Ordinatio II, d. 3, p. 1, q.1
[1] … É em virtude de si mesma, ou seja, de sua natureza, que uma substância material é individual
ou singular?
[2] A favor da afirmativa: em Metafísica VIII o Filósofo mostra – contra Platão – que “a substância
de uma coisa, seja ela qual for, é peculiar àquilo de que é substância e não existe em nada mais”,
portanto etc. Logo, uma substância material, em virtude de sua própria natureza, tudo o mais
deixado de lado, é peculiar àquilo em que existe, e isso de tal modo que em virtude de sua própria
natureza não pode existir em nada mais. Portanto, é individual em virtude de sua própria natureza.
[3] Contra: o que quer que exista em algo em virtude de sua própria ratio, existe nesse algo em
todas as suas instâncias. Assim, se a natureza de pedra fosse por si mesma um isso, não importa em
qual item estivesse a natureza de pedra, tal natureza seria essa pedra. O consequente é absurdo
quando falamos de singularidade determinada, tal como estamos a falar nessa questão.
[4] Além disso, àquilo que por si mesmo convém um dos membros de um par de opostos, isso por si
mesmo repugnará o outro membro desse par. Portanto, se a natureza fosse por si mesma uma em
número iria repugnar a multiplicidade numérica.
[5] Aqui é dito que assim como uma natureza é formalmente uma natureza, da mesma maneira ela é
também por si mesma singular, e isso de tal modo que não se faz necessário procurar por uma causa
outra de sua singularidade que não a própria causa de tal natureza, como se ela fosse uma natureza
antes (temporal ou naturalmente) de ser singular e então fosse contraída por algo sobrevindo para
constituir um singular.
[6] Isso é demonstrado por analogia: assim como a natureza por si mesma tem ser verdadeiro fora
da alma, mas tem ser na alma apenas em virtude de um outro, ou seja, em virtude da alma ela
mesma (e a razão para isso é que o ser verdadeiro pertence a ela simpliciter, ao passo que o ser na
alma é seu ser apenas qualificadamente), assim a universalidade pertence a uma coisa apenas em
virtude de seu ser qualificado, a saber, seu ser na alma. A singularidade, por outro lado, convém a
uma coisa em virtude de seu ser verdadeiro e, portanto, convém a tal coisa por si mesma,
simpliciter. Logo, devemos procurar uma causa pela qual uma natureza é universal e temos de
propor o intelecto como tal causa. Não precisamos, no entanto, procurar alguma causa pela qual a
natureza é singular, i. e. uma causa outra que não a natureza da coisa que atue como um
intermediário entre ela e sua singularidade. Com efeito, as mesmas causas que causam a unidade da
coisa causam sua singularidade. Portanto etc.
[7] Contra essa proposta argumenta-se da seguinte maneira: o objeto enquanto objeto é
naturalmente anterior ao ato ele mesmo e, de acordo contigo, enquanto anterior o objeto é por si
mesmo singular, pois isto sempre convém a uma natureza quando ela não é tomada
qualificadamente ou de acordo com o ser que ela tem na alma. Logo um intelecto que conceba esse
objeto sob o caráter de um universal o concebe sob um caráter oposto ao seu próprio caráter, pois
enquanto ele precede tal ato ele é determinado por si mesmo ao oposto daquele caráter, i.e. do
caráter de um universal.
[8] Além disso, aquilo que tem uma unidade real, peculiar a si e suficiente para si, mas uma unidade
menor que numérica, não é por si uno através de uma unidade numérica (i.e. não é por si um isso).
Mas a natureza que existe nessa pedra tem uma unidade real e suficiente peculiar a si, e uma
unidade menor do que numérica. Portanto etc.
[9] A maior é auto evidente, pois nada é por si uno através de uma unidade maior do que a unidade
suficiente para si. Com efeito, se sua própria unidade peculiar, que é devida a algo por si, fosse
menor que numérica, unidade numérica não seria algo que lhe conviria por sua própria natureza ou
em virtude de si. De outro modo, apenas em virtude de sua natureza teria ambas, uma unidade
maior e menor. Mas essas, quando tomadas em relação ao mesmo item e sob o mesmo aspecto são
opostas, pois uma multiplicidade oposta a uma unidade maior pode coexistir sem contradição com
uma unidade menor, mas tal multiplicidade não pode coexistir com uma unidade maior, visto que a
repugna; logo etc.
[10] Prova da menor: se não há unidade real da natureza menor que a unidade da singularidade, e
toda unidade outra que não a unidade da singularidade e que convém à natureza específica é menos
que uma unidade real, então não haverá unidade real menor que a unidade numérica. Mas o
consequente é falso, como provarei em cinco ou seis vias; portanto etc.
[11] A primeira via procede como se segue: de acordo com o Filósofo em Metafísica X, “Em todo
gênero há um item primário que é o padrão e a medida para tudo a que convém esse gênero.”
[12] Essa unidade do medidor primário é real, pois o Filósofo mostra que a ratio primária de uma
medida convém a um item e explica através de uma ordenação como em todo gênero aquilo a que a
ratio da medida convém é uno. Essa unidade, no entanto, convém a um item enquanto esse é
primário em seu gênero; portanto ela é real, pois os itens que são medidos são reais e são realmente
medidos, e um ser real não pode ser realmente medido por um ser de razão. Portanto, essa unidade é
real.
[13] Além disso, a unidade não é numérica, pois não há um singular em um gênero que seja a
medida de todos os itens nesse gênero. Com efeito, de acordo com o Filósofo em Metafísica III,
“nos indivíduos da mesma espécie não é o caso que esse seja anterior e aquele posterior.”
[14] Apesar do Comentador explicar que a noção de algo anterior constitui algo posterior, isso é
irrelevante para a premissa menor, pois nela o Filósofo tem a intenção de apresentar a razão pela
qual Platão postulou uma ratio separada para as espécies mas não para os gêneros: que há nas
espécies uma ordem essencial em função da qual a posterior pode ser reduzida à anterior. Portanto,
de acordo com ele, não é necessário postular a ideia de um gênero através do qual, por participação,
as espécies são o que elas são, outrossim apenas a ideia de uma espécie à qual todas as outras
espécies são reduzidas. Por outro lado, de acordo com Platão e de acordo com o Filósofo, que relata
isso, nos indivíduos não há uma tal ordenação, não importando se um constitui ou não o outro.
[15] Portanto etc. Assim, é a intenção do Filósofo aqui concordar com Platão que dentre os
indivíduos da mesma espécie não há uma ordenação essencial. Logo, nenhum indivíduo é por si
mesmo a medida dos itens na sua própria espécie e, consequentemente, nenhuma unidade numérica
ou individual.
[16] Ademais, eu demonstro por uma segunda via que o mesmo consequente é falso, pois, de acordo
com o Filósofo na Física VII, comparação ocorre em uma espécie indivisível porque nesse caso há
uma natureza única, mas não em um gênero, visto que um gênero não possui esse tipo de unidade.
[17] Essa diferença de unidades não se deve ao pensamento, pois o conceito do gênero é um em
número da mesma maneira que o conceito da espécie; de outro modo, conceito algum seria dito in
quid de diversas espécies (e assim conceito algum seria um gênero), outrossim haveria tantos
conceitos ditos de espécies quanto há espécies, e assim em cada predicação o mesmo item seria
predicado de si mesmo. Desse modo, a unidade do conceito ou do não-conceito é irrelevante aqui
para a intenção do Filósofo, i.e. para a questão sobre se há comparação ou não. Consequentemente,
o Filósofo quer dizer aqui que a natureza específica é una através da unidade da natureza específica,
mas ele não quer dizer que ela é una através de uma unidade numérica, pois não ocorre comparação
no caso da unidade numérica. Portanto etc.
[18] Ademais, por uma terceira via, de acordo com o Filósofo na Metafísica V, o mesmo, o similar e
o igual são baseados no uno de tal modo que, apesar da similaridade ter por base algo em um gênero
qualitativo, a relação é real apenas se ela tem uma base real e uma ratio real próxima de ser
baseada. Portanto, a unidade que é requerida da base da relação de similaridade é real; mas não é
uma unidade numérica, pois nada uno e o mesmo é similar ou igual a si mesmo.
[19] Ademais, por uma quarta via, para uma única oposição real há dois termos reais primários; mas
contrariedade é uma oposição real. Isso é evidente, pois um realmente corrompe ou destrói o outro
mesmo quando toda operação do intelecto foi excluída; isso ocorre apenas porque eles são
contrários. Portanto, cada item primário dessa oposição é real e uno por uma unidade real; mas não
uma unidade numérica, pois nesse caso exclusivamente esse branco seria primariamente contrário a
esse negro, ou exclusivamente aquele branco a aquele negro, o que é absurdo, pois então haveria
tantas contrariedades primárias quanto indivíduos contrários. Portanto etc.
[20] Ademais, por uma quinta via, para um único ato de um sentido há um objeto que é uno em
virtude de uma unidade real; mas não uma unidade numérica. Portanto, há alguma outra unidade
real outra que não a unidade numérica.
[21] Prova da premissa menor: uma faculdade que apreende um objeto desse modo, i. e. enquanto
uno através dessa unidade, o apreende enquanto distinto de tudo o que não é uno através dessa
unidade. Mas um sentido não apreende um objeto enquanto distinto de tudo o que não é uno através
daquela unidade numérica. Isso é evidente, pois nenhum sentido distingue que esse raio de sol
difere numericamente de algum outro raio, e ainda assim eles são diversos em função do
movimento do sol. Se todos os sensíveis comuns, por exemplo diversidade de localização ou
situação, fossem eliminados, e se através do poder divino duas quantidades fossem postas em
existência ao mesmo tempo e elas fossem completamente similares e iguais em brancura, a visão
não distinguiria que ali houvesse dois brancos. Porém, se ela apreendesse um ou outro enquanto um
item uno através de uma unidade numérica, ela teria apreendido esse item enquanto um item
distinto através da unidade numérica.
[22] Nesse ponto pode também ser argumentado que o objeto primário de um sentido é uno por si
mesmo através de alguma unidade real, pois assim como um objeto dessa faculdade, enquanto este
é um objeto, precede o intelecto, assim também no que diz respeito à sua unidade real ele precede
toda ação do intelecto. Mas esse argumento não é tão conclusivo quanto o precedente, pois alguém
pode propor que um objeto primário, enquanto este é adequado a uma faculdade, é algo comum,
abstraído de todos os objetos particulares e assim tem apenas a unidade da comunidade para com
aqueles diversos objetos particulares. De qualquer modo, essa proposta não parece negar que o
único objeto de um único ato da sensação necessariamente tem uma unidade real que é menor que a
unidade numérica.
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