“NOVOS” MOVIMENTOS SOCIAIS: BATALHA SEMÂNTICA, ADENSAMENTO DE LUTAS OU NEGAÇÃO HISTÓRICA? Úrsula Adelaide de Lélis - UNIMONTES/UFU Maria Vieira da Silva - UFU Financiamento: FAPEMIG Introdução Os ideários e dispositivos neoliberais, que sustentam a atual fase do sistema de capital, têm incidido, sobremaneira, nas formas de pensar e viver dos sujeitos, provocando ressignificações nos princípios e fundamentos de instituições públicas e privadas em favor da institucionalização desse sistema como eixo de organização da vida em sociedade. Nesse contexto, ocorrem embates entre segmentos do Estado, expressando correlações de força que movem e determinam a sociedade. Tecidos nessa sociedade, os movimentos sociais estão expostos a esse processo de horizontalidade deslanchado pelo capital. Diuturnamente, seus princípios, bases e fundamentos são alvo das tentativas modeladoras do capital. Sem embargo, mesmo desenvolvendo ações de enfrentamento e oposição aos ataques neoliberais do capital, esses movimentos acabam por sofrer influências, rupturas e reordenamentos. Este trabalho problematiza a designação adjetiva e conceitual do termo “novos” para os movimentos sociais, após os anos 1970, procurando inquirir a quem e/ou a que serve essa dicotomização em torno dos “velhos” e “novos” movimentos. Objetivando apresentar argumentos para encaminhar esse debate, inicia-se com reflexões necessárias à construção de um conceito sobre o que se empreende como movimentos sociais, nos tempos atuais, no Brasil, como pré-requisito para a discussão seguinte sobre a propriedade da adjetivação “novos” que lhes tem sido atribuída, pós-1970, intencionando desvelá-la como possível estratégia de enfraquecimento material e simbólico desses movimentos pelo sistema do capital. Movimentos sociais: constituição e gênese Os movimentos sociais se constituíram na História do Brasil de maneira geral e particularizada, em consonância com os encaminhamentos mundiais e locais. Alguns autores, como Ghon (2008), apresentam a Inconfidência Mineira como um dos antecedentes primeiros do que viria a se configurar como lutas e movimentos sociais no Brasil, com características peculiares capazes de abarcar a designação de movimento social. A partir daí, as determinações expressas e reais da vida brasileira levaram à constituição de outros movimentos que foram crescendo e se expandindo para campos diversos da sociedade. Na visão de Scherer-Warren (2005) são três os pré-requisitos básicos para que um movimento possa ser classificado como movimento social: a) o reconhecimento coletivo de um direito e a formação de identidades. Mesmo objetivo esse pré-requisito abarca um fator subjetivo que não é natural, mas, sim criado pela conscientização “[...] não apenas do direito a um direito, mas o direito e o dever de lutar por esse direito e de participar em seu próprio destino. É o reconhecimento coletivo de um direito que leva à formação de uma identidade social e política” (p. 69, grifo nosso). b) o desenvolvimento de uma sociabilidade política construída pela formação política em torno de ideais e identitária dos sujeitos. c) a construção de um projeto de transformação que gira, especificamente, em torno de um ideal parcial, individualizado pela qual se luta, mas, também, em torno de um 2 ideal geral, comum a toda sociedade, o que garante a continuidade da luta quando o imediato houver sido conquistado. Estas representações, no âmbito dos movimentos sociais apresentam contornos muito delineados, dado o caráter educativo configurado em dimensões da organização e da cultura política desses coletivos. A organização política gira em torno da conscientização que leva os sujeitos do processo a aprenderem a se mobilizar em torno de ideais, e essa conscientização é que os mantém na luta. A dimensão da cultura política colabora na formação do imaginário coletivo do grupo para agir coletiva e organizadamente, a enfrentar desafios, a expressar-se e a calar-se no momento devido e recuar quando necessário. Ensina, principalmente, a não se abrir mão dos princípios fundamentais que sustentam suas lutas (GOHN, 2005). É relevante, também, destacar o terceiro pré-requisito apresentado por SchererWarren (2005) de que, além de um ideal mais imediato e específico (e não parcializado ou individualizado como a autora propõe), os movimentos sociais não podem se distanciar da perspectiva macro que empreende toda a luta: um ideal comum que, quando enfrentado de maneira específica por um movimento, acaba por incidir diretamente nas causas dos demais movimentos porque tensiona a forma de organização da sociedade. Um ideal totalizado porque referente à sociedade como um universal integrado, total, concreto, não desvinculado em nenhuma das suas partes. Mouriaux e Beroud (2005, p. 170-171) avaliam que para se construir um conceito de movimento social é preciso trabalhar em duas perspectivas: uma diacrônica e outra sincrônica. “O primeiro eixo está centralizado no processo. [...], o movimento social não está programado. Não acontece seguindo um caminho uniforme, linear ou circular, mas se expressa através de um espiral de forma irregular”. O segundo toma como referência que perpendicularmente aos movimentos, e mesmo entre eles, há o desenrolar de uma série de outros acontecimentos que tanto são resultantes desses movimentos, quanto interferem neles, ou não. No século XVIII, os movimentos em prol da independência brasileira, dentre eles a Inconfidência Mineira, podem ser sublinhados como um dos primeiros antecedentes do que viria a se configurar como lutas e movimentos sociais, no Brasil (GHON, 2008). Nessa retomada, fica claro como aos poucos esses movimentos, que inicialmente tinham incursos nos seus quadros as elites intelectuais e políticas porque a luta era contra a Coroa Portuguesa, vieram ganhando contornos de lutas das camadas mais pobres, dos excluídos e sem poder na sociedade, dado que essas elites foram se distanciando de tais movimentos, pois, além de ascenderem ao poder foram apoderando-se de outras ferramentas, especialmente as simbólicas, para a conquista de seus objetivos. Na sua nascente, e especialmente no curso do seu desenvolvimento, essas lutas e movimentos vão consolidando-se perante a sociedade sob características ligadas à insurreição, ao desvio da ordem e do progresso, insubordinação, barbárie, selvageria, anarquia, mascarando o seu caráter emancipatório de resistência e combatividade em prol da construção e efetivação de direitos de cidadania. À História oficializada, e posteriormente também à mídia, coube a disseminação de tal olhar, entronando os heróis produzidos e camuflando fatos reais. É recorrente, na História brasileira, o distanciamento progressivo das elites desses movimentos. Se na Inconfidência Mineira (1789) intelectuais, mineradores ricos, proprietários rurais, clérigos e militares compunham a luta (GOHN, 2008), no decorrer historiográfico o povo, as classes subordinadas, passam a compor, predominantemente, esse quadro. Importante ressaltar que, mesmo quando havia nobres e abastados em seus quadros, as punições, execuções e refreamentos recaiam, predominantemente, sobre os sujeitos das 3 classes populares. Foi assim, por exemplo, com Tiradentes, no movimento da Inconfidência, e com os “conspiradores brancos” na Conspiração dos Alfaiates (1798). Na visão de Gohn (2008, p. 23), “[...] não existem movimentos puros, isolados, descontextualizados de qualquer grupo, partido ou instituição”. Mormente, a historiografia nos apresenta movimentos de agregação mista de classes, origens e nascenças, bem como outros de adesão ora elitista, ora popular, sendo este último, em geral, o mais sangrento, como o Movimento da Cabanagem (1835), em Belém do Pará, de origem extremamente popular, no qual cerca de 30.000 pessoas (30% da população paraense na época) foram dizimadas (GOHN, 2008). Aliás, quebra-quebra, tortura, sangramento e morte foram ocorrências cotidianas na História dos movimentos e lutas sociais, repreendidos intensamente pela força militar oficial. Sem embargos, podemos afirmar que os movimentos sociais expressam as lutas que os sujeitos engendram no âmbito do Estado e refletem formas de resistência às condições materiais e simbólicas por meio das quais produzem suas vidas enquanto alternativas de superação ao que está posto. São processos tecidos no cerne da sociedade, constituído no espaço da sociedade civil, como resultado das contradições que nela se estabelecem pela ação dos indivíduos. É a situação e o sentimento de não pertencimento ao circuito dos direitos que levam os sujeitos a se organizarem em lutas e movimentos. É a busca pela efetivação da cidadania plena que move esses sujeitos. Ela é o mote perseguido. A designação adjetiva e conceitual do termo “novos” para os movimentos sociais A partir dos anos 1970, aos movimentos sociais foi agregado o adjetivo “novos” por parte significativa de estudiosos da área, organizações da sociedade civil e dos próprios movimentos, sob alegação de que ele passaram a agregar “novos elementos” ao seu arsenal de lutas. Escreve Scherer-Warren (2005, p. 49-50) que esses movimentos “[...] almejam atuar no sentido de estabelecer um novo equilíbrio de forças entre Estado [...] e sociedade civil [...], bem como no interior da própria sociedade civil nas relações de força entre dominantes e dominados, entre subordinantes e subordinados”. Na visão de Gohn (2008, p. 203) o caráter da “novidade” dos movimentos sociais, [...] foi a forma e o modo de equacionar e de encaminhar as demandas, assim como a sistematização e suas possíveis soluções. [...]. O caráter novo está também na redefinição da ideia de comunidade, não apenas como um locus geográfico espacial, mas como uma categoria da realidade social, de intervenção social nesta realidade; assim como o abandono da postura até então predominante na cultura política brasileira, que é a de se esperar pela ação do Estado, enquanto uma obrigação, e criticá-lo pelo não-cumprimento ou omissão (grifos nossos). Buscando efetivar o termo “novo” aos atuais movimentos sociais, Scherer-Warren (2005, p. 66) tenta elucidar o uso desse termo nos movimentos do campo, do século XX, mesmo reconhecendo que “[...] há traços dos velhos movimentos sociais que ressurgem com maior ou menor intensidade nos movimentos sociais organizados mais recentemente”. Partindo da análise dos movimentos sociais do campo da primeira metade do século passado, que denomina de “movimentos messiânicos”, chegando aos movimentos das décadas de 1970 e 1980 (“Movimento das Barragens”, “Movimento dos Sem-Terra”, “Movimento dos Boias-Frias”, dentre outros), Scherer-Warren (2005, p. 67-68) defende que as suas diferenças localizam-se nas suas formas de organização e encaminhamento de lutas: as novas formas de organizações no campo, por sua vez, valorizam a participação ampliada das bases, a democracia direta sempre que possível, e opõem-se, pelo menos no nível ideológico, ao autoritarismo, à centralização do poder e ao uso da 4 violência física. Quanto ao conteúdo de suas lutas, os últimos como os primeiros, possuem demandas específicas e por vezes defendem utopias de transformações mais gerais. O que há de inovador é a luta pela ampliação do espaço da cidadania, incluindo-se aí a busca de modificações das relações sociais cotidianas. Pelo menos alguns desses grupos pretendem modificar a historicidade e o sistema de relações de poder e, nesse sentido, são verdadeiros Movimentos Sociais. Poderiam tais movimentos, nas décadas citadas, encaminhar as lutas de outra maneira, estando o país mergulhado em uma ditadura e lutando para sair dela? Quais seriam as outras formas possíveis de empreender as lutas, naquele momento? Teria sentido hoje, estar se organizando da mesma forma que nas décadas anteriores? Por outro lado, Santos (2005) avalia que os “novos” movimentos sociais não perderam a tônica da crítica à regulação social capitalista, ao contrário, tais críticas tornaramse ainda mais acirradas, e ainda incluíram na sua agenda a crítica à emancipação social socialista, definida pelo marxismo. Essa segunda linha crítica dos “novos” movimentos sociais ganhou centralidade no bojo das demandas desses movimentos porque, segundo o autor (2005, p. 177), eles passaram a denunciar novas formas de opressão, o que [...] implica denunciar as teorias e os movimentos de emancipação que as omitiram, que não estiveram atentas a elas, ou que até mesmo compactuaram com elas. Implica, portanto, criticar o marxismo e o movimento operário tradicional, assim como o chamado “socialismo real”. O que é visto por esses como fator de emancipação (o bem-estar material, o progresso tecnológico das forças produtivas), nos NMSs1 se transforma em fator de regulação. Entretanto, é o próprio Santos (2005, p. 177) quem aponta a arquitetura contraditória vivida no âmbito dos “novos” movimentos sociais. Mesmo sublinhando que estes lutam e criticam o atual sistema do capital, aglutinando “novas” e “velhas” pressões, reconhece que não é a utopia que os sustenta, mas sim ações e metas emergenciais de caráter imediatista: “[...] a emancipação pela qual se luta tem como objetivo transformar o cotidiano das vítimas da opressão aqui e agora e não em um futuro distante. Ou a emancipação começa hoje, ou não começa nunca mais” (SANTOS, 2005, p. 177-178). Trata-se, portanto, de uma luta, antes social e cultural, do que política. Há, também, nesse universo dos “novos” movimentos sociais, o discurso de uma aparente independência institucional em relação ao Estado, desconsiderando a face civil deste, de que nascem os movimentos sociais e as arregimentações que vêm sendo estabelecidas na relação Estado-movimentos sociais através de ações de parceria, especialmente no que tange ao financiamento dos movimentos. Além disso, [...] as reivindicações globais-locais sempre terminam transformando-se em uma exigência feita ao Estado, e depende de como o Estado se sinta diante da contingência política de ter que dar-lhe resposta. A prova dessas afirmações é que não é raro vermos os NMSs jogando o jogo da democracia representativa, seja por meio de lobbying ou pela via extraparlamentar; e envolvidos em alianças mais ou menos oficias com sindicatos e partidos, quando eles mesmos não se transformam em partidos (SANTOS, 2005, p. 182). Entretanto, é a História dos movimentos sociais que nos leva a questionar esta dicotomização conceitual em torno dos movimentos sociais, dado que, historicamente, eles já tinham a característica da diversidade que hoje os distingue. Eles nunca foram só operários e/ou sindicais, ou congregaram aspectos apenas políticos, ou econômicos, ou sociais. Já na sua nascente, aglutinavam temáticas, interesses, problemáticas, disparidades e objetivos 1 “Novos” Movimentos Sociais. 5 diversos, plurais, passando de demandas simples, localizadas, específicas, como o Movimento dos “Profissionais do Turfe” – que originou a Sociedade Beneficente dos Profissionais do Turfe, em 1934 (GHON, 2008) – a demandas mais gerais, acirradas política, econômica e socialmente, como a “Confederação do Equador” (1824), o “Movimento da Cabanagem” (1835), a “Revolta de Canudos” (1874-97), o “Quebra-Quilos” (1873), o “Movimento Abolicionista” (1878-88), a “Revolta da Vacina” (1904), a “Greve Geral” (São Paulo, 1917), o “Movimento do Cangaço” (1925-38), a “Coluna Prestes” (1925-27) os “Movimentos por Reformas de Base na Educação” (1947-61), os “Movimentos Sociais no Campo pela Reforma Agrária” (1958-64), dentre outros. O que se pode constatar é que em cada época, em cada período da História, são diferentes os motes e as formas de luta. Quando da Monarquia, a luta era pela República. Quando da República, a luta era pela democratização dos espaços sociais. Quando da falta das políticas sociais, a luta é pelo seu estabelecimento. Vencida uma luta, alcançada uma conquista – mesmo que, às vezes, parcialmente –, novas demandas ganham a cena, ascendendo a outros movimentos reivindicatórios. Não há, portanto, “novidade” nas lutas, elas são sempre pela busca e implementação de ações efetivas de direitos, em investidas diferenciadas, pois outras são as demandas, as formas de persegui-las e os resultados conquistados. São lutas e vitórias, lutas e derrotas, lutas e encaminhamentos de outras lutas. Para além da luta pela defesa da vida e dos direitos necessários a ela, esses movimentos devem ser pensados como produtores e produtos da História, como espaços que em toda a sua jornada puseram-se a questionar a forma de organização da sociedade, dos seus direitos e dos deveres. A questionar e a arbitrar forças e ações para mudar as deliberações e o instituído social, política, ética e culturalmente. O que nos parece “novidade”, nos anos 1990, é o agrupamento de alguns desses movimentos em Organizações Não-Governamentais (ONG‟s) com objetivos diversos, dentre os quais a destacada substituição do Estado na organização da vida social, financiada algumas vezes por esse mesmo Estado, e, outras vezes, utilizando-se de estratégias antagônicas à sua essência, como, por exemplo, a associação ao Estado ou a alguns setores conservadores da própria Sociedade Civil, para a realização de suas metas. Antagônicos porque a defesa do antiautoritarismo e da descentralização do poder sempre foram características intrínsecas de tais movimentos. Seriam essas organizações “novas” armas de luta desses movimentos ou resultados dos mecanismos de cooptação do capital? Seria a adjetivação “novos” uma estratégia de adensar o caráter revolucionário dessas lutas? A que/quem serve a dicotomização conceitual em torno dos “velhos” e “novos” movimentos sociais? Para Scherer-Warren (2005, p. 9), já na década de 1990, [...] os movimentos populares e seus mediadores passaram por transformações que vão da valorização das organizações de base (grassroots organizatios), para mais recentemente o reconhecimento crescente da importância das articulações, intercâmbios e formação de redes, temáticas e organizacionais (network organizations). Tais mudanças e seus resultados na sociedade permitem, segundo Scherer-Warren (2005, p. 9-10), falar de uma “rede de movimentos”, que “[...] implica buscar formas de articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso, nas interconexões, das identidades dos atores com o pluralismo”. No século XXI, na visão da autora (2005), esta “rede de movimentos” reveste-se de um caráter transnacional, por aglutinar lutas que são mundiais, sem recorrência específica a 6 nenhum país, como a luta pela paz e pela efetivação dos direitos humanos, ladeados por uma ética humanista. Contudo, se assim se caracterizam os atuais movimentos sociais é porque são essas as demandas do momento atual, do mundo contemporâneo, e não especificamente dos movimentos, que arregimentam da realidade o que esta demanda. Não são os movimentos sociais que criam as demandas. São os homens que as absorvem da realidade e as transformam em mote de luta. Assim, afirma-se o caráter histórico dos movimentos: nascem e se desenham da realidade, do momento, da conjuntura, das circunstâncias ditadas pela realidade, das necessidades dos homens e da sociedade em tempos sempre presentes. Isso implica afirmar o caráter material das lutas: nascem de conjunturas, das realidades entrepostas, não de ideais pensados. Nascem da premência do dia a dia do homem real, das vicissitudes que ele vive e enfrenta cotidianamente, na vida e na lida com os demais homens, em sociedade. Tais lutas ganham um caráter idealizado apenas pelo desenho do que almeja o homem encontrar ou construir, apenas em termos de vontade, ideal do que se pretende alcançar com as lutas, ideal que nasce da concretude em que vivem os sujeitos: um modelo de sociedade ideal, mas não no sentido weberiano do “tipo ideal”, mas do que ele acredita que seja justo, de direito e possível pela sua ação coletiva, junto aos seus pares, mesmo que em certos momentos tais desejos e idealizações sejam contraditórios, não intersectivos. É a realidade material que dita os motes dos movimentos. Eles sempre se constituíram a partir do tempo vivido, das condições postas, das contradições enfrentadas cotidianamente, da busca de indivíduos pelas demandas sociais, econômicas, políticas, culturais, educacionais que emergiam da realidade que se constituía enquanto produziam a vida. A realidade é um equilíbrio de forças materiais sempre em movimento com quebra e busca dos equilíbrios necessários. Portanto, ela é pensada no fluxo da superação do existente (o “ser”) para o que se deseja (“o que deve ser”), carregando, portanto, em si, o germe da transformação, papel que Gramsci (2011, p. 35) atribui ao político, sujeito que [...] pretende criar novas relações de força e, por isso, não pode deixar de se ocupar com o „deve ser‟ não entendido evidentemente em sentido moralista. [...]. Portanto, o „deve ser‟ é algo concreto, ou melhor, somente ele é interpretação realista e historicista da realidade, somente ele é história em ato e filosofia em ato, somente ele é política. O homem, enquanto zoon politikon (animal político) (MARX, 2008), [...] em ato é um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move na vazia agitação de desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva: mas o que é esta realidade efetiva? Seria algo estático e imóvel, ou, ao contrário, uma relação de forças em contínuo movimento e mudança de equilíbrio? Aplicar a vontade à criação de um novo equilíbrio das forças realmente existentes e atuantes, baseando-se naquela determinada força que se encontra progressista, fortalecendo-a para fazê-la triunfar, significa continuar movendo-se no terreno da realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para isso) (GRAMSCI, 2011, p.35). Nessa correlação de forças, os indivíduos se organizam a partir do que a realidade demanda, em coletivos sociais através de movimentos de múltiplas faces e conteúdos, compondo ricas experiências, constituindo-se em “[...] verdadeiros laboratórios de criatividade, nos quais se testam alternativas societárias” (SCHERER-WARREN, 2005, p. 7). Sob tais perspectivas, ao incorporado adjetivo “novos” parece-nos adequar-se, com mais propriedade, a referência “atuais”, que diferencia a contemporaneidade dos movimentos a cada época, dadas as situações estruturais e conjunturais. Assim, atestamos que as mudanças 7 e características dos movimentos não são novas, são condizentes com o tempo e o espaço vividos. As demandas de pressão e luta de cada tempo e lugar são frutos das ações humanas empreendidas em tempos e lugares próximos e distantes. São, dessa forma, resultados da praxis humana. Se no período colonial, monárquico e no início republicano, as formas de governo e as representações oficiais do Estado eram os alvos prioritários dos movimentos sociais – pelos aspectos conjunturais e estruturais–, hoje, esse foco é dividido no âmbito da própria face civil desse Estado, dado que ela também se apresenta como núcleo de opressão de muitos grupos sociais, como os negros, as mulheres, os índios e os homossexuais. Uma característica muito destacada por alguns autores para a defesa do “novo” de tais movimentos (GOHN, 2008; SCHERER-WARREN, 2005; SANTOS, 2005) refere-se à fragmentação dos mesmos em movimentos menores, mais delimitados ideológica e socialmente e a sua luta e pressão pelo direito de usufruir de bens e equipamentos coletivos e participar das decisões que afetam as suas vidas e a do planeta, direta e indiretamente (SCHERER-WARREN, 2005). Historicamente tais pautas foram diferentes? Pelo que lutaram os inconfidentes, os mascates, os baianos, os Pioneiros da Educação, os modernistas, os abolicionistas, os estudantes, os populares, os operários, os farrapos, os cangaceiros, os comerciantes se não pelas causas da liberdade, respeito e dignidade humanas e dos seus próprios grupos? O que os moveu se não o sentimento e a certeza da exclusão parcial ou total do que defendiam ser para todos e/ou para o seu grupo? Não foram os interesses e as necessidades de cada um que os levaram à luta e à pressão? O que sempre fizeram esses movimentos se não negar a exclusão instituída material e simbolicamente, pressionar e lutar por novas formas de se organizar a vida social, mesmo quando movidos por razões particularistas? Não foram sínteses reconstruídas através de particularidades? Não se caracterizaram, ao longo da História, tais movimentos pela resistência e enfrentamento ao instituído e ao simbólico, tomando como referência as suas maneiras de pensar o mundo? Se no início dos movimentos a luta se dava mais por instinto e paixões (GOHN, 2005), à medida que se desenvolveu a sociedade brasileira, política, social e culturalmente, alicerçaram-se ideais, perspectivas e consciências, outras formas de organizar e encaminhar a luta eclodiram porque mudou a própria sociedade. Mudaram os aspectos constitutivos e orientadores dos movimentos, porque mudou a sociedade, o homem, os povos, as nações, o mundo. Teríamos, então, uma “nova” sociedade, um “novo” povo, um “novo” mundo? Tomando como referência os movimentos sociais no campo, Scherer-Warren (2005) afirma que eles, a partir da segunda metade dos anos 1970, são “novos” porque se organizam e encaminham as lutas de maneira diferente. Os “velhos” movimentos, quanto à organização, “[...] incorporavam, sobretudo, formas clientelistas e paternalistas de fazer política; em certas ocasiões utilizavam o instrumento da democracia representativa e não excluíam em outras, o recurso da violência física”. Mas, o que era o Brasil antes de 1980? Um país recheado de atos violentos, uma república sangrada pela ditadura, golpes de Estado... Como poderiam ser diferentes os movimentos sociais, como poderiam eles se descolar do contexto em que se encontravam inseridos e fazer uso de outras armas, que não as usuais? Assim se organizavam porque a sociedade, na qual se encontravam, estava mesclada de atos antidemocráticos, de lutas armadas, com uma população sem direitos, cerceada pelo poder de sítio. Hoje, descolado da realidade seria os movimentos se utilizarem de estratégias de guerrilhas para a discussão e conquista das suas demandas, quando o país já se baliza por aspectos e ações democráticas, quando já se tem uma legislação compatível com os rumos dessa democracia, quando formas de protesto e movimentos já são reconhecidos como 8 direitos, quando há possibilidades de se alçarem vôos por outras vias que não as da luta armada. Outra característica também evidenciada como delineadora do “novo” nos movimentos é a chegada da classe média a esse espaço, especialmente em movimentos ecológicos, feministas, de bairro... Contudo, o debulhar da História nos apresenta militares, comerciantes, profissionais liberais, fazendeiros em movimentos e lutas! Não seria esse, então, o diferenciador para tal adjetivação. Portanto, os argumentos a favor do uso do adjetivo “novo” para designar os movimentos atuais atestam com mais vigor a nossa tese de que os aspectos individualistas, particularistas e classistas nos movimentos pós-1970 sempre estiveram presentes na constituição daqueles que se revestem das posições e relevos de cada época. Posições e relevos que eles também ajudaram a construir, e hoje fazem uso para o engajamento de pressões e arregimentação de lutas. Lutam os movimentos contra o que incomoda os sujeitos sociais, pelas suas aspirações, pelas demandas que a vida lhes impõe. Essas proposições reafirmam a nossa tese sobre a contemporaneidade dos movimentos: as demandas, as pressões, as lutas são históricas, por isso se vestem com as roupas e as ideias do seu tempo. Roupas e ideias que ajudaram a construir. Hoje, por exemplo, só se luta pela ampliação da cidadania porque, em décadas passadas, ela era praticamente nula e outros movimentos lutaram pela sua construção. Na sua trajetória, os movimentos vão se compondo de maneiras variadas, incorporando e originando características, modos de fazer e pensar o mundo, de acordo com o seu tempo. São atuais os movimentos sociais e não “novos”. São históricos, contemporâneos. A arregimentação das lutas, os modos de organização de recursos, o encaminhamentos das agendas mudaram, não por força do surgimento de “novos‟ movimentos, mas pelas suas características diacrônicas e sincrônicas, isto é, pelo seu caráter histórico. Ao se fazerem sujeitos do seu tempo, os coletivos em movimentos2 aglutinam elementos do passado e do presente, na perspectiva do que almejam para o futuro. Mesclam elementos, ideologias, práticas... Negam outros... Originam muitos... Algumas das formas consideradas “arcaicas” e “velhas” de fazer política e encaminhar as lutas ainda permanecem no seio de muitos movimentos: clientelismo, paternalismo, autoritarismo, subserviência, dominação, disputa interna pelo poder, hierarquização das relações... representadas, na atualidade, por exemplo, através de contratos de parceria com instituições privadas ou público-privadas, e até mesmo estatais, para o financiamento da sua luta. Muitos movimentos sociais estabelecem parcerias com empresas que mantêm condutas que os próprios movimentos combatem (LÉLIS, 2006). É preciso que se lembre, também, que um direito instituído e materializado em leis e/ou práticas políticas, econômicas e sociais abre sempre a prerrogativa para a conquista do que ainda não se efetivou. Esse nos parece ser o caminho de construção da cidadania: a conquista de direitos gerando outros tantos. Os movimentos sociais sempre se constituíram e estiveram na luta pela garantia dos direitos que cabiam aos homens, por vezes de maneira muito particularista. Em outras, de modo mais geral. Esse sempre foi o mote da sua constituição e materialidade. Justiça social, consolidação da cidadania, efetivação dos direitos para todos ou apenas para alguns foram e são os eixos sobre os quais sempre se ergueram. Aludir que esses movimentos têm “novas” lutas e essências parece-nos uma estratégia articulada em torno do esvaziamento do seu caráter político, da fragilização dos seus ideais, da retirada da centralidade da luta de classes do seu cerne. A partir da consumação de tal estratégia, as questões pertinentes ao trabalho são 2 Termo cunhado pelo Profº Miguel G. Arroyo, em referência aos movimentos sociais. 9 afastadas da centralidade das lutas, como se todas as questões sobre a relação capital/trabalho estivessem resolvidas. Imbuir os movimentos sociais de características e contornos que os afastam dos seus princípios originais de mudança e justiça social, retirar as consequências da organização da sociedade pelo sistema do capital do cerne da discussão, principalmente adjetivando-os de “novos”, e destacando modulações em torno de aspectos fragmentados e particularistas, significa destituí-los da sua capacidade de arregimentar a mudança social. Mészáros (2011, p. 95-96) define os “novos movimentos sociais” como uma dissidência prematura e ingênua formada pelos socialistas desiludidos da classe trabalhadora. Para o autor (2011), tais movimentos desvalorizam o trabalho como potência transformadora e emancipadora, como “[...] alternativa radical à ordem sociometabólica do capital [...]”. Como vencer um sistema milimetricamente organizado, estruturado de maneira mutuamente antagônica, de modo a manter a subordinação permanente do trabalho ao capital através de lutas fragmentadas e imediatistas, sem cunho político? Tal posicionamento não estaria alimentando o axioma indiscutível propagado pelo capital e seus gestores de que não há alternativa, e que o máximo que se atingirá será o âmbito das soluções remediativas? Conseguir pequenas concessões na letra da lei bastaria? Mover e vencer processos simplificados na realidade vivida seria o limite? Maquiar as formas de exploração e alienação, construindo uma pseudo-sociedade fundada na justiça social é a meta? Fragmentados e particularizados, esses movimentos cristalizam uma aura em torno da vontade coletiva nacional-popular, apresentando uma dicotomização falseada em torno da regulação-emancipação, e da subjetividade-cidadania, aniquilando o que Gramsci (2011) definiu como consciência operosa, isto é, a verdadeira ação, aquela que gera a mudança real, como defenderam Marx (2008) e Marx e Engels (2002; 2001). Entendemos que a cidadania, ao contrário do que resguarda o grupo de defesa do que tem sido denominado como “novos” movimentos sociais, não se resume à simples concessão de direitos abstratos e universais, como alude Santos (2005). O seu foco é a construção concreta de uma sociedade fundada na justiça social. Considerações Finais A tônica em torno da adjetivação “novos” aos movimentos sociais poderia levarnos a pensar que se trata de uma discussão propedêutica, uma batalha semântica, que não promove o encaminhamento de reflexões verdadeiramente relevantes à discussão sobre os movimentos sociais. Seriam discussões banais, arregimentadas por debilidades acadêmicas. Ao contrário, defendemos como basilar o encaminhamento dessa discussão porque ao que nos parece, esta é uma questão que atinge a representação, a constituição e a essência de movimentos sociais na sua íntegra. É preciso que se pense por que uma parcela significativa dos que vivem, pensam e estudam os movimentos sociais defendem a incursão adjetivativa “novos” aos mesmos, e até mesmo por que um grupo já defende a substituição deste pelo adjetivo “novíssimo”. Não se trata de uma batalha semântica, mas de se entender que as palavras trazem circunscritas compreensões de realidades influenciando, significativamente, maneiras de se produzir e pensar o mundo. Todo conceito é historicamente produzido, por isso nunca neutro. Há sempre um conjunto de fatores que incidem na construção de um conceito ou na sua reformulação. Os movimentos sociais sempre se constituíram a partir das demandas do tempo vivido, das contradições enfrentadas cotidianamente pelo homem enquanto produz a vida. São, portanto, fruto das ações humanas empreendidas em tempos e lugares próximos e distantes, resultado da praxis. Portanto, aludir a esses movimentos como possuidores de “novas” lutas e essências, na atualidade, aponta para uma estratégia articulada em torno do 10 esvaziamento do seu caráter político, da fragilização dos seus ideais, da retirada da centralidade da luta de classes do seu cerne. Com a consumação de tal estratagema, questões pertinentes ao trabalho são afastadas dos centros de suas lutas, como se todas as questões sobre a relação capital/trabalho estivessem resolvidas. Como resultado dessa estratégia do atual sistema do capital, ocorre o adensamento das lutas em favor da composição de uma sociedade fundamentada nos seus princípios, destituindo esses movimentos da sua capacidade de arregimentar a mudança social. Referências GOHN, Maria da Glória. História dos movimentos sociais. A construção da cidadania dos brasileiros. 4.ed.São Paulo: Edições Loyola, 2008. ______. Movimentos sociais e educação. 6.ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Coleção Questões da Nossa Época, n.5). GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. 4.ed.,v.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. LELIS, Úrsula Adelaide de. Políticas e Práticas do “terceiro setor” na educação, no processo de reconfiguração do Estado. 2006. 333 p. 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