Pirataria, palavra proliferada
Pirataria, palavra proliferada
Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 30 de Março de 2011
A palavra pirataria está sendo cada vez mais associada pelo senso comum ao crime
grave. Isso é ruim para os movimentos em favor de mais liberdade para a cultura, mas é
ainda muito pior para quem tem que se virar para sobreviver.
A briga pela descriminalização do compartilhamento de conteúdos - cujas disputas em
torno do Minc são o fenômeno mais recente e aparente - é, também, uma batalha
cultural, pelas palavras. O resultado, a vitória, deve se dar nos campos jurídico, com a
modificação de leis; e técnico, com a não proliferação de equipamentos com travas do
tipo DRM. O esforço que todos nós ligados aos movimentos pela democratização das
ideias, do conhecimento e da cultura vimos empreendendo há anos é em fazer com que a
sociedade acredite que trocar arquivos é, no fundo, algo benéfico, um direito de todos,
uma condição necessária para mais justiça social. É mostrar que novas economias, que
não prejudicam aos autores, podem ser desenvolvidas, num jogo em que todos ganham e
que contribui para uma sociedade melhor.
Mas um dos sinais de que essa é uma batalha em que estamos perdendo vantagem
rapidamente é o uso indiscriminado que ganhou a palavra pirataria para descrever
qualquer atividade ilegal. Muito pior, o quanto sua associação com crimes, feita
maliciosamente pela indústria do entretenimento, bota gente que está se virando para
sobreviver na mesma categoria de violadores da lei realmente nocivos à sociedade, como
traficantes e ladrões.
Dois exemplos que vi recentemente. Primeiro, uma reportagem de algum jornal do SBT
que falava da falta de regulação da clonagem animal no Brasil, o quanto isso poderia
significar de prejuízos à indústria e tal. Matéria ruim, mal apurada, mas isso não vem ao
caso. Uma das entrevistadas foi uma parlamentar da bancada ruralista. Não me lembro
precisamente quem, então não arrisco citar o nome, a informação de que era uma
ruralista foi o que gravei no momento. Bem, ela, ao falar do problema da falta de
regulamentação disse, hesitante: "Com isso, os clones que existem atualmente são,
assim..., como dizer, piratas". Vejam que não há nenhuma violação de direitos autorais ou
propriedade intelectual no caso examinado. Ela, na ânsia de classificar algo como ilegal,
usou a primeira palavra que lhe veio em mente para se referir à ilegalidade, pirataria.
Outro exemplo, um programa da Bandeirantes, uma versão nacional de Cops, Polícia 24h.
Policiais invadem um cortiço no centro de São Paulo, apuram denúncia de tráfico de
drogas. Encontram dois ambulantes, com pilhas de óculos de Sol, controles remotos,
carregadores de celular. Pura quinquilharia da 25 de Março, vendida à luz do dia, com
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nota, aparentemente nada ilegal. Mesmo assim os policiais apreendem as mercadorias,
que os próprios ambulantes dizem ser avaliada em R$ 2 mil reais. Quando chegarem à
delegacia as câmeras não estarão lá, então aposto que o que foi apreendido não terá
volta, é prejuízo. Eram marginais perigosos que precisam ir para a cadeia, junto com
traficantes, ladrões etc? De forma alguma, era gente sem emprego - um dizia ter vindo
morar com a mãe em São Paulo - que está fazendo o que pode para sobreviver.
Há muito acusa-se os ambulantes e os vendedores de CD piratas de associação com
quadrilhas internacionais e grandes máfias. Sem questionar a existência das máfias, o
problema está na criminalização automática daquele que está na ponta, que vende o
controle remoto genérico porque o original ou não existe ou custa muito caro. Que lhe
oferece um carregador de celular para carro muito mais em conta que o original de
grande marca (claro que a qualidade não é a mesma, mas a diferença é abissal,
mostrando que o preço do original é evidentemente abusivo).
Falo isso com relativo conhecimento de causa. Tenho um parente próximo que vive disso,
tem uma banca em feira em uma cidade pequena, vende quinquilharias da 25 de Março.
Semanalmente vai a São Paulo, compra as mercadorias e repassa. Vendeu, por bom
tempo, CDs piratas. Mas parou com os CDs e DVDs quando a polícia - civil - passou a
cobrar propina para não recolher as mercadorias. Dessa época, conta como a grande
maioria dos CDs que vendia não era encontrada nas lojas da cidade. Ou a periferia, para
onde a feira ia, simplesmente não tinha lojas de CDs. Boa parte desses títulos não era de
bandas conhecidas, era de grupos do Norte e Nordeste que não chegam a São Paulo,
muito menos a cidades pequenas. Algumas dessas bandas só atingiram olhos e ouvidos da
classe média depois, quando Gugus e Faustões passaram a apresentá-las nos tardes de
domingo. Outras nunca se tornaram conhecidas, continuam só na memória afetiva de
quem migrou.
Não se trata aqui de defender o que é proibido. É claro que, para o movimento pela
cultura livre - se é que dá para usar esse termo - o ideal é promover única e
exclusivamente o uso do que tem licença livre, ativamente privilegiando esses trabalhos
em detrimento dos proprietários. Para o mundo da cultura, isso tem um peso talvez até
maior que para o software. Mas, ao mesmo tempo, é preciso romper com a atitude
preconceituosa de quem vê o vendedor de bugigangas como um bandido. Quando no
cinema vemos as propagandas que associam pirataria a crime, patrocinadas pela
indústria do entretenimento, o efeito é até cômico, de tão exageradas que são. Só que
isso tem um efeito muito sério para o cara que está lá nas ruas, é certeza de truculência
da PM, que ganha salvo-conduto para tratá-los como marginais - e, assim, não duvido,
transforme muitos em verdadeiros criminosos.
O fato é que a palavra "pirata" virou como um marcador. Quanto mais ela estiver
associada ao crime, mais atividades corriqueiras como emprestar um mp3 para um
amigo, ou brincar fazendo um remix de uma música com vídeo, vão sendo estigmatizadas
e tornando-se socialmente condenáveis. Aí, meus amigos, já era cultura livre.
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