“NOVOS” MOVIMENTOS SOCIAIS: BATALHA SEMÂNTICA, ADENSAMENTO
DE LUTAS OU NEGAÇÃO HISTÓRICA?
Úrsula Adelaide de Lélis - UNIMONTES/UFU
Maria Vieira da Silva - UFU
Financiamento: FAPEMIG
Introdução
Os ideários e dispositivos neoliberais, que sustentam a atual fase do sistema de
capital, têm incidido, sobremaneira, nas formas de pensar e viver dos sujeitos, provocando
ressignificações nos princípios e fundamentos de instituições públicas e privadas em favor da
institucionalização desse sistema como eixo de organização da vida em sociedade. Nesse
contexto, ocorrem embates entre segmentos do Estado, expressando correlações de força que
movem e determinam a sociedade.
Tecidos nessa sociedade, os movimentos sociais estão expostos a esse processo de
horizontalidade deslanchado pelo capital. Diuturnamente, seus princípios, bases e
fundamentos são alvo das tentativas modeladoras do capital. Sem embargo, mesmo
desenvolvendo ações de enfrentamento e oposição aos ataques neoliberais do capital, esses
movimentos acabam por sofrer influências, rupturas e reordenamentos.
Este trabalho problematiza a designação adjetiva e conceitual do termo “novos”
para os movimentos sociais, após os anos 1970, procurando inquirir a quem e/ou a que serve
essa dicotomização em torno dos “velhos” e “novos” movimentos. Objetivando apresentar
argumentos para encaminhar esse debate, inicia-se com reflexões necessárias à construção de
um conceito sobre o que se empreende como movimentos sociais, nos tempos atuais, no
Brasil, como pré-requisito para a discussão seguinte sobre a propriedade da adjetivação
“novos” que lhes tem sido atribuída, pós-1970, intencionando desvelá-la como possível
estratégia de enfraquecimento material e simbólico desses movimentos pelo sistema do
capital.
Movimentos sociais: constituição e gênese
Os movimentos sociais se constituíram na História do Brasil de maneira geral e
particularizada, em consonância com os encaminhamentos mundiais e locais. Alguns autores,
como Ghon (2008), apresentam a Inconfidência Mineira como um dos antecedentes primeiros
do que viria a se configurar como lutas e movimentos sociais no Brasil, com características
peculiares capazes de abarcar a designação de movimento social. A partir daí, as
determinações expressas e reais da vida brasileira levaram à constituição de outros
movimentos que foram crescendo e se expandindo para campos diversos da sociedade.
Na visão de Scherer-Warren (2005) são três os pré-requisitos básicos para que um
movimento possa ser classificado como movimento social:
a) o reconhecimento coletivo de um direito e a formação de identidades. Mesmo
objetivo esse pré-requisito abarca um fator subjetivo que não é natural, mas, sim criado pela
conscientização “[...] não apenas do direito a um direito, mas o direito e o dever de lutar por
esse direito e de participar em seu próprio destino. É o reconhecimento coletivo de um direito
que leva à formação de uma identidade social e política” (p. 69, grifo nosso).
b) o desenvolvimento de uma sociabilidade política construída pela formação
política em torno de ideais e identitária dos sujeitos.
c) a construção de um projeto de transformação que gira, especificamente, em
torno de um ideal parcial, individualizado pela qual se luta, mas, também, em torno de um
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ideal geral, comum a toda sociedade, o que garante a continuidade da luta quando o imediato
houver sido conquistado.
Estas representações, no âmbito dos movimentos sociais apresentam contornos
muito delineados, dado o caráter educativo configurado em dimensões da organização e da
cultura política desses coletivos. A organização política gira em torno da conscientização que
leva os sujeitos do processo a aprenderem a se mobilizar em torno de ideais, e essa
conscientização é que os mantém na luta. A dimensão da cultura política colabora na
formação do imaginário coletivo do grupo para agir coletiva e organizadamente, a enfrentar
desafios, a expressar-se e a calar-se no momento devido e recuar quando necessário. Ensina,
principalmente, a não se abrir mão dos princípios fundamentais que sustentam suas lutas
(GOHN, 2005).
É relevante, também, destacar o terceiro pré-requisito apresentado por SchererWarren (2005) de que, além de um ideal mais imediato e específico (e não parcializado ou
individualizado como a autora propõe), os movimentos sociais não podem se distanciar da
perspectiva macro que empreende toda a luta: um ideal comum que, quando enfrentado de
maneira específica por um movimento, acaba por incidir diretamente nas causas dos demais
movimentos porque tensiona a forma de organização da sociedade. Um ideal totalizado
porque referente à sociedade como um universal integrado, total, concreto, não desvinculado
em nenhuma das suas partes.
Mouriaux e Beroud (2005, p. 170-171) avaliam que para se construir um conceito
de movimento social é preciso trabalhar em duas perspectivas: uma diacrônica e outra
sincrônica. “O primeiro eixo está centralizado no processo. [...], o movimento social não está
programado. Não acontece seguindo um caminho uniforme, linear ou circular, mas se
expressa através de um espiral de forma irregular”. O segundo toma como referência que
perpendicularmente aos movimentos, e mesmo entre eles, há o desenrolar de uma série de
outros acontecimentos que tanto são resultantes desses movimentos, quanto interferem neles,
ou não.
No século XVIII, os movimentos em prol da independência brasileira, dentre eles a
Inconfidência Mineira, podem ser sublinhados como um dos primeiros antecedentes do que
viria a se configurar como lutas e movimentos sociais, no Brasil (GHON, 2008). Nessa
retomada, fica claro como aos poucos esses movimentos, que inicialmente tinham incursos
nos seus quadros as elites intelectuais e políticas porque a luta era contra a Coroa Portuguesa,
vieram ganhando contornos de lutas das camadas mais pobres, dos excluídos e sem poder na
sociedade, dado que essas elites foram se distanciando de tais movimentos, pois, além de
ascenderem ao poder foram apoderando-se de outras ferramentas, especialmente as
simbólicas, para a conquista de seus objetivos.
Na sua nascente, e especialmente no curso do seu desenvolvimento, essas lutas e
movimentos vão consolidando-se perante a sociedade sob características ligadas à insurreição,
ao desvio da ordem e do progresso, insubordinação, barbárie, selvageria, anarquia,
mascarando o seu caráter emancipatório de resistência e combatividade em prol da construção
e efetivação de direitos de cidadania. À História oficializada, e posteriormente também à
mídia, coube a disseminação de tal olhar, entronando os heróis produzidos e camuflando fatos
reais.
É recorrente, na História brasileira, o distanciamento progressivo das elites desses
movimentos. Se na Inconfidência Mineira (1789) intelectuais, mineradores ricos, proprietários
rurais, clérigos e militares compunham a luta (GOHN, 2008), no decorrer historiográfico o
povo, as classes subordinadas, passam a compor, predominantemente, esse quadro.
Importante ressaltar que, mesmo quando havia nobres e abastados em seus quadros,
as punições, execuções e refreamentos recaiam, predominantemente, sobre os sujeitos das
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classes populares. Foi assim, por exemplo, com Tiradentes, no movimento da Inconfidência, e
com os “conspiradores brancos” na Conspiração dos Alfaiates (1798).
Na visão de Gohn (2008, p. 23), “[...] não existem movimentos puros, isolados,
descontextualizados de qualquer grupo, partido ou instituição”. Mormente, a historiografia
nos apresenta movimentos de agregação mista de classes, origens e nascenças, bem como
outros de adesão ora elitista, ora popular, sendo este último, em geral, o mais sangrento, como
o Movimento da Cabanagem (1835), em Belém do Pará, de origem extremamente popular, no
qual cerca de 30.000 pessoas (30% da população paraense na época) foram dizimadas
(GOHN, 2008). Aliás, quebra-quebra, tortura, sangramento e morte foram ocorrências
cotidianas na História dos movimentos e lutas sociais, repreendidos intensamente pela força
militar oficial.
Sem embargos, podemos afirmar que os movimentos sociais expressam as lutas que
os sujeitos engendram no âmbito do Estado e refletem formas de resistência às condições
materiais e simbólicas por meio das quais produzem suas vidas enquanto alternativas de
superação ao que está posto. São processos tecidos no cerne da sociedade, constituído no
espaço da sociedade civil, como resultado das contradições que nela se estabelecem pela ação
dos indivíduos. É a situação e o sentimento de não pertencimento ao circuito dos direitos que
levam os sujeitos a se organizarem em lutas e movimentos. É a busca pela efetivação da
cidadania plena que move esses sujeitos. Ela é o mote perseguido.
A designação adjetiva e conceitual do termo “novos” para os movimentos sociais
A partir dos anos 1970, aos movimentos sociais foi agregado o adjetivo “novos”
por parte significativa de estudiosos da área, organizações da sociedade civil e dos próprios
movimentos, sob alegação de que ele passaram a agregar “novos elementos” ao seu arsenal de
lutas. Escreve Scherer-Warren (2005, p. 49-50) que esses movimentos “[...] almejam atuar no
sentido de estabelecer um novo equilíbrio de forças entre Estado [...] e sociedade civil [...],
bem como no interior da própria sociedade civil nas relações de força entre dominantes e
dominados, entre subordinantes e subordinados”.
Na visão de Gohn (2008, p. 203) o caráter da “novidade” dos movimentos sociais,
[...] foi a forma e o modo de equacionar e de encaminhar as demandas, assim como
a sistematização e suas possíveis soluções. [...]. O caráter novo está também na
redefinição da ideia de comunidade, não apenas como um locus geográfico espacial,
mas como uma categoria da realidade social, de intervenção social nesta realidade;
assim como o abandono da postura até então predominante na cultura política
brasileira, que é a de se esperar pela ação do Estado, enquanto uma obrigação, e
criticá-lo pelo não-cumprimento ou omissão (grifos nossos).
Buscando efetivar o termo “novo” aos atuais movimentos sociais, Scherer-Warren
(2005, p. 66) tenta elucidar o uso desse termo nos movimentos do campo, do século XX,
mesmo reconhecendo que “[...] há traços dos velhos movimentos sociais que ressurgem com
maior ou menor intensidade nos movimentos sociais organizados mais recentemente”.
Partindo da análise dos movimentos sociais do campo da primeira metade do século
passado, que denomina de “movimentos messiânicos”, chegando aos movimentos das décadas
de 1970 e 1980 (“Movimento das Barragens”, “Movimento dos Sem-Terra”, “Movimento dos
Boias-Frias”, dentre outros), Scherer-Warren (2005, p. 67-68) defende que as suas diferenças
localizam-se nas suas formas de organização e encaminhamento de lutas:
as novas formas de organizações no campo, por sua vez, valorizam a participação
ampliada das bases, a democracia direta sempre que possível, e opõem-se, pelo
menos no nível ideológico, ao autoritarismo, à centralização do poder e ao uso da
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violência física. Quanto ao conteúdo de suas lutas, os últimos como os primeiros,
possuem demandas específicas e por vezes defendem utopias de transformações
mais gerais. O que há de inovador é a luta pela ampliação do espaço da cidadania,
incluindo-se aí a busca de modificações das relações sociais cotidianas. Pelo menos
alguns desses grupos pretendem modificar a historicidade e o sistema de relações
de poder e, nesse sentido, são verdadeiros Movimentos Sociais.
Poderiam tais movimentos, nas décadas citadas, encaminhar as lutas de outra
maneira, estando o país mergulhado em uma ditadura e lutando para sair dela? Quais seriam
as outras formas possíveis de empreender as lutas, naquele momento? Teria sentido hoje, estar
se organizando da mesma forma que nas décadas anteriores?
Por outro lado, Santos (2005) avalia que os “novos” movimentos sociais não
perderam a tônica da crítica à regulação social capitalista, ao contrário, tais críticas tornaramse ainda mais acirradas, e ainda incluíram na sua agenda a crítica à emancipação social
socialista, definida pelo marxismo. Essa segunda linha crítica dos “novos” movimentos
sociais ganhou centralidade no bojo das demandas desses movimentos porque, segundo o
autor (2005, p. 177), eles passaram a denunciar novas formas de opressão, o que
[...] implica denunciar as teorias e os movimentos de emancipação que as omitiram,
que não estiveram atentas a elas, ou que até mesmo compactuaram com elas.
Implica, portanto, criticar o marxismo e o movimento operário tradicional, assim
como o chamado “socialismo real”. O que é visto por esses como fator de
emancipação (o bem-estar material, o progresso tecnológico das forças produtivas),
nos NMSs1 se transforma em fator de regulação.
Entretanto, é o próprio Santos (2005, p. 177) quem aponta a arquitetura
contraditória vivida no âmbito dos “novos” movimentos sociais. Mesmo sublinhando que
estes lutam e criticam o atual sistema do capital, aglutinando “novas” e “velhas” pressões,
reconhece que não é a utopia que os sustenta, mas sim ações e metas emergenciais de caráter
imediatista: “[...] a emancipação pela qual se luta tem como objetivo transformar o cotidiano
das vítimas da opressão aqui e agora e não em um futuro distante. Ou a emancipação começa
hoje, ou não começa nunca mais” (SANTOS, 2005, p. 177-178). Trata-se, portanto, de uma
luta, antes social e cultural, do que política.
Há, também, nesse universo dos “novos” movimentos sociais, o discurso de uma
aparente independência institucional em relação ao Estado, desconsiderando a face civil deste,
de que nascem os movimentos sociais e as arregimentações que vêm sendo estabelecidas na
relação Estado-movimentos sociais através de ações de parceria, especialmente no que tange
ao financiamento dos movimentos. Além disso,
[...] as reivindicações globais-locais sempre terminam transformando-se em uma
exigência feita ao Estado, e depende de como o Estado se sinta diante da
contingência política de ter que dar-lhe resposta. A prova dessas afirmações é que
não é raro vermos os NMSs jogando o jogo da democracia representativa, seja por
meio de lobbying ou pela via extraparlamentar; e envolvidos em alianças mais ou
menos oficias com sindicatos e partidos, quando eles mesmos não se transformam
em partidos (SANTOS, 2005, p. 182).
Entretanto, é a História dos movimentos sociais que nos leva a questionar esta
dicotomização conceitual em torno dos movimentos sociais, dado que, historicamente, eles já
tinham a característica da diversidade que hoje os distingue. Eles nunca foram só operários
e/ou sindicais, ou congregaram aspectos apenas políticos, ou econômicos, ou sociais. Já na
sua nascente, aglutinavam temáticas, interesses, problemáticas, disparidades e objetivos
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“Novos” Movimentos Sociais.
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diversos, plurais, passando de demandas simples, localizadas, específicas, como o Movimento
dos “Profissionais do Turfe” – que originou a Sociedade Beneficente dos Profissionais do
Turfe, em 1934 (GHON, 2008) – a demandas mais gerais, acirradas política, econômica e
socialmente, como a “Confederação do Equador” (1824), o “Movimento da Cabanagem”
(1835), a “Revolta de Canudos” (1874-97), o “Quebra-Quilos” (1873), o “Movimento
Abolicionista” (1878-88), a “Revolta da Vacina” (1904), a “Greve Geral” (São Paulo, 1917),
o “Movimento do Cangaço” (1925-38), a “Coluna Prestes” (1925-27) os “Movimentos por
Reformas de Base na Educação” (1947-61), os “Movimentos Sociais no Campo pela Reforma
Agrária” (1958-64), dentre outros.
O que se pode constatar é que em cada época, em cada período da História, são
diferentes os motes e as formas de luta. Quando da Monarquia, a luta era pela República.
Quando da República, a luta era pela democratização dos espaços sociais. Quando da falta das
políticas sociais, a luta é pelo seu estabelecimento. Vencida uma luta, alcançada uma
conquista – mesmo que, às vezes, parcialmente –, novas demandas ganham a cena,
ascendendo a outros movimentos reivindicatórios. Não há, portanto, “novidade” nas lutas,
elas são sempre pela busca e implementação de ações efetivas de direitos, em investidas
diferenciadas, pois outras são as demandas, as formas de persegui-las e os resultados
conquistados. São lutas e vitórias, lutas e derrotas, lutas e encaminhamentos de outras lutas.
Para além da luta pela defesa da vida e dos direitos necessários a ela, esses
movimentos devem ser pensados como produtores e produtos da História, como espaços que
em toda a sua jornada puseram-se a questionar a forma de organização da sociedade, dos seus
direitos e dos deveres. A questionar e a arbitrar forças e ações para mudar as deliberações e o
instituído social, política, ética e culturalmente.
O que nos parece “novidade”, nos anos 1990, é o agrupamento de alguns desses
movimentos em Organizações Não-Governamentais (ONG‟s) com objetivos diversos, dentre
os quais a destacada substituição do Estado na organização da vida social, financiada algumas
vezes por esse mesmo Estado, e, outras vezes, utilizando-se de estratégias antagônicas à sua
essência, como, por exemplo, a associação ao Estado ou a alguns setores conservadores da
própria Sociedade Civil, para a realização de suas metas. Antagônicos porque a defesa do
antiautoritarismo e da descentralização do poder sempre foram características intrínsecas de
tais movimentos. Seriam essas organizações “novas” armas de luta desses movimentos ou
resultados dos mecanismos de cooptação do capital? Seria a adjetivação “novos” uma
estratégia de adensar o caráter revolucionário dessas lutas?
A que/quem serve a dicotomização conceitual em torno dos “velhos” e “novos”
movimentos sociais?
Para Scherer-Warren (2005, p. 9), já na década de 1990,
[...] os movimentos populares e seus mediadores passaram por transformações que
vão da valorização das organizações de base (grassroots organizatios), para mais
recentemente o reconhecimento crescente da importância das articulações,
intercâmbios e formação de redes, temáticas e organizacionais (network
organizations).
Tais mudanças e seus resultados na sociedade permitem, segundo Scherer-Warren
(2005, p. 9-10), falar de uma “rede de movimentos”, que “[...] implica buscar formas de
articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso,
nas interconexões, das identidades dos atores com o pluralismo”.
No século XXI, na visão da autora (2005), esta “rede de movimentos” reveste-se de
um caráter transnacional, por aglutinar lutas que são mundiais, sem recorrência específica a
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nenhum país, como a luta pela paz e pela efetivação dos direitos humanos, ladeados por uma
ética humanista. Contudo, se assim se caracterizam os atuais movimentos sociais é porque são
essas as demandas do momento atual, do mundo contemporâneo, e não especificamente dos
movimentos, que arregimentam da realidade o que esta demanda. Não são os movimentos
sociais que criam as demandas. São os homens que as absorvem da realidade e as
transformam em mote de luta. Assim, afirma-se o caráter histórico dos movimentos: nascem e
se desenham da realidade, do momento, da conjuntura, das circunstâncias ditadas pela
realidade, das necessidades dos homens e da sociedade em tempos sempre presentes.
Isso implica afirmar o caráter material das lutas: nascem de conjunturas, das
realidades entrepostas, não de ideais pensados. Nascem da premência do dia a dia do homem
real, das vicissitudes que ele vive e enfrenta cotidianamente, na vida e na lida com os demais
homens, em sociedade.
Tais lutas ganham um caráter idealizado apenas pelo desenho do que almeja o
homem encontrar ou construir, apenas em termos de vontade, ideal do que se pretende
alcançar com as lutas, ideal que nasce da concretude em que vivem os sujeitos: um modelo de
sociedade ideal, mas não no sentido weberiano do “tipo ideal”, mas do que ele acredita que
seja justo, de direito e possível pela sua ação coletiva, junto aos seus pares, mesmo que em
certos momentos tais desejos e idealizações sejam contraditórios, não intersectivos.
É a realidade material que dita os motes dos movimentos. Eles sempre se
constituíram a partir do tempo vivido, das condições postas, das contradições enfrentadas
cotidianamente, da busca de indivíduos pelas demandas sociais, econômicas, políticas,
culturais, educacionais que emergiam da realidade que se constituía enquanto produziam a
vida.
A realidade é um equilíbrio de forças materiais sempre em movimento com quebra
e busca dos equilíbrios necessários. Portanto, ela é pensada no fluxo da superação do existente
(o “ser”) para o que se deseja (“o que deve ser”), carregando, portanto, em si, o germe da
transformação, papel que Gramsci (2011, p. 35) atribui ao político, sujeito que
[...] pretende criar novas relações de força e, por isso, não pode deixar de se ocupar
com o „deve ser‟ não entendido evidentemente em sentido moralista. [...]. Portanto,
o „deve ser‟ é algo concreto, ou melhor, somente ele é interpretação realista e
historicista da realidade, somente ele é história em ato e filosofia em ato, somente
ele é política.
O homem, enquanto zoon politikon (animal político) (MARX, 2008),
[...] em ato é um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move
na vazia agitação de desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva: mas o
que é esta realidade efetiva? Seria algo estático e imóvel, ou, ao contrário, uma
relação de forças em contínuo movimento e mudança de equilíbrio? Aplicar a
vontade à criação de um novo equilíbrio das forças realmente existentes e atuantes,
baseando-se naquela determinada força que se encontra progressista, fortalecendo-a
para fazê-la triunfar, significa continuar movendo-se no terreno da realidade efetiva,
mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para isso) (GRAMSCI, 2011, p.35).
Nessa correlação de forças, os indivíduos se organizam a partir do que a realidade
demanda, em coletivos sociais através de movimentos de múltiplas faces e conteúdos,
compondo ricas experiências, constituindo-se em “[...] verdadeiros laboratórios de
criatividade, nos quais se testam alternativas societárias” (SCHERER-WARREN, 2005, p. 7).
Sob tais perspectivas, ao incorporado adjetivo “novos” parece-nos adequar-se, com
mais propriedade, a referência “atuais”, que diferencia a contemporaneidade dos movimentos
a cada época, dadas as situações estruturais e conjunturais. Assim, atestamos que as mudanças
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e características dos movimentos não são novas, são condizentes com o tempo e o espaço
vividos. As demandas de pressão e luta de cada tempo e lugar são frutos das ações humanas
empreendidas em tempos e lugares próximos e distantes. São, dessa forma, resultados da
praxis humana.
Se no período colonial, monárquico e no início republicano, as formas de governo e
as representações oficiais do Estado eram os alvos prioritários dos movimentos sociais – pelos
aspectos conjunturais e estruturais–, hoje, esse foco é dividido no âmbito da própria face civil
desse Estado, dado que ela também se apresenta como núcleo de opressão de muitos grupos
sociais, como os negros, as mulheres, os índios e os homossexuais.
Uma característica muito destacada por alguns autores para a defesa do “novo” de
tais movimentos (GOHN, 2008; SCHERER-WARREN, 2005; SANTOS, 2005) refere-se à
fragmentação dos mesmos em movimentos menores, mais delimitados ideológica e
socialmente e a sua luta e pressão pelo direito de usufruir de bens e equipamentos coletivos e
participar das decisões que afetam as suas vidas e a do planeta, direta e indiretamente
(SCHERER-WARREN, 2005).
Historicamente tais pautas foram diferentes? Pelo que lutaram os inconfidentes, os
mascates, os baianos, os Pioneiros da Educação, os modernistas, os abolicionistas, os
estudantes, os populares, os operários, os farrapos, os cangaceiros, os comerciantes se não
pelas causas da liberdade, respeito e dignidade humanas e dos seus próprios grupos? O que os
moveu se não o sentimento e a certeza da exclusão parcial ou total do que defendiam ser para
todos e/ou para o seu grupo? Não foram os interesses e as necessidades de cada um que os
levaram à luta e à pressão? O que sempre fizeram esses movimentos se não negar a exclusão
instituída material e simbolicamente, pressionar e lutar por novas formas de se organizar a
vida social, mesmo quando movidos por razões particularistas? Não foram sínteses
reconstruídas através de particularidades? Não se caracterizaram, ao longo da História, tais
movimentos pela resistência e enfrentamento ao instituído e ao simbólico, tomando como
referência as suas maneiras de pensar o mundo?
Se no início dos movimentos a luta se dava mais por instinto e paixões (GOHN,
2005), à medida que se desenvolveu a sociedade brasileira, política, social e culturalmente,
alicerçaram-se ideais, perspectivas e consciências, outras formas de organizar e encaminhar a
luta eclodiram porque mudou a própria sociedade. Mudaram os aspectos constitutivos e
orientadores dos movimentos, porque mudou a sociedade, o homem, os povos, as nações, o
mundo. Teríamos, então, uma “nova” sociedade, um “novo” povo, um “novo” mundo?
Tomando como referência os movimentos sociais no campo, Scherer-Warren
(2005) afirma que eles, a partir da segunda metade dos anos 1970, são “novos” porque se
organizam e encaminham as lutas de maneira diferente. Os “velhos” movimentos, quanto à
organização, “[...] incorporavam, sobretudo, formas clientelistas e paternalistas de fazer
política; em certas ocasiões utilizavam o instrumento da democracia representativa e não
excluíam em outras, o recurso da violência física”. Mas, o que era o Brasil antes de 1980? Um
país recheado de atos violentos, uma república sangrada pela ditadura, golpes de Estado...
Como poderiam ser diferentes os movimentos sociais, como poderiam eles se descolar do
contexto em que se encontravam inseridos e fazer uso de outras armas, que não as usuais?
Assim se organizavam porque a sociedade, na qual se encontravam, estava mesclada de atos
antidemocráticos, de lutas armadas, com uma população sem direitos, cerceada pelo poder de
sítio.
Hoje, descolado da realidade seria os movimentos se utilizarem de estratégias de
guerrilhas para a discussão e conquista das suas demandas, quando o país já se baliza por
aspectos e ações democráticas, quando já se tem uma legislação compatível com os rumos
dessa democracia, quando formas de protesto e movimentos já são reconhecidos como
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direitos, quando há possibilidades de se alçarem vôos por outras vias que não as da luta
armada.
Outra característica também evidenciada como delineadora do “novo” nos
movimentos é a chegada da classe média a esse espaço, especialmente em movimentos
ecológicos, feministas, de bairro... Contudo, o debulhar da História nos apresenta militares,
comerciantes, profissionais liberais, fazendeiros em movimentos e lutas! Não seria esse,
então, o diferenciador para tal adjetivação.
Portanto, os argumentos a favor do uso do adjetivo “novo” para designar os
movimentos atuais atestam com mais vigor a nossa tese de que os aspectos individualistas,
particularistas e classistas nos movimentos pós-1970 sempre estiveram presentes na
constituição daqueles que se revestem das posições e relevos de cada época. Posições e
relevos que eles também ajudaram a construir, e hoje fazem uso para o engajamento de
pressões e arregimentação de lutas. Lutam os movimentos contra o que incomoda os sujeitos
sociais, pelas suas aspirações, pelas demandas que a vida lhes impõe.
Essas proposições reafirmam a nossa tese sobre a contemporaneidade dos
movimentos: as demandas, as pressões, as lutas são históricas, por isso se vestem com as
roupas e as ideias do seu tempo. Roupas e ideias que ajudaram a construir. Hoje, por exemplo,
só se luta pela ampliação da cidadania porque, em décadas passadas, ela era praticamente nula
e outros movimentos lutaram pela sua construção. Na sua trajetória, os movimentos vão se
compondo de maneiras variadas, incorporando e originando características, modos de fazer e
pensar o mundo, de acordo com o seu tempo. São atuais os movimentos sociais e não
“novos”. São históricos, contemporâneos. A arregimentação das lutas, os modos de
organização de recursos, o encaminhamentos das agendas mudaram, não por força do
surgimento de “novos‟ movimentos, mas pelas suas características diacrônicas e sincrônicas,
isto é, pelo seu caráter histórico.
Ao se fazerem sujeitos do seu tempo, os coletivos em movimentos2 aglutinam
elementos do passado e do presente, na perspectiva do que almejam para o futuro. Mesclam
elementos, ideologias, práticas... Negam outros... Originam muitos... Algumas das formas
consideradas “arcaicas” e “velhas” de fazer política e encaminhar as lutas ainda permanecem
no seio de muitos movimentos: clientelismo, paternalismo, autoritarismo, subserviência,
dominação, disputa interna pelo poder, hierarquização das relações... representadas, na
atualidade, por exemplo, através de contratos de parceria com instituições privadas ou
público-privadas, e até mesmo estatais, para o financiamento da sua luta. Muitos movimentos
sociais estabelecem parcerias com empresas que mantêm condutas que os próprios
movimentos combatem (LÉLIS, 2006).
É preciso que se lembre, também, que um direito instituído e materializado em leis
e/ou práticas políticas, econômicas e sociais abre sempre a prerrogativa para a conquista do
que ainda não se efetivou. Esse nos parece ser o caminho de construção da cidadania: a
conquista de direitos gerando outros tantos.
Os movimentos sociais sempre se constituíram e estiveram na luta pela garantia dos
direitos que cabiam aos homens, por vezes de maneira muito particularista. Em outras, de
modo mais geral. Esse sempre foi o mote da sua constituição e materialidade. Justiça social,
consolidação da cidadania, efetivação dos direitos para todos ou apenas para alguns foram e
são os eixos sobre os quais sempre se ergueram. Aludir que esses movimentos têm “novas”
lutas e essências parece-nos uma estratégia articulada em torno do esvaziamento do seu
caráter político, da fragilização dos seus ideais, da retirada da centralidade da luta de classes
do seu cerne. A partir da consumação de tal estratégia, as questões pertinentes ao trabalho são
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Termo cunhado pelo Profº Miguel G. Arroyo, em referência aos movimentos sociais.
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afastadas da centralidade das lutas, como se todas as questões sobre a relação capital/trabalho
estivessem resolvidas.
Imbuir os movimentos sociais de características e contornos que os afastam dos
seus princípios originais de mudança e justiça social, retirar as consequências da organização
da sociedade pelo sistema do capital do cerne da discussão, principalmente adjetivando-os de
“novos”, e destacando modulações em torno de aspectos fragmentados e particularistas,
significa destituí-los da sua capacidade de arregimentar a mudança social.
Mészáros (2011, p. 95-96) define os “novos movimentos sociais” como uma
dissidência prematura e ingênua formada pelos socialistas desiludidos da classe trabalhadora.
Para o autor (2011), tais movimentos desvalorizam o trabalho como potência transformadora
e emancipadora, como “[...] alternativa radical à ordem sociometabólica do capital [...]”.
Como vencer um sistema milimetricamente organizado, estruturado de maneira
mutuamente antagônica, de modo a manter a subordinação permanente do trabalho ao capital
através de lutas fragmentadas e imediatistas, sem cunho político? Tal posicionamento não
estaria alimentando o axioma indiscutível propagado pelo capital e seus gestores de que não
há alternativa, e que o máximo que se atingirá será o âmbito das soluções remediativas?
Conseguir pequenas concessões na letra da lei bastaria? Mover e vencer processos
simplificados na realidade vivida seria o limite? Maquiar as formas de exploração e alienação,
construindo uma pseudo-sociedade fundada na justiça social é a meta?
Fragmentados e particularizados, esses movimentos cristalizam uma aura em torno
da vontade coletiva nacional-popular, apresentando uma dicotomização falseada em torno da
regulação-emancipação, e da subjetividade-cidadania, aniquilando o que Gramsci (2011)
definiu como consciência operosa, isto é, a verdadeira ação, aquela que gera a mudança real,
como defenderam Marx (2008) e Marx e Engels (2002; 2001).
Entendemos que a cidadania, ao contrário do que resguarda o grupo de defesa do
que tem sido denominado como “novos” movimentos sociais, não se resume à simples
concessão de direitos abstratos e universais, como alude Santos (2005). O seu foco é a
construção concreta de uma sociedade fundada na justiça social.
Considerações Finais
A tônica em torno da adjetivação “novos” aos movimentos sociais poderia levarnos a pensar que se trata de uma discussão propedêutica, uma batalha semântica, que não
promove o encaminhamento de reflexões verdadeiramente relevantes à discussão sobre os
movimentos sociais. Seriam discussões banais, arregimentadas por debilidades acadêmicas.
Ao contrário, defendemos como basilar o encaminhamento dessa discussão porque
ao que nos parece, esta é uma questão que atinge a representação, a constituição e a essência
de movimentos sociais na sua íntegra. É preciso que se pense por que uma parcela
significativa dos que vivem, pensam e estudam os movimentos sociais defendem a incursão
adjetivativa “novos” aos mesmos, e até mesmo por que um grupo já defende a substituição
deste pelo adjetivo “novíssimo”. Não se trata de uma batalha semântica, mas de se entender
que as palavras trazem circunscritas compreensões de realidades influenciando,
significativamente, maneiras de se produzir e pensar o mundo. Todo conceito é
historicamente produzido, por isso nunca neutro. Há sempre um conjunto de fatores que
incidem na construção de um conceito ou na sua reformulação.
Os movimentos sociais sempre se constituíram a partir das demandas do tempo
vivido, das contradições enfrentadas cotidianamente pelo homem enquanto produz a vida.
São, portanto, fruto das ações humanas empreendidas em tempos e lugares próximos e
distantes, resultado da praxis. Portanto, aludir a esses movimentos como possuidores de
“novas” lutas e essências, na atualidade, aponta para uma estratégia articulada em torno do
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esvaziamento do seu caráter político, da fragilização dos seus ideais, da retirada da
centralidade da luta de classes do seu cerne. Com a consumação de tal estratagema, questões
pertinentes ao trabalho são afastadas dos centros de suas lutas, como se todas as questões
sobre a relação capital/trabalho estivessem resolvidas. Como resultado dessa estratégia do
atual sistema do capital, ocorre o adensamento das lutas em favor da composição de uma
sociedade fundamentada nos seus princípios, destituindo esses movimentos da sua capacidade
de arregimentar a mudança social.
Referências
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brasileiros. 4.ed.São Paulo: Edições Loyola, 2008.
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4.ed.,v.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Os novos movimentos sociais. In: LEHER, Roberto;
SETÚBAL, Mariana (Orgs.). Pensamento crítico e movimentos sociais – diálogos para uma
nova praxis. São Paulo: Cortez, 2005.
SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2005.
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Trabalho Completo - IV Congresso em Desenvolvimento Social