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CAPÍTULO I
DA COMICIDADE EM GERAL/
A COMICIDADE DAS FORMAS
E A COMICIDADE DOS MOVIMENTOS/
FORÇA DE EXPANSÃO DA
COMICIDADE
O que significa o riso? O que há no fundo do risível? O que haveria de comum entre uma careta de
palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vaudeville, uma cena de comédia fina? Que destilação
nos dará a essência, sempre a mesma, da qual tantos
diferentes produtos extraem indiscreto odor ou delicado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristóteles, estiveram às voltas com esse probleminha, que
sempre se esquiva aos esforços, escorrega, escapa e
ressurge, impertinente desafio lançado à especulação
filosófica.
Nossa escusa, para abordar o problema, é que não
teremos em vista encerrar a invenção cômica numa
definição. Vemos nela, acima de tudo, algo vivo. Por
mais ligeira que seja, nós a trataremos com o respeito que se deve à vida. Nós nos limitaremos a vê-la
crescer e desabrochar. De forma em forma, por grada-
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ções insensíveis, diante de nossos olhos ela realizará
singulares metamorfoses. Não desprezaremos nada do
que virmos. Talvez, aliás, com esse contato assíduo
ganhemos alguma coisa mais flexível que uma definição teórica: um conhecimento prático e íntimo, como o que nasce de longa camaradagem. E talvez descubramos também que, sem querer, travamos um conhecimento útil. Razoável, a seu modo, até em seus
maiores desvios, metódica em sua loucura, sonhadora,
se me permitem, mas capaz de evocar em sonhos visões que são prontamente aceitas e compreendidas por
toda uma sociedade, por que a invenção cômica não
nos daria informações sobre os procedimentos de trabalho da imaginação humana e, mais particularmente,
da imaginação social, coletiva, popular? Oriunda da
vida real, aparentada com a arte, como não nos diria
ela também uma palavra sua acerca da arte e da vida?
Faremos de início três observações que consideramos fundamentais. Referem-se menos à comicidade
em si do que ao lugar onde esta deve ser procurada.
I
Vejamos agora o primeiro ponto para o qual chamaremos a atenção. Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia;
nunca será risível. Rimos de um animal, mas por ter-
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mos surpreendido nele uma atitude humana ou uma
expressão humana. Rimos de um chapéu; mas então
não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de
palha, mas com a forma que os homens lhe deram,
com o capricho humano que lhe serviu de molde. Como um fato tão importante, em sua simplicidade, não
chamou mais a atenção dos filósofos? Vários definiram o homem como “um animal que sabe rir”.
Poderiam também tê-lo definido como um animal que
faz rir, pois, se algum outro animal ou um objeto
inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o homem lhe
imprime ou ao uso que o homem lhe dá.
Cabe ressaltar agora, como sintoma não menos
digno de nota, a insensibilidade que ordinariamente
acompanha o riso. Parece que a comicidade só poderá produzir comoção se cair sobre uma superfície
d’alma serena e tranqüila. A indiferença é seu meio
natural. O riso não tem maior inimigo que a emoção.
Não quero com isso dizer que não podemos rir de uma
pessoa que nos inspire piedade, por exemplo, ou mesmo afeição: é que então, por alguns instantes, será
preciso esquecer essa afeição, calar essa piedade. Numa sociedade de puras inteligências provavelmente
não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao
passo que almas invariavelmente sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais qualquer acontecimento se prolongasse em ressonância sentimental,
não conheceriam nem compreenderiam o riso. Que o
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leitor tente, por um momento, interessar-se por tudo
o que é dito e tudo o que é feito, agindo, em imaginação, com os que agem, sentindo com os que sentem,
dando enfim à simpatia a mais irrestrita expressão:
como num passe de mágica os objetos mais leves lhe
parecerão ganhar peso, e uma coloração grave incidirá sobre todas as coisas. Que o leitor agora se afaste, assistindo à vida como espectador indiferente:
muitos dramas se transformarão em comédia. Basta
taparmos os ouvidos ao som da música, num salão
de baile, para que os dançarinos logo nos pareçam ridículos. Quantas ações humanas resistiriam a uma
prova desse gênero? E não veríamos muitas delas passar de chofre do grave ao jocoso, se as isolássemos
da música de sentimento que as acompanha? Portanto, para produzir efeito pleno, a comicidade exige
enfim algo como uma anestesia momentânea do
coração. Ela se dirige à inteligência pura.
Mas essa inteligência deve permanecer em contato com outras inteligências. Esse é o terceiro fato
para o qual desejamos chamar a atenção. Não saborearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados.
Parece que o riso precisa de eco. Ouçamo-lo: não é
um som articulado, nítido, terminado; é algo que gostaria de prolongar-se repercutindo de um ponto ao
outro, algo que começa com um estrépito para continuar em ribombo, assim como o trovão na montanha. E no entanto essa repercussão não deve ir ao infinito. Ela pode caminhar no interior de um círculo
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tão amplo quanto se queira; nem por isso o círculo
deixa de ser fechado. Nosso riso é sempre o riso de
um grupo. Ao leitor talvez já tenha ocorrido ouvir,
em viagem de trem ou à mesa de hospedarias, histórias que deviam ser cômicas para os viajantes que as
contavam, pois que os faziam rir com muito gosto.
O leitor teria rido como eles se pertencesse à sociedade deles. Mas, não pertencendo, não tinha vontade alguma de rir. Um homem, a quem perguntaram
por que não chorava num sermão em que todos derramavam muitas lágrimas, respondeu: “Não sou desta
paróquia.” O que esse homem pensava das lágrimas
seria ainda mais aplicável ao riso. Por mais franco que
o suponham, o riso esconde uma segunda intenção de
entendimento, eu diria quase de cumplicidade, com
outros ridentes, reais ou imaginários. Quantas vezes
já não se disse que o riso do espectador, no teatro, é
tanto mais largo quanto mais cheia está a sala; quantas vezes não se notou, por outro lado, que muitos
efeitos cômicos são intraduzíveis de uma língua para outra, sendo portanto relativos aos costumes e às
idéias de uma sociedade em particular? Mas foi por
não se ter entendido a importância desses dois fatos
que se viu na comicidade uma simples curiosidade
em que o espírito se diverte, e no próprio riso um fenômeno estranho, isolado, sem relação com o resto
da atividade humana. Donde as definições que tendem a fazer da comicidade uma relação abstrata entre idéias percebida pelo espírito, “contraste intelec-
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tual”, “absurdidade sensível” etc., definições que,
mesmo convindo realmente a todas as formas da comicidade, não explicariam de modo algum por que o
que é cômico nos faz rir. Por que motivo, com efeito, essa relação lógica particular, tão logo percebida,
nos contrai, nos dilata, nos sacode, enquanto todas as
outras deixam nosso corpo indiferente? Não é por esse lado que abordaremos o problema. Para compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio natural,
que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar
sua função útil, que é uma função social. Essa será –
convém dizer desde já – a idéia diretiva de todas as
nossas investigações. O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma
significação social.
Marquemos nitidamente o ponto para o qual convergem nossas três observações preliminares. A comicidade nascerá, ao que parece, quando alguns homens reunidos em grupo dirigirem todos a atenção
para um deles, calando a própria sensibilidade e exercendo apenas a inteligência. Qual é então o ponto em
particular para o qual deverá dirigir-se a atenção deles? Em que será empregada a inteligência? Responder a essas perguntas será já cercar mais o problema.
Mas é indispensável dar alguns exemplos.
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Um homem, correndo pela rua, tropeça e cai: os
transeuntes riem. Não ririam dele, acredito, se fosse
possível supor que de repente lhe deu na veneta de
sentar-se no chão. Riem porque ele se sentou no chão
involuntariamente. Portanto, não é sua mudança brusca de atitude que provoca o riso, é o que há de involuntário na mudança, é o mau jeito. Talvez houvesse
uma pedra no caminho. Teria sido preciso mudar o
passo ou contornar o obstáculo. Mas, por falta de flexibilidade, por distração ou obstinação do corpo, por
um efeito de rigidez ou de velocidade adquirida, os
músculos continuaram realizando o mesmo movimento quando as circunstâncias exigiam outra coisa. Por
isso o homem caiu, e disso riem os transeuntes.
Temos agora uma pessoa que cuida de seus pequenos afazeres com uma regularidade matemática.
Acontece que os objetos que a cercam foram trocados por algum zombeteiro. Vai molhar a pena no tinteiro e lá encontra lama, pensa que está sentando numa cadeira firme e acaba deitada no assoalho; enfim,
age na contramarcha ou funciona no vazio, sempre
por um efeito de velocidade adquirida. O hábito
imprimira um impulso. Teria sido preciso deter o
movimento ou desviá-lo. Mas qual nada: continuouse maquinalmente em linha reta. A vítima de uma
farsa de gabinete está, portanto, em situação análoga à de quem corre e cai. É cômica pela mesma ra-
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zão. O que há de risível num caso e noutro é certa
rigidez mecânica quando seria de se esperar a maleabilidade atenta e a flexibilidade vívida de uma pessoa. Há entre os dois casos uma única diferença: o
primeiro ocorreu sozinho, enquanto o segundo foi obtido artificialmente. O transeunte de há pouco apenas
observava; aqui, o zombeteiro experimenta.
Contudo, nos dois casos, é uma circunstância exterior que determinou o efeito. A comicidade é, portanto, acidental; está, por assim dizer, na superfície da
pessoa. Como penetrará no interior? Será necessário
que, para revelar-se, a rigidez mecânica já não precise de um obstáculo colocado diante dela pelo acaso das circunstâncias ou pela malícia do homem. Será preciso que ela extraia de seu próprio fundo, por
uma operação natural, a ocasião incessantemente renovada de manifestar-se exteriormente. Imaginemos,
pois, um espírito sempre voltado para o que acaba
de fazer, jamais para o que faz, como uma melodia
atrasada em relação ao acompanhamento. Imaginemos certa falta de elasticidade inata dos sentidos e
da inteligência, em virtude da qual se continua a ver
o que já não existe, a ouvir o que já não ressoa, a dizer o que já não convém, enfim a adaptar-se a uma
situação passada e imaginária quando seria preciso
moldar-se pela realidade presente. A comicidade se
situará, dessa vez, na própria pessoa: é a pessoa que
lhe fornecerá tudo, matéria e forma, causa e ocasião.
Será de surpreender que o distraído (pois essa é a per-
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sonagem que acabamos de descrever) tenha tentado
com freqüência a verve dos autores cômicos? Quando
encontrou esse caráter em seu caminho, La Bruyère
compreendeu, analisando-o, que tinha em seu poder
uma receita para a fabricação a granel de efeitos divertidos. E abusou. Fez de Ménalque a mais longa e
minuciosa das descrições, recorrendo, insistindo e teimando além da medida. A facilidade do tema o retinha. Com a distração, de fato, talvez não estejamos na
fonte mesma da comicidade, mas com certeza estamos dentro de certa corrente de fatos e idéias que provém diretamente da fonte. Estamos numa das grandes vertentes naturais do riso.
Mas o efeito da distração, por sua vez, pode ser
reforçado. Há uma lei geral – e acabamos de encontrar uma primeira aplicação sua – que assim formularemos: quando certo efeito cômico deriva de certa
causa, o efeito nos parece tanto mais cômico quanto
mais natural consideramos a causa. Rimos já da distração que nos é apresentada como simples fato. Mais
risível será a distração que tivermos visto nascer e
crescer diante de nossos olhos, cuja origem conheceremos e cuja história poderemos reconstituir. Suponhamos, pois, para tomar um exemplo preciso, que
um indivíduo tenha feito dos romances de amor ou
de cavalaria sua leitura habitual. Atraído, fascinado
por seus heróis, vai aos poucos destinando apenas a
eles pensamento e vontade. Ei-lo a circular entre nós
como um sonâmbulo. Suas ações são distrações. Só
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que todas essas distrações se vinculam a uma causa
conhecida e positiva. Já não são, pura e simplesmente, ausências; são explicadas pela presença do indivíduo num meio bem definido, embora imaginário.
Sem dúvida uma queda é sempre uma queda, mas outra coisa é deixar-se cair num poço por estar olhando sabe-se lá para onde, outra coisa é cair por estar
com o olhar fixo numa estrela. Era exatamente uma
estrela que Dom Quixote contemplava. Que profunda comicidade a do romanesco e do espírito quimérico! E no entanto, se restabelecermos a idéia de distração que deve servir de intermediária, veremos
essa profundíssima comicidade vincular-se à comicidade mais superficial. Sim, esses espíritos quiméricos, esses exaltados, esses loucos tão estranhamente
razoáveis fazem-nos rir tocando as mesmas cordas
em nós, acionando o mesmo mecanismo interior que
era acionado pela vítima de uma farsa de gabinete ou
pelo transeunte a escorregar na rua. São eles também
corredores que caem e ingênuos que são mistificados, corredores do ideal que tropeçam nas realidades,
sonhadores cândidos que a vida espreita maliciosamente. Mas são sobretudo grandes distraídos, superiores aos outros porque sua distração é sistemática,
organizada em torno de uma idéia central, porque
suas desditas também são bem conexas, conexas pela
inexorável lógica que a realidade aplica para corrigir
o sonho, e porque assim provocam em torno de si,
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por meio de efeitos capazes de sempre somar-se uns
aos outros, um riso indefinidamente crescente.
Vamos agora dar mais um passo. Aquilo que a
rigidez da idéia fixa é para o espírito, não serão certos vícios para o caráter? Mau pendor da natureza ou
contratura da vontade, o vício muitas vezes se assemelha a uma curvidade da alma. Sem dúvida há vícios nos quais a alma se instala profundamente com
tudo o que traz em si de pujança fecundante, carregando-os, vivificados, num círculo móvel de transfigurações. Esses são vícios trágicos. Mas o vício que
nos tornará cômicos é, ao contrário, aquele que nos
é trazido de fora como uma moldura pronta na qual
nos inseriremos. Ele nos impõe sua rigidez, em vez
de tomar-nos a maleabilidade. Não o complicamos:
é ele, ao contrário, que nos simplifica. Aí precisamente parece estar – como tentaremos mostrar com pormenores na última parte deste estudo – a diferença
essencial entre a comédia e o drama. Um drama, mesmo quando retrata paixões ou vícios que têm nome,
incorpora-os tão bem na personagem que esses nomes são esquecidos, que suas características gerais
se apagam, e que já não pensamos neles, mas sim na
pessoa que os absorve; por isso é que o título de um
drama quase não pode deixar de ser um nome próprio. Ao contrário, muitas comédias têm como nome
um substantivo comum: O avarento, O jogador etc.
Se eu pedir ao leitor que imagine uma peça chamada O ciumento, por exemplo, ao seu espírito acudirá
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Sganarelle, ou George Dandin, mas não Otelo; O ciumento só pode ser título de comédia. É que o vício
cômico pode unir-se às pessoas tão intimamente quanto se queira, mas nunca deixará de conservar existência independente e simples; continua sendo personagem central, invisível e presente, do qual as personagens de carne e osso ficam suspensas em cena. Às
vezes ele se diverte a arrojá-las com seu peso e fazêlas rolar consigo ladeira abaixo. Mas na maioria das
vezes as irá tangendo como se tange um instrumento, ou as irá manobrando como títeres. Olhando-se de
perto, ver-se-á que a arte do poeta cômico consiste em
fazer-nos conhecer tão bem esse vício, em introduzir-nos, a nós, espectadores, a tal ponto em sua intimidade, que acabamos por obter dele alguns fios da
marionete que ele movimenta; é então nossa vez de
movimentá-la; uma parte de nosso prazer vem daí.
Portanto, também nesse caso, é uma espécie de automatismo que nos faz rir. E é ainda um automatismo
muito próximo da simples distração. Para convencer-se, basta notar que uma personagem cômica geralmente é cômica na exata medida em que ela se ignora. O cômico é inconsciente. Como se usasse ao contrário o anel de Giges, torna-se invisível para si mesmo
ao tornar-se visível para todos. Uma personagem de
tragédia não mudará em nada a sua conduta ao saber
que a julgamos; poderá perseverar nela, mesmo com
a plena consciência do que é, mesmo com o sentimento nítido do horror que nos inspira. Mas um de-
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feito ridículo, ao sentir-se ridículo, procura modificar-se, pelo menos exteriormente. Se Harpagon nos
visse rir de sua avareza, eu não digo que se corrigiria,
mas a mostraria menos, ou a mostraria de outro modo.
Podemos dizer desde já: é nesse sentido, sobretudo,
que o riso “castiga os costumes”. Ele nos faz tentar
imediatamente parecer o que deveríamos ser, o que
sem dúvida acabaremos um dia por ser de verdade.
É supérfluo por ora levar adiante esta análise.
Daquele que corre e cai ao ingênuo mistificado, da
mistificação à distração, da distração à exaltação, da
exaltação às diversas deformações da vontade e do
caráter, acabamos de acompanhar o progresso pelo
qual a comicidade se instala cada vez mais profundamente na pessoa, sem cessar porém de nos lembrar,
em suas manifestações mais sutis, alguma coisa do
que percebíamos em suas formas mais grosseiras, um
efeito de automatismo e rigidez. Podemos agora ter
uma primeira visão – bem de longe, é verdade, vaga
e confusa ainda – do lado risível da natureza humana
e da função comum do riso.
O que a vida e a sociedade exigem de cada um
de nós é uma atenção constantemente vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é também
certa elasticidade do corpo e do espírito, que nos dê
condições de adaptar-nos a ela. Tensão e elasticidade, aí estão duas forças complementares entre si que
a vida põe em jogo. Estão elas gravemente em falta
no corpo? Temos acidentes de todo tipo, deformida-
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des, doença. No espírito? Temos todos os graus de pobreza psicológica, todas as variedades da loucura. No
caráter? Temos as inadaptações profundas à vida social, fontes de miséria, às vezes ensejo para o crime.
Uma vez afastadas essas inferioridades que dizem respeito ao lado sério da existência (e tendem a eliminar-se por si mesmas naquilo a que se deu o nome
de luta pela vida), a pessoa pode viver, e viver em
comum com outras pessoas. Mas a sociedade exige
outra coisa ainda. Não lhe basta viver; ela faz questão de viver bem. O que tem agora por temer é que
cada um de nós, satisfeito em dar atenção àquilo que
concerne ao essencial da vida, se entregue quanto a
todo o resto ao automatismo fácil dos hábitos adquiridos. O que ela deve temer também é que os membros de que se compõe, em vez de visarem a um equilíbrio cada vez mais delicado de vontades que se insiram cada vez mais exatamente umas nas outras, se
contentem com respeitar as condições fundamentais
desse equilíbrio: um acordo prévio entre as pessoas
não lhe basta, ela desejaria um esforço constante de
adaptação recíproca. Toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo será então suspeita para a
sociedade, por ser o possível sinal de uma atividade
adormecida e também de uma atividade que se isola, que tende a afastar-se do centro comum em torno
do qual a sociedade gravita, de uma excentricidade
enfim. E no entanto a sociedade não pode intervir nisso por meio de alguma repressão material, pois ela não
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está sendo materialmente afetada. Ela está em presença de algo que a preocupa, mas somente como sintoma – apenas uma ameaça, no máximo um gesto.
Será, portanto, com um simples gesto que ela responderá. O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma
espécie de gesto social. Pelo medo que inspira, o riso reprime as excentricidades, mantém constantemente vigilantes e em contato recíproco certas atividades
de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se
e adormecer; flexibiliza enfim tudo o que pode restar de rigidez mecânica na superfície do corpo social.
O riso, portanto, não é da alçada da estética pura, pois
persegue (de modo inconsciente e até imoral em muitos casos particulares) um objetivo útil de aperfeiçoamento geral. Tem algo de estético, todavia, visto que
a comicidade nasce no momento preciso em que a sociedade e a pessoa, libertas do zelo da conservação,
começam a tratar-se como obras de arte. Em suma,
se traçarmos um círculo em torno das ações e disposições que comprometem a vida individual ou social
e que punem a si mesmas através de suas conseqüências naturais, fica fora desse terreno de emoção e de
luta, numa zona neutra em que o homem serve simplesmente de espetáculo ao homem, uma certa rigidez do corpo, do espírito e do caráter, que a sociedade
gostaria ainda de eliminar para obter de seus membros a maior elasticidade e a mais elevada sociabilidade possíveis. Essa rigidez é a comicidade, e o riso
é seu castigo.
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Abstenhamo-nos, porém, de esperar dessa fórmula simples uma explicação imediata de todos os
efeitos cômicos. Ela convém por certo a casos elementares, teóricos, perfeitos, em que a comicidade é
pura, sem mistura alguma. Mas desejamos, acima de
tudo, transformá-la no leitmotiv que acompanhará todas as nossas explicações. Cumprirá pensar sempre
nela, mas sem excessiva obstinação – mais ou menos como o bom esgrimista deve pensar nos movimentos descontínuos da lição enquanto seu corpo se
entrega à continuidade do assalto. Agora, é a própria
continuidade das formas cômicas que tentaremos restabelecer, retomando o fio que vai das facécias do palhaço aos jogos mais refinados da comédia, seguindo esse fio em meandros muitas vezes imprevistos,
parando a intervalos para olhar ao redor, remontando, enfim, se possível, ao ponto em que o fio está suspenso e de onde se nos mostrará talvez – pois a comicidade se equilibra entre a vida e a arte – o nexo
geral entre arte e vida.
III
Comecemos pelo mais simples. O que é uma fisionomia cômica? O que origina a expressão ridícula
do rosto? E o que distingue comicidade e fealdade?
Assim formulada, a pergunta só pode ter sido respondida arbitrariamente. Por mais simples que pareça, é
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já sutil demais para deixar-se abordar de frente. Seria preciso começar definindo a fealdade e depois
procurar o que a comicidade lhe acrescenta: ora, a
fealdade não é muito mais fácil de analisar que a beleza. Mas vamos experimentar um artifício que nos
servirá amiúde. Vamos espessar o problema, por assim dizer, engordando o efeito até tornar visível a causa. Agravemos a fealdade, levando-a até a deformidade, e vejamos como se passa do disforme ao ridículo.
É incontestável que certas deformidades têm em
relação às outras o triste privilégio de, em certos casos, poder provocar o riso. É ocioso entrar em pormenores. Pedimos apenas ao leitor que passe em revista as deformidades diversas e que depois as divida
em dois grupos: de um lado as que a natureza orientou para o risível e de outro as que fogem absolutamente a ele. Acreditamos que acabará por depreender a seguinte lei: pode tornar-se cômica toda deformidade que uma pessoa bem-feita consiga imitar.
Porventura o corcunda não dará a impressão de
portar-se mal? De alguém cujas costas tivessem contraído um mau costume? Por obstinação material, por
rigidez, ele persistiria no hábito contraído. Que o leitor tente apenas ver com os olhos. Que não reflita e, sobretudo, não raciocine. Que, apagando o que é aprendido, saia em busca da impressão primária, imediata,
original. Obterá uma visão desse tipo. De um homem
que quis enrijecer-se em certa atitude e, se nos for per-
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mitido, de um homem que quis fazer uma careta com
o corpo.
Voltemos agora ao ponto que queríamos esclarecer. Atenuando a deformidade risível, deveremos obter
a fealdade cômica. Portanto, uma expressão risível do
rosto será aquela que nos leve a pensar em algo rígido, congelado, por assim dizer, na mobilidade ordinária da fisionomia. Um cacoete consolidado, um esgar fixado, eis o que veremos. Alguém dirá que toda
expressão habitual do rosto, mesmo sendo graciosa e
bela, nos dá essa mesma impressão de vezo contraído para sempre. Mas há que se fazer aí uma distinção
importante. Quando falamos de beleza e mesmo de
fealdade expressivas, quando dizemos que um rosto
tem expressão, trata-se de uma expressão estável talvez, mas que adivinhamos móvel. Ela conserva, em
sua fixidez, uma indecisão na qual se desenham confusamente todos os matizes possíveis do estado d’alma
que exprime, tal como as cálidas promessas do dia já
são respiradas em certas manhãs vaporosas de primavera. Mas uma expressão cômica do rosto é a que
não promete nada mais que aquilo que dá. É um esgar único e definitivo. Parece que toda a vida moral
da pessoa se cristalizou em tal sistema. Por isso é
que um rosto é tanto mais cômico quanto mais nos
sugere a idéia de alguma ação simples, mecânica, em
que a personalidade estaria absorvida para todo o sempre. Há rostos que parecem ocupados a chorar o tempo todo; outros, a rir ou a assobiar; outros a assoprar
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eternamente uma trombeta imaginária. São os mais
cômicos de todos. Também aí se verifica a lei segundo a qual o efeito é mais cômico quando podemos explicar de modo mais natural a sua causa. Automatismo, rigidez, vezo contraído e mantido: aí está por que
uma fisionomia nos faz rir. Mas esse efeito ganha
intensidade quando podemos vincular tais características a uma causa profunda, a certa distração fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma
ação simples.
Entende-se agora a comicidade da caricatura. Por
mais regular que seja uma fisionomia, por mais harmoniosa que suponhamos serem suas linhas, por mais
graciosos os movimentos, seu equilíbrio nunca é absolutamente perfeito. Nela sempre se discernirá o indício de um vezo que se anuncia, o esboço de um esgar
possível, enfim uma deformação preferida na qual se
contorceria a natureza. A arte do caricaturista é captar esse movimento às vezes imperceptível e, ampliando-o, torná-lo visível para todos os olhos. Faz caretear seus modelos como eles mesmos o fariam se
chegassem até o extremo de seu esgar. Adivinha, por
trás das harmonias superficiais da forma, as revoltas
profundas da matéria. Realiza desproporções e deformações que deveriam existir na natureza em estado
de veleidade, mas que não puderam concretizar-se,
porque reprimidas por uma força melhor. Sua arte,
que tem algo de diabólico, reergue o demônio que o
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anjo subjugara. Sem dúvida é uma arte que exagera,
mas define-a muito mal quem lhe atribui o exagero
por objetivo, pois há caricaturas mais parecidas com
o modelo do que o são os retratos, caricaturas nas
quais o exagero mal é perceptível; e, ao contrário, pode-se exagerar ao extremo sem obter um verdadeiro
efeito de caricatura. Para ser cômico, o exagero não
pode aparecer como o objetivo, mas como um simples meio utilizado pelo desenhista para manifestar
aos nossos olhos as contorções que ele vê preparar-se
na natureza. É essa contorção que importa, é ela que
interessa. Por isso será procurada até nos elementos
da fisionomia que são incapazes de movimento, na
curvatura de um nariz e mesmo na forma de uma orelha. É que a forma é, para nós, o desenho de um movimento. O caricaturista que altera a dimensão de um
nariz, mas que respeita seu formato, que o prolonga,
por exemplo, no mesmo sentido em que já o prolongava a natureza, de fato está fazendo esse nariz caretear: a partir de então nos parecerá que o original também quis prolongar-se e fazer a careta. Nesse sentido, pode-se dizer que a própria natureza tem muitas
vezes o sucesso de um caricaturista. No movimento
com que fendeu certa boca, estreitou um queixo, inchou uma bochecha, parece que conseguiu ir até o
extremo de seu esgar, iludindo a vigilância moderadora de uma força mais racional. Rimos então de um
rosto que é em si mesmo, por assim dizer, sua própria caricatura.
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Em resumo, seja qual for a doutrina à qual nossa razão adira, nossa imaginação tem sua filosofia
inabalável: em toda forma humana ela percebe o esforço de uma alma a modelar a matéria, alma infinitamente maleável, eternamente móvel, livre da gravidade porque não é a terra que a atrai. De sua leveza alada essa alma comunica alguma coisa ao corpo
que anima: a imaterialidade que passa assim para a
matéria é aquilo a que se dá o nome de graça. Mas
a matéria resiste e obstina-se. Puxa tudo para si, gostaria de converter à sua própria inércia e fazer degenerar em automatismo a atividade sempre desperta
desse princípio superior. Gostaria de fixar os movimentos inteligentemente variados do corpo em vezos
estupidamente incorporados, solidificar em esgares
duradouros as expressões móveis da fisionomia, imprimir enfim a toda a pessoa uma atitude tal que a
faça parecer imersa e absorvida na materialidade de
alguma ocupação mecânica, em vez de se renovar incessantemente em contato com um ideal vivo. Quando a matéria consegue espessar assim exteriormente
a vida da alma, congelar seu movimento e contrariar
sua graça, obtém um efeito cômico do corpo. Se, pois,
quiséssemos definir aqui a comicidade aproximando-a
de seu contrário, caberia opô-la à graça, mais do que
à beleza. É mais rigidez que fealdade.
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IV
Vamos passar do cômico das formas ao dos gestos e movimentos. Enunciaremos desde já a lei que
nos parece governar os fatos desse gênero. Ela é deduzida sem dificuldade das considerações que acabamos de ler.
As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo
humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica.
Não seguiremos essa lei nas minúcias de suas
aplicações imediatas. Elas são inúmeras. Para verificá-la diretamente, bastaria estudar de perto a obra dos
desenhistas cômicos, sem considerar a caricatura, à
qual dedicamos uma explicação especial, e deixando
de lado também a parcela de comicidade que não seja inerente ao desenho em si. Pois não nos enganemos:
a comicidade do desenho é muitas vezes uma comicidade de empréstimo, cujo principal cabedal está na
literatura. Queremos dizer que o desenhista pode ser
ao mesmo tempo um autor satírico e até um autor de
vaudeville, e que rimos bem menos dos desenhos em
si do que da sátira ou da cena de comédia que ali está representada. Mas, se nos ativermos ao desenho com
a firme vontade de só pensar no desenho, descobriremos, assim nos parece, que o desenho geralmente é
cômico na medida da nitidez e também da discrição
com que nos leva a ver no homem um fantoche articulado. É preciso que essa sugestão seja nítida, e que
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percebamos claramente, como por transparência, um
mecanismo desmontável dentro da pessoa. Mas também é preciso que a sugestão seja discreta, e que o
conjunto da pessoa, na qual cada membro foi enrijecido em peça mecânica, continue a nos dar a impressão de um ser que está vivo. O efeito cômico será mais
marcante, a arte do desenhista será mais consumada
quanto mais inseridas estas duas imagens estiverem
uma na outra: a imagem de pessoa e a de mecanismo.
E a originalidade de um desenhista cômico poderia
ser definida pelo tipo específico de vida que ele comunique a um simples fantoche.
Mas deixaremos de lado as aplicações imediatas
do princípio e aqui só insistiremos em conseqüências
mais remotas. A visão de um mecanismo a funcionar dentro da pessoa é coisa que abre para uma multidão de efeitos engraçados; no mais das vezes, porém, é visão fugaz, que se perde logo em seguida no
riso que provoca. É preciso um esforço de análise e
reflexão para fixá-la.
Vejamos por exemplo, num orador, o gesto a rivalizar com a palavra. Com ciúme da palavra, o gesto corre atrás do pensamento e exige servir também
de intérprete. Vá lá; mas que se restrinja então a seguir o pensamento nas minúcias de suas evoluções.
Idéia é coisa que cresce, brota, floresce, amadurece, do
começo ao fim do discurso. Nunca pára, nunca se repete. Precisa mudar a todo instante, pois parar de mudar seria parar de viver. Que o gesto, pois, se anime
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como ela! Que aceite a lei fundamental da vida, que
é jamais se repetir! Mas eis que certo movimento do
braço ou da cabeça, sempre o mesmo, parece-me voltar periodicamente. Se observar se ele basta para me
distrair, se o espero e se ele chega quando o espero, rio
involuntariamente. Por quê? Porque tenho agora diante de mim um mecanismo que funciona automaticamente. Já não é vida, é automatismo instalado na vida, imitando a vida. É comicidade.
Por isso certos gestos, dos quais não pensamos
em rir, tornam-se risíveis quando alguém os imita.
Houve quem buscasse explicações bem complicadas
para esse fato simplíssimo. Por menos que se reflita,
ver-se-á que nossos estados d’alma mudam a todo instante, e que, se nossos gestos seguissem fielmente
nossos movimentos interiores, se vivessem como vivemos, não se repetiriam: por isso, desafiariam qualquer imitação. Portanto, só começamos a ser imitáveis
quando deixamos de ser nós mesmos. Quero dizer que
de nossos gestos só pode ser imitado o que eles têm
de mecanicamente uniforme e, por isso mesmo, de estranho à nossa personalidade viva. Imitar uma pessoa
é depreender a parcela de automatismo que esta deixou introduzir-se em si. Logo, por definição mesmo,
é torná-la cômica, e não é de surpreender que a imitação provoque o riso.
Mas, se já é risível por si mesma, a imitação dos
gestos provoca ainda mais riso quando se empenha
em inflectir os gestos, sem os deformar, no sentido de
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alguma operação mecânica, como por exemplo de serrar madeira, bater numa bigorna ou puxar incansavelmente um cordão de campainha imaginária. Não que
a vulgaridade seja a essência da comicidade (embora certamente faça parte dela), mas é que o gesto percebido parece mais francamente maquinal quando pode ser vinculado a uma operação simples, como se
estivesse destinado a ser mecânico. Sugerir essa interpretação mecânica deve ser um dos procedimentos
favoritos da paródia. Acabamos de fazer uma dedução a priori, mas os cômicos certamente têm intuição
disso há muito tempo.
Assim se resolve o pequeno enigma proposto por
Pascal num trecho de seus Pensamentos: “Dois rostos semelhantes, que não provocam riso separadamente, fazem rir quando juntos, devido à sua semelhança.”
Diríamos também: “Os gestos de um orador, que não
provocam riso separadamente, fazem rir devido à sua
repetição.” É que a vida bem viva não deveria repetir-se. Quando há repetição, similitude completa, suspeitamos do mecanismo a funcionar por trás do que
está vivo. Que o leitor analise sua impressão diante
de dois rostos que se assemelhem demais: pensará
em dois exemplares tirados de um mesmo molde,
ou em duas impressões do mesmo cunho, ou em duas
reproduções do mesmo clichê; enfim, num procedimento de fabricação industrial. Essa inflexão da vida
na direção da mecânica é a verdadeira causa do riso.
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E o riso será bem mais intenso ainda se não nos
forem apresentadas em cena apenas duas personagens, como no exemplo de Pascal, porém várias, o
maior número possível, todas semelhantes, personagens que vão e vêm, dançam, mexem-se juntas, assumindo ao mesmo tempo as mesmas atitudes, gesticulando da mesma maneira. Aí pensaremos distintamente em marionetes. Fios invisíveis nos parecerão
interligar os braços de uma aos de outra, as pernas de
uma às de outra, cada músculo de uma fisionomia ao
músculo análogo da outra: a inflexibilidade da correspondência faz que a maleabilidade das formas se solidifique por si mesma diante de nossos olhos e que
tudo endureça em mecanismos. Tal é o artifício desse divertimento um tanto grosseiro. Os que o executam
talvez não tenham lido Pascal, mas com certeza o que
fazem é tão-somente levar ao extremo uma idéia que o
texto de Pascal sugere. E, se no segundo caso a causa
do riso é a visão de um efeito mecânico, ela já deveria sê-lo, porém mais sutilmente, no primeiro.
Continuando agora por essa via, percebemos confusamente conseqüências cada vez mais remotas, cada vez mais importantes também, da lei que acabamos
de formular. Pressentimos visões ainda mais fugazes
de efeitos mecânicos, visões sugeridas pelas ações
complexas do homem e não já simplesmente por seus
gestos. Adivinhamos que os artifícios usuais da comédia, a repetição periódica de uma palavra ou de uma
cena, a inversão simétrica dos papéis, o desenvolvi-
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mento geométrico dos qüiproquós e muitos outros jogos poderão extrair força cômica da mesma fonte, consistindo talvez a arte do autor de vaudeville em nos
apresentar uma articulação visivelmente mecânica de
acontecimentos humanos ao mesmo tempo que conserva seu aspecto exterior de verossimilhança, ou seja, a flexibilidade aparente da vida. Mas não antecipemos resultados que o progresso da análise deverá ir
depreendendo metodicamente.
V
Antes de irmos mais longe, convém descansar por
um momento e olhar ao redor. Já pressentíamos no
início deste trabalho: seria quimérico querer extrair
todos os efeitos cômicos de uma única fórmula simples. A fórmula existe, sim, em certo sentido; mas não
se desenrola regularmente. Queremos dizer que a dedução deve deter-se de vez em quando em alguns efeitos dominantes, e que esses efeitos aparecem, cada
um deles, como modelos em torno dos quais se dispõem, em círculo, novos efeitos que se lhes assemelham. Estes últimos não se deduzem da fórmula, mas
são cômicos por terem parentesco com os que dela
são deduzidos. Para citar Pascal mais uma vez, definiremos aqui a marcha do espírito com a curva que
esse geômetra estudou com o nome de roleta, a curva
descrita por um ponto da circunferência de uma ro-
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da quando o carro avança em linha reta: esse ponto
gira como a roda, mas também avança como o carro. Ou então pensaremos numa grande estrada a cortar florestas, com cruzamentos ou encruzilhadas que
a demarcam a espaços: a cada encruzilhada daremos
uma volta no cruzamento, faremos um reconhecimento dos caminhos que se abrem, e após isso voltaremos
à direção inicial. Estamos numa dessas encruzilhadas.
Mecânico sobreposto ao vivo, eis um cruzamento onde é preciso parar, imagem central a partir da qual a
imaginação irradia em direções divergentes. Quais são
essas direções? Percebemos três principais. Vamos segui-las uma após a outra, e depois retomaremos nosso
caminho em linha reta.
I. Em primeiro lugar, essa visão de mecânica e
vida inseridas uma na outra nos faz tomar um caminho oblíquo rumo à imagem mais vaga de uma rigidez qualquer aplicada sobre a mobilidade da vida,
tentando desajeitadamente seguir suas linhas e imitar
sua flexibilidade. Adivinhamos então como é fácil
que um traje se torne ridículo. Poderíamos quase dizer que toda moda é risível por algum motivo. Mas,
quando se trata da moda atual, estamos tão habituados a ela que o traje nos parece formar um corpo só
com os corpos que o vestem. Nossa imaginação não
destaca um do outro. Já não nos ocorre a idéia de opor
a rigidez inerte do envoltório à flexibilidade viva do
objeto envolvido. Portanto, aí a comicidade está em
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estado latente. No máximo conseguirá emergir quando a incompatibilidade natural for tão profunda entre
o que envolve e o que é envolvido que uma aproximação, ainda que secular, não conseguirá consolidar
sua união: esse é o caso da cartola, por exemplo. Mas
suponhamos um originalão que se vista hoje de acordo com a moda de antigamente: nossa atenção recai
sobre o traje, nós o distinguimos absolutamente da
pessoa, dizemos que a pessoa está fantasiada (como
se toda roupa não fosse uma fantasia), e o lado risível
da moda passa da sombra à luz.
Começamos a entrever aqui algumas das grandes
dificuldades de detalhe que o problema da comicidade suscita. Uma das razões que devem ter inspirado muitas teorias errôneas ou insuficientes acerca do
riso é que muitas coisas são cômicas de direito sem
o serem de fato, uma vez que a continuidade do uso
extinguiu nelas a virtude cômica. É preciso uma solução brusca de continuidade, uma ruptura com a
moda, para que essa virtude ressurja. Acredita-se então que essa solução de continuidade dá origem à comicidade, ao passo que ela se limita a nos fazer notá-la. O riso é então explicado pela surpresa, pelo contraste etc., definições que se aplicariam também a
uma infinidade de casos diante dos quais não temos
nenhuma vontade de rir. A verdade não é tão simples.
Mas eis que chegamos à idéia de fantasia ou disfarce. Como acabamos de mostrar, ela tem de pleno
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direito o poder de fazer rir. Não será em vão que procuraremos saber como o utiliza.
Por que rimos de uma cabeleira que passou do
castanho ao loiro? De onde provém a comicidade de
um nariz rubicundo? E por que se ri de um negro?
Pergunta difícil, parece, pois psicólogos como Hecker,
Kraepelin e Lipps a formularam e a responderam de
maneiras diferentes. Não sei, porém, se ela não foi
respondida certo dia diante de mim, na rua, por um
simples cocheiro, que tachava de “mal lavado” o cliente negro sentado em sua carruagem. Mal lavado! Um
rosto negro seria portanto, para nossa imaginação,
um rosto lambuzado de tinta ou de fuligem. E, conseqüentemente, um nariz vermelho só pode ser um
nariz sobre o qual foi passada uma camada de vermelhão. Portanto, o disfarce passou algo de sua virtude cômica para outros casos em que não há disfarce, mas poderia haver. Há pouco, o traje habitual não
conseguia distinguir-se da pessoa; parecia formar um
só corpo com ela, porque estávamos acostumados a
vê-lo. Agora, a coloração negra ou vermelha não consegue ser inerente à pele: nós a consideramos sobreposta artificialmente, porque nos surpreende.
Donde, é verdade, uma nova série de dificuldades
para a teoria da comicidade. Uma frase como esta:
“minhas roupas habituais fazem parte do meu corpo”, é absurda para a razão. No entanto, a imaginação a tem por verdadeira. “Um nariz vermelho é um
nariz pintado”, “um negro é um branco disfarçado”,
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absurdos também para a razão que raciocina, mas verdades certíssimas para a simples imaginação. Há, pois,
uma lógica da imaginação que não é a lógica da razão, que até se opõe a ela às vezes, mas com a qual
a filosofia precisará contar, não só para o estudo da
comicidade como também para outras investigações
da mesma ordem. É algo como a lógica do sonho, mas
de um sonho que não estaria entregue ao capricho da
fantasia individual, visto ser o sonho sonhado pela sociedade inteira. Para reconstituí-la, é necessário um
esforço de um gênero particular, graças ao qual ergueremos a crosta exterior de juízos bem firmados e de
idéias solidamente assentadas, para vermos escoar no
fundo de nós mesmos, qual lençol de água subterrânea, certa continuidade fluida de imagens que entram
umas nas outras. Essa interpenetração das imagens
não ocorre a esmo. Obedece a leis, ou melhor, a hábitos, que estão para a imaginação assim como a lógica está para o pensamento.
Sigamos, pois, essa lógica da imaginação no caso particular que nos ocupa. Um homem que se fantasia é cômico. Um homem que parece fantasiado é
cômico também. Por extensão, todo disfarce será cômico, não só o do homem, mas também o da sociedade, e até o da natureza.
Comecemos pela natureza. Rimos de um cão tosado pela metade, de um canteiro de flores artificialmente coloridas, de um bosque cujas árvores estão
forradas de cartazes eleitorais etc. Busquemos a ra-
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zão e veremos que pensamos numa mascarada. Mas
a comicidade, aqui, está bem atenuada. Está por demais distante da fonte. Queremos reforçá-la? Será
preciso remontar à fonte, reconduzir a imagem derivada, de mascarada, à imagem primitiva, que era, se
bem nos lembramos, a de arremedo mecânico da vida. Uma natureza arremedada mecanicamente: esse
é então um motivo francamente cômico, sobre o qual
a imaginação poderá executar variações com a certeza de obter grande sucesso em matéria de riso. Todos se lembram do trecho tão engraçado de Tartarin
sur les Alpes1, em que Bompard leva Tartarin (e portanto, de certa forma, o leitor também) a acreditar na
idéia de que a Suíça é movida por maquinismos, como os porões da Ópera, explorada por uma companhia que ali mantém cascatas, geleiras e falsas fendas. O mesmo motivo outra vez, mas transposto para outro tom bem diferente, está em Novel Notes do
humorista inglês Jerome K. Jerome. Uma velha castelã, não querendo que suas boas obras lhe dêem trabalho demais, manda alojar nas proximidades de sua
morada, para serem convertidos, ateus fabricados expressamente para ela, bem como uma gente boa que
fora transformada num bando de bêbados para que
ela pudesse curar-lhes o vício etc. Há palavras cômicas nas quais esse motivo se encontra em estado de
1. Um dos romances da trilogia Tartarin de Tarascon, de Alphonse
Daudet. (N. da T.)
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distante ressonância, misturado a uma ingenuidade,
sincera ou fingida, que lhe serve de acompanhamento. Por exemplo, as palavras de uma dama que, convidada pelo astrônomo Cassini para ir ver um eclipse
da lua, chegou tarde e disse: “O senhor de Cassini
bem poderia recomeçar para mim.” Ou ainda esta exclamação de uma personagem de Gondinet, ao chegar a uma cidade e ficar sabendo que existia um vulcão extinto nas redondezas: “Tinham um vulcão, e o
deixaram apagar-se!”
Passemos à sociedade. Vivendo nela, vivendo por
ela, não podemos abster-nos de tratá-la como um ser
vivo. Risível será, portanto, uma imagem que nos sugira a idéia de uma sociedade fantasiada e, por assim dizer, de uma mascarada social. Ora, essa idéia
se forma logo que percebemos o que há de inerte, de
pronto, de confeccionado enfim, na superfície da sociedade viva. É rigidez outra vez, e que destoa da flexibilidade interior da vida. O lado cerimonioso da vida
social deverá, pois, conter uma comicidade latente, que
só precisará de uma oportunidade para vir à luz. Pode-se dizer que as cerimônias estão para o corpo social
como o traje está para o corpo individual: sua gravidade se deve ao fato de se identificarem, para nós,
com o objeto sério ao qual o uso as vincula, e perdem essa gravidade assim que nossa imaginação as
isola dele. Desse modo, para que uma cerimônia se
torne cômica, basta que nossa atenção se concentre
no que ela tem de cerimonioso, e que desprezemos
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sua matéria, como dizem os filósofos, para só pensar
em sua forma. É ocioso insistir nesse ponto. Todos
sabem com que facilidade a invenção cômica é exercida sobre os atos sociais que têm forma imutável,
desde a simples distribuição de condecorações até uma
sessão de tribunal. São formas e fórmulas, molduras
prontas onde a comicidade se inserirá.
Mas ainda aqui cabe acentuar a comicidade aproximando-a de sua fonte. Da idéia de fantasia ou disfarce, que é derivada, será preciso remontar então à
idéia primitiva, de um mecanismo sobreposto à vida. A própria forma compassada de todo cerimonial
nos sugere uma imagem desse tipo. Assim que esquecemos a seriedade do objeto de uma solenidade
ou de uma cerimônia, os que tomam parte dela produzem em nós efeito de marionetes. Sua mobilidade
se regra pela imobilidade de uma fórmula. É automatismo. Mas automatismo perfeito será, por exemplo, o do funcionário que funciona como simples máquina, ou ainda a inconsciência de um regulamento
administrativo que se aplica com fatalidade inexorável e é tido por lei da natureza. Há já alguns anos, um
paquete naufragou nas proximidades de Dieppe. Alguns passageiros foram resgatados com grande dificuldade por uma embarcação. Alguns inspetores de
alfândega, que se haviam comportado bravamente no
resgate, começaram por perguntar “se não tinham nada que declarar”. Vejo certa analogia, embora a idéia
seja mais sutil, nestas palavras de um deputado que in-
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terpelava o ministro no dia seguinte a um crime cometido na ferrovia: “O assassino, depois de matar a
vítima, deve ter descido do trem pelo lado contrário ao
da estação, violando os regulamentos administrativos.”
Um mecanismo inserido na natureza, uma regulamentação automática da sociedade, esses são, em
suma, os dois tipos de efeitos engraçados aos quais
chegamos. Resta-nos, para concluir, combiná-los e ver
o que resulta.
O resultado da combinação será, evidentemente,
a idéia de regulamentação humana a substituir as leis
da natureza. Lembramos a resposta de Sganarelle a
Géronte, quando este lhe observa que o coração fica
do lado esquerdo, e o fígado, do lado direito: “Sim,
antigamente era assim, mas nós mudamos tudo isso,
e agora praticamos a medicina segundo um método
totalmente novo.” E o conselho dos dois médicos de
Pourceaugnac2: “O seu raciocínio é tão douto e bonito que é impossível que o doente não seja melancólico hipocondríaco; e, mesmo que não fosse, seria
preciso que se tornasse, pela beleza das coisas que o
senhor disse e a justeza do raciocínio que teceu.” Poderíamos multiplicar os exemplos; bastaria pôr a desfilar diante de nós, um após outro, todos os médicos
de Molière. Por mais longe, aliás, que aqui pareça ir
a invenção cômica, a realidade às vezes se encarre2. Monsieur de Pourceaugnac, comédia de Molière. (N. da T.)
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ga de ultrapassá-la. Um filósofo contemporâneo, argumentador extremado, a quem alguém lembrava que
seus raciocínios irrepreensivelmente deduzidos tinham
contra si a experiência, pôs fim à discussão com esta simples frase: “A experiência está errada.” É que
a idéia de regrar administrativamente a vida é mais
difundida do que se pensa; ela é natural à sua maneira, embora tenhamos acabado de obtê-la por um procedimento de reconstituição. Poderíamos dizer que
ela nos apresenta a quintessência mesma do pedantismo, que no fundo outra coisa não é senão a arte
que pretende dar lições à natureza.
Assim, em resumo, o mesmo efeito vai sempre
se sutilizando, desde a idéia de mecanização artificial do corpo humano, se assim pudermos nos expressar, até a de uma substituição qualquer do natural pelo artificial. Uma lógica cada vez menos rigorosa, que se assemelha cada vez mais à lógica dos
sonhos, transporta a mesma relação para esferas cada vez mais altas, entre termos cada vez mais imateriais, e um regulamento administrativo acaba sendo
para uma lei natural ou moral, por exemplo, o que a
roupa confeccionada é para o corpo vivo. Das três
direções pelas quais devíamos enveredar, seguimos
agora a primeira até o fim. Passemos à segunda e
vejamos aonde nos conduz.
II. O mecânico sobreposto ao vivo: esse é ainda
nosso ponto de partida. De onde provém a comici-
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dade? Do fato de o corpo vivo enrijecer-se como máquina. Parecia-nos, portanto, que o corpo vivo deveria ser a flexibilidade perfeita, a atividade sempre alerta de um princípio sempre em ação. Mas essa atividade pertenceria realmente à alma, e não ao corpo.
Seria a própria chama da vida, iluminada em nós por
um princípio superior e entrevista através do corpo
por um efeito de transparência. Quando no corpo vivo só vemos graça e flexibilidade, é porque desprezamos o que nele há de pesado, de resistente, de material enfim; esquecemos sua materialidade para só
pensar em sua vitalidade, vitalidade que nossa imaginação atribui ao princípio mesmo da vida intelectual e moral. Suponhamos que nos chamem a atenção para essa materialidade do corpo. Suponhamos
que, em vez de participar da leveza do princípio que
o anima, o corpo não passe, para nós, de um envoltório pesado e enleante, lastro importuno que prende ao chão uma alma impaciente por deixar o solo.
Então o corpo se tornará para a alma o que a roupa
era há pouco para o próprio corpo: matéria inerte posta sobre uma energia viva. E a impressão de comicidade ocorrerá tão logo tenhamos o claro sentimento
dessa superposição. E a teremos sobretudo quando
nos mostrarem a alma atenazada pelas necessidades
do corpo – de um lado a personalidade moral com sua
energia inteligentemente variada; de outro, o corpo
estupidamente monótono, a intervir e interromper com
sua obstinação de máquina. Quanto mais mesquinhas
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e uniformemente repetidas forem essas exigências do
corpo, mais impressionante será o efeito. Mas é apenas uma questão de grau, e a lei geral desses fenômenos poderia ser assim formulada: É cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma
pessoa quando o que está em questão é o moral.
Por que se ri de um orador que espirra no momento mais patético de seu discurso? De onde provém a
comicidade desta frase de oração fúnebre, citada por
um filósofo alemão: “Ele era virtuoso e reto”? Do fato de nossa atenção ser bruscamente levada da alma
para o corpo. Abundam exemplos na vida cotidiana.
Mas quem não quiser se dar ao trabalho de procurálos, poderá abrir ao acaso um volume de Labiche.
Topará freqüentemente com efeitos desse tipo. Uma
vez é um orador cujos mais belos períodos são cortados pelas alfinetadas de um dente enfermo; de outra é alguém que nunca toma a palavra sem interromper-se para queixar-se dos sapatos apertados demais
ou do cinto muito justo etc. Uma pessoa estorvada
pelo próprio corpo, essa é a imagem que nos sugerem
esses exemplos. Se a retidão excessiva é risível, isso
ocorre por trazer à mente uma imagem desse tipo. É
também o que às vezes torna a timidez um tanto ridícula. O tímido pode dar a impressão de ser uma pessoa enleada pelo próprio corpo, alguém que procura
em torno de si um lugar para depositá-lo.
Por isso, o poeta trágico tem o cuidado de evitar
tudo o que possa chamar nossa atenção para a mate-
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rialidade de seus heróis. Tão logo intervenha a preocupação com o corpo, é de se temer uma infiltração
cômica. Por esse motivo, o herói de tragédia não bebe, não come, não se aquece. Sempre que possível, até
não se senta. Sentar-se em meio a uma tirada seria
lembrar que existe um corpo. Napoleão, que era psicólogo nas horas vagas, notara que se passa da tragédia à comédia só com sentar-se. Vejamos como ele se
expressa a respeito no Diário inédito do barão Gourgaud (trata-se de uma entrevista com a rainha da Prússia depois de Iena): “Ela me recebeu com um tom trágico, como Ximena: Majestade, justiça! Justiça! Magdeburgo! E continuava nesse tom, que me deixava
muito embaraçado. Por fim, para fazê-la mudar, eu a
convidei a sentar-se. Nada melhor para cortar uma
cena trágica; pois, quando nos sentamos, tudo vira
comédia.”
Agora ampliemos essa imagem: o corpo sobrepujando a alma. Obteremos algo mais geral: a forma querendo impor-se ao fundo, a letra chicaneando o espírito. Não seria essa a idéia que a comédia
procura sugerir-nos quando ridiculiza uma profissão?
Nela o advogado, o juiz e o médico falam como se a
saúde e a justiça pouco importassem, sendo essencial
que haja médicos, advogados e juízes, e que as formas
exteriores da profissão sejam respeitadas escrupulosamente. Assim, os meios substituem os fins, a forma substitui o fundo, e não mais a profissão é feita
para o público, porém o público para a profissão. A
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preocupação constante com a forma, a aplicação maquinal das regras criam uma espécie de automatismo
profissional, comparável ao automatismo que os hábitos do corpo impõem à alma e tão risível como este. São abundantes os exemplos disso em teatro. Sem
entrar nos pormenores das variações sobre esse tema, citaremos dois ou três textos em que o próprio
tema é definido em toda a sua simplicidade: “Somos
obrigados a tratar as pessoas somente nas formas”, diz
Diaforius no Doente imaginário. E Bahis, em Amor
médico: “É melhor morrer de acordo com as regras
do que salvar-se contrariando as regras.” “É preciso
sempre observar as formalidades, aconteça o que
acontecer”, dizia já Desfonandrès na mesma comédia. E seu confrade Tomès explicava por quê: “Um
homem morto não passa de um homem morto, mas
uma formalidade negligenciada causa notável prejuízo a toda a categoria dos médicos.” A frase de
Brid’oison, para resumir uma idéia um pouco diferente, não é menos significativa: “A forma, senhores,
a forma. Alguém ri de um juiz que, em trajes comuns,
treme simplesmente por ver um procurador envergando toga. A forma, a forma.” Mas aqui se apresenta a
primeira aplicação de uma lei que se mostrará cada
vez mais claramente à medida que avançarmos em
nosso trabalho. Quando o músico emite uma nota
num instrumento, surgem espontaneamente outras notas que, sendo menos sonoras que a primeira e estando ligadas a ela por certas relações definidas, im-
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primem-lhe um timbre por se lhe somarem: como se
diz em física, são os harmônicos do som fundamental. Não poderia ocorrer que a imaginação cômica,
mesmo em suas invenções mais extravagantes, obedeça a uma lei do mesmo gênero? Consideremos por
exemplo esta nota cômica: a forma querendo sobrepujar-se ao fundo. Se nossas análises estiverem corretas, seu harmônico deverá ser esta outra: o corpo
atenazando o espírito, o corpo impondo-se ao espírito. Portanto, assim que o poeta cômico emitir a primeira nota, acrescentará a segunda de modo instintivo e involuntário. Em outros termos, somará algum
ridículo físico ao ridículo profissional.
Quando o juiz Brid’oison entra em cena gaguejando, não nos estará preparando, com sua gagueira,
para compreender o fenômeno de cristalização intelectual cujo espetáculo nos oferecerá? Que secreto parentesco vinculará esse defeito físico àquela debilidade moral? Talvez fosse preciso que essa máquina de
julgar nos aparecesse ao mesmo tempo como uma máquina de falar. Em todo caso, nenhum outro harmônico poderia completar melhor o som fundamental.
Quando Molière nos apresenta os dois doutores
ridículos de Amor médico, Bahis e Macroton, um dos
dois fala bem devagar, escandindo seu discurso sílaba
por sílaba, enquanto o outro tartamudeia. O mesmo
contraste há entre os dois advogados do Monsieur de
Pourceaugnac. Ordinariamente, é no ritmo da fala
que reside a singularidade física destinada a comple-
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tar o ridículo profissional. E, quando o autor não indica um defeito desse tipo, o ator raramente não procura compô-lo de modo instintivo.
Há, portanto, um parentesco natural, naturalmente reconhecido, entre essas duas imagens que estamos
aproximando uma da outra, o espírito a imobilizar-se
em certas formas, o corpo a enrijecer-se segundo certos defeitos. Quer nossa atenção seja desviada do fundo para a forma ou do moral para o físico, a mesma
impressão é transmitida à nossa imaginação nos dois
casos; é, nos dois casos, o mesmo tipo de comicidade.
Também aqui quisemos seguir fielmente uma direção
natural do movimento da imaginação. Essa direção,
cabe lembrar, era a segunda daquelas que se nos apresentaram a partir de uma imagem central. Uma terceira e última via continua aberta. É por ela que vamos
agora enveredar.
III. Voltemos uma última vez à nossa imagem
central: do mecânico sobreposto ao vivo. O ser vivo
de que falávamos era um ser humano, uma pessoa.
O dispositivo mecânico é, ao contrário, uma coisa.
Portanto, o que provocava o riso era a transfiguração
momentânea de uma pessoa em coisa, se quisermos
olhar a imagem por esse lado. Passemos então da
idéia precisa de mecânica à idéia mais vaga de coisa
em geral. Teremos uma nova série de imagens risíveis
que serão obtidas, por assim dizer, esbatendo-se os
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contornos das primeiras, e que conduzirão a esta nova lei: Rimos sempre que uma pessoa nos dá a impressão de coisa.
Rimos de Sancho Pança posto sobre uma coberta e lançado para o ar como uma bola. Rimos do barão de Münchhausen transformado em bala de canhão
a caminhar através do espaço. Mas talvez certos exercícios dos palhaços de circo possibilitem uma verificação mais precisa da mesma lei. Seria preciso, é
verdade, fazer abstração das facécias com que o palhaço enriquece seu tema principal e só ficar com o
próprio tema, ou seja, as atitudes, as cabriolas e os
movimentos que constituem o que há de propriamente “palhaçal” na arte do palhaço. Apenas duas vezes
pude observar esse tipo de comicidade em estado puro, e nos dois casos tive a mesma impressão. Da primeira vez, os palhaços iam, vinham, davam-se encontrões, caíam e ricocheteavam, segundo um ritmo
uniformemente acelerado, com a visível preocupação de criar um crescendo. E, cada vez mais, era para
o ricochete que a atenção do público se voltava. Aos
poucos, perdia-se de vista que aqueles eram homens
de carne e osso. Pensava-se em pacotes, que se deixavam cair e entrechocar-se. Depois, a visão ia ficando mais precisa. As formas pareciam arredondar-se,
os corpos pareciam rolar e embolar-se. Por fim, aparecia a imagem para a qual toda aquela cena evoluía,
por certo inconscientemente: bolas de borracha, lan-
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çadas em todos os sentidos umas contra as outras. –
A segunda cena, ainda mais grosseira, não foi menos
instrutiva. Apareceram duas personagens, de cabeça
enorme e crânio inteiramente calvo. Vinham armadas
com grandes pedaços de pau. E uma de cada vez deixava cair o pedaço de pau sobre a cabeça da outra.
Também nesse caso observava-se uma gradação. A
cada golpe recebido, os corpos pareciam ficar mais
pesados, imobilizar-se, invadidos por uma rigidez
crescente. A reação voltava cada vez mais atrasada,
cada vez mais pesada e repercutente. Os crânios ressoavam formidavelmente na sala silenciosa. Por fim,
rígidos e lentos, retos como um I, os dois corpos penderam um para o outro, os pedaços de pau se abateram pela última vez sobre as cabeças com um ruído
de martelos enormes caindo sobre vigas de carvalho,
e tudo foi ao chão. Naquele momento apareceu com
nitidez a sugestão que os dois artistas haviam gradualmente introduzido na imaginação dos espectadores: “Vamos virar, viramos manequins de madeira
maciça.”
Um obscuro instinto pode levar os espíritos incultos a pressentir alguns dos mais sutis resultados
da ciência psicológica. Sabe-se que, por simples sugestão, é possível evocar visões alucinatórias num
indivíduo hipnotizado. Se lhe disserem que há um
pássaro pousado sobre sua mão, ele verá o pássaro e
o verá sair voando. Mas é preciso que a sugestão se-
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ja sempre aceita com tal docilidade. Muitas vezes o
magnetizador só consegue fazê-la penetrar aos poucos, por insinuação gradual. Partirá então de objetos
realmente vistos pelo indivíduo, e tentará tornar sua
percepção cada vez mais confusa: depois, de grau em
grau, extrairá dessa confusão a forma precisa do objeto cuja alucinação quer criar. É assim que muitas pessoas, na hora de dormir, vêem essas massas coloridas,
fluidas e informes, que ocupam o campo da visão,
solidificar-se insensivelmente em objetos distintos.
A passagem gradual do confuso ao distinto é, pois,
o procedimento por excelência da sugestão. Acredito ser possível encontrá-lo no fundo de muitas sugestões cômicas, sobretudo na comicidade grosseira,
quando diante dos nossos olhos parece ocorrer a transformação de uma pessoa em coisa. Mas há outros procedimentos mais discretos, usados pelos poetas, por
exemplo, que talvez tendam inconscientemente ao
mesmo fim. Por meio de certos dispositivos de ritmo,
rima e assonância, nossa imaginação pode ser embalada, levada em ramerrão num balanço regular, ficando assim preparada para receber docilmente a visão sugerida. Prestem atenção a estes versos de Régnard, e vejam se a imagem fugaz de um boneco não
lhes atravessa o campo da imaginação:
... Plus, il doit à maints particuliers
La somme de dix mil une livre une obole,
Pour l’avoir sans relâche un an sur sa parole
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Habillé, voituré, chauffé, chaussé, ganté,
Alimenté, rasé, désaltéré, porté.3
Não encontramos algo do mesmo tipo nesta tirada de Fígaro (embora nela talvez se procure sugerir a imagem de um animal mais que de uma coisa):
“Que homem é esse? – É um belo, gordo, nanico, jovem velhote, encarneirado, astuto, tosado e chateado,
que espiona e questiona, e rosna e resmunga de uma
só vez.”
Entre tais cenas grosseiras e tais sugestões sutilíssimas há lugar para uma multidão inumerável de
efeitos engraçados – todos os que são obtidos quando
nos expressamos sobre pessoas como se fossem coisas. Vejamos um ou dois exemplos do teatro de Labiche, no qual eles abundam. Perrichon, na hora de
subir no trem, certifica-se de não ter esquecido bagagem alguma. “Quatro, cinco, seis, minha mulher
sete, minha filha oito e eu nove.” Há uma outra peça
em que um pai gaba a ciência da filha nestes termos:
“Ela vai dizer sem vacilar todos os reis de França que
ocorreram.” Esse que ocorreram, sem converter pre3. ... E mais, ele deve a muita gente
A soma de dez mil e uma libra e um tostão,
Porque durante um ano, infatigavelmente
Ele o trajou, carregou, calçou, enluvou,
Barbeou, alimentou, dessedentou, levou.
Essa tradução não é literal. Procuramos transmitir o efeito repetitivo existente no original. (N. da T.)
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cisamente os reis em coisas, compara-os a acontecimentos impessoais.
Cabe notar a respeito deste último exemplo: não
é necessário chegar até o fim da identificação entre
a pessoa e a coisa para que se produza o efeito cômico. Basta entrar por esse caminho, fingindo, por exemplo, confundir a pessoa com a função que ela exerce. Só citarei estas palavras de um prefeito de aldeia
num romance de About: “O senhor alcaide, que sempre nos tratou com a mesma benevolência, apesar de
ter sido trocado várias vezes desde 1847...”
Todos esses ditos são criados a partir do mesmo
modelo. Poderíamos compor outros, indefinidamente,
agora que temos a fórmula. Mas a arte do contista e
do autor de vaudeville não consiste simplesmente em
compor o dito. O difícil é dar-lhe força de sugestão,
ou seja, torná-lo aceitável. E só o aceitamos porque
ele nos parece sair de um estado d’alma ou caber nas
circunstâncias. Assim, sabemos que Perrichon está
muito emocionado na hora de fazer sua primeira viagem. O verbo “ocorrer” é daqueles que devem ter reaparecido muitas vezes nas lições recitadas pela filha
diante do pai; lembra-nos uma recitação. Por fim, a
admiração da máquina administrativa poderia, a rigor, chegar ao ponto de nos fazer acreditar que nada
muda no alcaide quando ele muda de nome, e que a
função se cumpre independentemente do funcionário.
E aqui estamos nós, bem distantes da causa original do riso. Uma forma cômica, inexplicável por si
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mesma, só pode ser entendida graças à semelhança
com outra, que só nos faz rir por ter parentesco com
uma terceira, e assim por diante durante muito tempo: de tal modo que a análise psicológica, por mais
que a suponhamos esclarecida e penetrante, perderá
necessariamente o rumo se não segurar o fio ao longo
do qual a impressão cômica caminhou de uma extremidade da série à outra. Qual a razão dessa continuidade de progresso? Qual é a pressão, qual é o estranho
impulso que faz a comicidade ir deslizando assim de
imagem em imagem, cada vez mais distante do ponto de origem, até fracionar-se e perder-se em analogias infinitamente distantes? Mas qual é a força que
divide e subdivide o tronco da árvore em ramos, a
raiz em radicelas? Uma lei inelutável condena assim
toda energia viva, desde que lhe dêem tempo, a cobrir o máximo possível de espaço. Ora, a invenção
cômica é bem uma energia viva, planta singular que
brotou vigorosamente sobre as partes pedregosas do
solo social, à espera de que a cultura lhe permitisse
rivalizar com os produtos mais refinados da arte. Estamos longe da grande arte, é verdade, com os exemplos de comicidade que acabam de passar diante de
nossos olhos. Mas já nos aproximaremos mais dela,
embora sem a atingir de todo, no capítulo que seguirá. Abaixo da arte, há o artifício. É nessa zona dos artifícios, intermediária entre a natureza e a arte, que penetramos agora. Vamos tratar do autor de vaudeville
e do humorista.
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DA COMICIDADE EM GERAL/ A COMICIDADE DAS FORMAS E A