O Espaço e as Personagens em “A queda do Solar de
Usher”, de Edgar Allan Poe
Space and Characters in “The fall of the House of Usher”,
by Edgar Allan Poe
Paula Silveira de Aquino
Centro de Comunicação e Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP
[email protected]
Resumo. Este trabalho tem como objetivo analisar as categorias
narrativas, espaço e personagens no conto “A queda do solar de Usher”,
de Edgar Allan Poe (1839), demonstrando que na obra se estabelece uma
estreita relação entre elas, especialmente no que diz respeito ao efeito
provocado pelo espaço nas personagens. Aborda-se, inicialmente, uma
breve contextualização histórica do período em que o autor se insere, além
de alguns aspectos abordados por ele em sua “Filosofia da composição”
(1845). Posteriormente, apresentam-se alguns aspectos teóricos
relacionados ao conto, que distinguem essa forma narrativa de outras,
como a novela e o romance. Apesar de o trabalho estar enfocado
principalmente nas questões do espaço e da personagem, nele também se
menciona a questão do foco narrativo, que, de certa forma, também se
revela importante no processo de construção das personagens porque o
conto é narrado sob a perspectiva de uma personagem anônima, da qual
não se sabe nada a respeito, a não ser o que ela mesma relata.
Considerando-se o fato de que a obra a ser analisada apresenta
características dos gêneros fantástico e estranho, o trabalho também
contém dois capítulos específicos a esse respeito, os quais são baseados
principalmente nas teorias de Todorov, Freud e, mais brevemente, de
Sartre. Finalmente, em se tratando das categorias espaço e personagens,
abordam-se principalmente as teorias de Antônio Dimas (1994) e Beth
Brait (1999) respectivamente, no intuito de auxiliar no processo de análise
e na constatação da associação entre espaço e personagens na obra.
Palavras-Chave: Espaço.Personagem.Conto
Abstract. The present paper aims to analyse the narrative categories, space
and characters in the short-story The fall of the House of Usher, by Edgar
Allan Poe (1839), demonstrating that there is a strict connection between
them on the story, specially considering the effects provoked by the space
on the characters. At first, it approaches a concise historical context about
the period in which the author is inserted besides some aspects presented on
his The Philosophy of the composition (1845). After that, it presents some
theoretical aspects, related to the short-story, which distinguish this kind of
narrative from others, such as the tale and the novel. Despite the fact that
this paper is more focused on terms about the space and the characters, it
also mentions the question of narrative focus wihich is somehow important
in the process of the character’s construction since the short-story is
narrated by an unnamed character about whom we don’t know anything
despite just what he tells. Considering the fact that the short story which is
going to be analysed presents features of the fantastic and uncanny orders,
the paper also contains two specific chapters on these subjects, which are
mainly based on theories by Todorov, Freud, and, more briefly, Sartre.
Finally, talking about space and characters, theories by Antonio Dimas
(1994) and Beth Brait (1999) are respectively mentioned, aiming to help on
the process of analysis and in the verifying of the association between
space and characters in Poe’s short story.
Keywords: Space.Characters. Short Story
1. Introdução
O objetivo deste trabalho é analisar as categorias narrativas, espaço e
personagens, em “A queda do Solar de Usher” (1839), de Edgar Allan Poe, enfocando
principalmente, as relações que se estabelecem entre e elas na obra. Antes de se iniciar
análise propriamente dita, serão abordados alguns aspectos teóricos referentes a espaço
e personagens, bem como a características do gênero literário a que obra pertence. Além
disso, será feita uma apresentação das temáticas abordadas pelo autor, algumas
considerações a seu respeito em termos de crítica literária, breve contextualização
histórica do período em que ele se insere.
Apresentados o contexto histórico e as temáticas de Edgar Allan Poe, serão
abordadas as características específicas do conto – gênero literário a que pertence a obra
a ser estudada –, que o diferem de uma novela ou de um romance. Em seguida,
apresentar-se-ão alguns aspectos teóricos referentes ao Fantástico e ao Estranho,
importantes à realização da análise, uma vez que há, em “A queda do Solar de Usher”
(1839), a manifestação de eventos fantásticos, posteriormente explicados de modo
racional.
Entre as considerações levantadas por Poe, enfatiza-se a questão do “efeito
único”, presente na “Filosofia da composição” (1845), na qual se afirma a necessidade
da manifestação de uma “tensão”, que prenda a atenção do leitor ao texto. Além disso,
será confirmada a preocupação que Poe tinha em relação à escolha vocabular de seus
textos, pois não há nenhuma informação que possa ser considerada irrelevante dentro do
texto como um todo.
Pretende-se demonstrar, portanto, que a obra “A queda do Solar de Usher, de
Edgar Allan Poe (1839), é marcada, do início ao fim, por uma estreita relação entre
espaço e personagens. Embora essa relação, de certa forma, leve o leitor a criar certas
expectativas – que serão satisfeitas – em relação ao final da história, a maneira com que
o texto é construído cria uma tensão, responsável por manter no leitor o desejo de não
interromper a leitura.
2. Contexto Histórico
Edgar Allan Poe (1809-1849) viveu o período de pós-independência e
expansão territorial dos Estados Unidos. A partir de 1776, com a assinatura da
Declaração da Independência, por Thomas Jefferson, surgiu a necessidade de se
instaurar uma Constituição, a qual estabeleceu que todos os homens deveriam
ter os mesmos direitos perante uma sociedade justa e perfeita. Apesar disso, nem
sempre os termos constitucionais eram seguidos, uma vez que a escravidão
continuou a vigorar na época.
De qualquer forma, a Independência dos Estados Unidos desenvolveu um
espírito nacionalista no povo e incentivou a conquista de novos territórios, que se
expandiu ainda mais após a descoberta de ouro na Califórnia nos anos de 48 e 49. A
expansão se estendeu até a década de 1860, sendo interrompido pela Guerra de
Secessão.
3. Temas
Em termos literários, esse contexto histórico ocorreu concomitante, como já se
havia dito, ao início do Romantismo norte-americano, movimento que valorizava ideais
contrários aos iluministas do século XVIII. Em lugar do racionalismo excessivo, davase importância à sentimentalidade e à integridade do indivíduo como cidadão e como
defensor da nação norte-americana. Os artistas representantes dessa sentimentalidade
davam muita importância à Natureza em seus trabalhos, procurando demonstrar que
seus mistérios e riquezas provocavam profundos sentimentos no homem, especialmente
nos cidadãos americanos, que viviam da agricultura.
Os poetas do período sentiam necessidade urgente de compor uma poética
seriamente nacionalista, que celebrasse os ideais democráticos do País. Acreditavam
que a poesia épica garantiria importância a sua cultura. A manutenção da escravidão,
atitude que se contrapunha à valorização dos ideais libertários e democráticos
característicos do período, também provocou manifestações poéticas.
Um dos representantes do movimento romântico nessa época era Edgar Allan
Poe (1809-1849), atuando como crítico, filósofo, poeta, contista e romancista, sendo
bastante avançado para seu tempo. Em suas teorias críticas e obras literárias, enfatizou a
concepção de que o racionalismo não tinha espaço na arte. A verdadeira obra de arte,
segundo ele, deveria afetar diretamente as emoções, expressas por meio de tudo aquilo
que fosse estranho e não convencional. Como crítico, escreveu um ensaio intitulado
“Filosofia da Composição” (POE, 1845), no qual enfatiza a idéia de que todas as
palavras de uma composição devem contribuir direta ou indiretamente para a construção
de um “efeito único” sobre os leitores. Poe também aproveitou o desenvolvimento do
espiritismo e do magnetismo ocorrente na época, valendo-se desses meios para provocar
sensações e angústia. Não faltavam em seus contos casos de reencarnação, sempre
havendo um mergulho em certos estados mórbidos da mente humana. Devido ao fato de
os textos de Poe constantemente abordarem os mistérios da mente humana, psicanalistas
dedicam-se a estudar sua obra e encontram nela muitos exemplos para ilustrar suas
demonstrações.
As temáticas de Edgar Allan Poe, portanto, não seguiram a linha nacionalista
dos outros artistas românticos. Suas histórias são geralmente ambientadas em locais
macabros, com personagens que enxergam a realidade através do terror, acabando por
deformá-la. Em termos de prosa, deve-se a ele a criação do gênero policial, com seus
romances de dedução e raciocínio. Coube-lhe também o mérito de renovar os contos de
terror, introduzindo-lhes um cunho científico que lhes daria um caráter de
verossimilhança e de verdade. Assim, enquanto os demais escritores descreviam um
medo proveniente da fantasmagoria e do sobrenatural, Poe descrevia um medo real, que
estava dentro do personagem.
4. Conto
Julio Casares (apud GOTLIB, 1990, p.12) apresenta três acepções de conto
utilizadas por Julio Cortazar, de acordo com as quais o conto poderia se definir como o
relato de um acontecimento, uma narração oral ou escrita de um acontecimento falso, ou
como uma fábula contada visando ao divertimento das crianças. Seja qual for a acepção
considerada, todas elas têm em comum o fato de serem modos de se contar alguma
coisa e, sendo assim, são todas narrativas. Como narrativas, os contos apresentam uma
sucessão de acontecimentos, havendo sempre algo de interesse humano a ser narrado –
já que o conto diz respeito a nós mesmos.
Como fruto do trabalho de criação de um ficcionista, pode abordar fatos reais ou
não, dependendo de sua intenção. O conto segundo a terceira acepção de Casares –
fábula a ser contada para divertir as crianças – refere-se ao chamado conto maravilhoso,
em que as personagens não são marcadas historicamente, e que sempre apresenta finais
felizes, nas quais o bem vence o mal, de forma a satisfazer as expectativas do leitor, ao
mesmo tempo em que contraria a realidade da vida já que nem sempre as coisas
acontecem como gostaríamos. Nesse sentido, segundo André Jolles (s/d), o conto,
enquanto fábula infantil é uma “forma simples”, isto é, que permanecem ao longo do
tempo sendo contadas sem que sua forma se altere. Diferentemente da “formas
simples”, as formas artísticas únicas, pois são elaboradas por um autor e impossíveis de
ser recontadas sem que se perca a sua peculiaridade.
O que difere um conto é o fato de que nele a ação se concentra em um episódio
ou momento específico, de conflito único. A ação do conto pode ser externa – quando
as personagens se deslocam no tempo e no espaço – ou interna, quando se passa na
mente das personagens. Essa característica é abordada por Edgar Allan Poe, cuja teoria
recai na relação entre a extensão do conto e a reação ou efeito provocado em seus
leitores. No prefácio à reedição da obra Twice-told tales, de Hawthorne, escreve um
texto intitulado Review of Twice-told tales (1842). Nele, Poe afirma que “em quase
todas as classes de composição, a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior
importância”. (POE, 1842.). A composição literária, segundo Poe, deve provocar um
efeito de “excitação” ou “exaltação da alma”.
Posteriormente, essas idéias são retomadas por Poe em sua Filosofia da
composição (1845), na qual continua a defender a questão da totalidade de efeito,
conseguida quando um texto é lido sem interrupções, na dependência de sua duração,
que interfere na intensidade do efeito poético. Da mesma forma, o teórico Tchekhov, em
“Carta e literatura: a correspondência de Tchekhov e Gorki”, também dá importância ao
efeito – chamado por ele de impressão total – que deve ser mantido em suspense, de
forma a criar uma tensão que obrigará o leitor a não interromper a leitura do texto. Em
função dessas especificidades, a linguagem do conto deve ser objetiva sem metáforas
em excesso.
O conto apresenta-se, portanto, como uma narrativa que se concentra em um
episódio específico da “vida” de uma determinada personagem, na qual pode se revelar
alguma crise ou evolução moral. Por se tratar de um episódio único, todos os detalhes
do conto são direta ou indiretamente relevantes na construção do conflito. Trata-se de
um gênero marcado pela brevidade e pela linguagem objetiva, uma vez que deve
chamar a atenção de um leitor para que o texto venha a ser lido de uma só vez e possa,
efetivamente, provocar o efeito desejado.
5. O Fantástico / O Estranho
Em Introdução à literatura Fantástica (2004), Todorov afirma que o Fantástico
é um gênero literário cujo âmago se encontra na inserção, em um mundo conhecido, de
acontecimentos que não podem ser explicados pelas leis desse mundo familiar.(p.30).
Ocorre dentro de uma incerteza na qual não se sabe se o acontecimento possui uma
explicação real ou sobrenatural. A partir do momento em que se decide a respeito da
natureza do acontecimento, o fantástico cede lugar ao estranho – no caso de uma
explicação racional – ou ao maravilhoso, no caso de uma explicação sobrenatural.
Ainda segundo Todorov (2004, p. 43-44), a ambigüidade característica do
fantástico também se faz pela utilização de certos procedimentos de escritura, entre eles
o uso do Imperfeito e da Modalização Quando dizemos, por exemplo “João amava
Amélia”, não se pode ter certeza absoluta de que ele ainda a ame, embora esta
continuidade seja possível. A modalização – que “consiste no emprego de certas
locuções introdutivas que, sem mudar o sentido da frase alteram a relação entre o sujeito
enunciador e o enunciado”. (TODOROV, p.43-44). Assim, o grau de certeza de
ocorrência que o sujeito tem a respeito de um acontecimento em uma frase como
“Chove lá fora” é maior do que em “Talvez chova lá fora”.
Em “A queda do solar de Usher”, essa hesitação pode ser percebida no início do
conto, quando o narrador que, tomado por um profundo sentimento de melancolia,
começa a se perguntar a respeito da causa desse sentimento e a cogitar idéia de que ele
advinha das próprias condições em que o solar se encontrava e da atmosfera que o
envolvia: “(...) se há, sem dúvida, combinações de objetos muito naturais que têm o
poder de assim influenciar-nos, a análise desse poder (...) permanece entre as
considerações além de nossa argúcia”. (p. 81).
Embora hesitante, o narrador entra no solar sustentando essa hipótese, surgida a
partir de um raciocínio lógico, que se revela verdadeira já que o próprio dono da mansão
admite que o estado de loucura em que ele se encontrava seria, em parte, decorrente de
uma influência provocada pelo físico da mansão em seu espírito. Uma vez confirmado o
fato de que a hipótese (racional) do narrador é verdadeira, a hesitação deixa de existir e
o fantástico cede lugar ao estranho.
Outras particularidades do estranho encontradas no conto de Poe,são as questões
do “duplo” e da ansiedade causada repressão de afetos, abordadas por Freud (1919).
Roderick e Madeline são os dois últimos membros da antiga família Usher. Segundo
Roderick, o medo da morte da irmã seria a mais provável causa sua enfermidade, pois
se isso ocorresse, o dono da mansão viria a ser o único sobrevivente de uma família que
perdurava há séculos, ainda que apenas por descendência direta. Além de pertencerem à
mesma família, os dois irmãos sãos gêmeos, sendo Rodrick intelectual e leitor de
romances mórbidos, e Madeline representante do físico humano, ou seja, dos sentidos
humanos que, em Roderick, apresentavam uma “acuidade mórbida”. (p.85.) Ambos se
encontram doentes no momento em que o narrador chega ao solar, e a conexão deles é
tão forte, que o agravamento da enfermidade de um se manifesta da mesma maneira na
do outro. Isso pode ser percebido no momento em que Rodrick, acreditando que a irmã
havia morrido, resolve mantê-la em casa por quinze dias em uma adega no intuito de
conservá-la, assim como a alvenaria da casa era conservada. Apesar dessa estreita
relação entre os Usher, o narrador afirma, em certo momento da história, que, mesmo
tendo sido companheiro de infância do dono do solar, não sabia que Roderick tinha uma
irmã gêmea. Uma explicação racional para isso seria a de que ele teria reprimido seus
sentimentos pela irmã. Em conseqüência, esses sentimentos teriam se transformado em
ansiedade, manifestada inclusive pelo fato de Roderick ter pedido ao amigo que o
auxiliasse no sepultamento de Madeline, no intuito de mostrá-la.
6. Espaço/ Personagens
Ao se abordar a questão do espaço na narrativa literária, existe a necessidade de
avaliar qual seria a utilidade dos recursos decorativos empregados pelo narrador ao
tentar situar a ação narrada. Sob essa perspectiva, vale mencionar o teórico russo B.
Tomachéviski (1890-1957), autor da obra Teoria da literatura (1925), na qual apresenta
uma série de designações terminológicas, entre elas a distinção entre fábula e trama,
definindo a primeira como o conjunto de acontecimentos encadeados entre si e
dispostos necessariamente em ordem cronológica, estando submetida ao princípio da
causalidade, e a segunda como a disposição formal desses acontecimentos pelo autor
dentro da própria obra, sendo, portanto, “uma construção inteiramente artística”, que
depende da sensibilidade do narrador. Essa distinção implica, portanto, na observação
do que é narrado e do como se narra. Outra distinção apresentada por Tomachéviski se
faz entre o motivo livre e o motivo associado, sendo o motivo livre um reforço
importante na caracterização de uma ação, personagem ou ambiente, cuja exclusão não
altera a fábula, mas pode modificar a trama. A retirada do motivo associado, por outro
lado, não pode ocorrer, pois provoca a quebra da seqüência temporal e dos nexos de
causa e efeito. No caso de “A queda do Solar de Usher”, não se pode omitir, por
exemplo, que a personagem Rodrick Usher era intelectual possuía em sua estante, livros
como A assembléia dos loucos, de Launcelot, pois é a leitura dessa obra que vai
provocar o efeito de terror no narrador, pela associação dos gritos do dragão aos de
Madeline.
Os motivos ainda podem ser classificados de acordo com a sua funcionalidade,
definindo três tipos de motivação: composicional, caracterizadora e falsa. A motivação
composicional é aquela que revela sua utilidade dentro da ação. Esse tipo de motivação
está de acordo com os princípios abordados por Edgar Allan Poe, pois consiste na idéia
de que nada deve ficar inútil dentro da fábula. As cartas anônimas, por exemplo, só
adquirem função caso provoquem a degradação ou reabilitação de uma personagem. A
motivação caracterizadora pode ser homóloga ou heteróloga, confirmando ou se
opondo ao estado das coisas. Um ambiente ensolarado e florido, por exemplo, é
homólogo ao sentimento de felicidade ou de ansiedade pela espera de alguém querido,
mas é heterólogo aos sentimentos de tensão, tristeza, ou angústia. Por fim, a motivação
falsa é aquela responsável por quebrar as expectativas do leitor porque o autor leva-o a
supor um falso desfecho. No caso de Poe, este último de motivação não será utilizado,
pois seu objetivo é produzir o efeito único de terror, do início ao final da obra.
No Brasil, um teórico que se dedicou à questão do espaço foi Osman Lins (19241978), autor de ensaio “Lima Barreto e o espaço romanesco” (1976), no qual distingue
espaço e ambientação, sendo esta entendida como o “conjunto de processos conhecidos
ou possíveis, destinados a provocar na narrativa, a noção de um determinado ambiente”
(LINS, 1976, p.77, apud FIORIN, 2005, p.259), constituindo-se, portanto, a partir de
recursos expressivos que o autor utiliza para construir o espaço puro e simples (uma
sala, uma casa, etc.). O ambiente construído por esses recursos corresponde àquilo que
emana da relação entre o espaço e as personagens. No caso do conto de Poe, a relação
entre espaço e personagens cria um ambiente mórbido, que provoca sentimentos de
terror e angústia.
Ainda segundo à tipologia de Lins (1976), existem três tipos de ambientação de
acordo com a perspectiva sob a qual o texto é narrado: franca, reflexa e dissimulada. A
ambientação franca é composta por meio no relato de um narrador observador, não
participante dos fatos narrados. Esse tipo de ambientação se pauta no descritivismo, que
às vezes pode ocupar vários parágrafos. A ambientação reflexa é aquela em que “as
coisas, sem engano possível, são percebidas através da personagem”. (LINS, 1976 apud
DIMAS, 1994, p.22), sem a intromissão do narrador, que quase sempre a perspectiva da
personagem. Enquanto a ambientação franca depende de um narrador e ambientação e a
reflexa de uma personagem com tendência à passividade, a ambientação dissimulada ou
oblíqua depende de uma personagem ativa, o que faz com que se estabeleça uma
harmonização entre espaço e ação. Aplicando essa classificação ao conto de Poe,
constata-se que o tipo de ambientação predominante é a reflexa, pois as coisas são
percebidas por um narrador-personagem, que se sente influenciado pela atmosfera
fúnebre da mansão. Além do narrador, o próprio dono do solar também atribui sua
enfermidade a uma influência provocada pela casa.
Assim como o espaço, a personagem também é fruto do trabalho criativo de um
ficcionista. Podem ser apresentadas de um narrador observador que não participa dos
acontecimentos narrados, ou por outra personagem, testemunha desses acontecimentos,
como ocorre n’ “A queda do Solar de Usher”. Há ainda outras possibilidades de
manifestação do caráter das personagens, como o monólogo interior e o diário. Em se
tratando de tipologias de personagens, elas podem ser classificadas em planas, quando
não são muito aprofundadas psicologicamente e não se transformam ao longo da
narrativa; redondas, quando são mais complexas do ponto de vista psicológico;
tipificadas, quando representam um tipo social, ou quando sua peculiaridade atinge o
auge, sem atingir a deformação; caricaturais, quando a peculiaridade da personagem é
levada ao extremo, geralmente a serviço da sátira. Em a Queda do Solar de Usher, as
personagens são planas, pois são tomadas por sentimentos de angústia, melancolia e
terror provocado pela atmosfera e caracterização fúnebre do solar e esses sentimentos
persistem até o final da narrativa. Mesmo que o narrador tentasse aliviar as aflições do
amigo, se esforça em vão, pois é Roderick quem determina quais serão suas ocupações
na casa.
Também no conto, constata-se que o modo como espaço e personagens foram
criados, constitui a já mencionada motivação caracterizadora homóloga, pois a
caracterização da personagem – pelos “sinais de nervosa agitação” (p.81) presentes na
carta, por sua “compleição cadavérica” (p.84) e pelo teor macabro do conteúdo de seus
livros, por exemplo, estão de acordo com a atmosfera – “do dia monótono, sombrio e
silente” – que o envolve que envolve o solar e com o estado em que se encontra.
Ainda considerando uma tipologia de personagens, há autores que definem
quatro funções para a personagem, podendo ela ter função decorativa, de agente da
ação, porta-voz do autor e ser fictício, com forma própria de existir. A personagem
com função decorativa é aquela que embora seja considerada inútil à ação, não
possuindo nenhuma significação particular nem complexidade psicológica é importante,
pois pode constituir um traço de cor local ou um elemento indispensável à apresentação
de uma cena em grupo. Na obra de Poe, as personagens decorativas são os dois criados
e o médico da família (que, ao que tudo indica estava na mansão pra examinar Madeline
e de Roderick)
Em relação à função de agente da ação, deve-se considerar que ela “representa
uma situação conflitual em que as personagens perseguem-se, aliam-se ou defrontamse”. (BRAIT, 1999, p.49.) Essas ações e as funções possíveis de se combinarem um
uma obra foram classificados a partir e de estudos realizados por E. Souriau e W. Propp,
que subdividiram a personagem agente da ação em condutor da ação, oponente, objeto
desejado, adjuvante e árbitro (ou juiz).
A personagem condutora da ação é aquela que primeiro impulsiona a ação,
representando a força temática e podendo nascer de um desejo, de uma necessidade ou
de uma carência. O oponente é aquele que possibilita a instauração de um conflito,
representando a força antagonista que tenta impedir o deslocamento da força temática.
O objeto desejado corresponde ao objeto de carência, o valor a ser atingido. Destinatário
é aquele que alcança o objeto desejado, sem necessariamente ser o condutor da ação. O
adjuvante corresponde à “personagem auxiliar, que ajuda ou impulsiona uma das outras
forças”. (BRAIT, 1999, p.50.) O árbitro ou juiz é aquele que intervém em uma ação a
fim de resolver um conflito.
A função de porta-voz do autor baseia na longa tradição que encara a
personagem como soma das experiências vividas e projetadas pelo autor em sua obra.
Nenhuma obra de ficção, no entanto, se confunde com uma biografia ou autobiografia,
já que ela é no máximo uma biografia ou autobiografia do possível, o que lhe garante
uma total autonomia em relação ao seu autor. Por fim a função da personagem como ser
fictício, com forma própria de existir situa a personagem dentro da especificidade do
texto. Isso significa que a materialidade da personagem só pode ser atingida por meio
dos recursos que o autor utiliza para tornar “tangível a sua existência e sensíveis os seus
movimentos”. (BRAIT, 1999 p.52)
7. Conclusão
A partir do exposto, conclui-se que a relação entre espaço e personagens se
manifesta desde o início, em que o narrador se vê dominado por uma angústia, que julga
ser proveniente de certos elementos da mansão e da atmosfera melancólica que o
envolve.
No decorrer do texto as relações entre espaço e personagens se estabelecem por
meio da motivação caracterizadora homóloga, em que a atmosfera melancólica do solar
e a face cadavérica de Roderick Usher, remetem a temas constantemente abordados por
Poe, como a morte, o medo e a angústia. A influência entre essas duas categorias
funciona como uma explicação racional para os acontecimentos, o que faz com que os
eventos fantásticos tornem-se estranhos, pois, como já foi dito, é a essa relação que se
atribui a melancolia do narrador ao se aproximar da mansão e a doença Roderick Usher,
pois as paredes e torreões cinzentos provocavam um efeito em sua moral. Além das
características físicas, outros elementos marcam a personalidade e o caráter doentio de
Roderick: como uma personagem extremamente intelectual, Roderick vivia cercado por
livros, os quais, conforme o narrador afirma, contribuíram para a formação do caráter do
amigo.
Não se pode falar de Roderick Usher sem mencionar sua irmã gêmea, Lady
Madeline. As duas personagens constituem o chamado “duplo”, um dos aspectos
relacionados ao estranho, sendo que Roderick representa a mente humana e Lady
Madeline representa o físico, ou seja, os sentidos, defeituosos no irmão. Embora sua
aparição na história seja de início aparentemente pouco relevante, revela-se
fundamental, pois Madeline também está intimamente ligada à mansão. Assim como
Roderick, Madeline também se encontrava doente quando o narrador chega ao solar, o
que provoca a ansiedade de Roderick, que teme a morte da irmã, pois isso o deixaria
como o único membro da família Usher. Considerando que as duas personagens
constituem o “duplo”, o agravamento da doença, ou a morte de Lady Madeline, poderia
manifestar-se também em seu irmão. Para que se entenda a relação entre o solar e
Madeline é necessário retomar o início do conto, quando o narrador descreve a
atmosfera da casa e sua alvenaria que, embora apresentasse uma pequena fenda em
ziguezague, encontrava-se sólida, o que fez o narrador se lembrar de antigos
madeiramentos conservados em adegas. Isso de certa forma explica a razão pela qual
Roderick desejava mantê-la em casa por quinze dias antes do sepultamento definitivo:
queria conservá-la, conservar a si próprio e, acima de tudo, o solar, patrimônio da
família Usher. Sendo a irmã de Roderick a representante do físico humano, ela está
diretamente relacionada àqueles efeitos que as paredes e torreões do solar lhe
provocavam. Não foi à toa, portanto, que a morte de Lady Madeline acarretou, não
somente na morte do irmão, mas também na abertura da fenda e, conseqüentemente no
desabamento da casa.
Percebe-se, portanto, que a estrutura dessa obra está de acordo com as
afirmações de Poe em “A filosofia da composição” (1845). Todos os elementos da obra
contribuem para a construção de um ambiente em decadência, que influencia desde o
narrador – tomado por uma angústia insuportável no momento em que avista o solar –
até os irmãos Usher, ambos enfermos, próximos da morte. Em relação à construção do
“efeito único”, conclui-se que ele se manifesta desde o início do texto, em que se
observa a preocupação de Poe em criar a atmosfera macabra em que a história se passa.
O ritmo da obra começa a se acelerar a partir do momento em que Rodeick resolve
sepultar Madeline, aparentemente morta. Mesmo assim, o suspense é mantido, pois
Roderick não revela nada até o momento em que o narrador, tomado pelo nervosismo,
interrompe a leitura de Mad Twist (LAUNCELOT, s/d) cujos trechos são reproduzidos
na obra de Poe, justamente para que o suspense se mantenha.
8- Referências Bibliográficas
BRAIT, B. A personagem. 7.ed. São Paulo: Ática, 1999.
DIMAS, A. Espaço e romance. 3.ed. São Paulo: Ática, 1994
FIORIN. J. L. As astúcias da anunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2.ed.
São Paulo: Ática, 2005.
FREUD. S. O estranho. In: ________. Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. v. XVII (1917-1919), Rio de Janeiro: Imago, 1919 , p.275-315.
GOTLIB, N. B. Teoria do conto. São Paulo, Ática, 1990.
POE, E.A A filosofia da composição. Trad. Diego Raphael. Disponível em:
<http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/filosofia.htm> . Acesso em 07 mar. 2007.
__________. “A queda do Solar de Usher”. In: Contos de terror, de mistério e de morte.
Trad. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. 3.ed. São Paulo: Perspectiva., 2004.
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