ISSN: 1983-8379
Literatura e arte visual em diálogo com a cibercultura
Mara Alice Sena Felippe∗
RESUMO: Os laços entre a página e a tela cada vez se estreitam mais, o que equivale a
dizer que literatura e novas tecnologias eletrônicas convergem para formar um novo tipo de
arte visual que faz repensar a própria noção de cultura. O campo da cultura visual também é
o das tensões que envolvem a escrita e a imagem. As discussões em torno deste trabalho
tratam dessas relações e das mudanças que se apresentam no ambiente chamado de
cibercultura, onde esta arte visual se instala.
Palavras-chave: Arte visual; Literatura; Cibercultura; Imagem
ABSTRACT: The knots between the page and the midia every time are narrowed more,
what it is equal saying which literature and new electronic technologies converge to form a
new type of visual art that makes rethink the notion itself of culture. The field of the visual
culture also is it of the tensions that wrap the writing and the image. The discussions around
this work treat these relations and of the changes that show up in the environment called of
Cyberculture, where this visual art is installed.
Key-words: Visual art; Literature; Cyberculture, Image
Fazer surgir novas forças escondidas nas virtualidades das novas tecnologias, significa
explorar o “campo dos possíveis”, e isso é extrair o sensível do inteligível, o icônico do
simbólico, o tecno-poético do tecno-lógico.
Julio Plaza, Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual
∗
Doutoranda em Estudos Literários pelo programa de pós-graduação em Letras - Faculdade
de Letras da
UFJF.
DARANDINA revisteletrônica – Programa de Pós-Graduação em Letras / UFJF – volume 1 – número 2
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A forte presença da imagem desde que a televisão surgiu como mídia hegemônica no
último século tem suscitado opiniões no meio acadêmico de que se trata de uma área de
conhecimento específica que merece atenção: a da cultura visual. Muitos teóricos do pósmodernismo concordam que um de seus aspectos distintivos é o predomínio da imagem.
Com a ascensão da realidade virtual e da Internet no Ocidente, combinada com a
popularidade globalizada da televisão, videoteipe e filme, essa opinião parece se manter
fortalecida e alvo de muita controvérsia.
Uma questão a ser considerada é que entre a superfície em branco da página e o
espaço - raramente vazio - da tela do computador há mais proximidade do que se poderia
suspeitar à primeira vista. É possível imaginar que as páginas vazias do livro possam sempre
estar à espera das palavras que acionarão os sentidos humanos e se transformarão em
imagens na mente do leitor, enquanto a tela do computador se oferece às imagens em
movimento que serão decodificadas pelo espectador através de palavras. Não
há
como
negar uma tensão entre os campos da escrita e da imagem que sofrem influência da suposta
passagem da chamada civilização da escrita para o predomínio atual da imagem. Há ainda os
que preferem ver as relações entre a imagem e a escrita numa perspectiva histórica. Lúcia
Santaella acredita que a passagem histórica de um paradigma a outro não se dá nunca de
modo abrupto, ou seja, há fatores de mudança que chegam a caracterizar fases mais ou
menos longas de transição entre um paradigma e outro. Outro aspecto é o da mistura entre os
paradigmas, acasalamentos e mistura de linguagens, o que não significa que a instauração de
um novo paradigma implique na supressão dos anteriores (1998, p. 167).
Julio Plaza trata do assunto em três fases: 1- a gravura e a imprensa, que no século
XV estabelece as condições de difusão de imagens; 2- a fotografia, posteriormente, que
mecaniza a reprodução da imagem, mas também o próprio produto; 3- atualmente, quando
se passa do mecânico ao eletrônico (1998, p. 72-88). De fato, é possível encontrar hoje uma
arte abrangente, reunindo técnicas e suportes diversos de expressão, que revelam tensões de
todo o tipo.
A procura por um equilíbrio entre as diversas manifestações artísticas e a redução da
predominância da escrita na poesia e na prosa constitui uma das facetas da vanguarda. Os
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artistas passam a buscar as outras dimensões da poesia, perdidas com a divisão dos gêneros
artísticos através da tecnologia da escrita. Os tipos e as letras passam a ser aceitos em sua
materialidade. As palavras devem existir em liberdade e não presas ao procedimento linear,
fixadas pela sintaxe e pelas convenções gramaticais. O tipo e a escrita libertam-se da
opressão de serem meros suportes de sentido. Essas tentativas têm no Futurismo o seu
laboratório de experiência. O Dadaísmo também marca um divisor de águas na concepção
da obra de arte. Exemplos desses novos procedimentos também são observados nas obras
dos concretistas alemães, japoneses, suíços e brasileiros; e, mais recentemente, pelos
experimentalismos poéticos viabilizados pelo computador.
A escrita e as artes visuais estão intimamente vinculadas, haja vista a estreita relação
entre o cinema e a literatura, que é, de fato, uma via de mão dupla ou, como diria Calvino
“um pouco assim como o problema do ovo ou da galinha” (1993, p. 102). Enquanto a
literatura se apóia na expressão verbal, a imagem visual constitui matéria básica da
cibercultura, mas esses domínios se envolvem a tal ponto que, muitas vezes, se torna difícil
determinar suas fronteiras.
Ao refletir sobre os processos imaginativos em seu ensaio sobre a Visibilidade,
Calvino direciona os refletores para o natural entrelaçamento existente entre a literatura e as
artes visuais, mostrando que esses processos podem se realizar de duas maneiras: “O que
parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte de imagem visiva para chegar à
expressão verbal” (1993, p. 99).
O primeiro processo corresponde, para ele, ao ato de leitura: “Lemos, por exemplo,
uma cena de romance ou reportagem de um acontecimento num jornal e, conforme a maior
ou menor eficácia do texto, somos levados a ver a cena como se esta se desenrolasse diante
dos nossos olhos, se não toda a cena, pelo menos fragmentos de detalhes que emergem do
indistinto” (1993, p. 99).
A imagem, o movimento e o som são hoje habitualmente considerados recursos
inerentes ao computador. Todavia, não se pode negar que mesmo antes do surgimento dos
meios tecnológicos que possibilitaram a sua existência, tais elementos já integravam o
fenômeno literário, graças à capacidade da linguagem em descrever e sugerir aspectos que
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tocam a sensibilidade e acionam os mecanismos de nossa imaginação. Conforme ressalta
Calvino em relação ao cinema, “a imagem que vemos na tela também passou por um texto
escrito, foi primeiro ‘vista’ mentalmente por um diretor, em seguida reconstruída em sua
corporeidade num set para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme” (1993, p. 99).
Na realidade, enquanto a literatura possibilita a projeção da imagem, do movimento e
do som na mente do leitor, os meios tecnológicos facultam sua plena exteriorização, por
meio da aparição de imagens em uma tela – também a do computador - que se oferece à
contemplação do olhar e à apreensão dos sentidos. O surgimento do computador com
incontáveis recursos, não há dúvida, possibilitou um aprofundamento dessa relação, que já
era naturalmente estreita, entre o leitor e o espectador de televisão ou usuário do
videocassete.
Esse intercâmbio, como se pode notar, não se restringe ao diálogo entre literatura e
cinema. O que hoje se denomina, à luz dos conceitos peirceanos, de intertextualidade
semiótica, é fenômeno que ultrapassa o âmbito dos meios técnicos, atingindo em diferentes
graus e épocas, todo o campo das artes: literatura, teatro, música, dança, pintura, arquitetura,
escultura, etc .
Se, por um lado, esse processo de aproximação entre linguagens diversas não é fato
recente, não há como negar que o surgimento dos artefatos digitais são, em grande medida,
responsáveis pelas profundas transformações ocorridas nas últimas décadas, inclusive no
panorama das artes, por promoverem significativas alterações na visão de mundo, na forma
de o apreender, sentir, pensar, enfim, de traduzi-lo em palavras e imagens. Através dos
sofisticados processos de reprodução que a técnica disponibilizou, os objetos estéticos, antes
restritos ao conhecimento e à contemplação de poucos, tornam-se acessíveis a um número
cada vez maior de pessoas.
Da mesma forma que a fotografia produziu um profundo impacto nas iconografias do
século XIX, a humanidade assiste na contemporaneidade a uma transformação radical no
que se refere à produção de imagens. Isso se deve à mudança radical de sistemas produtivos,
não mais o domínio de sistemas artesanais ou mecânicos, mas sim sistemas eletrônicos que
transmutam as formas de criação, geração, transmissão, conservação e percepção de
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imagens. Segundo Júlio Plaza, “depois das imagens de tradição pictórica, das imagens préfotográficas e das imagens fotoquímicas – em particular a foto e o cinema -, surgem imagens
de terceira geração, ou seja, as imagens de síntese, as imagens numéricas e as imagens
holográficas” (1998, p. 72).
Numa passagem da cultura material para a cultura imaterial, própria da arte
tecnológica, os artistas substituem artefatos e ferramentas por dispositivos em múltiplas
conexões de sistemas que envolvem modems, telefones, computadores, satélites, redes. A
circulação e a recepção dessa arte coloca em xeque até mesmo figuras e estruturas de poder,
como o papel do artista e sua genialidade, a figura do marchand, o espaço sagrado de
galerias e museus, a mídia como instância que homologa uma arte dita qualificada. Trata-se
de adentrar em um caminho repleto de bifurcações, o caminho da Cibercultura.
O espaço em que se instalam essas imagens é mais do que o bidimensional,
tridimensional ou o arquitetônico, é o ciberespaço, o espaço de computadores, o espaço de
ambientes digitais. Estas imagens de síntese não são mais resultantes do olhar ou geradas
por um olho mecânico de câmera que o prolonga, mas imagens que se escrevem através de
cálculos matemáticos e dialogam com o cérebro eletrônico dos computadores.
Nesse mundo digitalizado a imagem perde sua exterioridade de espetáculo para abrirse a essa imersão. A representação é substituída pela virtualização interativa de um modelo,
a simulação sucede a semelhança. O desenho, a foto e o filme ganham profundidade,
acolhem o explorador ativo de um modelo digital, até uma coletividade de trabalho ou de
jogo envolvida com a construção cooperativa de um universo de dados. Como explica Lévy:
[...] as imagens e o texto são, cada vez mais, objeto de práticas de sampling e
de remixagem. Na cibercultura, qualquer imagem é potencialmente matériaprima de uma outra imagem, todo texto pode constituir o fragmento de um
texto ainda maior, composto por um ‘agente’ de software durante
determinada pesquisa (1999, p. 150).
Esta situação permite o surgimento de um novo tipo de artista, que estreita seus laços
com cientistas e técnicos e deixa de ser o autor solitário que produz suas peças com
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ferramentas ou mesmo com caneta e papel. O artista utiliza circuitos eletrônicos, dialoga
com memórias, pensa a construção de interfaces, recursos que possibilitam a circulação das
informações que podem ser trocadas, negociadas, fazendo com que a arte passe de produto
de expressão do artista para evento comunicacional.
Diana Domingues, especialista em arte interativa, acredita que as novas tecnologias
fortalecem a noção de arte enquanto “porta aberta” ao espectador:
O espectador não está mais diante da ‘janela’, limitado pelas bordas de uma
moldura, com pontos de vista fixos. Não é mais alguém que está fora e que
observa uma ‘obra aberta’ para interpretações. Com a interatividade própria
das tecnologias digitais e comunicacionais surge a metáfora da ‘porta aberta’.
[...] O conceito de ‘obra aberta’ ganha o seu sentido pleno, [...] a ‘obra’ abrese para mudanças de natureza física. Interatividade torna-se, portanto, um
conceito operacional, e, virtualidade, na arte interativa, é disponibilidade,
atualização, estado de ‘emergência’ (1997, p. 23).
Segundo André Lemos1, nesse âmbito, situa-se também a discussão sobre interface,
ou seja, a zona de contato entre o homem e a máquina, onde se articulam os espaços de
comunicação entre realidades distintas, entre sistemas que não utilizam a mesma linguagem.
Recursos como estes permitem ao artista oferecer situações sensíveis com
tecnologias, demonstrando que as relações do homem com o mundo mudaram
profundamente depois que a revolução da informática e das comunicações colocou a
humanidade diante do numérico, da inteligência artificial, da realidade virtual, da robótica e
tantos outros artefatos presentes no cenário mundial nas últimas décadas do século XX. Para
Domingues,
O que modifica radicalmente o cenário da arte é, sem dúvida, a possibilidade
de estarmos imersos em um novo mundo, híbrido, onde nosso corpo se
comunica com tecnologias interativas e suas noções de complexidade,
emergência, feedback e auto-organização, recebendo respostas em tempo real
e processando novas sínteses sensoriais (2001, p. 12).
1
Ver LEMOS, André. As estruturas antropológicas do ciberespaço. Texto disponível em
http://www.ufba.br/hipertexto
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Logo de início surge como ponto de reflexão o fato de que a natureza dos trabalhos
artísticos contemporâneos não se presta a registros com imagens estáticas, já que possuem
como características principais funções multimídia e interativa. Nas interações com as
máquinas, mesmo na mera geração de imagens por computador, as formas estão em
constante devir. As experiências interativas são resultantes de atos de um indivíduo a partir
de determinados comportamentos. As manifestações artísticas com tecnologias são, em sua
maioria, efêmeras e variáveis, mutantes, um campo de possibilidades que se altera conforme
as escolhas ou programas dos dispositivos e as variáveis dos sistemas.
Essa arte visual interativa age de forma complexa, porque não representa mundos,
mas simula outros tipos de mundo, gera novas formas de vida. A contemplação de uma
imagem ou de um objeto é trocada por campos de relação entre corpos e computadores,
entre redes, entre o corpo e as máquinas, entre vários corpos conectados, amplificados em
dimensões planetárias, entre mentes e softwares.
No cenário tecnológico da chamada cibercultura o ser humano experimenta o
fenômeno da comunicação interagindo e recebendo respostas em tempo real dos sistemas
artificiais. Os artistas procuram, como explica Domingues, “enfrentar os desafios do
hardware e software para criar além do mouse, do teclado e da tela” (1997, p. 13).
Através do modo interativo ou “conversacional”, a arte visual abre-se ao mundo
exterior e deixa de funcionar em circuito fechado. É possível então, agindo sobre a imagem,
agir sobre o próprio modelo e, em conseqüência, sobre a realidade virtual por ele simulada.
Esta interatividade tornada possível pela máquina permite testar o modelo, modulá-lo.
Para Edmond Couchot, a ordem numérica que rege esta forma de arte torna possível
uma hibridação quase orgânica das formas visuais e sonoras, do texto e da imagem, das
artes, das linguagens, dos saberes instrumentais, dos modos de pensamento e de percepção.
“Esse possível não é forçosamente provável: tudo depende da maneira pela qual
especialmente os artistas farão com que as tecnologias se curvem a seus sonhos” (1993, p.
47).
Exemplo dessa experiência pode ser verificado no site http://artecno.ucs.br/insnakes.
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O Grupo de Pesquisa Integrada Artecno – Novas Tecnologias nas Artes Visuais, coordenado
pela artista e professora da Universidade de Caxias do Sul, Diana Domingues, desenvolveu
o projeto INS(H)NAK(R)ES, no qual a interação de artistas, biólogos, cientistas da
computação e da automação industrial da Universidade nos convidam a participar do mundo
das cobras. Isso é possível através da telepresença por webcâmeras, interfaces
computacionais, textos hipermídia, além da possibilidade de ação remota através da
robótica.
Participantes remotos, conectados ao site, podem deslocar-se no mesmo espaço físico
que cobras vivas, quando incorporam o corpo da cobra/robô, chamada Ângela. No corpo do
robô está acoplada uma webcâmera que transmite imagens do ambiente. Usando as setas do
teclado do computador podem ser transmitidas ordens de movimento para o robô que as
interpreta, resultando em trajetórias no serpentário. Poeticamente, é oferecida ao visitante a
possibilidade de viver com as cobras, o que provoca uma forte dimensão estética. Através da
telepresença é possível estar no ambiente delas e penetrar, rastejando, na vida natural das
cobras, aprendendo sobre seus hábitos e comportamentos.
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Referências Bibliográficas
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. Tradução Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação. In: PARENTE, André (Org.).
Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. Tradução Rogério Luz et alii. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1993. P. 37-48.
DOMINGUES, Diana. Arte e Tecnologia: a história de uma transformação cultural. In: ___
(Org.). A Arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora
da UNESP, 1997.
LEMOS, André. As estruturas antropológicas do ciberespaço. Texto disponível em
http://www.ufba.br/hipertexto
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34,
1999.
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PLAZA, Julio. As imagens de terceira geração, tecno-poéticas. In: PARENTE, André
(Org.). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Tradução Rogério Luz et alii. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1993. P. 72-88.
SANTAELLA, Lúcia. Três paradigmas da imagem. In: OLIVEIRA, A. C. M. & DE BRITO,
Y. C. F. (Orgs.) Imagens técnicas. São Paulo: Hacker Editores, 1998.
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