Contos no Mediterráneo 2013
Categoria B. Primer premi.
Autora: Cèlia Batlle Massagué
Criação
Ao início só era o Tempo. O Tempo imemorial, universal, sempiterno. O Tempo cíclico. O
Tempo atemporal, relativo; dilatado em anos­luz ou condensado em minutos de sessenta segundos.
Somente o Tempo. Simplesmente o Tempo.
Com o tempo aprendeu a transcorrer, a passar, a desacelerar. Também aprendeu a fragmentar­se
em vezes, momentos, tempinhos. E com o Tempo, começaram acontecer as Coisas.
O Tempo é um fluído em movimento constante. Às vezes, quando ele se sente animado e feliz, é
quase líquido: brinca e salta veloz como a água duma cachoeira ou passeia tranquilo como a dum rio.
Às vezes, fica raivoso e vira como o vapor, e passa tão rápido, que nem tempo dá para compreender
o que aconteceu. Pelo contrário, às vezes percebe­se um pouco mais preguiçoso ou aborrecido; aí é
quando parece que ele para, mas não é assim, não! Porque o Tempo não pode parar: o que acontece é
que ele vai ficando cada vez mais espesso e por isso avança mais devagar.
Foi uma dessas vezes em que o Tempo se sentia tão cansado e tão sozinho, que começou a se
questionar se o seu fluir valia a pena. Esses pensamentos tristes o foram tornando aos poucos num
todo mais denso, mais opaco, mais viscoso. A sua massa, consistente e pesada, avançava ainda
impelida pela inércia, mas cada vez mais devagar. Por causa da sua própria resistência, a sua forma
alterava­se e alongava­se como uma gota de mel cristalizado que cai, com tendência a separar­se do
resto com movimentos infinitesimais, até romper, na sua blandície, a continuidade do fluido. Isso foi
o que aconteceu com o Tempo, e do extremo mais distante da sua massa nasceram seus dois filhos: a
Escuridão e o Silêncio. Podemos dizer então, que os filhos do Tempo nasceram juntos, ao mesmo
tempo, faz tanto tempo que até o Tempo, que não tem memória, esqueceu quando. Aquele pedacinho
do Universo onde nasceram era tão afastado e distante, que nem sempre tinha tempo de voltar para
encontrar eles de novo, e assim foi como a Escuridão e o Silêncio cresceram unidos e sumidos em si
próprios nesse lugar que chamaram Noite.
Os dois irmãozinhos tinham pessoalidades bem diferentes. A Escuridão era expansiva, curiosa
até à indiscrição; enfiava­se em todas as partes. Protetora de mais, empenhava­se ao limite na sua
presença constante e não iria deixar o irmão sozinho por nada. Por outro lado, o Silêncio era tímido,
discreto, reservado e sempre ficava calado. Adorava a sua irmã, mas vibravam em frequências
distintas e aquilo era coisa que, por vezes, conseguia enfurecê­la. Brincalhona, ela escurecia e fazia
buracos negros para chamar a atenção dele, mas nada: ele, eternamente mudo, impávido e tranquilo,
nunca dizia nada. Aí ela ficava nervosa, raivosa e quando a situação ficava escaldante, até lançava
faíscas das quais surgiram as estrelas que ainda agora vemos no firmamento.
Uma vez, a Escuridão decidiu surpreender seu irmão com a coisa mais incrível que pudesse
imaginar: pegou milhões de estrelas e arrumou­as formando uma constelação. Lá situou o radiante
dos riscos de luz da primeira chuva de meteoros da história. O espaço ficou cheio de belíssimos
corpos celestes que não tinham existido até aquele momento... e tudo isso aconteceu no mais
absoluto silêncio, porque ele não disse nada. Não porque não tivesse gostado, simplesmente, porque
não sabia como expressar a emoção que sentia. Mas, desta vez, a Escuridão perdeu a paciência e não
o quis compreender mais: ela ficou tão zangada que explodiu. Da explosão, formou­se uma galáxia
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inteira, e a onda expansiva mandou o Silêncio embora: saiu disparado através do espaço, e com a
velocidade adquirida foi­se concentrando, como acontece com uma bola de neve num avalanche,
rolando sobre si mesmo. Atravessou uma capa de nuvens feitas de Tempo sublimado; a fricção
converteu­o numa espiral incandescente, e subitamente experimentou uma força de atração que
puxava ele com todas as letras do verbo cair. Neste novo percurso, a parte mais exterior da concha
que se tinha formado esfriou­se tão rápido que cristalizou ao seu redor dando corpo a uma espécie de
caracol; logo sentiu um impacto, e tudo parou.
Aturdido pelo treco, o Silêncio embateu contra as paredes do seu encerramento até conseguir
sair.
– Ah! Isso doeu!, gritou a miúda.
O Silêncio ficou pasmado. O que foi isso?
– Como que o que foi isso? Você bateu na minha cabeça, seu desconsiderado!
Uma menina negrinha, magrinha, com os cabelos pretos tão encaracolados como o labirinto do
que tinha acabado de se livrar, estava em pé, na sua frente, olhando para ele e falando com ele como
se fosse a coisa mais normal do mundo. Do... Mundo? Onde estava? O que significava aquilo? Ah!
Sim... Começou a lembrar tudo: os meteoros, sua irmã raivosa, a explosão... O único lugar que tinha
conhecido era a Noite e agora, tudo aquilo parecia tão diferente, sentia­se tão desamparado... Queria
refletir sobre isso, mas a moleca começou a caminhar. Por um instante, duvidou. O que fazer? Olhou
para a concha como uma possível casita mais ou menos confortável; no seu interior, pelo menos teria
certa escuridão, que se assemelhava um pouco à sua irmã. Mas não era a verdadeira Escuridão, nem
sequer um sucedâneo. Assim, o Silêncio deixou seu eco no caracol e virou Vento para alcançar a
menina.
Ele acompanhava­a maravilhado. Cada pegada dela era lavoura e semente e nada havia naquele
mundo até que a menina pisava o lugar. Infatigável, caminhando semeava as plantas que iriam nascer
das plantas dos seus pés. Quando ela subia, criava as montanhas, e ao descer apareciam os vales. O
Silêncio se perguntava de onde teria saído toda aquela matéria, e observava­a, silencioso, e assistia a
seu passeio criador sem molestar. A resposta veio um dia, sozinha, clara como o sorriso da menina
assomando resplandecente sobre a sua pele, escura quanto a Escuridão: tudo quanto existia era feito
de pó de estrelas, caído, como ele, através do espaço sideral. Aí ficou com saudade da sua família e
quis abraçar a menina. Mas, sendo inexperiente nessa coisa de ser Vento, o seu sopro foi gelado. Os
pés da menina ficaram imóveis; ela sossegou, deitou feita uma bolinha no chão e tremendo de frio,
adormeceu. Passou o Tempo, e aquele primeiro frio foi chamado Inverno, e às vezes, a Terra se
lembra dele tremendo em forma de sismo.
A menina acordou moça, e quis subir uma colina para ver que outras coisas tinham mudado.
Correu tão rápido, que tropeçou e caiu: o sangue que saiu do seu joelho era lava quente e vermelha
que ficou nas entranhas da Terra para se converter no magma que iria aquecê­la. A montanha tornou­
se um vulcão que iria dar terra boa, e com isso as sementes que tinha deitado começaram a germinar.
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O Silêncio, admirado, acariciava cada nova folha, cada nova flor. Uma vez, passava distraído
entre as árvores e sem querer, quebrou umas ramas carregadas de frutos. Os frutos caíram e o seu
sumo salpicou, pintando de cores tudo em seu redor. A moça riu tanto da sua torpeza de Vento que
ele, como forma de vingança, rodopiou brincando com seus cabelos até tirar eles. Os cabelos que
saíram voando convertiam­se em passarinhos no ar; as risadas, em borboletas. De tanto rir, teve
soluço, e de cada soluço, surgiram os pequenos gafanhotos e também as rãs. Aquela felicidade
chamou­se Primavera, e o Silêncio sorriu e tornou­se Arco­íris para cobrir o sonho dela.
O Tempo passou de novo e a moça acordou mulher. Já não brincava como antes. Seu corpo era
diferente e seu humor também. Viver com o Silêncio tinha­a feito mais pensativa. Tinha­se habituado
ao silêncio do Silêncio e já não lhe perguntava mais, como quando era menina:
­ Mas, porque você não fala nunca comigo?
Por isso, o Silêncio começou a se preocupar. Pensava que talvez ela já não precisasse mais dele e
se lembrou dos tempos simples, quando não eram mais que ele e a sua irmã que também não
entendia porque ele não falava. Lembrou que as estrelas eram o recurso da Escuridão para desabafar
e pensou que uma delas podia ser um bonito presente para a mulher. Assim, procurou um buraco no
escuro, pegou a estrela mais novinha e levou ela bem pertinho da Terra. A mulher viu a estrela e
sorriu em silêncio, agradecida pelo presente. Quando o Silêncio voltou ao seu lado, o fez já como um
vento cálido, aquecido pela luz do Sol. Com a luz do Sol aconteceram as sombras e com elas,
apareceram vários bichos. As lagartixas, por exemplo, não são outra coisa que pedacinhos de sombra
prófugos, que escaparam do escuro procurando a luz morna daquela época, que foi chamada Verão.
Mais uma vez passou o Tempo e a mulher acordou velhinha. O Silêncio não compreendia a dor
dos seus ossos, antes rochas fortes. Na sua debilidade, as árvores perdiam as folhas e toda a sua força
vital. Até o Sol ficou meio triste e deixou de brilhar com tanta energia. Carentes de calor, todos os
bichinhos que ela tinha criado procuravam refúgio e esconderijo. O Silêncio ficou triste e chamou
Outono àquele tempo em que a velha se apagava.
Tratando de contagiá­la da própria imortalidade, o Silêncio se deixou respirar para preencher o
seu corpo desde o interior. A percorreu inteira, levando a paz do silêncio em cada canto, em cada
ângulo, em cada mínima parte dela. Porém, ao seu passo, o Silêncio apagava o rumor de todo o que
restava de vida na velha e na sua ultima expiração, saiu.
Foi o Tempo, que compadecido da tristeza do seu filho, fez cessar a dor dela. A Escuridão,
compadecida da tristeza do seu irmão, encheu os olhos dela com a infinitude. E o Silêncio, que se
tinha mudado em Chuva, chorou com voz de água e falou por vez primeira:
­ Amo você.
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1º prémio - Estudis gallecs