Imoralidade duplamente ilegal
Ricardo Seitenfus*
O vergonhoso ataque das forças anglo-americanas contra um pais
desprovido de meios de defesa e de reação, constitui uma afronta aos
principios da guerra. A incomensuravel superioridade bélica torna o conflito, do
ponto de vista moral, uma clara agressão do mais forte sobre o mais débil. A
guerra é feita unicamente porque a vitima é indefesa. Caso assim não fosse, a
Coréia do Norte, que detém armas de destruição em massa, inclusive
nucleares, e esta sob o jugo de uma ditadura, deveria ser o objeto da
agressiva preferência de Londres e Washington.
A tentativa de convencimento da opinião publica sobre a natureza indolor
da atual guerra inscreve-se no rol dos grandes embustes contemporâneos. As
estatisticas sobre os conflitos atuais indicam que 90% das vitimas são civis.
Estes denominados « danos colaterais » constituem, de fato, o cerne da
imoralidade desta violência. Contudo, além de condenavel ética e moralmente,
a agressão anglo-americana sofre uma dupla ilegalidade. Por um lado, é levada
à cabo à margem das leis internacionais e, por outro, tenta respaldar-se num
hipotético direito « preventivo » de legitima defesa.
A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), firmada em 1945 por
51 Estados, é ao mesmo tempo, um tratado multilateral e a Constituição
mundial. Dela decorrem, inclusive para os raros Estados não signatarios,
direitos e obrigações. Com excessão da legitima defesa, nenhum Estado pode
utilizar-se
da
guerra
como
instrumento
para
solucionar
seus
litigios
internacionais. Ha, portanto, um monopolio da coerção e do uso da força,
exercido pelo Conselho de Segurança (CS) da ONU, orgão encarregado da
manutenção da paz e da segurança internacionais.
Desde a Guerra do Golfo (1990-91), quando o Iraque foi expulso do
Kuait apos sete meses de ocupação, Bagda encontra-se sob o contrôle do CS.
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Jamais um Estado havia sido objeto de sanções amplas e duradouras como no
presente caso. O principio da segurança coletiva orientou os membros da ONU
e tornou legal a aplicação desta rigida politica.
Contudo, a partir da Resolução 1441 (2002) do CS, o Iraque foi obrigado
a desarmar-se totalmente em prazos limitados. Os Inspetores da ONU
constataram os avanços, embora parciais e não conclusivos, e solicitaram um
tempo suplementar para concluir o desarmamento. Ora, Washinton e Londres
interpretaram de forma unilateral o Relatorio dos Inspetores e iniciaram, à
margem do CS, a investida bélica.
Apesar de suas alegações interpretativas, pois não ha na Resolução 1441
indicios de permissivo para a utilização da força, os anglo-americanos
rejeitaram a culpa de sua iniciativa sobre o CS e, especialmente, sobre a
França. Trata-se, evidentemente, de tentativa espuria para respaldar a
resposta à uma decisão unilateral que havia sido tomada, segundo o Chefe dos
Inspetores
da
ONU,
Hans
Blix,
em
janeiro
ultimo.
Portanto,
independentemente da reação iraquiana os dois Estados agressores estavam
decididos a perpretar o massacre que ora presenciamos.
Uma das conseqüências perversas do sistema de solução de litigios do
CS é conceder um poder de veto aos cinco Estados membros permanente do
orgão. A paralisia deste é flagrante, pois em mais de trezentas oportunidades o
CS não pode atuar em razão da utilização do veto. Ao longo de sua historia a
ONU não pode interferir em 200 conflitos que vitimaram 50 milhões de pessoas
entre mortos e refugiados. Torna-se, portanto, imprescindivel uma reforma do
sistema. Todavia, ao contrario da busca de uma suposta democratização que
provocara, inevitavelmente, sua marginalização, a ONU deve encontrar
mecanismos para tornar eficaz suas decisões, enquadrando o poder dos fortes
e protegendo os Estados débeis.
A segunda flagrante ilegalidade do consorcio Bush/Blair atinge os
fundamentos do Direito Internacional. Trata-se da tentativa de fazer com que
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seja aceita a idéia da legitima defesa « preventiva ». Ora, o principio da
legitima defesa nos direitos Penal e Internacional exige o respeito aos
principios de proporcionalidade da reação, de imputabilidade do suposto ilicito,
de seu carater imediato e de sua cessação quando findam as razões de sua
aplicação. Ora, nenhum destes principios é compativel com a prevenção. Esta
sustenta-se de forma subjetiva sobre uma hipotética ameaça.
Finalmente,
na
remota
perspectiva
que
a
evolução
do
Direito
Internacional venha consagrar futuramente a acolhida da idéia de uma letigima
defesa « preventiva », ela somente podera exercer-se através do coletivo
internacional, especialmente o CS. Caso contrario o mundo ingressara numa
fase de grande instabilidade onde os Estados detentores da força imporão sua
vontade de maneira unilateral.
Neste mundo preparado pelo massacre anglo-americano, a selvageria
das relações internacionais, denunciada por Hobbes e combatida por Rousseau,
sera a regra normal de conduta. Assim, os responsaveis pelos crimes de 11 de
setembro de 2001 poderão regozijar-se, ja que estarão colhendo os frutos da
insânia de parte da civilização ocidental que não hesita em lançar mão de
meios inaceitaveis para atingir objetivos inconfessos.
* Ricardo Antônio Silva Seitenfus, (54) é doutor em Relações Internacionais pelo Instituto
Universitario de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra e Professor Titular
de Direito Internacional Publico e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa
Maria (RS). Autor, entre outras, das obras Manual das Organizações Internacionais, Porto
Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2003, 3° edição, 316 p., O Brasil vai à Guerra, São
Paulo, Editora Manole, 2003, 3° edição, 426 p. e, com Deisy Ventura, da Introdução ao
Direito Internacional Publico, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2003, 3° edição,
228 p.
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