Glaucio Gonçalves Tiago Água Fria Centenário - SP - Brasil A Busca Do Espírito Dos Grandes Canyons Uma introspecção de Glaucio Tiago Pé na estrada A Harley sai da revisão em 08 de março. Os bons amigos da Harley Davidson-Jardins, em São Paulo/SP - Brasil, acham-na ótima e não recomendam preocupação com peças sobressalentes durante os próximos 6 ou 7 mil quilômetros. Dia 12, preparativos para a viagem: alforjes já equipados e instalados na motocicleta. A regra é rodar o dia inteiro, evitar o máximo possível as estradas de tráfego intenso para poder aproveitar as paisagens, dormir em cidades pequenas, e decidir o roteiro do dia no café da manhã antes das saídas. Inicio a viagem às 10:00hs do dia 13. Sigo a rota dos tropeiros e as 11:30hs estou em Itapetininga/SP. Viagem técnica e tranqüila, tempo bom. A partir da divisa do Paraná a paisagem muda e tudo começa a ficar mais leve e bonito, cheio de araucárias e paredões de arenito. Onde estou? Onde me encontrarei? Novas experiências, pagar pedágio de motocicleta. A motocicleta é um catalisador de percepções e pensamentos. Rodo 650 km e estou em Prudentópolis/PR. Não consigo contatar um receptivo turístico para ver as grandes cachoeiras que existem na região. Verificarei um contato agora. Torpedo de posicionamento, ligação para a família. Pontuar o mapa da viagem para os entes queridos. A segurança que a tecnologia atual permite. Consigo encontrar uma saída para a dificuldade de localizar alguma agência de turismo que leve as cachoeiras um viajante solitário. Um gerente de um hotel consegue contatar um taxista disposto a me levar até as cachoeiras. Volto ao hotel onde, em meio aos muitos caixeiros viajantes hospedados, fico na janela do quarto, estrategicamente escolhido na frente do hotel, para poder observar o cotidiano de uma cidade do interior do Paraná. Incrível como as pessoas adoram fazer “footing” automotivo com o som dos carros no último volume. As grandes cachoeiras Acordo e tomo o café da manhã, observo as pessoas, gente centrada em seus afazeres. Chega o taxista. Lá vamos nós rumo às cachoeiras. Não espero encontrar grandes coisas, até que me deparo com a segunda cachoeira do roteiro escolhido pelo taxista. Fico bestificado com a grandeza e beleza do espetáculo natural. Absolutamente lindo e perdido nos rincões deste país continente. Seguimos até o alto da cachoeira por uma estrada no meio de plantações de erva mate. Vou abrindo as porteiras do caminho, como um “Zequinha” dos Jeeps. Chegamos ao alto e o espetáculo é lindo. Assim foi o dia: paisagens exuberantes; muita caminhada; terminando com uma descida e subida de 550 degraus rumo a uma pequena usina hidrelétrica ao lado de um paradisíaco lago onde caia uma cachoeira onírica de 90 metros de altura. Não me contenho e nado até o meio do lago, onde há uma grande pedra e pode se sentir o forte spray da água da cachoeira. Perco o medo e fico nadando, sendo levado pela correnteza não tão forte do rio que segue pedregoso. Chego ao hotel e, após espionar a população local, desmaio de cansaço por duas ou três horas. Levanto, pego o equipamento fotográfico e saio para capturar imagens de um pedaço da Ucrânia no Brasil. Jantar na churrascaria, café da manhã, regulagem dos suportes de alforjes “na mão”, montagem dos alforjes e sigo rumo ao segundo destino: Pomerode/SC à aproximadamente 550 km. Manhã fria, estradas com o asfalto sem buracos, mas ondulado e com sulcos fundos de rodagem, devidos as cargas de soja em zilhões de toneladas rumo ao porto de Paranaguá. Atenção redobrada e: pedágios ! Pago o último e pego a estrada secundária rumo à cidade de Lapa. Rodo sozinho durante 1 ou 2 horas. Faço reflexões sobre a segurança e responsabilidade de se rodar solitário em estradas secundárias desertas. Espanto os fantasmas, me concentro e acelero. Agora faz muito calor. Passo Lapa e pego uma estrada cheia de buracos até Campo do Tenente/PR, onde acesso a BR 116, “a estrada da morte”, em direção a Mafra/SC. Logo que entro na estrada, o trânsito parado devido às eternas obras nesta estrada/suplício começa a andar. Saio no bolo de caminhões como em uma corrida maluca. Consigo me livrar dos caminhões com certa dificuldade, mas não consigo estar atento aos inúmeros buracos que aparecem como em um videogame na minha frente. Sobra um caminhão a 130/140 km/h na minha rabeta. Minha valente, robusta e decidida Harley me conduz a segurança dos espaços a nós destinados na estrada. Chego a Mafra e saio da BR 116 rumo a Rio Negrinho. No primeiro posto de gasolina, paro para tomar uma cerveja e relaxar. Sobrevivi: “One more time”. Velhinho Sisudo Rio Negrinho, São Bento do Sul, vou errando aqui e ali para fazer o caminho que quero, e fugir da rota dos grandes e numerosos caminhões que levam as nossas riquezas de uma ponta a outra do país. É incrível como as estradas que ligam as regiões mais produtivas do país estão, ainda hoje (2006), abandonadas. Passo por São Bento do Sul e me deparo com uma serra maravilhosa rumo a Jaraguá do Sul. Chego a Jaraguá e sigo as placas para Pomerode. Paro em um posto e encontro membros de moto clubes locais que me indicam alguns caminhos. Deixo-lhes uns adesivos do Alma Livre, e sigo. Já bem cansado no final da tarde, me deparo com uma manifestação de moradores impedindo o trânsito com um caminhão pipa atravessado na pista, no início da serra que leva a Pomerode. Faltam 20 km e eu ali parado sob um sol escaldante. Penso em voltar para Jaraguá, mas a rainha da estrada chama alguns amigos para conversar. Três ou quatro pessoas se juntam em torno dela e um senhor, ao saber da minha provável rota rumo ao Sul do país, diz em tom sisudo e determinante: “Se tu queres ir para a Serra do Rio do Rastro, tem que descê-la para poder apreciar a vista e, assim, terá que sair de Pomerode por Timbó, etc..., etc... rumo as Serras Catarinense e Geral”. Faço uma reflexão, e ponho em dúvida o caminho indicado. Fico impaciente, vou falar com um dos líderes da manifestação que está sobre uma motocicleta e, apoiando a manifestação, digo que se eles querem segurança na travessia de seus filhos para ir a escola do outro lado da estrada, eu estaria arriscando minha segurança se só conseguisse cruzar a serra a noite, sem conhecê-la, e no estado de cansaço em que me encontrava. Ele me tranqüiliza e diz que só estava esperando as equipes de reportagem irem embora para liberar a pista. Alemanha brasileira e veloz O caminhão começa a manobrar, me despeço rapidamente dos amigos instantâneos que me desejam sorte, e sigo serra acima. Chego a Pomerode, construções singelas, traços germânicos, um bonito cenário. Paro em um posto para pedir informação e uma mulher em um fusca para, atrás de mim, e buzina para que eu saia do caminho. Acho estranho, ligo a motocicleta e saio para a rua, onde carros passam em velocidade inadequadamente alta para o sistema viário de paralelepípedos. Acho que os alemães daqui andam muito nervosos. Faço um reconhecimento da cidade e, de repente, estou em uma contra-mão: “Mão inglesa em cidade de origem alemã, assim não dá”. Acho a pousada, negocio um bom preço e vou descansar totalmente extenuado. Acordo em dúvida sobre qual rumo tomar em direção a Serra do Rio do Rastro: irmãos do moto clube ou velhinho sisudo? Aposto em sisudo, e acelero. Como sempre, as mal sinalizadas comutações de estrada me fazem errar o caminho por metros, mas as pessoas dos lugares rapidamente me informam qual é o caminho certo. Timbó, Indaial, e começo a subir uma serra muito bonita. Distraio-me um pouco e sou obrigado a “alicatar” os freios para não chapar em um caminhão á minha frente. Deparo com montanhas e vales maravilhosos onde o rio Itajaí-Sul serpenteia. Entro na cidade de Rio do Sul, sigo para Ituporanga onde está acontecendo a “Festa da Cebola”. Sigo atrás de um caminhão de Piedade/SP, cheio de cebolas. Tenham piedade de mim, que cheiro! Afasto-me de Ituporanga rumo a Alfredo Wagner, em uma das paisagens mais bonitas que já vi. Agradeço este momento a Deus, á Mirene, ao João Pedro, à minha mãe e pai, aos amigos e, é lógico, ao “velhinho sisudo”. Nesta paisagem e neste estado de espírito, assim que a motocicleta se desloca como um navio cruzando um oceano de belezas naturais com força e segurança, começo a perceber, ver, a diferença entre a minha sensação de tempo e a sensação de tempo das comunidades por onde passo. Sinto que o meu tempo vai apagando o espaço. Começo a entender melhor Milton Santos. Começo a perceber a prisão da aceleração de eventos criados pelo homem capitalista metropolitano. Percebo que terei de percorrer vários lugares em uma vida para poder me sentir bem, enquanto uma pessoa de um recanto isolado será feliz em um lugar durante sua vida. O homem urbano moderno está em todos os lugares e em nenhum lugar: “Lost in space”... Enquanto fico com estes pensamentos, a Harley manda bala na estrada, com firmeza e maestria. Serra Catarinense e Rio do Rastro Subo a serra rumo a Urubici/SC e já sinto todo o esplendor dos campos de altitude. O vento fica mais forte e tenho de adequar a pilotagem ao vento de través esquerdo. Passo por um pequeno canyon e sigo. Chego em cima da serra e paro em um posto cheio de caminhões, para comer e me informar sobre a condição das estradas regionais. Sigo a Urubici em meio a uma paisagem estonteante. Paro a Harley sob uma placa: “Cuidado. Neve na Pista”, com um calor de vinte e tantos graus, o que é absurdamente muito para a região. Saio dos vales de Urubici e sigo em direção a São Joaquim, na região mais fria do Brasil. Sigo para a bonita região de Bom Jardim da Serra. A cidade tem uma igreja peculiar em forma de pirâmide alongada apontada ao céu. Paro em um pequeno café onde o dono me mostra fotos da estrada interditada com aproximadamente um metro de neve. Sigo em direção a serra do Rio do rastro, e me deparo com um grande gerador de energia eólica. Paro no posto da Polícia Rodoviária e me informo sobre alguns caminhos de Santa Catarina para o Parque Nacional dos Aparados da Serra no Rio Grande do Sul. Eles me olham com ar estranho de quem não crê que um motociclista pode parar em um posto policial para pedir informações, tranqüilamente. Sou muito bem atendido e ganho um mapa detalhado da região. Já no mirante da Serra, onde se vê o incrível canyon e o serpenteio vertiginoso da estrada. Tenho uma sensação de medo logo afastada pelo sibilar do motor da Harley pronto para mais uma missão. Chego na entrada da Serra onde se lê: “Estamos a 88 dias sem mortes nesta rodovia”. Desço em uma marcha reduzida para poupar os freios. É incrível, pois mesmo automóveis pequenos têm de invadir totalmente a contra-mão para fazer as fechadíssimas curvas. A paisagem é linda, redobro a atenção e, nossa: “santo torque para segurar a massa da moto ladeira abaixo”. Chego a Orleans e me informo sobre o caminho para Gravatal. Tenho dúvidas se sigo para o evento motociclístico de Termas do Gravatal. Passo pelas termas e sigo a Tubarão para pernoitar, mas encontro um rush de trânsito bravo e resolvo voltar às termas e participar da abertura do evento. Encontro um hotel acessível com uma piscina termal. A lua está cheia, fico na piscina relaxando e pensando em qual rota traçar no dia seguinte. Arrumo minhas coisas no quarto e sigo para o evento. Sou muito bem recebido pelos organizadores no churrasco de abertura do evento. Dali, seguimos em cortejo para uma festa em um sítio próximo. Fico uma meia hora, como um pouco de leitão a pururuca e sigo para descansar no hotel. Pirei na Free Way Manhã escaldante. Prendo os alforjes na moto e inicio uma longa jornada rumo a Garmado/RS. Chego a BR 101 e adentro em um universo infernal de estrada esburacada e mal sinalizada, com caminhões cheios de terra arremessada contra mim, junto com os tradicionais caminhões de carga e motoristas argentinos irresponsáveis. Ponho todas as minhas técnicas de direção preventiva em prática, rezo e torço os cabos rumo a alguma situação melhor de viagem. Passo por um cara em uma moto relativamente antiga, com uma mochila de lona do exercito mais parecendo um Granado/Guevara, e começamos a andar em um ritmo semelhante para não nos sentirmos tão solitários. Coisa de motociclista estradeiro. Cruzamos as planícies litorâneas e entramos na região das lagoas e bocas de canyon do Rio Grande do Sul. A paisagem é linda, o calor é intenso e o trafego sufocante não me permite desfrutar totalmente da paisagem. Entro na “Free Way” rumo a entrada de Santo Antonio da Patrulha. O calor é quase insuportável. Sinto, como nunca havia sentido, o calor proveniente do asfalto e a pele ser queimada por baixo do grosso couro da jaqueta. Relaxo bastante apesar do calor desértico. Afinal, aqui no Sul do Brasil não é comum encontrar estradas com três faixas de rodagem em cada pista. Acelero e desencano. Pirei na Free Way! Passo por um monte de placas informativas sem prestar atenção e quando saio do transe já havia passado a entrada que buscava. Sigo em direção a Porto Alegre ainda pensando em seguir para a região serrana de Gramado. Paro em um posto de gasolina no início de uma das estradas de Gramado e, refletindo sobre a minha rota futura, resolvo passar na concessionária Harley Davidson de Porto Alegre para trocar as pastilhas do freio traseiro que já estão um pouco finas. Vamos testar o poder do Harley Owners Group / HOG. Sigo as valorosas informações dos amigos do posto e chego à concessionária lá pelas 13:30hs. Dirijo-me ao chefe de oficina e explico a minha situação de trânsito em viagem com uma Harley e como membro do HOG. Sou prontamente atendido por um mecânico especialmente designado para executar o serviço. Todos da concessionária cooperam comigo sem stress, e de maneira eficiente. Fico agradecido e impressionado. Mudo tudo e resolvo ir até o Museu de Tecnologia de Canoas/RS. O museu de tecnologia Saio da concessionária por volta das 15:00hs, sigo as informações que me passaram e chego no estacionamento do Museu lá pelas 15:30hs. Os funcionários mal treinados me informam que o museu estava fechado. Entro no grande estacionamento mesmo assim. Não andei quase 2000 km para encontrar um museu fechado em uma sexta-feira. Não consigo chegar até o museu, volto a bilheteria do estacionamento e eles me informam que eu precisaria deixar minha moto com bagagens há uns 300 metros do museu. Busco uma solução diplomática e não encontro. OK! Retiro um obstáculo do caminho, cruzo uma calçada, e lá está a Harley perfeitamente emoldurada na frente do moderno prédio de vidro do museu, sob um avião de caça que está no jardim. O calor continua muito intenso. Adentro ao museu ainda sem saber direito o que encontraria. Sigo as orientações de iniciar a visita pelo último andar. Tenho 01:45 hs para a visita. Acho que é mais do que o suficiente, mas quando percebo o tamanho, beleza e primor do acervo de carros, motos, rádios, relógios, filmadoras, máquinas fotográficas, etc..., sinto que precisaria de uns dois dias para conhecê-lo direito. Fico maravilhado: 4° andar – Carros artesanais brasileiros de época, esportivos do piloto Emerson Fittipaldi; 3° andar – Carros americanos clássicos das décadas de 50, 60 e 70 (séc. XX). Os conversíveis são estonteantes. Fico indo e voltando, tentando observar o belo e valioso acervo e me arrependo de não trazer mais memória em minha máquina fotográfica.; 2° andar – Carros europeus e americanos das décadas de 10, 20, 30 e 40 (séc. XX). Sensacional !; 1° andar – Utilitários, carros econômicos, motocicletas, etc... Faltam poucos minutos para o fechamento do museu e os técnicos e seguranças, felizes por terem no museu um motociclista de longa distância que se deslocou especialmente para a visita, me tranqüilizam falando que eu teria o tempo necessário para terminar de conhecer o acervo, e me questionam sobre a viagem, meu equipamento e minha motocicleta. Sinto-me feliz e justiçado. Termino a visita calmamente, ganho prospectos e uma boa lembrança do museu e de sua equipe. Saio do museu perto das 18:00hs, bate um forte e quente vento sudeste. As folhas e papéis voam. O tempo vai mudar! Preciso falar com alguém que entenda o que estou sentindo. Em meio a locomotivas a vapor expostas no jardim, extasiado, ligo para alguns amigos. Mas onde estão eles? Deixo algumas mensagens e decido seguir a viagem rumando serra acima até as cidades de Gramado e Canela. Pego a BR 116 com trânsito rápido e pesado: São Leopoldo; Novo Hamburgo... Decido pilotar até a noite, já que o tempo iria virar e era lua cheia. Sigo minha fuga da frente fria que se aproxima de minha rabeta. Passo Dois Irmãos, Morro Roiter, a estrada está linda ao ocaso. Os últimos raios de sol daquele dia caíam sobre as árvores e flores lindeiras a pista, exalando um cheiro maravilhoso de frescor após um dia escaldante. Estou cansado e a paisagem está linda. Então diminuo bastante o ritmo na estrada vazia e aproveito as sensações que me invadem fortemente. Paro em um belo lugar com um posto de gasolina. Decido fazer uma parada prolongada para “almoçar” junk food. Descubro que aquele lugar é um tradicional ponto de encontro de motociclistas da região. Converso com o atencioso empregado do posto e o ajudo quando chegam uns seis carros juntos para abastecer e comprar provisões. Saio do posto, a noite cai, e sigo calma e cuidadosamente subindo a serra. Passo por Picada Café e Nova Petrópolis. Penso em parar, mas me deparo com sinalizadores para diminuição de velocidade totalmente inapropriados e perigosos para o trânsito de motocicletas, com tarugos (tachões) distribuídos no meio da faixa de rolamento, e julgo que um lugar que põe em risco a vida de motociclistas, não devem ser prestigiados. Muito, muito cansado, chego a Gramado. Vou até o centro da cidade para buscar informações e um pouso. Afortunadamente encontro uma agência do banco que uso. Estaciono a motocicleta, adentro a agência, me abasteço de dinheiro, que já estava acabando (saí com R$ 200,00/U$ 90,00, um cartão de crédito, um cartão de débito e meio talão de cheques). As máquinas eletrônicas tragam o cartão, e fico ali operando as máquinas e rezando para que elas não engulam meu cartão. Saio da agência, vejo um homem bem vestido caminhando e conversando com motoristas de táxi. Deve ser bem informado, pensei. Abordei-o e ele de uma maneira extremamente gentil me indica uma Pousada confortável, e pede que eu fale em nome dele para que tivesse o melhor atendimento possível. É um dono de um bom restaurante do centro de Gramado e com certeza, um ótimo cidadão brasileiro. Este país e seu povo, são realmente maravilhosos. Ah! Os governantes são outra história... Chego a pousada, uma bela e grande casa, identifico-me e a dona se mostra agradecida pela gentileza do dono do restaurante. Lembro que estou em uma rota turística denominada “Rota Romântica” e disparo: “A senhora pode oferecer um pouso confortável e um desconto no preço para um motociclista solitário que viaja pela rota romântica?”. Ela prontamente diz: “Fazemos qualquer negócio para agradar nossos clientes”. Tranqüilizo-me e vou escolher um dos apartamentos disponíveis. Caio na cama quase morto, e descanso um pouco vendo um telejornal de Sampa. Ligo para casa, passo um torpedo com a minha posição. Vou para o banho de camiseta e meia para lavá-las mais facilmente. Putz, que dia longo e produtivo: Termas do Gravatal, Torres, Lagoas do RS, Free Way, HD/Porto Alegre, Museu de Tecnologia, Serra de Gramado. E, que calor! Mas agora o tempo vai mudar. Apronto tudo para o outro dia, analiso rotas para os aparados da serra gaúcha e penso em sair para tomar uma sopa. Caio na cama e desmaio de cansaço. A manhã ainda não é chuvosa. Tomo um café da manhã maravilhoso e vou dar uma volta por Gramado na manhã do sábado. Paisagem urbana alpina e roupas de couro. Paro para tirar uma foto do cinema onde ocorre o “Festival Internacional de Cinema de Gramado” para o João Pedro e volto para a pousada. Acerto as contas, carrego os alforjes e começa a tocar: “Eu voltei agora para ficar, pois aqui, aqui é o meu lugar...” Talvez eu estivesse voltando para mim mesmo e aquilo era só uma trilha sonora desta minha jornada íntima e pessoal. Ligo a motocicleta. A dona da pousada segura o cachorro, sentada em um banco. Acelero e contínuo minha rota. O céu está escuro, mas decido arriscar e não ponho a minha roupa de chuva. Sigo as placas, mas, como sempre, nas rotatórias não há sinalização. Começo a descer uma estrada bonita, ando uns três quilômetros, emparelho com um ciclista que dirige no meio da pista e pergunto: “Este é o caminho para Canela?” Ele, meio vesgo, boca torta e cara de louco diz, após me olhar com a cabeça inclinada: “Não!”. Confio no maluco, dou meia volta e pego o rumo certo. A chuva começa a cair forte ainda na saída de Gramado. Paro e me equipo. Passo por uma Canela meio alagada em pontos e sigo para São Francisco de Paula. Navegando nos Campos de Cima da Serra A estrada vazia, o vento frio e úmido e as pancadas de chuva forte. Sozinho na estrada, começo a marcar pontos habitados, caso a chuva e os ventos aumentem muito ou tenha algum problema. Passo São Francisco de Paula. Sigo para Tainhas. Não vejo um único carro a quase uma hora. É muito bom, mas exige uma pilotagem muito segura por caminhos amplos e desconhecidos. Tem uma enorme nuvem de tempestade há uns 3 km do meu lado direito. Acelero e penso: “Você não vai me pegar”. Cruzo com um carro e pego o trevo para Cambará do Sul. As paisagens vão mudando e a nuvem negra fica bem para trás. Chego a Cambará. Cidade pequena e hospitaleira. Paro nos postos de gasolina para me informar sobre pouso e guias para os canyons. Em um dos postos uma mulher segura e solícita me fala: “Fique na pousada X, fale com o taxista Y para ir aos canyons amanhã, e vá ao restaurante Z para se alimentar”. A cidade é cheia de casas de família que funcionam como pousadas. Vou ver uma e não gosto, sigo as “ordens” da boa senhora. Fecho com a pousada, fecho com o taxista e sigo para o restaurante. Estaciono a Harley na porta e entro em um ambiente calmo e aconchegante, apenas com dois casais. Peço uma cerveja e acho que estou no paraíso. A tempestade chega forte, a placa do restaurante oscila perigosamente sobre a Harley. Chega um ônibus de excursão com velhinhos animados, tirando uma fina da motocicleta. Começam a surgir goteiras por todo o restaurante, a luz acaba. O paraíso tornou-se um inferno em dilúvio. Saem os casai, saem os velhinhos e a chuva para. Tomo um copo de vinho, uns goles de grapa e vou para a pousada, onde os pernilongos acabam com minha noite de sono. Não entendo: tão alto; tão frio e cheio de mosquitos! Visitando os espíritos dos canyons Domingo cedo e táxi na porta. Saímos rumo ao maior e mais difícil de ver, o canyon Fortaleza (segundo maior canyon do Brasil com aproximadamente 8 km. O primeiro é o Guartela no Paraná, que tem 40 km[sexto maio canyon do mundo]). A neblina é forte, chego ao final de uma trilha extensa e não enxergo um palmo à minha frente. Sento em uma pedra e descanso longa e solitariamente. Tranqüilizo-me pela falta de visibilidade e, como em um passe de mágica, o canyon começa a aparecer imponente sob um sol pálido. A sensação é maravilhosa e extasiante, parecendo um presente dos deuses dos grandes canyons. Tudo é muito grande e majestoso. Resolvo seguir mais uns 2km pela beira do canyon. Vejo as planícies costeiras há uns 20 km. Começam a chegar algumas excurções turísticas, e após 40 minutos de canyon aberto ele vai novamente se fechando na densa neblina. Acho que os espíritos dos canyons não gostam de multidões. Faço um pequeno ritual pessoal, lanço uma oferenda inofensiva aos deuses dos canyons e desço a trilha. Vamos para o canyon Itaimbezinho, 30 km distante. A paisagem é maravilhosa, mas menos grandiosa que o Fortaleza. Não dou muita sorte e o canyon fecha rapidamente sua cortina nebulosa. Chego a pousada a tempo de assistir um clássico do futebol local da varanda, começo a escrever neste diário e a noite cai com relâmpagos no céu. Cruza uma vaca preta na tranqüila rua, bem na frente de onde estou. Que sinal pode ser este? Tomo uns tragos em um bar, verifico a motocicleta e durmo em dúvida sobre ficar mais um dia para descansar, ou seguir minha viagem. O dia amanhece pálido e chuvoso. Decido iniciar minha viagem de volta. Descubro, dias depois, que encarei um dos mais chuvosos momentos do quadrimestre de 2006, na região de divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Hora de voltar Tenho aproximadamente 700km para percorrer neste dia. Inicio a viagem em direção a Caxias do Sul. A Rota do Sol está vazia, acelero para adiantar o expediente e fugir das tempestades mais fortes. Surge um retão longo. Vou acelerando forte quando na outra ponta surge um caminhão ruidoso que assusta um bando de patos selvagens que estavam em uma lagoa logo a minha frente. Começo a frear assustado, enquanto os patos vão levantando vôo lentamente. Aproximo-me perigosamente dos patos que estão na altura de minha cabeça. Sem opção, freio fortemente e rezo para a motocicleta não espalhar feio na pista. A manobra funciona e de cabeça abaixada, cruzo os patos há uns 30 centímetros de minha cabeça. Incrível e inusitado. Nunca tinha me deparado com este tipo de perigo. Já desviei, principalmente a noite, de cães, vacas, cavalos, tatus, raposas, etc..., mas patos lerdos na decolagem, nunca. Vivendo, rodando e aprendendo. Chove, para, cai tempestade, para... Entro na BR 116 e entre uma e outra pancada de chuva aprecio a belíssima paisagem da serra de Caxias do Sul. Estou sozinho na estrada. Acho que só eu não sabia da pessimista previsão de tempo. Sou parado no posto da polícia rodoviária de Vacaria/RS em uma situação muito estranha. Peço auxílio no que diz respeito às condições climáticas e rodoviárias no trecho de 300 km de BR 116 que preciso percorrer até Lajes/SC e não obtenho resposta. Reclamo de ter sido parado naquelas condições e sou liberado com olhares não amistosos da chefia do posto. Ando sempre equipado e com a moto em perfeitas condições técnicas e legais. Tantos veículos em mal estado na estrada. Tantos buracos e máquinas agrícolas, e a fiscalização é efetuada sobre um motociclista viajando solitário, prestigiando as belezas naturais e humanas do Rio Grande do Sul. Tudo muito estranho e triste! A chuva aumenta, sigo a viagem até Lajes onde realmente a coisa fica preta. A chuva para um pouco e aparece no horizonte uma barreira negra há uns 5 km. Iria pegar a BR 282, mas decido continuar na BR 116 que segue em uma direção aparentemente paralela a enorme nuvem negra. A estrada serpenteia e dou de cara com a tempestade. Dou meia volta e sigo voando em direção à BR 282. Já na 282 pego uma ponta da tempestade, que é uma das piores chuvas que já vi na estrada. As marcações da estrada somem no dilúvio. Os carros e caminhões andam pelo acostamento e pela contra mão, totalmente desorientados. Rezo para aparecer um abrigo, que não aparece. Entro no trevo para Octacílio Costa e a chuva para, como se tivessem desligado um chuveiro. Está ficando tarde, acelero na BR 470, paro no posto do encontro em Rio do Sul, onde fui muito bem tratado na ida e, então, me sinto em casa. A chuva diminui, descanso um pouco e sigo rumo a Pomerode. É segunda-feira e vou tentar chegar na pousada em que fiquei na ida. A chuva vai diminuindo e começa a escurecer. Paro em Timbó para abastecer e cai um trovão assustador. Olho na direção de Pomerode e vejo vários relâmpagos assustadores. Monto rapidamente na motocicleta e saio acelerando no trânsito louco da curta e bonita estrada entre Timbó e Pomerode. Chego sob um vento alucinante. Entro na garagem da pousada e a tempestade despenca fortemente. Disparo ao recepcionista: “Vocês guardaram meu quarto?” e ele me tranqüiliza: “Lógico!”. Que dia! Será que este era o sinal da “vaca preta”? Resolvo ficar um dia por lá para descansar. Vou ao Zôo, ao Museu do Marceneiro, a Casa do Imigrante, ao Museu Pomerano do admirável Sr Egon Tiedt e D. Helena, vou a uma reunião do Rotary, etc... Vivi um belo dia pomerano. Recarregar as energias com um Barreado Quando iniciei a viagem, imaginei que poderia ir, ainda, a Foz do Iguaçu ou ao Pantanal. Mas as paisagens foram tão maravilhosas, os amigos e lugares tão generosos que, satisfeito, decido ir até Morretes/PR comer um barreado e depois subir para casa em Sampa. Garuva, Guaratuba, balsa para Caiobá e Matinhos. O dia está fresco e úmido, vou até Antonina e volto um pouco para me hospedar no hotel mais antigo de Morretes. A Harley é guardada no depósito e lavanderia do velho e charmoso hotel. Caixas de tomate, frutas e verduras, máquinas industriais de passar roupa, latas de óleo de cozinha, e a Harley lá em uma combinação entre o surreal e o muito apropriado. Era só mais um equipamento que estava ali, pronto para o uso. A chuva cai forte lá fora. Abro a janela e fico observando as curvas do rio Nhundiaquara, absorvendo o frescor da mata atlântica que circunda a cidade. Como o famoso barreado da Dona Glorinha, que, ainda, mantém a receita tradicional e o sabor do verdadeiro e premiado prato morretense. Converso um pouco com ela para sorver um pouco de sua educação, calma e sabedoria. O portão do depósito é aberto. O sol aparece e o velho hotel fica para trás. Subo a bela Serra da Graciosa, tranqüilo e lentamente, para aproveitar um pouco de calma antes de adentrar à mal afamada estrada Regis Bitencourt e seu tráfego violento. Paro no Portal da Serra e faço um último registro fotográfico. Entro na autoestrada e sigo singrando o asfalto entre grandes caminhões, depressões profundas e buracos no asfalto. Passo por uma tortura na Serra do Cafezal, onde um caminhão quebrado naquele absurdo rodoviário brasileiro me obriga a queimar constantemente a embreagem, em razão do deslocamento de pesados caminhões a 10 km/h na subida. Sem possibilidade de ultrapassagem, sem acostamento e, inexplicavelmente, sem áreas de refúgio. Um crime contra os milhões de usuários da autoestrada. No meio da tarde começo a acelerar mais, para chegar em São Paulo/SP antes das constantes e perigosas tempestades de final de tarde no verão. Passo o tradicional e perigoso ponto de alagamento de Taboão da Serra. Não ando mais do que 100 metros após e a tempestade despenca. Paro em um posto de gasolina, abrigado e vivo após esta jornada mental, temporal e espacial. Pergunto se o lugar alaga. Com a negativa da resposta, sento em uma lanchonete para tomar uma cerveja, relaxar e esperar a forte chuva passar. Cruzo a cidade em meio a um trânsito amistoso e chego em casa: a Tiago’s Garage; a minha família; as minhas árvores e seus pássaros; aos meus cães, flores e bichos. Aliviado pelas belezas dos lugares, das estradas que segui, e dos povos com os quais convivi durante 10 dias e 3540 km rodados, tiro o peso dos alforjes da motocicleta, já um pouco combalidos de tanto chão, e adormeço na tranqüilidade de um lar equipado com tecnologias e confortos que, embora incomparáveis, são insubstituíveis à liberdade da estrada e à beleza da imensidão das paisagens deste lindo país. Mas as aventuras não páram por aí. Ainda pretendo ir ao Pantanal, às Chapadas Diamantina, dos Veadeiros e dos Guimarães, etc, etc...