Brasil, 29 de abril de 2015. A Sua Excelência o Senhor Luís Antônio Balduino Carneiro Secretário de Assuntos Internacionais Ministério da Fazenda do Brasil Esplanada dos Ministérios, Bloco P, 2º andar, Sala 219 70.048-900 – Brasília/DF Assunto: Revisão das Salvaguardas do Banco Mundial – Posição do Governo Brasileiro sobre o Direito de Povos Indígenas e Tradicionais ao Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) Prezado Senhor, 1. Cumprimentando-o, as organizações que firmam a presente carta vêm, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência expressar sua preocupação com a posição do Governo brasileiro acerca do alcance do direito ao Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) de povos indígenas e tradicionais, exposta no curso do atual processo de revisão das salvaguardas do Banco Mundial. 2. A revisão das salvaguardas do Banco Mundial, iniciada no ano de 2012, encontra-se em sua fase final neste ano de 2015. As salvaguardas das instituições de financiamento ao desenvolvimento visam garantir que os investimentos e financiamentos sejam realizados de maneira a equilibrar interesses econômicos, sociais e ambientais. Elas visam converter princípios relacionados ao desenvolvimento sustentável em requerimentos operacionais dirigidos aos mutuários para que estes considerem os potenciais impactos negativos sobre pessoas e ecossistemas, ou para que adotem medidas a fim de minimizar e mitigar tais consequências negativas1. 3. Em 19 de dezembro de 2014, o Governo brasileiro, por intermédio da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, na pessoa do então Secretário Carlos Márcio Cozendey, 1 WRI (2013). Striking the Balance: Ownership and Accountability in Social and Environmental Safeguards. encaminhou ao Banco Mundial comentários acerca das propostas de salvaguardas divulgadas pelo Banco Mundial em julho de 2014. 4. No documento, o Governo brasileiro aduz que a linguagem proposta pelo Banco Mundial expande a lista de circunstâncias nas quais o direito internacional garante a povos indígenas e tradicionais o direito ao CLPI e, por esta razão, não seria possível endossar os dispositivos referentes ao CLPI contidos na proposta de salvaguardas. 5. A visão exposta pelo Governo brasileiro acerca do alcance do direito ao CLPI é inconsistente com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil pela proteção dos direitos humanos. Ela limita indevidamente um dos principais corolários do direito dos povos indígenas à livre determinação e enfraquece o regime internacional dos direitos humanos como um todo, ao buscar a diluição de uma política interna a um dos mais importantes bancos de desenvolvimento em operação na atualidade. 6. Nenhum dispositivo da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (“Declaração”) pode ser invocado como base para a interpretação restritiva elaborada pelo Governo brasileiro sobre as circunstâncias em que deve ser obtido o CLPI. Pelo contrário, a linguagem da Declaração é abrangente o suficiente para abarcar diversas situações2. A hipótese prevista no Artigo 29, ao qual o Governo brasileiro se refere no documento encaminhado ao Banco Mundial, é apenas uma dentre tantas que podem ser encaixadas no comando geral insculpido no artigo 19, cuja linguagem não remete a nenhuma situação específica. 7. Em outras palavras, a circunstância específica prevista no Art. 29, ou em qualquer outro dispositivo contido em normativos internacionais, não é preclusiva com relação a tantas outras situações nas quais os direitos fundamentais dos povos indígenas e tradicionais estejam sob ameaça. 8. Assim, as circunstâncias concretas e os procedimentos necessários para a obtenção do CLPI terão sempre seus contornos definidos e aperfeiçoados por órgãos responsáveis pelo monitoramento dos tratados internacionais e pelo julgamento de casos concretos, dos quais são exemplos a Relatora Especial da ONU para os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas e as Cortes Internacionais. 9. Os sistemas regionais e internacional de direitos humanos complementam-se um ao outro no sentido de oferecer a máxima proteção à pessoa humana. Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos de seus julgados, tem buscado esclarecer as hipóteses nas quais o CLPI é obrigatório, e não a mera consulta. No emblemático caso Saramaka vs. Suriname, a Corte, a cuja jurisdição o Brasil se submete, entendeu que “a salvaguarda de participação efetiva requerida quando se trate de grandes projetos de desenvolvimento ou investimento que possam ter um impacto profundo nos direitos à propriedade dos membros do povo Saramaka sobre grande parte do seu território, deve ser entendido como o requerimento adicional da obrigação de obter o consentimento livre, prévio e informado do povo Saramaka, segundo seus costumes e tradições” (grifos nossos).3 “Artigo 19: Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”. (grifos nossos). 3 A decisão da Corte Interamericana está disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_172_esp.pdf>. 2 10. Como se pode ver, a jurisprudência da Corte Interamericana entende que projetos de desenvolvimento ou investimento em grande escala que possam ter um impacto profundo nos direitos de propriedade exigem a obtenção de consentimento livre, prévio e informado. Projetos dessa natureza fazem parte do portfólio de financiamentos e investimentos realizados pelo Banco Mundial. 11. Em sendo um organismo multilateral, cujas normas próprias não podem esvaziar as obrigações internacionais assumidas pelos Estados-parte, a linguagem proposta pelo Banco Mundial confere um mínimo de proteção aos direitos humanos de povos indígenas e tradicionais no contexto de projetos de desenvolvimento, razão peal qual não deve ser enfraquecida. Ainda assim, a proposta de salvaguardas limitou-se a enunciar o direito ao CLPI sem delinear os requisitos procedimentais essenciais à sua obtenção4. 12. Ressalte-se que um dos princípios basilares dos direitos humanos é a vedação do retrocesso. O alcance e o sentido dos direitos fundamentais evoluem no sentido de oferecer cada vez mais uma proteção eficaz a todos os indivíduos e, especialmente, a grupos e populações vulneráveis, cujos direitos podem ser ameaçados em face de transformações na base política, econômica e social das sociedades e pelo desenvolvimento de novas tecnologias não existentes ao tempo da aprovação de uma convenção ou tratado específico. 13. No último Dia do Índio (19 de abril), o Governo brasileiro anunciou a demarcação de terras indígenas como um sinal de seu empenho na efetivação dos direitos de povos indígenas. A sociedade brasileira entende que esse compromisso deve ser demonstrado por meio de medidas claras e inequívocas em todas as instâncias em nível doméstico e internacional. 14. As organizações que firmam a presente carta solicitam a Vossa Excelência a revisão do posicionamento do Governo brasileiro no que tange ao alcance do direito de povos indígenas e tradicionais ao Consentimento Livre, Prévio e Informado, para que esteja em conformidade com os mais altos parâmetros vigentes na atualidade. Solicitamos à Vossa Excelência que instrua o Diretor-Executivo para o Brasil que este: Posicione-se de maneira favorável à linguagem proposta no primeiro rascunho, para que o atual texto seja preservado, e que adicionalmente seja requerida a inclusão dos requisitos procedimentais essenciais à obtenção do CLPI, em conformidade com parâmetros internacionalmente aceitos; Oponha-se às cláusulas que abrem exceções à aplicação da Política de Povos Indígenas5. Respeitosamente, Articulação Antinuclear Brasileira Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB Ver: Carta aberta da sociedade civil, “Preocupan seriamente las propuestas de salvaguardas del Banco Mundial sobre pueblos indígenas”. Disponível em: <http://bankonhumanrights.org/wp-content/uploads/2014/11/CSO-StatementSignificant-concerns-with-the-proposed-World-Bank-safeguards-for-indigenous-peoples-.pdf>. 5 Parágrafo 28 da Proposta de Salvaguardas. Disponível em: <https://consultations.worldbank.org/Data/hub/files/consultation-template/review-and-update-world-banksafeguard-policies/en/materials/first_draft_framework_july_30_2014_0.pdf>. 4 Associação de Defesa do Meio Ambiente de Araucária – AMAR Associação de Proteção ao Meio Ambiente – APROMAC Associação Movimento Paulo Jackson - Ética, Justiça, Cidadania Associação Paranaense da Parada da Diversidade Comissão Pró-Índio de São Paulo Conectas Direitos Humanos Dom da Terra AfroLGBT Ecologia e Ação – ECOA Fórum da Amazônia Oriental – FAOR Fórum Paranaense das Religiões de Matrizes Africanas. Greenpeace Brasil Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – Iepé Instituto Socioambiental – ISA International Rivers Brasil Kanindé – Associação de Defesa Etnoambiental Movimento Atingidos por Barragens Núcleo de Estudos de Populações Indígenas (NEPI/UFSC) Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil Rede de Cooperação Amazônica – RCA Rede Grupo de Trabalho Amazônico Toxisphera – Associação de Saúde Ambiental Carta enviada com cópia para: Rodrigo Estrela de Carvalho Subsecretário para Instituições Econômico-Financeiras e Cooperação Internacional Ministério da Fazenda do Brasil Esplanada dos Ministérios, Bloco P, 2º andar, Sala 219 70048-900 – Brasília/ DF Ludmila Vidigal Coordenadora-Geral para Políticas de Instituições Internacionais Ministério da Fazenda do Brasil Esplanada dos Ministérios, Bloco P, 2º andar, Sala 219 70048-900 – Brasília/DF Miguel Rossetto Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto, 4ºandar CEP: 70.150-900 – Brasília/DF Flávio Chiarelli Vicente de Azevedo Presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) SBS - Quadra 02 – Lote 14 – Ed. Cleto Meireles 70.070-120 – Brasília/DF Rodrigo de Oliveira Morais Chefe da Assessoria Internacional Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Setor Comercial Sul - B, Quadra 9, Lote C - Ed Parque Cidade Corporate, Torre A, 10º andar 70308-200 - Brasília/DF Antônio Henrique Pinheiro Silveira Diretor-Executivo do Banco Mundial The World Bank 1818 H Street, N.W Washington, DC Suite: MC 12-319 Mail Stop MC 12-1210 20433 USA Deborah Wetzel Diretora do Banco Mundial The World Bank SCN, Qd. 2, Lt. A, Ed. Corporate Financial Center, Cj. 702/703, 70712-900 – Brasília/DF