TESTEMUNHO
Quando fui apresentado a Gabriel Secchin, nós vestíamos roupas idênticas: camisa azul clara de botão,
calça cinza um pouco desbotada e sapatos pretos. Ele devia ter por volta de 13 anos e carregava no bolso
da camisa o escudo do colégio católico, beneditino, do qual também não escapei. Muitos anos depois,
nos reencontramos, agora, em um contexto radicalmente diferente. Talvez não por acaso, a exposição
“O Testemunho”, primeira individual de Gabriel, seja fruto exatamente do cruzamento entre uma vontade
crítica e criativa a partir da cultura cristã e um encantado elogio à liberdade e à experimentação.
A mostra é composta por oito trabalhos, que evocam e associam referências dos imaginários pop, científico e cristão pra construir ilhas de sentidos que nos ajudam a desconstruir, reavaliar, revalorar, ressignificar e elaborar pensamentos sobre a herança cristã na nossa cultura. Ao mesmo tempo em que se reflete
sobre uma possível libertação em relação às crenças cristãs, o uso de diferentes atitudes pictóricas na
mesma obra serve como afirmação de um posicionamento de quem tem fé apenas na liberdade. Entendemos fé como a coragem de acreditar. Entendemos liberdade, aqui, também, entre outras, como a
libertação da necessidade de escolher ou desenvolver uma forma de pintar.
No políptico Catequese, quatro narrativas bíblicas são pintadas em quatro telas separadas: cada uma utilizando uma forma de pintar diferente. Uma das pragas do Egito, a Paixão de Cristo, a batalha entre Jacó
e um Anjo e a cena em que Absalão perde seu cavalo por prender a cabeça em um galho são representadas às vezes quase como abstrações, às vezes quase como ilustrações de livros didáticos ou como livros
para colorir.
No díptico “Bonança”, é reproduzida uma página de um livro didático religioso para colorir na qual as
cores vencem e ultrapassam os limites desenhados para contê-las. Como numa vitória da potência sobre
o projeto. Uma vitória assistida por Littlefoot, o pescoçudo e simpático apatossauro do longa metragem
de animação “Em Busca do Vale Encantado”.
Em outro díptico chamado “Estrela de Belém”, um dinossauro eclode de seu ovo iluminado pela estrela
que teria anunciado o nascimento de Jesus.
Em uma das paredes da Portas Vilaseca Galeria, três outros trabalhos se relacionam. Na tela “Azazel (Capra
aegagrus)”, vemos a figura de um bode preto, animal comumente associado ao Demônio ou ao maligno,
que, após ganhar quase um tom familiar burguês, tem seu digno retrato sobreposto pela pequena imagem de uma casa. Gabriel faz referência, aqui, a um ritual hebraico antigo em que se sacrificava um bode
(chamado “bode expiatório”) e se enviava um outro ao deserto (chamado “bode emissário”) para que os
pecados do povo judeu fossem perdoados. O animal retratado em “Azazel (Capra aegagrus)” quase que
passeia pelas vazias dunas do deserto da segunda tela, chamada “Ultramar” - título que faz em referência
ao modo como a Terra Santa e os demais territórios conquistados no outro lado do Mar Mediterrâneo
após as investidas das Cruzadas eram conhecidos. No lado oposto da tela, vemos brasões de diferentes
tamanhos referentes a esses territórios. Abaixo disso, o contorno da versão 8bit do personagem Link,
do jogo de videogame Zelda, carregando seu escudo como um cavaleiro templário. Há ainda uma última
tela intitulada “Deus Vult!”, expressão que se tornou o grito de guerra da Primeira Cruzada e que significava “Assim quer Deus!”, retirado do discurso do Papa Urbano II, no Concílio de Clermont que convocou as
tais batalhas. Nessa tela, vemos a imagem de uma escultura do Papa Urbano II com dedo em riste, sobreposta por inscrições hereges dos primeiros séculos e pequenos seres cor de rosa.
O trabalho de Gabriel nos leva a uma viagem à beira do caos para que, com pequenas aproximações
e associações, possa criar sentido ou perspectiva para uma batalha de desconstrução das instituições
que estão postas a ordenar ou limitar a vida ou a expressão dos desejos. Recorrendo ao deboche como
estratégia de discurso crítico, Secchin nos apresenta O Testemunho irônico de sua experiência, desejo e
pesquisa sobre liberdade.
Bernardo Mosqueira, maio de 2014
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catálogo - Portas Vilaseca