Entre a lei e o ato: considerações acerca da violência policial1 Flávia Brasil Lima O monopólio da violência legítima A violência que verificamos na vida cotidiana das grandes cidades é um importante e alarmante fenômeno social de nossa contemporaneidade e, como tal, necessita ser pensada mais pormenorizadamente. Freud, em carta intitulada “Por que a guerra?”2, em um debate que travou por escrito com Einstein por ocasião da II Guerra, que se prenunciava, teceu importantes considerações a respeito da relação entre direito e poder, ou, tal como propôs, em vez desses termos, “direito ou lei e violência”. Partindo dos primórdios da civilização, Freud analisou que “havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou à lei”3, uma vez que os conflitos e interesses entre os seres humanos eram resolvidos pelo uso da violência até o momento em que a violência foi derrotada pela união. Já em “Totem e tabu”, texto de 1913, Freud demonstrara que o ato do parricídio possuia um valor inaugural e fundador da cultura, uma vez que os irmãos unidos pela força tinham conseguido juntos matar o pai tirânico e violento, colocando assim um fim à horda patriarcal. Deste modo, então, a comunidade organizou-se, estabeleceu regulamentos e instituiu autoridades que fizessem os regulamentos – as leis – serem cumpridos através dos atos legais de violência. Chegamos ao Estado de direito, onde o Estado, enquanto ficção jurídica, passa a ter o monopólio da violência física legítima4 e a partir do qual retira das mãos privadas a conciliação dos conflitos. 1 As considerações presentes neste trabalho são em grande parte fruto das discussões realizadas no Cartel: Lei, violência e gozo, da Escola Brasileira de Psicanálise-R.J. Psicanalista; Correspondente da EBP-Rio; Capitão Psicóloga da PMERJ; Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. 2 FREUD: 1933[1932] 3 Idem, p. 98 4 Vale lembrar que, segundo Wieviorka (1997), essa expressão de Max Weber cunhada em 1919 expressa uma concepção de Estado que não se coaduna com a que presenciamos atualmente, sobretudo porque em alguns países 1 A polícia é o instrumento que realiza a prerrogativa do Estado do uso da força. O policial, portanto, representa o Estado como braço armado da lei. Nesse sentido, o policial é aquele que tem o poder de usar a violência comedida para fazer valer a lei e, muitas vezes, para fazê-la valer é levado a exercê-la com seu ato. O policial transita numa zona limítrofe entre ordem e desordem, lei e transgressão, lei e não-lei. Seu ato é, assim, executado onde a lei não recobre e espera-se que trabalhe nela e com ela, mantendo e fazendo essa linha de demarcação. Entretanto, ocorrem excessos que são geralmente caracterizados pela violência em demasia. Freud já nos alertara em 1930, no célebre texto o “Mal-estar na civilização”, que a convivência entre os membros da civilização só tinha sido possível à custa da repressão dos impulsos sexuais e agressivos. Contudo, quanto a este último, considerava-o como o maior impedimento à civilização à medida que é o derivado e o principal representante da pulsão de morte. Ao término desse texto, Freud faz praticamente um prenúncio da situação a que poderíamos chegar, quando nos diz: A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pela pulsão humana de agressão e autodestruição (...). Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua angústia5. Diante da problemática da violência e dos sintomas contemporâneos, Tendlarz e García (2008) desvelam que à psicanálise cabe uma investigação “acerca da estrutura da violência e das democráticos o Estado pode praticar ou encobrir, através de seus agentes, uma violência ilegítima que é contrária ao seu discurso oficial. 5 FREUD: (1930a[1929]), p. 147-8 2 subjetividades envolvidas, para além da diversidade dos fenômenos nos quais ela pode manifestar-se”6. Violência e agressividade Faz-se necessário demarcar uma diferenciação entre violência e agressividade, uma vez que todo ato violento é necessariamente expressão da agressividade humana, mas nem toda agressividade desemboca numa atitude violenta. Tanto a violência quanto a agressividade são inerentes ao ser humano, mas se diferenciam porque a violência é um poder em potencial que pode estar apenas em intenção ou então manifestar-se em ato. Já a agressividade é constitutiva e, portanto, essencial à vida e à construção do eu como diferente do outro. O eu como instância psíquica não nasce pronto e acabado, tal como Freud nos alertou no texto sobre o narcisismo: “uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o começo”7. Lacan, seguindo Freud, define com precisão o caráter constitutivo da agressividade na formação do eu. No texto “Agressividade em psicanálise” (1948), ele afirma que a agressividade é a tendência correlativa ao modo de identificação narcisista, que determina a estrutura do eu. Então, se o sujeito só pode perceber-se na imagem do outro, é esse outro que está de posse de sua imagem. Sendo desse modo que tal identificação alienante se cristaliza numa tensão conflitiva interna ao sujeito, levando-o à necessidade de destruição desse outro. O “eu é um outro”8 lembra Lacan, fazendo alusão ao poeta Rimbaud, para elucidar que o desejo de um é o desejo do outro e, portanto, há o impulso para destruir o outro a fim de que se possa ter um lugar. Mas agressividade não é sinônimo de destruição; ao contrário, é caracterizada por essa tensão própria à relação imaginária especular e, nesse sentido, é fruto da relação com o semelhante. 6 TENDLARZ e GARCÍA: 2008, p. 13 FREUD: 1914c, p. 84 8 LACAN, J. 1949, p.120 7 3 No caso da destrutividade, essa tensão se dissolve e chega-se ao campo da violência, cuja ação comporta uma força para destruição e, desse modo, impõe-se a questão: seria a violência a agressividade posta em ato? Se partirmos do pressuposto de que em parte a resposta a essa questão é positiva, isto é, que uma das dimensões da violência é a agressividade posta em ato, propomos que nos detenhamos no caso da Polícia Militar para pensarmos quais são as dinâmicas psíquicas que suprimem a tensão e a convertem em ato. Antes de avançarmos, é importante ressaltar que neste trabalho não há a pretensão de esgotar o tema da violência policial, mas apenas chamar atenção para alguns de seus aspectos constitutivos. Sobre a ação policial A partir da experiência clínica da instituição militar, pretende-se trazer à cena algumas questões relativas ao ato policial partindo do mesmo pressuposto levantado por Guimarães (2007), que nos diz: “existe uma conexão característica e suspeitamente recorrente entre as relações de angústia e ato nesses sujeitos e a situação corporativa em que eles vivem e a que se refere sua fala na instância clínica”9. Para Greiser (2008), os sintomas emergentes do mal-estar atual não são mais o retorno do reprimido, pois, por conta do declínio dos significantes mestres, dos ideais da civilização e da função paterna, deixam de ser formação do inconsciente para ceder lugar às “patologias do ato”. Segundo a autora, “a angústia tem um papel principal nos sintomas atuais, que emergem diretamente dela e não da repressão”10. Dentro do que se concebe por “patologias do ato” se situam o acting out e a passagem ao ato, conceitos teórico-clínicos formulados por Lacan no seminário sobre A angústia (1962-63). Nesse seminário, Lacan trata ambas as modalidades do ato como formas de resolver ou evitar a angústia. Deteremo-nos sobre a passagem ao ato neste trabalho por considerá-la a chave para pensar o ato do policial aqui em questão. 9 GUIMARÃES: 2007, p. 98 GREISER: 2008, p. 82 10 4 A passagem ao ato deve ser cotejada com o estatuto do ato em psicanálise, que, segundo a orientação lacaniana, é totalmente distinto da ação propriamente dita. De acordo com Miller, o que Lacan chama de ato verdadeiro é “todo ato que não é somente agitação, movimento, descarga motora, todo ato verdadeiro, todo ato que marca, que conta, é transgressão”11. Lacan assevera que na passagem ao ato há um apagamento do sujeito, pois este, no instante de fazê-lo, ao buscar extrair o objeto a que tampona o furo do Outro e provoca a angústia, reduz-se a ele. Segundo Lacan, o sujeito “se precipita e despenca fora da cena”.12 Essa é a estrutura da passagem ao ato que permite distingui-la do acting out, no qual o sujeito está justamente dentro de uma cena que é dirigida ao Outro. Essa identificação do sujeito ao objeto que cai marca a transgressão que a passagem ao ato comporta, à medida que instaura um corte que marca um antes e um depois, produzindo, necessariamente, uma mutação no sujeito. Nesse sentido, verificamos que é bastante recorrente a procura de policiais por atendimento psicológico após terem realizado uma ação impulsiva ou então quando se sentem na iminência de fazê-la. De acordo com Guimarães, “nesses casos, o sujeito sente-se compelido a cometer um ato que, no fulgurar de um instante, se mostra como a única solução disponível para um estado de angústia”13. O problema do funcionamento impulsivo que leva à passagem ao ato, como bem assevera Greiser (2008), é que quando os significantes mestres não se repetem na cadeia significante, não retornam do reprimido inconsciente, acabam por retornar no real do ato. Sendo assim, os sintomas que comportam as “patologias do ato” “dão conta de um gozo por fora do inconsciente”14, contrariando a definição de Lacan que concebe o sintoma como o modo particular que tem o sujeito de gozar de seu inconsciente. O que a experiência clínica da Polícia Militar nos deixa entrever é que os policiais, não obstante serem responsáveis pela preservação da ordem social, segundo os preceitos do Estado de 11 MILLER: 1988, p. 52 LACAN, J. Seminário X, A angústia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 129. 13 GUIMARÃES: 2007, p. 99 14 GREISER: 2008, p. 87 12 5 direito, estão às voltas com atitudes que tomam por impulso e pelas quais tendem a não se responsabilizar. Nesse contexto, permeado pelo que consideramos as “patologias do ato”, o estabelecimento do trabalho analítico pode ficar dificultado, já que para começar é preciso primeiro instaurar um processo de subjetivação. Mas uma vez iniciado, o trabalho analítico pode propiciar que o sujeito opere uma transformação da angústia por circuitos diferentes da passagem ao ato. 6 Referências bibliográficas FREUD, S. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. ____________ “Totem e tabu”, [1913(1912-13)], v. XIII. ____________ “Sobre o narcisismo: uma introdução”, (1914c), v. XIV. ____________ “O mal-estar na civilização”, (1930a[1929]), v. XXI. ____________ “Por que a guerra?”, (1933[1932]), v. XXII. GREISER, I. Delito y transgresión: Un abordaje psicoanalítico de la relación del sujeto con la ley. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2008. GUIMARÃES, M.C.P. A passagem ao ato falha: da angústia ao ato na teoria lacaniana. Dissertação de mestrado. PUC. Rio de Janeiro, 2007. LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. ________ “Agressividade em psicanálise”, in: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1998. MILLER, J-A. “Jacques Lacan: Remarques sur son concept de passage a l’acte”, in : Actualités Psychiatriques, Paris, p. 5-14, nº 1. Janvier 1988. TENDLARZ, S. E. & GARCÍA, C. D. ¿A quién mata el asesino? Buenos Aires: Grama Ediciones, 2008. WIEVIORKA, M. “O novo paradigma da violência”, in Tempo Social; Rev. Social. USP. São Paulo, 9(1), p. 5-41, maio de 1997. 7