FERREIRA GULLAR, A INQUIETAÇÃO DE UMA GRANDE VOZ
Erika Akime Tawada1
Resumo: O presente artigo propõe-se a revisitar, de forma breve e pontual, alguns
dos momentos percorridos pelo poeta Ferreira Gullar que foram importantes para a
história da literatura brasileira e para o amadurecimento da poesia gullariana,
fazendo desse poeta um dos grandes nomes da poesia contemporânea. Será
observada, também, em alguns de seus poemas, a recorrência de temas que
constituem a base de sua produção poética.
Palavras-chave: Ferreira Gullar, literatura, contemporâneo, poesia.
Abstract: This study proposes to revisit, briefly and punctually, some of the moments
experienced by the poet Ferreira Gullar that were important to the history of Brazilian
literature and for the maturation of the gullariana poetry, making this one of the great
names of contemporary poetry. In addition, it's going to be observed in some of his
poems, the recurrence of the themes that form the basis of his poetry.
Keywords: Ferreira Gullar, literature, contemporary, poetry.
Quando comecei a escrever, só conhecia os poetas de livro, de
modo que, para mim, estavam todos mortos. Se apareciam nos
livros, é porque estavam mortos (risos). Anos depois, quando
arrisquei os primeiros versos, perguntei-me por que resolvera
me dedicar a uma profissão de defuntos, por que insistia em
querer ser poeta... (SECCHIN et al., 1998)
O trecho apresentado faz parte de uma entrevista concedida por Ferreira Gullar,
na tarde do dia 19 de fevereiro de 1997. O poeta resgata, entre as lembranças de sua
juventude, um momento de descoberta e ingenuidade: seus primeiros passos rumo ao
1
Graduada em Letras-Licenciatura Plena, pós-graduanda em Comunicação: Linguagens
Midiáticas, Centro Universitário Barão de Mauá, CEP: 14071-430 – Ribeirão Preto – SP – E-mail:
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universo das palavras, o início de seu encantamento pela linguagem, pautado pela
concepção de que os poetas de seus livros não viviam no mesmo tempo que o dele.
José Ribamar Ferreira é o nome de registro de Ferreira Gullar. Nascido em São
Luís do Maranhão, hoje, aos 82 anos, é considerado um dos melhores poetas de nosso
tempo, senão, como afirma Pedro Dantas: “a última grande voz significativa da poesia
brasileira” (LAFETÁ, 1983, p. 63). Uma afirmação como essa nos faz pensar na
importância da obra do poeta. Quais caminhos percorreu aquele jovem que não
compreendia a sua insistência em dedicar-se a uma “profissão de defuntos”?
Ferreira Gullar carrega consigo o mesmo espírito questionador de quando jovem,
a mesma ânsia pelo saber e a inquietação que lhe é própria. Mas veremos que a sua
poesia passa por processos de amadurecimento conforme ele próprio. O poeta em sua
trajetória, assemelha-se à Bárbara, personagem que dá nome ao conto de Murilo Rubião
(1981) e que é imagem do desejo insaciável, pois, uma vez que ele, Ferreira Gullar,
depara-se com as possibilidades da linguagem, ele as experimenta, julga-as esgotadas e
intenta pela inovação, é o desejo pelo inusitado que o move. Ao mesmo tempo, o poeta
também se demonstra como o narrador do conto, marido de Bárbara, às vezes um pouco
relutante, mas sempre persistente e obstinado, parecendo até mesmo inconsequente em
sua busca pela satisfação, que lhe é momentânea, pois o espírito inquieto e subversivo
do poeta, não permite uma acomodação, que em seu caso, pode ser de ordem estética,
crítica, política ou cultural.
Dentro do clima esteticista da geração de 45, mas precisamente em 1949,
Ferreira Gullar publica seu primeiro livro, Um pouco acima do chão, que segundo o
próprio poeta, irradia uma ingenuidade absoluta. Nesse período, Ferreira não tivera
contato com nada parecido com o que propunha o movimento modernista, que já era
objeto de estudo nas universidades, o que poderia explicar a inocência literária do poeta,
como fica claro na entrevista citada (SECCHIN et al., 1998). Pouco tempo depois,
Gullar depara-se com Poesia até agora, de Carlos Drummond de Andrade e que lhe
instigou a querer entender essa nova forma de fazer poesia.
Então comecei a ler para entender alguma coisa. Li Otto Maria
Carpeaux, Álvaro Lins, O empalhador de passarinho, do Mário
de Andrade, e por aí fui. A mudança ocorreu porque mergulhei
fundo na coisa. A partir de então, comecei a entender o que era a
poesia moderna [...] (SECCHIN et al., 1998)
Em 1954, o poeta maranhense demonstra através da publicação de A luta
corporal, uma poesia surpreendentemente madura para um jovem de 23 anos e
extremamente significativa para o período em que a obra foi escrita. Os poetas de então,
como descreve Lafetá (1983), passavam por um processo de recalque criativo, pois a
repressão do Estado Novo fazia com que eles ficassem confinados ao alheamento
estético, que podia se ver no uso de uma linguagem cuidadosamente rebuscada, que
distanciava a arte da realidade. Ferreira Gullar demonstra a sua inquietude ao empregar
pesquisas com a linguagem, uma forma de questionar o rumo estético desse período,
que ele mesmo não conseguiu enfrentar. Talvez fosse essa uma das lutas referida no
título da obra. Percebe-se aqui, uma característica que se tornará própria do poeta e que
lhe acompanhará em outros períodos, o engajamento por questões de ordem política e
cultural. Mas, também, a luta expressa seria a da pluralidade de vozes em tensão, as
diversas vozes do poeta que querem emergir para o universo da linguagem.
[...] o livro é em si mesmo uma espécie de cosmogonia pessoal,
em que se historia uma exploração que vai dos reflexivos versos
iniciais dos “Sete poemas portugueses” – versos em que se
equilibram símbolos e ritmos de uma retórica poética tradicional
– à forma agônica das contorções dos poemas finais, como
“Roçzeiral”. (VILLAÇA, 1998, p. 89)
Em A luta corporal (1954), podemos reconhecer três elementos que serão
recorrentes na poesia de Gullar e que conforme Lafetá (1983), fundamentaram sua
pesquisa poética: o eu, a linguagem e o tempo.
As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?
Paremos a pêndula. Deteríamos, assim, a
morte das frutas?
(...)
O dia
comum, dia de todos, é a
distância entre as coisas.
Mas o dia do gato, o felino
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis
é passar. Não entre os móveis. Passar como eu
passo: entre nada.
(...)
Era preciso que
o canto não cessasse
nunca. Não pelo
canto (canto que os
homens ouvem) mas
porque cantando o galo
é sem morte.
(GULLAR, 1975, pp. 26-27)
Ao analisarmos os versos apresentados, que fazem parte do poema As peras, nos
deparamos com um dos temas que constitui a base da poesia de Gullar, o tempo. Nos
primeiros versos, percebe-se, por exemplo, que o poeta vê na pera, que é imagem da
efemeridade, não a vida que ela possui, mas a morte que lhe consome. Há, também, o
questionamento sobre a existência de cada coisa, pois o relógio não é capaz de medir o
tempo da pera, assim como não é capaz de medir o tempo do eu, pois eles se consomem
sozinho, vejamos que a imagem da fruta é metáfora da fugacidade da vida, a
constatação é a de que o tempo de cada um é único e ele nunca poderá ser
compartilhado (“As peras se consomem/ no seu doirado/ sossego...”).
Ferreira Gullar, aqui, retoma ao eterno desejo da plenitude, que é a comunicação
absoluta entre as coisas, entre os seres, porém constata não ser possível, pois “O dia/
comum, dia de todos, é a/ distância entre as coisas”. Plenitude essa que o poeta almeja
encontrar também em sua poesia, pois ao cantar a existência das coisas, ele procura
descobrir a sua própria existência e intenta que seu canto alcance outros, esperando que
a linguagem dê conta de dizer tudo, mas ele se depara com a insuficiência do discurso,
ou seja, ele deseja que sua poesia encontre o outro com a mesma força do instante de
sua criação, porém, esse canto essencial somente existe para o outro se estiver na forma
de linguagem, que por sua vez, dispõe de conceitos e nomes.
[...] anseio de totalidade e consciência de que ela é impossível; desejo
de imanência do sentido das coisas, e compreensão de que o sentido é
transcendente, alça-se para fora do sujeito e depende de algo que está
além dele; procura da harmonia geral, e encontro com um universo de
oposições e indiferenças, em que o desejo humano esbarra no
alheamento do outro, num mundo de mônadas, de coisas fechadas em
si mesmas. (LAFETÁ, 1983, p. 76)
A Luta Corporal foi diagramado pelo próprio Gullar, que valorizou o branco da
página, recebendo elogios de João Cabral de Melo Neto. Esse mesmo livro o levou a
conhecer os poetas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, fundadores do
concretismo, movimento do qual ele faria parte. Ferreira Gullar viu nesse movimento
uma nova possibilidade para sua poesia, já que tendo julgado esgotado as formas de
escrever, poderia, por meio do concretismo, continuar a falar sobre seus mesmos temas:
a subjetividade, o tempo e a linguagem. Mas logo ele romperia com os concretistas
paulistas, que levaram a face objetiva desta poesia ao limite com a publicação do artigo
intitulado “Da psicologia da Composição à Matemática da Composição” (1947).
Seus “Poemas Concretos/Neoconcretos”, escritos entre 1957 e
1958, além de estarem entre os mais belos que a nova poética
produziu, testemunham o instante de atualização da cultura
brasileira, a construção do poema deixa de ser o exercício de
tensões subjetivas, projetadas na linguagem, para procurar a
objetividade do produto acabado, mercadoria no universo do
consumo. (LAFETÁ, 1998, pp. 59-60)
Como crítica a essa total negação da subjetividade, Ferreira Gullar desenvolve a
“teoria do não objeto”, que como ele mesmo relata na entrevista: é uma poesia muito
mais audaciosa do ponto de vista da ruptura com as formas tradicionais (SECCHIN et
al., 1998), ou então, “uma experiência situada entre o ritual e o happening, em que os
poemas são ‘coisas’ feitas para serem experimentadas, consumidas rapidamente”
(LAFETÁ, 1998, p. 93), em que ele mais uma vez chega ao extremo, ao ponto de
explodir sua construção artística poucos minutos após a sua exposição. É uma crítica ao
consumismo que toma conta da época, que vai além dos bens materiais industrializados,
pois a arte também assume o seu papel como mercadoria perecível. Percebemos
novamente, a face engajada de Ferreira Gullar, que, até em suas opções estéticas,
preocupa-se com questões políticas, característica do poeta que encontra forças nas
formulações populistas de João Goulart, que pretendia em seu governo, realizar uma
grande reforma social sem ameaçar o aceleramento do desenvolvimento econômico.
Nesse período, Gullar aproxima-se da literatura de cordel, acreditando ser a linguagem
mais compatível com a realidade do país e ingressa na experiência do discurso populista
do CPC, Centro Popular de Cultura, tornado-se um dos representantes dos artistas
politicamente engajados da década de 60. Mas é justamente quando o poeta está mais
distante de seu país, que ele parece, de certo modo, encontrar uma forma mais adequada
de poetizar as questões sociais, que não serão mais centrais, mas evocadas dentro da
poesia através de suas lembranças. Exilado, Ferreira Gullar produz duas de suas
principais obras, Dentro da Noite Veloz e Poema sujo, publicados em 1975 e 76,
respectivamente.
Em Poema Sujo, o poeta mergulha em suas memórias, nas passagens de sua
infância, retoma aquele ambiente de São Luís, produzindo na poesia uma cena familiar,
mas ao mesmo tempo, brasileira. Gullar, nesse livro, aproxima-se da almejada
harmonia, forma e comunicação.
[...] buscando uma linguagem que equilibre rigorosamente a
liberdade individualista da expressão e a necessidade
socializante de comunicação. (LAFETÁ, 1998, pp. 62-63)
Nesse período, o poeta opta por uma aproximação com a poesia de Drummond,
Manuel Bandeira e Mário de Andrade. A passagem do tempo, a transitoriedade das
coisas e o eu são temas que continuam vivos em sua poesia, que ainda mantém a forma
ousada, esteticamente, de construir uma expressão livre, porém tensa de emoção. O
poeta encontra na sua solidão, a poesia na forma mais plena, objeto pelo qual ele tanta
procurava. O seu poema é então sujo, pois nele estão todas as experiências de sua vida,
não só individual como também literária, animadas por uma linguagem desprovida de
artifícios.
Após doze anos de silêncio, Gullar em 1999 publica Muitas vozes, obra de
maturidade do poeta, que no auge dos seus 70 anos, assume todas as vozes que lhe
acompanharam durante a sua trajetória. O poema “Não-Coisa”, por exemplo, retoma as
temáticas de Gullar, como a unicidade de cada coisa, o tempo próprio que cada um
carrega em si. As indagações sobre a linguagem e a poesia, também são retomados
como podemos verificar nos versos seguintes: “Como enfim traduzir/ na lógica do
ouvido/ o que na coisa é coisa/ e que não tem sentido?” Mas, notemos também que,
assim como em outras obras, muitos dos poemas de Gullar que compõe Muitas Vozes,
são ainda mais sinestésicos, instigando fortemente os sentidos humanos na leitura de
seus poemas. Por meio deles o poeta despeja na linguagem as suas sensações com
intuito de incitá-las também em nós, maneira de “Incutir na linguagem/ Densidade de
coisa/ Sem permitir, porém,/ Que perca a transparência/ Já que a coisa é fechada/ à
humana consciência”. Nota-se que Ferreira Gullar, após tantas experimentações, ainda é
capaz de produzir algo novo, que sempre nos surpreende pela linguagem dura e certeira,
mas ainda cheia de poesia, mesmo quando retrata coisas presentes e cotidianas.
Por amor à vida e ao canto de vitalidade absoluta que, por isso
mesmo, nunca se realiza plenamente, Gullar relativiza o alcance
do poema e o do próprio corpo. Poema e corpo, aliás, quase se
confundem, quando a natureza das palavras é entendida e
tomada como abrigo possível de uma expansão corporal. Com a
prática dessa relativização, o poeta de Muitas vozes mantém
acesos no horizonte (em alargamento que sublima e adia a
morte) os critérios de um desejo sempre insatisfeito, porque
insatisfatória é toda experiência em sua singular beleza, tomada
como indício e promessa do belo absoluto, avalizado pela morte.
(VILLAÇA, 2000, p. 228)
Essa inquietação do poeta sempre em busca da escrita criativa nos proporciona
mais uma obra, Em alguma parte alguma (2010), seu último livro que prossegue com as
reflexões poéticas sobre a existência.
Hoje, o homem maduro, poeta consagrado, talvez saiba responder à pergunta de
quando jovem, sobre a sua insistência em querer ser poeta, ou então, consiga explicar a
inquietação que sempre lhe acompanhou, essa ânsia pela inovação e pela criação que o
impulsionou durante todos esses anos em sua pesquisa poética, ou ainda, simplesmente,
não tenha a resposta, pois assim como a Bárbara do conto de Murilo Rubião, o sentido
talvez não esteja no porque de seus desejos, mas o desejo é o que lhe mantém vivo, a
sua essência é desejar – explicação para sua existência –, pois uma vez esgotada as
possibilidades, só restava a ele, inovar, criar, esgotar e inovar mais uma vez, mas
diferente da personagem do conto, ao invés de engordar, o menino inocente amadureceu
e tornou-se o grande nome da poesia contemporânea.
Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua,
porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la.
(RUBIÃO, 1981, p. 33)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, A. Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996.
GULLAR, Ferreira. A luta corporal. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1975.
GULLAR, Ferreira. Muitas Vozes: poemas. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
GULLAR, Ferreira. Poesia Sempre, Ano 6, n. 9, março de 1998. Antônio Secchin, Ivan
Junqueira, Adriano Espínola, Jorge Wanderley, Moacyr Félix, Neide Archanjo e Suzana
Vargas [entrevista].
LAFETÁ, J. L. e outros. Artes Plásticas e Literatura. O Nacional e o Popular. São
Paulo: Brasiliense, 1983.
RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. 8. ed. São Paulo: Ática, 1981.
VILLAÇA, Alcides. Cadernos de Literatura Brasileira. Instituto Moreira Salles. nº 6,
setembro, 1998.
VILLAÇA, Alcides. Revista de Literatura Brasileira. USP. 34 ed. nº 1, 2000.
VILLAÇA, Alcides. Revista Encontros com a Civilização Brasileira. Em torno do
Poema sujo. Rio de Janeiro, nº 6, março, 1979.
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Ferreira Gullar, a inquietação de uma grande voz