Q u a l i da de Marcos Veiga dos Santos Professor Associado da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, Campus Pirassununga, SP. Mastite bovina e o uso de antibióticos Tratamento da doença é apontado como a principal causa de ocorrência de resíduos no leite A mastite bovina é o motivo mais frequente para a utilização de antibióticos em vacas leiteiras. Em muitos casos, devido ao uso não racional dos antibióticos, o tratamento da mastite também é apontado como a principal causa de ocorrência de resíduos de antibióticos no leite. Especula-se, adicionalmente, que o uso indiscriminado e sem fundamentação técnica de antibióticos para o tratamento de doenças bacterianas seja uma possível causa de desenvolvimento de resistência microbiana. Dessa forma, mesmo sabendo da importância dos antibióticos para a manutenção da saúde, do bem-estar animal e da produtividade, diversas preocupações surgem por conta do uso irresponsável ou imprudente dessas substâncias, o que afeta o potencial de utilização de uma droga, quando se considera o longo prazo. Conceitualmente, os agentes antimicrobianos são substâncias de origem natural, semissintética ou sintética, que eliminam ou inibem o crescimento de um microrganismo. Os termos “antimicrobiano” e "antibacteriano" englobam todos os antibióticos, bem como compostos sintetizados ou modificados, que têm o mesmo efeito. As primeiras substâncias antimicrobianas foram introdu- 18 Mundo do Leite zidas ainda na década de 1930 e nas décadas subsequentes surgiu a maioria dos antimicrobianos disponíveis até hoje. As principais formas de uso dos antimicrobianos com animais são: 1 terapêutica: uso específico para tratamento e eliminação de uma infecção bacteriana existente. 2 metafilática: uso do antimicrobiano para fins de tratamento de um grupo de animais, após surgimento de sinais clínicos da doença. 3 profilática: administração do antimicrobiano de forma individual para prevenção da doença antes da sua ocorrência (um dos exemplos do uso profilático e terapêutico dos antimicrobianos em vacas leiteiras é o tratamento da vaca seca no final da lactação). 4 promotor de crescimento em animais de produção: antimicrobianos são usados em doses subterapêuticas, como aditivo alimentar, para melhorar ganho de peso e conversão alimentar. Para tratamento da mastite bovina, os agentes antimicrobianos foram inicialmente empregados a partir da década de 1940. O uso dos antimicrobianos tem como funções principais auxiliar a defesa do hospedeiro, eliminar os agentes patogênicos e reduzir as consequências negativas da infecção. Além de ser uma medida fundamental para a cura dos casos de mastite clínica, os antimicrobianos são usados em vacas leiteiras para o controle, a prevenção e a diminuição da disseminação da mastite contagiosa entre as vacas do rebanho. Quando usado na forma de tratamento, o objetivo da terapia antimicrobiana consiste em atingir e manter concentrações adequadas do princípio ativo no local da infecção por um período de tempo suficiente para eliminar o agente causador. Os antimicrobianos podem ser administrados via intramamária ou sistêmica para tratamento de infecções do úbere. Normalmente, emprega-se o tratamento com antimicrobianos nos casos de mastite clínica, durante a lactação, e de mastite subclínica, no final da lactação, pelo uso do tratamento da vaca seca. Jun-Jul/2013 Os principais antimicrobianos utilizados em animais de produção podem ser classificados em sete grupos: 1 β-lactâmicos (ampicilina, amoxicilina, cloxacilina, cefalotina, cefoperazona, ceftiofur e penicilina G); 2 tetraciclinas (oxitetraciclina, tetra- ciclina e clortetraciclina); 3 aminoglicosídeos (estreptomicina, neomicina e gentamicina); 4 fluoroquinolonas (enrofloxacina, danofloxacina); 5 macrolídeos (eritromicina); 6 lincosamidas; 7 sulfonamidas (sulfametazina). Como ocorre o desenvolvimento da resistência A eficiência dos antimicrobianos pode estar comprometida pela resistência dos microrganismos a eles. Um dos instrumentos recomendados para a redução do impacto da disseminação da resistência antimicrobiana é a utilização da cultura microbiológica e dos testes de suscetibilidade in vitro. Para uma escolha adequada do agente antimicrobiano, recomenda-se a prévia identificação laboratorial do agente patogênico e avaliação da suscetibilidade antimicrobiana in vitro. Um dos principais métodos utilizados é o teste de disco difusão Fatores que influenciam o aparecimento de microrganismos resistentes: 4exposição prolongada do pató- geno ao agente antimicrobiano, que causa seleção das cepas resistentes dentro da população; 4mutações e transferências genéticas entre bactérias; 4 tipo de antimicrobiano administrado. em ágar que oferece resultados dos padrões de resistência ou suscetibilidade de uma bactéria específica a determinados antimicrobianos. Esses testes auxiliam na tomada de decisão sobre a utilização do antimicrobiano correto e combate aos agentes causadores de mastite. Entretanto, a defini- Mundo do Leite s Jun-Jul/2013 Na maioria dos países, as classes de beta-lactâmicos e aminoglicosídeos são os medicamentos mais utilizados para o tratamento de mastite. 19 Q u al i da de ção da droga a ser usada, assim como o esquema de tratamento dos casos de mastite, é uma decisão que muitas vezes deve ser tomada de forma imediata, uma vez que o tratamento precoce, principalmente dos casos clínicos, aumenta muito a possibilidade de cura. A ocorrência de resistência bacteriana pode ser considerada uma resposta evolutiva desses microrganismos à presença de agentes antimicrobianos no ambiente. Dentro desse contexto, um dos patógenos mais estudados quanto à resistência antimicrobiana é Staphylococcus aureus, devido a sua importância como agente causador da mastite e à dificuldade de controle. S. aureus destaca-se como um dos microrganismos causadores de mastite mais frequentemente isolados em todos os continentes e o agente que isoladamente determina as maiores perdas na pecuária leiteira. Vários estudos sobre os padrões de suscetibilidade de patógenos causadores de mastite têm sido relatados em outros países e os resultados têm sido conflitantes. Alguns estudos têm demonstrado uma crescente frequência de resistência entre os patógenos causadores de mastite ou um aumento na suscetibilidade, enquanto outros relataram nenhuma mudança nos padrões de resistência. No Brasil, apesar da existência de estudos sobre suscetibilidade antimicrobiana de agentes causadores de mastite, ainda não foram avaliadas a associação entre as práticas relacionadas ao tratamento e a suscetibilidade antimicrobiana de patógenos causadores de mastite, bem como os possíveis fatores de risco. Situação atual da resistência aos antimicrobianos O aparecimento de resistência bacteriana entre patógenos causadores de doenças nos animais sempre gerou grande preocupação na medicina veterinária. Nesse cenário, os 20 Mundo do Leite a Normalmente os esquemas de tratamentos para mastite são de curta duração b Com exceção da cefapirina, a grande maioria dos beta-lactâmicos (os mais usados para tratamentos de mastite) apresentam pouca atividade contra os microrganismos Gram-negativos c A terapia da vaca seca é uma es- tratégia largamente usada, que aumenta a exposição entre bactéria e antibiótico d A eficácia geral dos antibióticos usados no tratamento de mastite é, geralmente, menor que 50%, em especial para as infecções crônicas microrganismos resistentes aos antimicrobianos de origem dos animais são frequentemente incriminados como um potencial risco para a saúde humana. Tem sido particularmente preocupante o uso, em muitos casos, de esquemas de tratamentos em doses sub-terapêuticas em animais de produção. Tanto que a mastite é considerada como a doença que isoladamente tem sido mais objeto de resistência bacteriana. Além disso, os tratamentos recomendados para mastite apresentam diversas características que aumentam o seu potencial de desenvolvimento de resistência: Dessa forma, uma importante questão é saber se o uso de antibióticos como medida para tratamento e controle de mastite tem resultado em aumento da resistência bacteriana ao longo do tempo. Para identificar se uma cepa bacteriana é resistente ou não a um determinado antibiótico são usados os chamados testes de sensibilidade in vitro (também conhecidos como antibiograma), os quais, ainda que com limitações da metodologia, podem fornecer um indicativo sobre a sensibilidade dos agentes testados. Para avaliar a emergência da resistência dos patógenos causadores de mastite aos antimicrobianos, um grupo de especialistas da Federação Internacional de Laticínio (IDF-Internacional Dairy Federation) fez uma extensa revisão sobre estudos científicos realizados nos últimos 30 anos. Foi identificado que o fenômeno de resistência desse grupo de bactérias ocorre há mais de quatro décadas, no entanto, os resultados de estudos indicaram que não ocorreu aumento da resistência ao longo do período de tempo avaliado. Ainda que com pequenas variações em relação à espécie do microrganismo e ao antibiótico analisado, os resultados gerais apontam que não houve indicação do aumento da resistência microbiana dos agentes causadores de mastite em relação aos principais antibióticos usados em fazendas leiteiras. Entre os microrganismos causadores de mastite, o Staphylococcus aureus é o mais estudado em relação à ocorrência de resistência. Algumas cepas desse patógeno são capazes de produzir uma enzima chamada de beta-lactamase, a qual degrada as drogas beta-lactâmicas (penicilina e ampicilina) e aumenta a resistência de S. aureus aos beta-lactâmicos. Entretanto, de acordo com os estudos atuais, não existe evidência de que esse tipo de adaptação ou resistência do S. aureus seja diferente do que era há 30 anos. Da mesma forma, em humanos, uma grande preocupação é a ocorrência de cepas de S. aureus resistentes à meticilina e à vancomicina. Esses tipos de resistência não foram identificados em estudos com amostras de origem de vacas leiteiras, o que indica que não existe evidência da presença dessas cepas como agentes causadores de mastite em vacas leiteiras. Mesmo com esses resultados, é recomendável sempre o emprego de antibióticos com racionalidade e responsabilidade, uma vez que o que hoje pode ser considerado uma ferramenta essencial para a saúde animal, poderá passar a ter eficiência reduzida no futuro. Um caso exemplar, para não perder de vista a importância do uso racional de drogas veterinárias é o caso dos parasiticidas, em particular carrapaticidas e mosquicidas, dos quais atualmente, a grande maioria das bases não tem mais a mesma eficiência que tinha quando da sua introdução no mercado. n Jun-Jul/2013