__________________________________________ 1 Limites das Pesquisas em Genoma Humano: O Poder da Ciência e a Liberdade de Investigação1 In: Emerick, M. C. & Carneiro F. (Orgs) Recursos Genéticos Humanos – Limites ao Acesso , Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1997. O palestrante iniciou a reflexão filosófica com a colocação de alguns "complicadores em relação a essa discussão" relativos à liberdade e à ciência no contexto contemporâneo de mudança de paradigmas e mentalidades. o que vem exigindo uma ruptura de dogmas. não somente no campo do Direito. mas da própria Ciência. Tradicionalmente, a cultura moderna vem elaborando, no campo das ciências, dois modos de pensar a produção do saber dito científico. Um deles se remete a Bacon e preconiza a plena liberdade de ação na produção do saber; considerando que o saber (ou ciência) é poder Preconiza uma redenção da humanidade através das boas obras que a ciência é capaz de efetuar; obras essas que na verdade se darão sob uma natureza que, segundo ele, é pensada como algo que existe na sua matriz, na sua estrutura, como algo independente de toda capacidade humana de significar. Considera a natureza uma criação de Deus tendo uma estrutura independente da nossa capacidade de significar, estrutura essa que nós devemos conhecer através da ciência. Essa perspectiva da natureza como dádiva que o Homem deve utilizar a seu dispor orienta toda modernidade, passa por Bacon até Descartes: Deus propõe, os homens dispõem : Há uma outra vertente desse pensamento, mais contemporânea, que entende a natureza como alguma coisa que não foi citada por Deus algum, mas é algo divino porque tem uma medida justa e tem uma sabedoria e, nós humanos; não temos nem uma medida justa e nem a sabedoria. Essa tese encontra-se no livro de Schumacher 'Small is Beautiful’, e em muitas das variações do pensamento ecológico contemporâneo, por exemplo, da chamada ecologia profunda. São dois modos de pensar; de elaborar um saber sobre a natureza, entendendo que essa natureza é alguma coisa que está dada na sua estrutura, nos seus andaimes, na sua 1ógica, e o que temos de fazer é apenas descortinar; descobrir diriam alguns; outros diriam reconhecer, enfim aquilo que já está dado lá. O século XX, ia foi dito aqui é palco de algumas descobertas; algumas mutações que, ao meu modo de entender; colocam em xeque exatamente essa questão milenar: Porque o ocidente moderno vai buscar 1 Relato da palestra proferida por Wilmar Barbosa. filósofo. professor/pesquisador do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e do Programa de Engenharia de Produção da COPPE da universidade Federal do Rio de Janeiro. __________________________________________ 2 na. filosofia grega, platônica, aristotélica essa concepção de natureza como algo é 'em si' - e nós temos que trabalhar em cima desse algo que está lá. Hipócrates entende que a saúde é uma forma de equilíbrio de um sistema natural, entendendo-se esse natural como alguma coisa divina. Galeno entende da mesma forma, dizendo que esse equilíbrio é obra do divino artífice, enfim, é uma tradição multo longa. É um dogma, eu diria, muito antigo da nossa mentalidade ocidental e que assume, na mentalidade moderna conotações que fogem à explicação mito-poética, mas que se incorpora na própria explicação científica. O que acontece no século XX, com o desenvolvimento de vários saberes; sobretudo saberes biomédicos e das ciências da vida? No meu modo de entender, talvez pela primeira vez estamos inventando e criando situações impensadas até há pouco tempo e inéditas no que diz respeito à humanidade. Não só inventamos um novo modo de reprodução da espécie humana, que não necessita do intercurso da sexualidade, mas também inventamos sistemas de reprogramação, reconstrução do vivente, cuja 1ógica explicativa se baseia fundamentalmente numa ciência que cada vez mais se sabe construtora de sentidos. Ou seja, no âmbito da ciência que se cria a partir do século XX, a pergunta-chave é exatamente essa; estamos vendo uma natureza desaparecer, esvair-se e temos uma dúvida: não sabemos se essa natureza é natural - estou talando de natureza ou natureza humana - ou se de tato é criada no âmbito da nossa humana capacidade de criar sentidos. Esse é um problema que não tínhamos porque, até então, achava-se que a natureza era uma criatura ou de si mesma ou de um outro ser qualquer. O tato é que, as possibilidades da tecnociência colocam um problema às nossas preocupações: o de saber se aquilo que chamamos de natureza é uma extensão do artifício humano ou não. Esse é um problema que não tínhamos antes, porque até então achávamos que havia um mundo artificial e um mundo natural. Anstóteles fala de atos naturais e atos inaturais. Pergunto-me hoje quais são os critérios que temos para estabelecer qual seria o ato inatural como definir um ato inatural e como definir exatamente um ato natural. No meu modo de entender; essa questão - cuja resposta nossa cultura ainda não elaborou - divide o cenário entre artificialistas e naturalistas. Já devem ter percebido que me coloco do lado dos artificialistas. Acredito que a natureza é um construto humano, e portanto, construída no âmbito da cadeia de significações que somos capazes de elaborar; o problema da liberdade se coloca de uma maneira absolutamente diferente do que vem-se colocando até então, sobretudo a liberdade no saber. Quanto à liberdade do saber diante dos paradigmas que propõem ou o 'saber tudo' ou o 'nada saber', Wilmar Barbosa entende que uma saída seria a adoção do critério da precaução para responder a 'o que deve ser feito'. __________________________________________ 3 Não se trata mais de saber por saber, de saber tudo. porque a ciência deve e precisa saber tudo. Não se trata mais de não saber nada, porque qualquer alteração da ordem dita natural é a alteração de uma ordem pensada ou representada como sagrada. Não se trata mais dessa questão. A questão é exatamente, como já foi dito aqui anteriormente, da precaução. que eu chamo de prudência. O problema da liberdade hoje coloca- se de uma maneira diferente. Acredito que estamos diante de um momento em que a questão da liberdade não pode ser vista mais como apenas a eterna vigilância, mas também como a possibilidade de vermos algo acontecer que foge ao âmbito dos nossos valores e crenças; mas que acreditamos deva ser feito em função não só da aceitação da liberdade Individual mas também da própria liberdade de coação e invenção. Como vamos tratar essa questão? No meu modo de entender; a questão da ética - esse é um outro conceito que precisa ser rediscutido representa-se com a sua carga significativa nesses últimos anos. Exatamente porque, através da recorrência da a/te da conversação - porque de fato a ética é uma forma de resolver problemas sem O recurso da violência -poderemos estabelecer sentidos que possam saturar a função de universais que nós sabemos que tenham fundamentos. São fundamentos universais porque estabelecidos no âmbito de uma conversação que é eminentemente uma prática política, no sentido mais bonito dessa expressão, ou seja, lugar onde se resolvem e se equilibram as diferenças: No meu modo de entender; se a questão da liberdade tem sentido para nós; ela só poderá ser reinventada e re-significada se levarmos em consideração a necessidade de superar um velho dogma do pensamento ocidental que passa para O pensamento moderno através da tradição galileana e newtoniana e que agora começa a entrar em xeque: a idéia de que a natureza de fato é natural No momento em que tomarmos consciência de que a natureza é uma extensão do nosso artificio, tenho a impressão de que a questão da liberdade e da responsabilidade vai-se colocar de uma maneira totalmente diferente do que vem se colocando nos nossos modos usuais e impensados de pensar.