CAMINHANDO NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO BRASIL EM BUSCA PARTICIPAÇÃO FEMININA E NEGRA Iraneide Soares da Silva – UFC1 [email protected] RESUMO: O objetivo deste artigo é historicizar a educação técnica e tecnológica no Brasil buscando identificar as relações de gênero e raça e a participação feminina no mundo do trabalho. Apóia na legislação da área e na pesquisa de mestrado que desenvolvo no Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará sobre ações afirmativas e educação tecnológica, cujos participantes de investigação são alunas(os), professoras(es) e gestores(as) daquele centro. Não é foco do meu trabalho investigar o cotidiano das alunas negras ou brancas mas, tendo em vista algumas indagações pessoais que nutre-se cotidianamente no meu campo de estudo que é um estabelecimento de ensino como tantos permeado pela ideologia machista presente na linguagem e imaginário social; arrisquei-me a escrever com um breve recorte de raça e gênero a fim de suscitar uma discussão mais ampla no seio dos pesquisadores(as) das áreas tecnológicas do conhecimento. Palavras-chaves: CEFET - educação tecnológica - gênero - raça - mundo do trabalho Inicio este trabalho primeiramente com um breve histórico da educação tecnológica no Brasil tendo em vista a necessidade que vi de situar o leitor no tempo e espaço. Nesse caminhar histórico, fui discutindo mesmo que sem muita profundidade as relações de gênero e raça, pois me intriga nessa história, a ausência de menção ao contingente de mulheres e negros(as). Algumas perguntas se fizeram presentes todo o tempo no meu imaginário quando falava da educação das crianças e jovens para o mundo do trabalho: onde estão as meninas e as(os) negros(as) dessa história? Considerando a base econômica escravocrata, será que os filhos(as) de escravos(as) e ex-escravos(as) podiam estudar nas escolas técnicas? Não consegui aprofundar o estudo a ponto de responder tão satisfatoriamente essas e outras questões que vão surgindo, mas encontro alguns caminhos e nele deixo pistas importantes. 1 Iraneide Soares da Silva é historiadora pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB/ DF, tem pósgraduação em História Cultural, Identidades, Tradições e Fronteiras pela Universidade de Brasília/ UnB; é mestranda em educação brasileira pela Universidade Federal do Ceará, onde desenvolve a pesquisa: Ações Afirmativas nos Centros Federais de Educação Tecnológica, tendo como campo de pesquisa o CEFET/CE. BREVE CAMINHAR SOBRE E SOB A PASSARELA DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO TÉCNICA E TECNOLÓGICA NO BRASIL A história da educação tecnológica2 no Brasil vem de longe. Tem inicio em 1809 com o Decreto do Príncipe Regente, futuro D. João VI, que cria o Colégio das Fábricas, após a suspensão da proibição de funcionamento de indústrias manufatureiras no Brasil. Nesse mesmo período, o Brasil tinha uma economia de base escravagista, com um número considerável de negros cativos. O interesse primeiro do Príncipe Regente com esse Decreto o Príncipe queria a partir da cultura, dá um novo espírito ao povo e melhorar as condições econômicas da sociedade; mudar o quadro de letrados presente na época, que era de bacharéis e eruditos, traço cultural predominante da elite. Porém, o Decreto de 1809, que previa uma mudança significativa, não repercutiu numa transformação significativa na mentalidade cultural da época, pois a base econômica agrícola e escravista não mudou. A iniciativa do colégio das fábricas parece no primeiro momento inovadora, mas, verificando a estabilidade e estrutura econômica, é possível deduzir que os favorecidos dos colégios das fábricas não eram os negros cativos nem seus filhos e filhas, pois o alicerce econômico continuou o mesmo. Por outro lado, a industria não havia chegado ao Brasil, sobretudo como resultado da propensão discursiva e dialética da sociedade da época mais inclinada às letras do que às ciências, às profissões liberais do que às profissões úteis, ligadas à técnica e às atividades do tipo manual e mecânico . assim, os novos profissionais aos poucos foram se inserindo na sociedade, se inserindo na vida social, política, intelectual, acadêmica profissional e econômica ao lado dos doutores e bacharéis, embora não tivesse acesso aos altos postos administrativos da colônia e do Reino Unido. Vale ressaltar que a educação profissional sempre foi tratada de maneira preconceituosa ao longo de sua história, influenciada por uma herança colonial e escravista 2 Tomo emprestado o conceito de ZIPPIN GRINSPUN sobre o termo educação tecnológica e dialogo ao longo desse texto nessa perspectiva “uma filosofia que oriente o sujeito para que ele sela capaz tanto de criar a tecnologia, como desfrutar dela e refletir sobre a sua influência na sua própria formação e de toda sociedade”. ZIPPIN GRINSPUN, Miriam P.S. (org). educação tecnológica: desafios e perspectivas. 3ª edição - São Paulo: Cortez, 2002, p. 27. no tocante às relações sociais e, em especial, ao trabalho. No tocante as relações de trabalho, busco aqui explicar o significado do trabalho para os grupos que compunha a sociedade da época, fazendo um recorte de gênero. Para uma melhor compreensão é valido destacar que enquanto para os meninos/homens o trabalho era naturalizado ou não, dependendo da classe social que pertencia o indivíduo, para as meninas/mulheres o trabalho era “permitido e estimulado”, mas não para todas as mulheres, destaco o caso das mulheres negras que ao contrário das mulheres brancas a quem era posto todo atributo de pureza, bondade e beleza, conforme anuncia Gondinho, (et al INEP 2005, p. 17) . As mulheres negras sempre estiveram inseridas no mundo do trabalho primeiramente como escravas na casa grande; nas lavouras ou nas ruas como comerciantes, quitandeiras, prostitutas, essas mulheres eram notáveis profissionais, mas os dados estatísticos não dão a relevância necessária. Nesse contexto, a educação profissional, em todos os seus níveis e modalidades, tem assumido um caráter de ordem moralista, para combater a vadiagem, ou assistencialista, para propiciar alternativas de sobrevivência aos menos favorecidos pela sorte, ou economicista, sempre reservada às classes menos favorecidas da sociedade, distanciando-a da educação das chamadas “elites condutoras do País”. Isto é tão verdadeiro, que tradicionais cursos de educação profissional de nível superior, como direito, medicina e engenharia, entre outros, são considerados como cursos essencialmente acadêmicos, quando, na verdade, também e, são cursos profissionalizantes. O Parecer CNE/CEB nº .16/99 destaca que, a rigor, “após o ensino médio tudo é Educação Profissional.” Externamente, o mundo experimentava a Revolução Industrial que teve inicio na Inglaterra, com a mecanização dos sistemas de produção dominado por uma burguesia sedenta por maiores lucros, menores custos e produção acelerada. O mundo inspirava modernidade, a onda moderna vinda da Europa, “precisava” passar pelo Brasil. Acontece que, a burguesia industrial européia, aparecia no Brasil num contexto diferente, como a burguesia agrícola que ainda vivia sob um regime escravocrata, comercializando africanos via oceano atlântico. Também podemos apontar o crescimento populacional que trouxe maior demanda de produtos e mercadorias. O Brasil do final do século XVIII, não comportava mais a base econômica agrícola e escravista, mas ao mesmo tempo não possuía estrutura para uma industrialização massiva. É inegável historicamente que o século XVIII tenha sido marcado pelo grande salto tecnológico nos transportes e máquinas. As máquinas à vapor, principalmente os gigantes teares, revolucionaram o modo de produzir. Se por um lado à máquina substituiu o homem e a mulher, gerando milhares de desempregados(as), por outro baixou o preço de mercadorias e acelerou o ritmo de produção. No entanto, uma a mola-mestra da industrialização era o consumo, o que a sociedade brasileira não comportava, tendo em vista o contingente da população que ainda vivia sob o trabalho escravo. Enquanto na Europa os trabalhadores lutavam por melhores condições de trabalho, no Brasil a luta era pelo fim da escravidão. Logo, se não há mercado consumidor, não há expansão da industria. Em suma, a Revolução Industrial tornou os métodos de produção mais eficientes. A produção passou a ser mais célere barateando o preço e estimulando o consumo. Por outro lado, aumentou também o número de desempregados. As máquinas foram substituindo, aos poucos, a mão-de-obra humana. A poluição ambiental vem a tona, o aumento da poluição sonora é visível, o êxodo rural e o crescimento desordenado das cidades também foram conseqüências nocivas para a sociedade até os dias de hoje. Os empregos repetitivos e pouco qualificados foram substituídos por máquinas e robôs; as empresas procuram profissionais bem qualificados para ocuparem empregos que exigem cada vez mais criatividade e múltiplas capacidades. A segunda metade do século XIX caracterizou-se, fundamentalmente, pelo declínio da escravidão e, por conseqüência, pelas discussões acerca das alternativas de trabalho que substituiriam o sistema baseado na mão-de-obra escrava. A partir da proibição da entrada de africanos no Brasil na condição de escravos, em 1850, a reprodução seria o meio de perpetuação do sistema escravista de trabalho. Essa forma de reposição foi eliminada quando instituída a lei que, em setembro de 1871, libertou o ventre das escravas. Desde então, acirraram-se as discussões sobre os meios de contornar, o que não será aprofundado nesse texto. Com relação a educação técnica, na década de 40 do século XIX, houve a construção de dez Casas de Educandos e Artífices em capitais da província. Na segunda metade do século XIX, com a criação de sociedades civis para amparo de crianças órfãs e abandonadas. Dentre essas sociedades, destaca-se as mais importantes que foram os Liceus de Artes e Ofícios, dentre os quais os do Rio de Janeiro (1858), Salvador (1872), Recife (1880), São Paulo (1882), Maceió (1884) e Ouro Preto (1886). O fim da escravidão estava anunciado e, sobre as formas de substituição da mão-deobra cativa, as opiniões dos escravistas eram divergentes: imigração de trabalhadores ou coação do homem nacional? Observando os senhores do Sudeste, como ilustração, percebemos que, enquanto parte dos cafeicultores do Oeste Paulista defendia um projeto de transição da mão-de-obra utilizando trabalhadores imigrantes, os lavradores de Minas, Rio de Janeiro, Espírito Santo e os paulistas representantes do Vale do Paraíba defendiam o emprego da mão-de-obra nacional. A história nos traduz que não havia um projeto unânime de nação que agregasse a população negra. O governo brasileiro não planejou um projeto de nação incluído os negros e negras que acabara de sair do regime escravista. Em 1909, o então presidente Nilo Peçanha instala 19 escolas de Aprendizes Artífices destinadas “aos pobres e humildes”, em vários estados. – quem eram esses pobres? – Será que os filhos de ex-escravos e as meninas entravam nessas escolas? Para essa questão não tenho resposta imediata, mas suponho que sim para os meninos, que de acordo com dados do Arquivo fotográfico de Assistência a Infância, IPAI, 19073 mas com relação as meninas, a Revista Funabem Espaço de vol. II, nº 42, p. 17 de 1983, mostra arquivo fotográfico de 1964 que demonstra uma instituição de amparo as meninas órfão e desvalidas, dentre elas visualizamos um contingente considerável de meninas negras e brancas –. Essas instituições eram escolas similares aos Liceus de Artes e Ofícios, porém voltadas para o ensino industrial. Abro aqui outro parêntese e retorno a história na tentativa de melhor responder as indagações feitas acima, apesar de admitir que as lacunas históricas são constantes, principalmente quando faz-se um recorte de gênero e raça. Na década de 1830, pensando na instrução de crianças pobres a fim de formar um contingente profissional para atuar na 3 RIZZINI, Irene. A Institucionalização da Criança no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro:PUC Rios; São Paulo: Loiyola, 2004, p. 11 e 20. Marinha e na Guerra. O Império determinou o envio de órfãos desvalidos para esses arsenais. Na década seguinte, foram instituídas as Companhias de Aprendizes Artífices e as Companhias de Aprendizes Marinheiros. Iniciava-se, assim, a formação compulsória de trabalhadores para diversos ofícios, através do encaminhamento de crianças e adolescentes às oficinas dos arsenais militares, de Guerra e de Marinha e demais oficio, como marcenarias, oficinas, etc. O objetivo central era evitar que crianças desvalidas tornassem-se futuros vadios, inúteis e perigosos à sociedade. A política de atenção à infância pobre intensificou-se nos anos 1850 com a criação de Asilos de Educandos em quase todas as capitais provinciais. Segundo Maria Luiza Marcílio, “A ideologia que fundamentou essas novas instituições incluía a instrução como elementar, a formação cívica e a capacitação profissional das crianças desvalidas, que assim não seriam ‘entregues a si mesmas, senão depois de terem cumprido os deveres do homem para com a Nação, defendendo-a, e habilitadas para só dependerem de seus braços e da sua habilidade”.4 Arrisco-me a concluir que as preocupações maiores eram direcionadas as aos meninos, quer sejam brancos ou pretos, vez que o objetivo maior do estado era evitar que crianças desvalidas se tornassem futuros vadios e nocivos a sociedade e de acordo com as referências da época, as meninas/mulheres mesmo as de rua, não constituía em um elemento perigoso a segurança social. Dessa viagem histórica continuo com a reforma política de Francisco Campos, quando institui o Decreto Federal nº 19.890/31 e 21.241/32 que regulamentaram a organização do ensino secundário. Já o Decreto Federal nº 20.158/31 organizou o ensino profissional comercial. – as escolas técnicas de comercio - . 4 Entre os institutos criados nos anos 1850 para atender as crianças pobres, destaca-se o Asilo Santa Leopoldina, fundado em 1854 em Niterói, destinado a abrigar meninos e meninas; o Asilo de Órfãs Desvalidas, criado em 1855 na cidade de Desterro, Santa Catarina, criado para receber e educar meninas órfãs e expostas; o Colégio de Santa Teresa e o Asilo Santa Leopoldina, ambos criados em 1857 na cidade de Porto Alegre e que foram destinados a servir de casa de educação e de recolhimento para órfãs desvalidas e meninas desamparadas; o Colégio dos Órfãos e um correlato feminino, o Colégio das Órfãs, criados no Recife em 1855; o Colégio dos Educandos Menores e o Asilo de Órfãs e desvalidas, fundados no ano de 1856, em Fortaleza; a Casa dos Educandos Artífices de Manaus, criada em 1856, tinha por objetivo instruir a mocidade desvalida e encaminhá-la para um ofício; a Casa das Educandas ou Colégio Nossa Senhora dos Remédios também em Manaus foi estabelecida em 1856 (MARCÍLIO, Maria Luiza),1998, p. 193-(203). Em 1942 a Reforma de Gustavo Capanema institui as Leis Orgânicas da Educação Nacional: do Ensino Secundário (Decreto-Lei nº 4.244/42) e do Ensino Industrial (DecretoLei nº 4.073/42). São criadas entidades especializadas, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e transformadas as antigas Escolas de Aprendizes Artífices em estabelecimentos de ensino industrial; no ano seguinte cria-se uma Lei Orgânica para o Ensino Comercial (Decreto-Lei nº. 6.141/43). Criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). 1946 marca a criação da Lei Orgânica do Ensino Primário (Decreto-Lei nº 8.529/46), do Ensino Normal (Decreto-Lei nº 8.530/46) e do Ensino Agrícola (Decreto-Lei nº 9.613/46); em 1961 os estabelecimentos de ensino industrial recebem a denominação de Escolas Técnicas Federais; em 1971 a Lei Federal nº 5.692/71, que reformula a Lei Federal nº 4.024/61, generaliza a profissionalização no ensino médio, então denominado segundo grau. Transforma o modelo humanístico/científico em científico/tecnológico. Foi adotado o Programa Intensivo de Formação de Mão-de-Obra. Em 1978, a Lei nº 6.545 transforma a Escola Técnica Federal de Minas Gerais, Paraná e do Rio de Janeiro nos três primeiros Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) nascem os CEFET’s, com um formato diferente de hoje, mas com muita força e uma educação de qualidade. Nesse momento histórico, verifica-se que aquela proposta de educação técnica objetivada para atender crianças desvalidas, já atendia jovens das classes baixas e até média. Em 1994, Lei Federal nº 8.948/94 cria o Sistema Nacional de Educação Tecnológica; em 1996, a Lei Federal nº 9.394/96, atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), configura a identidade do ensino médio como uma etapa de consolidação da educação básica, preparando o educando para o trabalho e a cidadania. Quem são esses educando? Que cara eles tem? Quantas são as mulheres? Em 1997, o Decreto nº 2.208/97 regulamenta a educação profissional e a separa do ensino médio. Criação do Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP). Em 1999 os centros de educação tecnológica e as faculdades de tecnologia ofereciam 74 cursos. em 2003 esse número subiu para 495 cursos representando um crescimento de 568,9%, em relação a 1999. (fonte: censo da educação superior 2004 – INEP) No período mais recente entre 1999 e 2004, as mudanças legislacionais foram: o censo da educação superior registrava 16 instituições de educação superior tecnológica, todas públicas; 2002, o número subiu para 53 e, em 2004, para 144 instituições, representando um crescimento de 800% em 5 anos; a antiga Secretaria de Educação Média e Tecnológica/SEMTEC/MEC, hoje intitulada Secretaria de Educação Tecnológica/SETEC, busca aproxima-se com a sociedade para juntas debater o ensino técnico no Brasil visando o aperfeiçoamento da legislação da educação profissional e tecnológica. Esse debate traz como pontos de pauta: certificação profissional, fontes de financiamento, a institucionalização de um subsistema nacional da educação profissional e tecnológica e implementação do ensino técnico articulado ao ensino médio, etc. Deixando de fora a formação continuada de gestores, docentes e técnicos para um resultado mais eficaz do trabalho articulado com os temas que emergem na humanidade e que diz respeito diretamente a todo conjunto de educadores e gestores que cabe um estudo mais específico. GÊNERO E EDUCAÇÃO EM FOCO O acesso à educação formal tem sido um foco nas lutas das mulheres desde o surgimento da sociedade moderna. Cronologicamente data-se 1837 a fundação da primeira escola superior para mulheres nos Estados Unidos da América, porém destaca-se que o objetivo principal desta escola era educar esposas para os clérigos e missionários, ou seja, formar esposas adequadas a uma função social masculina. A visão sobre a educação da mulher era meramente um treinamento para o mundo privado, isto é, preparar a mulher para atuar no espaço doméstico e cuidar do marido e filhos e não para desenvolver um trabalho assalariado. O século XX foi marcado por uma série de mudanças socioeconômicas, pela urbanização e industrialização; pelos avanços tecnológicos e difusão dos meios de comunicação, bem como, pela eclosão do movimento feminista. Foi por meio do movimento feminista que o mundo passou a conhecer a condição de opressão e desigualdade que as mulheres estavam submetidas e a partir das denúncias, possibilitou uma atuação maior no espaço público e por conseguinte, uma atuação política e social pela igualdade de direito, de educação e profissionalização. No contexto brasileiro, trabalho, educação e gênero, por mais que pareça um luta comum a todas as mulheres, há um diferencial quando se faz o recorte de raça. A educação das meninas brancas e da elite teve um caminho, e a educação das meninas negras teve um outro. Enquanto a educação das meninas brancas e da elite acontecia nos lares com educadoras contratadas e posteriormente nas escolas femininas, a educação da menina negra acontecia no mundo do trabalho, na vida prática, nas casas das famílias brancas como empregadas domésticas. Creio ser necessário aqui destacar a diferença existente entre as lutas e reivindicações das mulheres brancas e negras, mas principalmente da condição inerente a cada uma em particular e do lugar social ocupado por cada uma. Reafirmando, Carneiro e Rufino5, pode-se constatar que a mulher negra do século XX, é aquela que ainda serve de esteio para o avanço da mulher branca que, diante da visível evolução cultural, social e econômica, como também do empobrecimento gradativo das grandes e tradicionais famílias, com o êxodo rural, a falta de estrutura, investimento e desenvolvimento do campo, levou a mulher da classe média aos bancos escolares, às universidades, bem como às repartições públicas, ao mercado de trabalho formal. Voltando na história, verificamos que só no século XIX a escola pública passa a ter ensino misto, mas dificilmente os pais deixavam as meninas freqüentarem. As meninas geralmente permaneciam na escola até aprender a ler, pois aprender demais poderia dificultar um futuro casamento. As meninas que permaneciam nas escolas tinham direito de aprender apenas trabalhos manuais e domésticos, que algumas instituições ofereciam para atraí-las. O magistério que era uma ocupação essencialmente feminina nesse período histórico, contribuiu para o ingresso de mulheres da classe média ao mercado de trabalho. A possibilidade de aliar ao trabalho doméstico e a maternidade uma profissão revestida de prestígio social fez com que ser professora se tornasse bastante popular entre as jovens. 5 RUFINO, Alzira. Configurações em preto e branco In: Racismo Contemporâneo. (org.) Ashoka e Cidadania Empreendimentos. Rio de Janeiro: Takano Ed. 2003. Coleção Valores e Atitudes. Série Valores n° 1. p. 33-36. CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma Perspectiva de Gênero. In: Racismo Contemporâneo (org.) Ashoka e Cidadania Empreendimentos. Rio de Janeiro: Takano Ed. 2003. Coleção Valores e Atitudes. Serie Valores n° 1, p. 50. Quanto à participação das mulheres em outras profissões, principalmente as mais remuneradas implicava em seguir estudos mais especializados em sua maioria feitos em universidade, o que foi mais uma barreira a ser vencida por elas, a considerar o currículo diferenciado na educação dos meninos e das meninas, o que dificultava mais ainda o ingresso da moças nas universidades. Vale lembrar que estou aqui retratando a história de luta pelo acesso ao mercado de trabalho das mulheres brancas e de classe média, essa história em nada se confunde com a história de luta das mulheres negras e pobres brasileiras, que salvo raríssimas exceções, não tinham acesso à educação e mercado de trabalho formal. No início do século XX, mas precisamente após a Primeira Guerra Mundial, a entrada de mulheres em universidades européias foi bem numerosa, mas só após a segunda Grande Guerra que esse número se equiparou aos rapazes, no entanto, foram as áreas das ciências humanas os campos mais abertos para as meninas, pois as áreas de conhecimentos consideradas científicas e técnicas continuaram sob o domínio masculino6. “No Brasil, as primeiras mulheres a se formarem nos cursos superiores mereceram notícias em jornais de todo pais. Em 1881, os jornais noticiavam as próximas formaturas em medicina nos Estados Unidos de duas mulheres brasileiras: Maria Augusta Generosa Estrella e Josepha Azevedo Felisbela de Oliveira. em 1888, três mulheres recém-formadas no curso de direito em Recife, solicitam ao Instituto dos Advogados Brasileiros permissão para exercer a advocacia e a Magistratura...”7 (GONDINO, P. 19) Convém destacar que a presença da mulher no mundo do trabalho é uma constante ao longo da história quando se trata da mulher negra e pobre e branca pobre, pois estas sempre exerceram os mais diversos ofícios, quer seja no Brasil na condição de escrava doméstica ou de ganho, quer seja nos seus países de origem como estadistas a exemplo da rainha Nzinga. Quanto a mulher branca e de classe média, sua presença no exercício de diferentes tipos de trabalho, na industria, na agricultura e no comércio ainda é novidade no final do século XIX e início do século XX. Trazendo para a realidade do recém-chegado século XXI, ainda é possível verificar empiricamente: a presença massiva das mulheres negras no mercado de trabalho formal e 6 PIEROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998, P. 105. GALDINO, Tatau ...(et al). Trajetória da Mulher na Educação Brasileira 1996-2003, Brasília: Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira 2005, p. 19. 7 informal, mas principalmente nos trabalhos braçais e de baixa remuneração. A mulher branca e pobre por sua vez, também encontra-se inserida em grande quantidade no mercado de trabalho formal e informal, mas com melhores chances de ascensão social e com salários um pouco mais altos do que o da mulher negra. É possível constatar também que as mulheres tanto brancas quanto negras, já chegaram a universidade em todas as áreas do conhecimento, apesar das barreiras de seleção e desigualdade no ingresso. A mulher negra que antes era apenas a negra de ganho ou a “doméstica”, com raríssimas exceções para o caso da Chica da Silva, Lélia Gonzáles, Ruth de Souza e outras meia dúzia que já chegou a ser ministra, deputada, senadora, juíza, médica, frentista, professora, engenheira e tantas outras profissionais competentes. “Ser negro é lindo” grita a menina negra no pátio da escola, apesar da igualdade de oportunidade ainda andar longe de atingir o contingente de cerca de 47% que forma a população negra brasileira. Tarefa difícil é tratar de trabalho e educação e gênero sem recortar por raça, pois as diferenças entre a categoria de gênero branco e negro é gritante. Viajamos na história entre os séculos XIX e XX buscando encontrar a participação feminina e negra no processo de educação formal. Pesquisei desde a criação das escolas de artes e ofícios; passamos pelo Decreto 1.331A de 17 de fevereiro de 1854 que ao mesmo tempo em que instituía a obrigatoriedade da escola primária para crianças maiores de 07 anos, e gratuidade das escolas primárias e secundárias na corte, proibia o acesso das crianças negras filhas de ex-escravizados, bem como os negros adultos, mesmo quando forro à educação formal8. Vimos as diferenças curriculares dos meninos e meninas e a luta das mulheres brancas e de classe média para ocupar o espaço público em especial o mundo do trabalho assalariado e o mito da rainha do lar caindo por terra no que tange a mulher negra. Por fim, abrimos muitas frentes de discussão que na sua maioria possui lacunas bem latentes, mas não foi nosso objetivo aqui responder questões ou costurar a colcha de retalho histórica e sim, abrir o debate e suscitar novas discussões. 8 Ver: ARAÚJO e SILVA in: ROMÃO, Jeruse (org.) História da Educação do Negro e Outras Histórias Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Ministério da Educação: coleção educação para todos, Brasília, DF, 2005 p. 65 a 69. REFERÊNCIAS BELTRÃO, kaizô, NOVELLINO, M. Salet. Alfabetização por raça e sexo no Brasil: Revolução no período 1940-2000. Rio de Janeiro, Texto para Discussão, nº 1, 2002; CASTRO, Maria Helena Guimarães de. Educação para o século XXI – o desafio da qualidade e da eqüidade. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), Brasília, 1999. GALDINO, Tatau ...(et al). Trajetória da Mulher na Educação Brasileira 1996-2003, Brasília: Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira 2005. GOMES, Nilma Lino. Identidade e Corporeidades Negras: reflexão sobre uma experiência de formação de professores(as) para a diversidade étnico-racial. Belo Horizonte: Autêntica 2006. HANER, June. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937, São Paulo, Brasiliense, 1981; HENRIQUES, Ricardo. Raça e gênero no sistema de ensino: os limites das políticas Revista Funabem Espaço de vol. II, nº 42: Rio de Janeiro, dezembro de 1983 universalistas na educação, Brasília : UNESCO, 2002. MARUANI, M., Travail et emploi des femmes, Éditions La Découverte, Paris, 2000. ___________________ Les Mécomptes du Chômage, Ed. Bayard, Paris, 2002 PIEROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998. QUEIROZ, Delcele M. (1996) Mulher negra: trabalho e educação. Dissertação de Mestrado, Salvador, UFBA. RIZZINI, Irene. A Institucionalização da Criança no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: PUC Rios; São Paulo: Loiyola, 2004 ROMÃO, Jeruse (org.) História da Educação do Negro e Outras Histórias. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Ministério da Educação: Coleção Educação Para Todos, Brasília, DF, 2005. ROSEMBERG, Fúlvia. 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