and aretalogy have
been fused into a work of extreme structural and thematic complexity.”20 De forma
semelhante, Bowersock define as características fundamentais de uma corrente de
Reisefabulistik com elementos utópicos e romanescos de natureza erótica.21
A influência do cânone utópico manifesta-se através do recurso a um
mecanismo de autentificação da narrativa: a descoberta do texto dos Incredibilia
num túmulo e o estabelecimento de uma relação entre a sua descoberta e um facto
histórico bem conhecido. Neste caso, a obra teria sido escrita pelo protagonista,
Dínias, um dos narradores autodiegéticos, e encontrada no seu túmulo durante o
cerco de Tiro por Alexandre Magno. Mecanismos idênticos de credibilização histórica
estão presentes em especial no romance de Cáriton, cuja intencionalidade histórica
foi há muito estudada.22 A relação explorada por Diógenes, que à semelhança de
Cáriton coloca a sua história num passado histórico, sem dúvida um dos elementos
parodiados directa ou indirectamente por Luciano, encontra também paralelos
Diógenes, que tenta desse modo reconstruir. A sua investigação assenta, todavia, não apenas na ideia de que
Luciano distorce a mensagem séria presente nos Incredibilia, criando uma paródia, mas também no pressuposto de
que entre as obras de ambos autores tenha existido uma simetria absoluta. A fragilidade do argumento está no
próprio pressuposto inicial, que é não apenas indemonstrável como também pouco credível, uma vez que a
complexa paródia literária de Luciano tem origem num grupo extremamente alargado de autores não apenas
ficcionais, mas ainda épicos, dramáticos e históricos (Klaus REYHL, Antonios Diogenes. Untersuchung zu den
Romanfragmenten der Wunder jenseits von Thule und zu den Wahren Geschichten des Lukian (diss.), Tübingen,
1969). A aparente ingenuidade da sua proposta, bem como a atribuição sem fundamento suficiente de alguns
fragmentos papiráceos incertos ao romance de Diógenes, foram criticadas por diversos autores (vide e.g. a
apreciação de A. GEORGIADOU & D. LARMOUR, Lucian’s Science Fiction Novel True Histories. Interpretation and
Commentary, Leiden, Brill, 1998, pp. 38 ssq.).
18
- E. ROHDE, op. cit., pp. 260-309. Contudo, nas palavras de Morgan, “Rohde’s evolutionary scheme for the
growth of the romance genre has now been thoroughly overturned by the discovery of papyrus fragments
indicating that fully fledged novels were in existence before Antonius wrote.” (MORGAN, op. cit., p. 3311 et supra).
19
- J. WINKLER, in STEPHENS & WINKLER, op. cit., p. 110, n. 17: “Rohde’s simplistic stemma has remained oddly
authoritative, even though neither side of it is valid. The surviving novels often have settings in a variety of lands,
but they are by no means travel literature. On the other hand, the Hellenistic tales and poetry about lovers were
almost uniformly tragic, not romantic-fated from the beginning not to succeed and unhappy in outcome.” Do
mesmo modo, BOWIE (op. cit., p. 126): “Antonius Diogenes’ work does not play the vital role in the development of
the genre assigned to it by Rohde, but it is a valuable index of how varied prose fiction could be.”
20
- MORGAN, op. cit., p. 3312.
21
- “And he [Photius] assumed, quite wrongly, that Lucian’s True Stories were deeply indebted to Antonius
Diogenes. Lucian’s work is simply and independently a development from the same Neronian beginnings as
Diogenes’ own. On the other hand, the combination of remote and fantastic travel with a romantic plot and the
alleged conservation of it in a long-hidden grave conspire to suggest that this reflects the new-found interest in
fiction and marvels in the later first century” (Glen W. BOWERSOCK, Fiction as History. Nero to Julian (Sather
Classical Lectures LVIII), Berkeley, University of California Press, 1994, p. 37). O mesmo classicista aceita
implicitamente a rejeição da paródia de Diógenes por Luciano proposta por Morgan (vide infra). Ainda Ewen Bowie
considerou que a narrativa de Diógenes representa “a type of prose fiction clearly related to the love romance but in
many respects different” (BOWIE, op. cit., p. 126).
22
- Sobre as estratégias de autenticidade histórica em Cáriton, vide Ben E. PERRY, ‘Chariton and his Romance from
a literary-historical point of view’, AJPh LI (1930), pp. 93-134.
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
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coevos, como os romances de Tróia de Dares e Díctis de Creta, segundo notou
Bowersock.23
A relação da obra de Diógenes com as Verae Historiae, genericamente aceite
e, como vimos, considerada evidente, na multiplicidade dos seus pontos de
contacto, desde Fócio, teve o seu maior opositor em Morgan, cujas perspectivas,
expostas pela primeira vez num artigo justamente célebre e tanto quanto
inovador,24 se vieram a revelar um contributo decisivo para estudos posteriores,
constituindo, pela segurança com que estão construídas, um apelo a uma
ponderação mais séria das questões respeitantes à imitatio de Luciano.25
A escolha de Tule para a situação geográfica dos Incredibilia de Diógenes é
também um factor importante para a compreensão dos seus propósitos literários: a
ilha, de situação proverbialmente imprecisa, marca o limite setentrional do mundo
antigo e, como tal, foi largamente utilizada e referida por autores clássicos, quer por
interesse científico, quer de forma metafórica, para se referirem aos confins do
mundo. Assim, serve de sinédoque a Vergílio (tibi seruiat ultima Thule: VERG. Georg.
I.30), é utilizada por Estácio sempre em contexto marcial (nigrae litora Thules:
STAT. Silv. IV.4.62-3; uada caligantia Thules, Silv. III.5.20, etiam V.1.89-91), serve
o sarcasmo de Juvenal (de conducendo loquitur iam rhetore Thyle: JUV. Sat.
XV.112) e encontra um eco em Claudiano (Paneg. III. Cons. Hon. 53), do mesmo
modo que é referida por historiadores e geógrafos desde Plínio a Pompónio Mela, e
mesmo Tácito.26 No entanto, Tule poderá representar na ficção de Diógenes mais do
que apenas um ο -τόπος a que, uma vez mais à semelhança do cânone utópico, se
recorre para afastar do universo geográfico do leitor o palco de uma diegese cuja
inverosimilhança se pretende atenuar. É não apenas possível como provável que
nas referências ao extremo Norte, de teor paradoxográfico, António Diógenes
procurasse explicitamente aludir a uma narrativa de viagens helenística perdida, da
autoria de Píteas de Massília (fl. 325 a.C.), que relatava um périplo pelas actuais
ilhas britânicas, incluindo uma referência a Tule27 (é ainda postulável uma alusão a
Hecateu de Abdera). Deste ponto de vista, não será excessivo salientar que πιστα
23
- Estas narrativas, que viriam a exercer uma grande influência na Idade Média, derivam da tradição helenística
representada pelos Troica de Hegesíanax. De acordo com G.W. BOWERSOCK (op. cit., p. 36), “such a miraculous
discovery of a long-lost text at a time so close to the reign of Nero cannot but remind the reader of the similar
mechanism justifying the pre-Homeric account of the Trojan war in the work ascribed to Dictys of Crete.” Também
John MORGAN (‘Lucian’s True Histories and the Wonders beyond Thule of Antonius Diogenes’, Classical Quarterly
XXXV (1985), p. 481), notando que “the discovery of books in graves was indeed a well worn ploy in ancient
forgery”, remete para a mesma tradição troiana.
24
- MORGAN, op. cit., demonstra, numa perspectiva diametralmente oposta à de Reyhl, que a imitação de Diógenes
por Luciano é inverosímil precisamente pela sua aparente clareza. Partindo do princípio canónico de que a
amplificatio é a base da paródia literária presente nas Verae Historiae, Morgan evidencia que a análise da
Quellenforschung anterior teve como objecto tópicos presentes de forma inalterada em contextos semelhantes de
ambas narrativas, o que não é susceptível de ser em si mesmo entendido como uma estratégia de paródia literária,
mas apenas como uma exploração de loci similes.
25
- Para uma perspectiva mais tradicional da intertextualidade de Luciano e António Diógenes, vide Graham
ANDERSON, Studies in Lucian’s Comic Fiction (Mnemosyne suppl. XLIII), Leiden, Brill, 1976, pp. 1-7. A oposição de
Anderson à teoria de Morgan foi ainda exposta, de forma talvez excessiva, num estudo recente (‘Lucian’s Verae
Historiae’, in G. SCHMELING (ed.), op. cit., pp. 555-562). Para uma análise da natureza literária plurivocal das Verae
Historiae, vide Marília FUTRE PINHEIRO, ‘Dialogues between Readers and Writers in Lucian’s Verae Historiae’, in M.
PASCHALIS, S. PANAIOTAKIS & G. SCHMELING (edd.), Ancient Narrative. Readers and Writers in the Ancient Novel
(Supplementum XII), Groningen, Barkhuis Publishing & Groningen University Library, 2009, pp. 18-35.
26
- PLIN. Nat. Hist. II.187, IV.104, VI.220; TAC. Agr. 10; POMP. MEL. De Situ Orbis III.6.9.
27
- A expedição de Píteas, iniciada em 320 a.C., tinha como objectivo descobrir o que havia depois das Colunas de
Hércules. Esta viagem, única tentativa grega de exploração da Europa do Norte por via marítima, foi objecto de
uma recente tentativa de recriação por parte de Barry Cunliffe, Professor de Arqueologia na Universidade de
Oxford, que procurou, a partir da narrativa perdida de Píteas, estudar as sociedades pré-literárias que ali teriam
sido retratadas (B. CUNLIFFE, The Extraordinary Voyage of Pytheas the Greek, London, Penguin, 2002; trad.
portuguesa A Extraordinária Viagem de Píteas, o Grego, Lisboa, Inquérito, 2003).
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
7
não significa, como é habitual traduzir-se nas línguas modernas, ‘maravilhas’, mas
mais precisamente ‘coisas inacreditáveis’ (Lat. incredibilia). A associação da obra de
Píteas, considerado por Estrabão ‘o mais mentiroso dos homens’ ( νήρ
ψευδίστατος),28 à ilha de Tule seria com alguma probabilidade evidente, pelo que é
possível ler em π ρ Θούλην uma sugestão que, além da leitura literal ‘coisas
inacreditáveis de além-Tule’, pressupusesse ainda a segunda leitura ‘ainda mais
inacreditáveis do que a narrativa [de Píteas] acerca de Tule,’29 que não parecerá, de
resto, tão inverosímil se recordarmos a referência irónica de Luciano à veracidade
do discurso de Aristófanes.30
O aparente relevo que, tanto quanto podemos ajuizar pelo epítome de Fócio,
Diógenes concedia a curiosidades geográficas e etnográficas no âmbito da sua obra,
herança natural da Reisefabulistik helenística, passa ainda pelo papel
desempenhado pela Cítia nos Incredibilia. A Cítia, como terra de gentes e costumes
estranhos, tinha o seu modelo já no λόγος que lhe dedica Heródoto,31 mas, como
notou Bowersock, “the question to be asked here is why Ant. Diogenes found the
Herodotean model so compelling at the end of the first century.”32 O mesmo
estudioso crê que a resposta esteja na tendência crescente para a libertação dos
Gregos da homogeneização a que Pax Romana no Oriente os sujeitava, bem como
no contacto directo que, durante o Principado de Domiciano, as tropas romanas
passaram a ter com os povos do Danúbio e do Mar Negro, como os Sármatas e
Roxolanos.33 A Cítia revestia-se, assim, de importância contemporânea, e
Bowersock, postulando uma relação do autor com o Oriente grego que refere, veio
retomar a proposta que Hallström fizera em 1910 relativamente à situação
cronológica da actividade de António Diógenes, aduzindo também novos dados de
carácter arqueológico para a sua identificação.34
No proémio dos Incredibilia, Diógenes dirigia uma carta a um certo Faustino
em que anunciava a composição de uma obra acerca das maravilhas de além-Tule.35
28
- STRAB. Geogr. I.4.3.
- Sobre a associação de Píteas ao título de Diógenes, vide STEPHENS & WINKLER, op. cit., pp. 106-8. Uma marca
fundamental do Pitagorismo, o respeito pela verdade absoluta, não se pode coadunar com a natureza da obra de
Diógenes. Hägg recorda, todavia, que “the boundary between the factual and the fabulous was fluid” (The Novel in
Antiquity, p. 117); cfr. Roy A. SWANSON, ‘The true, the false, and the truly false: Lucian’s philosophical science
fiction’, Science Fiction Studies III (1976), pp. 228-239. A este respeito, parecem-me pertinentes as seguintes
conclusões de Massimo Fusillo, sumariadas por Morgan: “The Apista’s positive valuation of fantasy links it to the
Pythagoreanism’s contestation of reality. The mystic’s view of the world assigns the irrational, the unreal (in the
daily sense) to a higher level of reality than material existence. In this perspective the problematisation of factual
truth takes on a religious significance: the more obviously untrue, in a factual sense, the narrative becomes the
more truly “true”, in a mystic sense, it is. So the title of the work metaphorically condenses its whole orientation:
Thule marks the edge of the geographical world, beyond lie the moon and fantasy; the title alludes to Antonius’
concern with the realness beyond reality.” (M. FUSILLO (ed.), Antonio Diogene, Le Incridibili Avventure al di là di
Tule: Testo Greco a fronte, Traduzione Latina di Andreas Schottus (La Città Antica IV), Palermo, Sellerio, 1990,
apud MORGAN, ‘On the Fringes of the Canon’, p. 3317)
30
- LUCIAN. Verae Hist. I.29.
31
- HEROD. IV.5-82.
32
- G. BOWERSOCK, op. cit., p. 36.
33
- Sobre o chamado ‘padrão grego’ de civilização em Cáriton e à incerteza da sua expressão em Diógenes, vide
BOWERSOCK, op. cit., pp. 41-43; Heinrich KUCH, ‘A study on the margin of the Ancient Novel: “Barbarians” and
others’, in G. SCHMELING (ed.), op. cit., pp. 209-220.
34
- A. HALLSTRÖM, ‘De aetate Antonii Diogenis’, Eranos X (1910), pp. 200 ssq..
35
- A carta a Faustino encontra-se em PHOT. Bibl. cod. 166, 111a 32-33. Faustino é um dos patronos a quem
Marcial dedica um maior número de epigramas (19), sem lhe endereçar, contudo, quaisquer elogios pela sua
actividade oratória, política ou militar; é um homem conhecido pela sua produção literária e pela vida dedicada à
cultura (MART. I.25, III.47, 58, IV.57, V.71, VI.61, VII.80, X.51). Sir Ronald SYME, ‘Domitian: the last years’, Chiron
XIII (1983), pp. 123 ssq. (= A.R. BIRLEY (ed.), Ronald Syme, Roman Papers, vol. IV (1982-83), Oxford, Clarendon
Press, 1988, pp. 254 ssq.), contesta a identificação com o consul suffectus de 91, Cn. Minício Fundano, caso em que
o patrono de Marcial poderia de facto ser um político de estatuto senatorial: cfr. ainda os dados prosopográficos a
29
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
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Bowersock pretendeu identificar este Faustino com o célebre patrono de Marcial, o
que nos daria algum apoio à colocação do romance no Principado de Domiciano ou
um pouco mais tarde. A identificação tem, sem dúvida, tanto de tentador como de
original: Faustino possuía vilas em Baias e Tivoli36 e é dedicatário dos livros III e IV
de Marcial, cujas alusões deixam evidente que se trataria de um intelectual, patrono
de outros homens de letras (o uso do Grego por Marcial mostra que no círculo
habitual de Faustino a língua seria bem compreendida).37 Nas palavras de
Bowersock, “the name [Faustinus] is not rare, but the novelist and the
epigrammatist would have had much in common. Faustinus would provide an
attractive link between them.”38 O mesmo estudioso propôs ainda uma identificação
do próprio António Diógenes com uma família localmente influente que aparece
registada num conjunto de inscrições epigráficas em Afrodísias, significativamente a
cidade de que Cáriton se declara originário, que ostenta a inusitada associação de
nomes próprios gregos e latinos.39 Fócio pensou, ao ler os Incredibilia, que estes
pertencessem ao número das mais antigas obras ficcionais conservadas na sua
biblioteca, pelo que propôs uma datação helenística para o seu autor, que é,
contudo, invalidada pelo nomen Antonius. Por outro lado, as importantes citações
do seu romance na Vita Pythagorae de Porfírio de Tiro40 – filósofo neoplatónico,
discípulo de Plotino e editor das suas Enéades – fixam um terminus ante quem não
anterior a ca. 250 d.C., pelo que, se, como Morgan, rejeitarmos a paródia literária
de Luciano, permanece aberta a possibilidade de que Diógenes tenha vivido nos
primeiros dois séculos do Império.41
A questão fundamental sobre António Diógenes, que permanece ainda sem
uma resposta inequívoca, é, então, a do seu programa literário. Dercílis e Mantínias
são, e.g., protagonistas de uma história que encerra um ideal de desenlace, com a
vitória do bem sobre o mal, em que a figura de Páapis surge de forma clara como
um ραστής indesejado de Dercílis. Estes pontos, de evidente pendor romanesco,
permitiram a Borgogno estabelecer uma concepção que os aproxima, do ponto de
vista narrativo, dos romances conservados.42 Ainda assim, não é possível ignorar as
marcas que distanciam do cânone romanesco esta obra, em que os níveis temáticos
que compreendem a viagem de carácter utópico, erotismo, magia e aretologia
filosófica ocupam diferentes níveis diegéticos sem interacção entre si:43 o par
seu respeito por si aduzidos em R. SYME, ‘Correspondents of Pliny’, Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte XXXIV
(1985), pp. 324-359 (= A.R. BIRLEY (ed.), Roman Papers, vol. V, Oxford, Clarendon Press, 1988, pp. 440-477).
36
- cfr. E. GROAG & A. STEIN (edd.), Prosopographia Imperii Romani Saec. I. II. III., Berolini et Lipsiae, Walter de
Gruyter, 1933 (PIR2), F 127.
37
- G.W. BOWERSOCK, op. cit., pp. 37 ssq.
38
- IDEM, Ibidem, p. 38.
39
- “Antonius Diogenes is not a widely attested name, although the two elements of it are individually very
common. The man who bore it seems to have been a Roman citizen of Greek origin” (BOWERSOCK, op. cit., p. 38);
vide R.R. SMITH & Chr. RATTÉ, ‘Archaeological research at Aphrodisias in Caria, 1994’, American Journal of
Archaeology C (1996), pp. 5-33. A identificação proposta por Bowersock contou com a crítica de um dos grandes
especialistas da literatura do Principado de Domiciano, Ruurd NAUTA (Poetry for Patrons. Literary Communication in
the Age of Domitian (Mnemosyne Suppl. CCVI), Leiden, Brill, 2002, pp. 67 ssq., n. 96): “but even if Antonius
Diogenes should indeed have written under Domitian (rather than in the second century), the identification is far
from compelling: Faustinus was a common cognomen, and there is no evidence that Antonius Diogenes ever went
to Rome or Martial’s Faustinus to the Greek East, or more specifically to Aphrodisias, where Antonius Diogenes may
have been based.”
40
- PORPH. Vita Pyth. 10-17, 32-47, 54-55.
41
- Nas palavras do próprio autor, “the Papyri set a firm upper limit around 200, but all else is speculative”
(MORGAN, op. cit., p. 3308).
42
- Alberto BORGOGNO, ‘Antonio Diogene e le trame dei Romanzi Greci’, Prometheus V (1979), pp. 137-156 (apud
MORGAN, op. cit.).
43
- Segundo as conclusões de FAUTH (apud MORGAN, op. cit., p. 3316).
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
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amoroso tradicional vê-se substituído, na sua parte mais extensa, por dois
irmãos;44 a viagem delineada por Diógenes, empreendida por uma só personagem,
aproxima-se, pela sua natureza e âmbito geográfico, da Reisefabulistik, de
características distintas das viagens presentes nos romances;45 a parte da narrativa
dedicada de forma exclusiva a elementos amorosos é secundária, o que potencia o
seu carácter leve, enquanto os romances são marcados por um carácter idealista.46
A proximidade das narrativas de viagens helenísticas e o distanciamento temático
do padrão romanesco não impedem, contudo, a exploração de tópicos, alusões e
relações intertextuais semelhantes às que temos nos romances conservados.47 Esta
concorrência de elementos literários reunidos no que Morgan considerou “uma
amálgama excêntrica” e Reyhl “uma Odisseia burguesa e pitagórica em prosa”48
confere a António Diógenes, autor da obra mais citada na Antiguidade dentre os
‘romancistas’ gregos, um papel que será certamente mais do que o de um
paradoxógrafo com motivos de entretenimento que Perry lhe atribui.49 Contribui
ainda para a singularidade de Diógenes uma informação surpreendente de Fócio
que o dá como autor de comédia antiga, o que constitui a única referência a uma
prática literária dos autores dos romances conservados.50 A questão é sem dúvida
complexa, incerta, um leue et lubricum pauimentum51 que tem servido a
sustentação de lucubrações tão diversas quanto inverificáveis sem que possamos
dispor de um texto mais completo dos πιστα.
44
- Sobre a idade dos protagonistas, vide STEPHENS, op. cit., p. 111.
- A distinção é de HÄGG (op. cit., p. 118), que considera que, contendo embora elementos romanescos, os
Incredibilia se inserem numa corrente de narrativas de viagem sucessora de Ctésias e Iambulo. A este respeito,
Morgan nota que “Deinias is a maître de vérité, whose voyages represent a quest for universal knowledge in which
the physical and the psychic are not clearly separated.” (MORGAN, op. cit., p. 3316). Ainda segundo Hägg, a
dimensão da viagem é em si mesma a explicação da estrutura diegética: “The filtering if the experiences through
several characters, who stand in various kinds of relationship to each other, and the excessive use of the storywithin-a-story technique, were Antonius’ solution to the problem of creating at the same time variety and unity”
(HÄGG, op. cit., p. 121).
46
- “It is true that there are many similarities between Antonius Diogenes’ book and the novels: those parts of the
travelling patern that are restricted to the Mediterranean region; the role played by surprising incidents, oracles,
and cruel pursuers (as in Iamblichus) in determining these travels; some of the acts of violence; the motifs of
apparent death and resurrection and of separation and reunion (although here applied to brother and sister). But
the differences carry greater weight” (HÄGG, op. cit., p. 120).
47
- Ewen Bowie, considerando que os romances, “like paradoxography, epistolography and the works of Lucian,
were more probably written as lighter reading for the intelligentsia”, nota, relativamente à natureza literária do
género: “the writers of novels were, like contemporaries in other literary fields, highly conscious of classical works.
In its many facets the novel exhibits formal resemblances to the Odyssey, Herodotus, Thucydides and above all
Xenophon’s Cyropaedia as well as community of content with love-poetry and New Comedy” (BOWIE, op. cit., p.
127).
48
- MORGAN, op. cit., p. 3312 e REYHL, apud MORGAN, ibidem, respectivamente.
49
- PERRY, The Ancient Romances, p. 86. Ao estudar as origens do Romance numa época em que as descobertas
papiráceas tinham já posto de parte a tese de Rohde sobre o seu desenvolvimento, Ben E. Perry dedica a António
Diógenes uma parte muito pouco significativa das suas Sather Lectures de 1951.
50
- PHOT. Bibl. cod. 166, 111a 34. A este respeito, vide Simon SWAIN, ‘Novel and Pantomime in Plutarch’s Antony’,
Hermes CXX (1992), pp. 76-82.
51
- PLIN. Ep. II.1.5.
45
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
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APPENDIX
ΤΑ ΥΠΕΡ ΘΟΥΛΗΝ ΑΠΙΣΤΑ
ESTRUTURA NARRATIVA
Α. Carta de Diógenes a Faustino, citando
B. Carta de Diógenes a Isidora, sua irmã e dedicatária da obra, citando
C. Carta de Bálagro a Fila, sua mulher, que inclui uma transcrição do
D. texto de Erasínides com a narrativa da visita de Cimba a Tiro, onde
se encontra com
E. Dínias, que conta a sua viagem desde a Arcádia em torno do
mundo, onde ouve as histórias de
F.1. Cármanes,
F.2. Menisco e
F.3. Azúlis, antes de chegar a Tule e conhecer
F.4. Dercílis, que conta
G.1. O seu encontro com Mirto, sua criada, que a guia pelo
Hades,
G.2. A história de Astreu, que fala de Pitágoras e Mnesarco e
conta o que ouviu de
H.1. Filótis e
H.2. As aventuras de Astreu entre os Ástures; em seguida
G.3. O percurso de Mantínias,
G.4. O encontro de Astreu com Zálmoxis,
G.5. O relato (de narrador não identificado) do assassínio de
Páapis por Truscano, que em seguida se suicida, por julgar
Dercílis morta.
G.6. Amores de Mantínias.
F.5. Azúlis retoma a história da morte mágica de Dercílis
E. Dínias retoma a narração das suas viagens para lá de Tule,
contratando
D. Erasínides para escrever duas cópias da sua história, levando uma
para a Arcádia e deixando a outra em Tiro, onde será enterrada por
Dercílis e, um dia, encontrada por
C. Alexandre Magno, entre cujos soldados estará Bálagro, que copia o texto
e o envia a Fila, sua mulher.
António Diógenes e as Fronteiras do Romance Antigo: a questão da literatura fragmentária | JOSÉ CARLOS ARAÚJO
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