O GLOBO
●
O MUNDO
●
AZUL MAGENTA AMARELO PRETO
PÁGINA 34 - Edição: 28/09/2011 - Impresso: 27/09/2011 — 23: 17 h
34
2ª edição • Quarta-feira, 28 de setembro de 2011
O GLOBO
.
O MUNDO
Fissura na base de apoio a Morales
Referendo sobre rodovia não impede nova queda de ministro e convocação de greve geral na Bolívia
Editoria de Arte
Janaína Figueiredo
[email protected]
A
Correspondente • BUENOS AIRES
s principais cidades bolivianas serão cenário hoje de uma greve geral convocada pela Central Operária Boliviana
(COB), em repúdio à repressão aos indígenas que tentam impedir a construção de uma
estrada que cruzaria o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), na região
central do país. A COB integra uma abrangente
lista de setores políticos e sociais que se opuseram à ação do governo Evo Morales e decidiram aderir à onda de protestos que desde
domingo se espalhou por vários departamentos (estados) bolivianos. A nova crise política, que na véspera havia provocado a saída
da ministra da Defesa, Cecilia Chacón, causou ontem mais quatro baixas no alto escalão do governo, entre elas, a do ministro do Interior, Sacha Llorenti, e a do vice-ministro da pasta, Marcos Farfán. A
diretora nacional de Migração, María
René Quirogam, e a coordenadora do
Sistema de Informação sobre Preços
Agropecuários, Roxana Liendo, também deixaram os cargos. O caso
aprofundou as fissuras nas bases
de apoio do governo e criou um
clima de incerteza sobre o futuro DEPARTAMENTO
DE LA PAZ
político de Morales. Em uma
tentativa de minimizar a crise,
Morales anunciou na noite de
ontem os novos ministros da
Defesa (Rubén Saavedra) e
do Interior (Wilfredo Chávez) e aproveitou o anúncio
para criticar a imprensa.
Os cerca de 1.500 indígenas
que há mais de 40 dias protestam contra a
construção da estrada de 300 quilômetros que
uniria as cidades de Villa Tunari e San Ignacio de
Moxos — e que ontem decidiram retomar a marcha até La Paz — receberam o apoio da Igreja, de
associações de defesa dos direitos humanos e
meio ambiente, comitês cívicos dos departamentos de Beni, Pando, Potosí, Oruro e Santa Cruz,
sindicatos e partidos opositores. Muitos votaram
em Morales em 2005 e apoiaram o governo.
Nem mesmo a decisão do presidente de suspender temporariamente as obras e convocar
uma consulta popular ainda sem data conseguiu conter os protestos e a enxurrada de críticas. Os indígenas não querem um referendo,
querem que o governo cancele o projeto.
— Ou o presidente recua totalmente em sua
posição e assume seus erros, ou a crise vai se
agravar — disse Carlos Hugo Lanuta, dirigente
indígena do partido opositor Unidade Nacional.
Segundo ele, “o conflito com os indígenas deteriorou a situação de um governo que vem
acumulando problemas há vários meses e que
hoje não tem mais de 30% de aprovação”.
A repressão ao protesto contra a
construção de uma estrada
atravessando o Território Indígena
Parque Nacional Isiboro Sécure
(Tipnis) abriu um racha entre o
presidente Evo Morales e algumas
bases de apoio de seu governo.
Indígenas acusam Morales de
postura dúbia, por ter defendido
uma nova Constituição protegendo
seus direitos e depois adotar uma
decisão que consideram
prejudicial a eles
A ESTRADA
Território
indígena
Tipnis
DEPARTAMENTO
DE COCHABAMBA
Colomi
Segunda-feira - A ministra da Defesa, Cecilia Chacón,
deixa o governo por discordar da ação dos policiais
Ontem - O vice-ministro de Regime Interior pede
demissão. A diretora nacional de Migração, María René
Quiroga, apresenta sua renúncia por discordar da maneira
como a polícia tratou do caso. Após responsabilizar
orenti, deixa o
Farfán, o ministro do Interior, Sacha Llorenti,
cargo. Também deixa o governo Roxana Liendo,
o
coordenadora do Sistema de Informação
Coch
Cochabamba
ba
Santa
Cruz
Iquiquee
Vila Tunari
BRASIL
BOLÍVIA
LA PAZ
Aricaa
Chimoré
BAIXAS POLÍTICAS
OS POVOS DO PAÍS
DEPARTAMENTO
DE BENI
Isinota
• 1.500 indígenas caminham desde 15 de agosto até La
Paz contra a obra. Após a repressão de domingo, estão
ganhando adesões
• A Central Operária Boliviana, maior organização sindical
do país, convocou uma paralisação nacional para hoje
A Bolívia tem 36 etnias indígenas,
com língua e cultura próprias
O país reconhece as 36 línguas,
mais o castelhano, como idiomas oficiais
• Quéchuas e aimarás são as etnias mais numerosas,
representando, respectivamente 32% e 18% da população de 9,3
milhões de bolivianos. Em seguida vêm os guaranis
• Os aimarás vivem em condições de pobreza extrema. Apesar disso,
são a etnia mais influente. Morales é aimará. Vivem principalmente em
La Paz, Oruro e Potosi. Segunda etnia mais influente, os quéchuas se
concentram em Cochabamba e Chuquisaca
• Os guaranis são formados pelos grupos guarayos, pausernas, sirionós,
chiriguanos, matacos, chulipis, taipetes, tobas e yuquis. Como os
mojeños, encontram-se nos departamentos de Santa Cruz, Beni e Pando
San Ignacio
de Moxos
Monte
Grande
PROTESTOS
O BNDES financia US$ 332
milhões (dos US$ 420 milhões)
da construção de uma estrada
de mais de 300km, ligando a
região de Chapare, ao sul de La Paz,
a San Ignácio de Moxos, a sudoeste da
capital, como parte do Corredor Bioceânico
– idealizado para ligar o Porto de Santos
(SP), no Oceano Atlântico, ao de Iquique
(Chile), no Pacífico. A estrada foi dividida
em três trechos, um dos quais atravessa o
Tipnis, onde vivem 64 comunidades
indígenas, em sua maioria chimanes,
yuracarés e mojeños. Ela implicará na
perda de 43% da cobertura florestal do
parque. Os indígenas temem o avanço dos
agricultores com a estrada
CHILE
Rodovia Bioceânica
Corumbá
Campo
Grande
RODO
VIA B
IOCE
ÂNIC
A
PARAGUAI
ARGENTINA
AR
OPINIÃO
Mudança no traçado
pode tornar a estrada
inviável, diz OAS
PÉ DE GUERRA
COMPLICA-SE Evo Morales. Atraiu o apoio
de seus iguais, os indígenas, para ser eleito
e se reeleger.
nacional. Mas, na hora H, falou mais alto
sua condição de líder sindical cocaleiro.
E OS recompensou com uma Bolívia pluri-
ao populismo salvacionista.
●
São Paulo
Santos
A VIDA real, mais cedo ou tarde, se impõe
Janaina Lage
[email protected]
.
Uma eventual mudança no traçado da estrada que liga Villa Tunari a San Ignacio de
Moxos pode tornar a obra inviável economicamente, disse ontem o diretor da Área
Internacional da construtora OAS, César
Uzêda. Ele explica que a estrada tem extensão total de cerca de 300 quilômetros. O
trecho dois, que está em discussão na Bolívia, representa quase 47% da obra e metade dele passa por uma reserva indígena:
— Existe alternativa no trajeto, mas isso
aumentaria muito o tamanho da estrada.
Economicamente ela poderia se tornar inviável. Estamos falando de um parque de
1,1 milhão de hectares. Isso resultaria em
mais 150 quilômetros de construção.
Uzêda explica que a construção dos trechos um e três, que não passam pela reserva, continuam em andamento. Ele ressalta que o governo da Bolívia é soberano
para decidir o futuro do projeto, com manutenção ou alteração do traçado. Atualmente, cerca de 1.200 pessoas trabalham
na obra. A previsão de conclusão integral
da estrada está prevista para 2014. O trecho que passa pela reserva ainda não tem
licenciamento ambiental e tinha início de
construção estimado em julho de 2012.
O financiamento de US$ 332 milhões
aprovado pelo BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social) representa cerca de 80% do custo total da
obra e ainda não foi liberado. Caso o traçado seja alterado em decorrência do referendo popular o projeto deverá ser reapresentado ao banco. O BNDES afirma que
é cedo para comentar o episódio, mas esse
é o procedimento normal em caso de alterações em obras de infraestrutura. Segundo Uzêda, o financiamento foi dividido
de acordo com os trechos. Mesmo que a
discussão sobre a passagem pela reserva
continue, isso não impede o financiamento
a exportações para os outros trechos.
Para Emílio Telleria, diretor da Câmara
de Comércio Brasil-Bolívia, a principal importância do projeto, que faz parte do chamado Corredor Bioceânico, planejado para
ligar o porto de Santos, no oceano Atlântico ao de Iquique (Chile), no Pacífico, é a
integração da economia boliviana:
— O caminho abre oportunidades para
as pessoas se estabelecerem ali, isso aumentaria a integração social.
Os fatores que preocupam os índios são
justamente a perspectiva de maior povoamento e a expansão da fronteira agrícola.
●
David Mercado/ Reuters
Manifestantes pedem a
renúncia do presidente
A atitude do Executivo de mostrar-se alheio à
violenta repressão exercida contra os indígenas
foi considerada inadmissível pelos opositores. O
ministro do Interior, Sacha Llorenti, responsabilizou Marcos Farfán, o vice-ministro da pasta,
mas acabou deixando o cargo à noite, dizendo
que não queria ser “um instrumento da direita”.
Já Farfán divulgou uma carta na qual negou ter
ordenado o ataque.
Paralelamente, deputados do governista Movimento ao Socialismo (MAS) confirmaram o pedido de interpelação de três ministros no Congresso. O ministro da Presidência, Carlos Romero, anunciou a criação de uma comissão interinstitucional para investigar os incidentes de domingo, que, segundo a imprensa local, deixaram
três mortos — entre eles uma criança —, dezenas de detidos e 40 desaparecidos.
— O governo nacional é o primeiro interessado em esclarecer tudo — declarou Romero.
Nas ruas de La Paz e de cidades como Santa
Cruz, os protestos continuam. Na Basílica de San
Lorenzo, em Santa Cruz, 17 pessoas iniciaram
uma greve de fome pedindo a renúncia do presidente. Também há vigílias indígenas na capital
do país e em Cochabamba. Apesar de o governo
ter se mostrado desde o início da gestão como
defensor dos direitos dos indígenas, o desencanto entre membros do setor é cada vez maior.
— Diziam que este seria o governo dos indígenas. Foi uma grande mentira — criticou Fernando Untoja, líder do movimento aimará Ayra.
Ele lamentou que enquanto o conflito se agravava, “Morales estava na Venezuela ou defendendo a Palestina na ONU”. O conflito começou há
quase 45 dias e se tornou uma causa nacional.
— Não se pode governar desta maneira —
afirmou Pedro Montes, dirigente da COB.
O principal sindicato boliviano começou a distanciar-se do governo em 2010, sobretudo após a
aprovação do chamado “gasolinaço”, um aumento dos tributos sobre a gasolina.
Em Genebra, o relator especial da ONU para
os Direitos dos Povos Indígenas, James Anaya,
pediu que o governo abra um canal de diálogo,
em que “os indígenas sejam consultados a fim
de encontrar uma saída pacífica”. ■
●
INDÍGENAS SE abrigam numa igreja de Rurrenbaque: marcha ganha adesão e continua rumo a La Paz
CORPO
A
CORPO
CARLOS CORDERO
‘Todos perderam o medo do governo’
● BUENOS AIRES. O presidente Evo Morales
pagará um alto custo político pela repressão
aos indígenas. A opinião é do analista político
e professor Carlos Cordero, da estatal Universidad Maior de San Andrés, em La Paz. Segundo ele, a Bolívia está presenciando um movimento de reacomodação de suas forças políticas e cada vez está mais claro que o governo perdeu parte de sua base de sustentação.
O GLOBO: Onde pode terminar esta nova
crise política boliviana?
CARLOS CORDERO: Não imaginamos, ainda, uma queda do governo. Mas o presidente
pagará um altíssimo custo político por seus
erros, sobretudo pela repressão aos indígenas. Morales já estava pensando em buscar
um novo mandato após 2014, mas esta crise
poderia pôr fim a seu projeto de permanência
no poder. Ele está perdendo legitimidade.
Muitos setores que antes apoiavam o governo agora estão nas ruas protestando.
CORDERO: Vemos fissuras cada vez mais
●
profundas na base de apoio do governo. Estamos presenciando um movimento de reacomodação das forças políticas e cada vez está
mais claro que o governo perdeu parte de sua
base de sustentação. Os sindicatos, a Igreja,
os indígenas, todos perderam o medo do governo e se atrevem a enfrentá-lo.
Até quando continuarão os protestos?
CORDERO: As pessoas estão muito irritadas,
querem que o Executivo assuma sua responsabilidade. Os indígenas não querem mais
diálogo, querem ser reconhecidos.
●
Há divisões no movimento indígena?
CORDERO: Sim, por um lado temos os indígenas que querem proteger o meio ambiente.
Por outro, os chamados colonizadores: grupos de quéchuas e aimarás que querem o desenvolvimento do campo boliviano, estradas,
novos comércios, novas cidades. Esse grupo
está sendo respaldado pelo governo e está
por trás da repressão. O governo não está sabendo lidar com estas diferenças. (J.F)
●
.
Download

pdf da matéria. - Povos Indígenas no Brasil