Título: Uma via popular, democrática e nacional: a imprensa alternativa Autor: COSTA, Cloves Reis. Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (UAM, 2002), licenciado em História (SENAC, 2006), especializado em Cultura e Comunicação (PUC, 2004) e mestrando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Resumo: O presente artigo resgata algumas produções da imprensa que permearam à margem e muitas vezes até à surdina na sociedade brasileira e colaboram para o entendimento do princípio alternativo do jornalismo nacional. Trata-se de um ensaio que aponta características e princípios destas produções em seu percurso histórico em busca do entendimento deste ‘tipo’ de jornalismo. Para isso, contextualiza estas produções, identificando traços e peculiaridades que as assemelham. Trazer à tona esta trajetória do jornalismo alternativo tem como finalidade identificar eixos fundamentais, entre eles: Jornalismo como serviço público, porque está comprometido, em primeiro lugar, com a informação e não com o capital, portanto, não é produzido do ponto de vista da mercadoria; tem como princípio o bem comum e desempenha função social. Jornalismo como instrumento de formação da cidadania porque defende interesses populares e democráticos, retratando pautas e temas sob o enfoque das maiorias. Jornalismo como garantia da pluralidade de vozes e pensamentos, porque fornece para o leitor elementos que possibilitam a construção da reflexão e da crítica contextualizada em seu tempo e, além disso, foge das mesmices e do reducionismo da grande imprensa. Palavras chaves: Imprensa alternativa, história da comunicação, democracia e imprensa convencional. Introdução Imprensa contestadora, mídia local e regional, pasquins, imprensa alternativa, jornalismo operário, imprensa camponesa, imprensa clandestina, imprensa nanica, jornalismo marrom, imprensa participativa, jornalismo popular, mídia comunitária. Estas, entre outras, foram algumas das denominações providas de certas especificidades, mas recebidas por manifestações impressas que, entre as características comuns, permearam à margem e muitas vezes até à surdina na sociedade brasileira. E, certamente, resgatar algumas destas produções que permearam a história do país colabora para o entendimento do princípio alternativo das manifestações brasileiras. O presente artigo reflete sobre essas produções jornalísticas colocadas à margem nas sociedades das diferentes épocas da histórica do país, portanto, produções consideradas genericamente manifestações impressas alternativas. Trata-se de um ensaio que aponta características e princípios destas produções em seu percurso histórico em busca do entendimento deste ‘tipo’ de produção na sociedade contemporânea. Para isso, busca-se contextualizar este tipo de produção nas sociedades passada e atual, identificando traços e peculiaridades que as assemelham. É objetivo, também, identificar, discutir e contribuir com o entendimento destas produções e seus segmentos: popular, comunitária, local e, apontar características que dêem conta da nova realidade. Cabe, contudo, justificar que esta reflexão é fruto de uma inquietação pessoal e, ao mesmo tempo, de uma ação profissional e militante que acredita nos processos comunicacionais e seus efeitos como instrumentos de transformações sociais. Além disso, o presente é uma sistematização de dez anos de produções e estudos em busca do conhecimento e aprimoramento desta atuação social, profissional e acadêmica. Para dar conta da reflexão, este artigo resgata alguns momentos em que as produções impressas alternativas foram representativas no cenário brasileiro, com significativas contribuições para manifestações de distintos grupos não contemplados pela imprensa oficial, convencional ou puramente comercial. O percurso Talvez seja coincidência e surpresa ter encontrado os primeiros registros e vestígios da existência de pequenos jornais de oposição no Brasil justamente no ano em 2 que a França proclamava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1789, enquanto acontecia a revolução ideológica e cultural na França, eram publicados no Brasil-colônia pequenos jornais que circulavam clandestinamente e que faziam oposição ao governo português. Esses boletins, segundo o historiador Nelson Werneck Sodré, em sua obra História da imprensa no Brasil (1999), enfrentavam as barreiras e as censuras do governo colonial, conseguindo dessa maneira difundir os rumores das novas idéias de igualdade, liberdade e fraternidade consagradas pela Revolução Francesa. “(...) as idéias chegavam, realmente, burlando a vigilância: boletins espalhados na Bahia, às vésperas do movimento de 1789, diziam: ‘Animai-vos, povo baianense, que está para chegar o tempo feliz de nossa liberdade, o tempo em que todos serão iguais.” (SODRÉ, 1999, p. 15) Destes pequenos jornais, não se tem muitas informações. No entanto, o registro desse pequeno relato permite-nos, além do registro do marco cronológico, reconhecer que o surgimento desses boletins contestadores estava ligado às idéias de liberdade e aos direitos do homem como motivações e os valores que inspiraram esta produção impressa. Embora a história já registrasse a presença destes boletins contestadores, foi apenas com a chegada da família real ao Brasil que a imprensa nacional, seja ela oficial ou contestadora, começou, de fato, a se desenvolver de forma mais orgânica e massiva. A presença da família real no Brasil favoreceu a instalação de uma imprensa oficial, que se tornou conhecida como Imprensa Régia.1 Eram jornais mantidos pelo governo, cujo objetivo era divulgar o que se passava com os príncipes europeus; às vezes, também, publicavam documentos, ofícios e mensagens natalinas. “Nascendo assim, sob o aparato oficial, não é de estranhar o caráter áulico, superficial e elogioso das primeiras publicações. Na realidade, a imprensa surgiu como meio de difusão dos valores oficiais, integrada, portanto, nos quadros da dominação ideológica”. (KOSHIBA e PEREIRA,1993, p. 145). 1 O primeiro jornal oficial do Brasil foi a Gazeta do Rio de Janeiro, cuja edição de estréia foi publicada em 10 de setembro de 1808, por ordem do príncipe regente, Dom João. Em 1811, o governador da Bahia também mandou publicar o jornal A Idade de Ouro no Brasil. 3 Em 1º de junho de 1808, porém, meses antes do surgimento da imprensa oficial, foi lançado, o Correio Brasiliense, que desempenhava função contestadora ao regime colonial. Como o Brasil vivia um momento de censura, o jornal foi fundado, dirigido e escrito em Londres por Hipólito José da Costa, que havia nascido no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e em países da Europa. O Correio Brasiliense era publicado quase que mensalmente, tinha mais de cem páginas e fazia duras críticas às políticas de Dom João; no entanto, mantinha raízes nos pensamentos liberais mais elitistas. Nos anos de 1820 é que realmente surgiu uma série de publicações independentes e contestadoras. Em geral, aqueles jornais de oposição lutavam pela independência do país. Os tamanhos reduzidos e as poucas páginas espalhavam pela sociedade textos agitadores, com uma linguagem enérgica e violenta.2 A luta pela independência foi a grande motivadora da existência desses jornais.3 Mesmo enfrentando a repressão política deflagrada pelo governo português, os jornalistas da época resistiam e difundiam nas publicações clandestinas as idéias de independência e oposição à política conservadora. Cipriano José Barata de Almeida, um dos maiores agitadores políticos da época, foi preso várias vezes e ficou conhecido por publicar diversas “Sentinelas” enquanto estava no cárcere. Em uma afirmação, que data de 1823, Cipriano Barata faz duras críticas à falta de liberdade de imprensa: “Toda e qualquer sociedade onde houver imprensa livre, está em liberdade; esse povo vive feliz e deve ter alegria, segurança, fartura. Se pelo contrário, aquela sociedade ou povo, tiver imprensa cortada pela censura prévia presa e sem liberdade, seja debaixo de que pretexto for, é povo escravo, que pouco a pouco há de ser desgraçado, até se reduzir ao mais brutal cativeiro.” (CAPELATO, 1988, p. 39) Hoje, esses pequenos jornais são significativas contribuições para estudar o processo de colonização cultural e política do povo brasileiro, e para que se possa propor, então, uma resposta a esse sistema colonizador. É assim que, ao longo da 2 O Malagueta, que surgiu em 1821, por exemplo, foi uma publicação muito popular, e seu proprietário, Luiz Augusto May, foi perseguido e espancado por colocar-se contra o governo colonizador. 3 O Correio do Rio de Janeiro, publicado em 1821 pelo português João Soares Lisboa, além de defender a liberdade de imprensa, propôs a convocação da Assembléia Nacional Constituinte com eleições diretas, fato que acabou se concretizando após a Independência. Logo em seguida, no entanto, em 1824, ela foi dissolvida pelo já Imperador D. Pedro I. Depois de ser preso, condenado e anistiado, João Soares acabou sendo assassinado. 4 história, com diversas características e nuances variadas, aparece aquela que já ficou tradicionalmente conhecida como imprensa alternativa. Esse tipo de jornalismo se caracteriza, grosso modo, por ser um espaço de reflexão e de compromissos com os interesses sociais, políticos e ideológicos. Em geral, estes jornais representam ainda oposição ao pensamento e às políticas dominantes. “Os pequenos jornais que expressam reivindicações específicas de determinados grupos sócio-políticos são muito importantes para os estudos dos historiadores. Eles existiram desde o Brasil colônia e proliferaram na segunda metade do século XIX. Os títulos dos periódicos exprimiam o grupo do qual eram porta-voz ou os seus propósitos de luta. Menciono como exemplo O Periódico dos Pobres (Rio de Janeiro), O Brado da Miséria (Pernambuco), A Voz do Povo (Belém do Pará), A voz do Artista (Goiás), O Amigo do Escravo (Rio de Janeiro), O Operário (Fortaleza), A Questão Social (Santos).” (CAPELATO, 1988, p. 33) É verdade que surgiram muitos jornais cujo objetivo não era fomentar a luta social, nem tão pouco, política. Simplesmente eram publicações literárias ou de entretenimento; mesmo assim, eram concebidas, clandestinamente, fora do círculo das publicações oficiais. Em geral, tinham uma distribuição localizada e eram produzidas por grupos segmentados. No século XIX, em Porto Alegre, tem-se notícias de que foram publicados cinco jornais humorísticos. Algumas publicações também tinham caráter e público específicos. Em 1826, por exemplo, foi publicado O Espelho Diamantino, jornal feminino que cumpriu o papel de reforçar valores e padrões de comportamento.4 Apesar da existência destes jornais, digamos assim, ‘moralistas’, as publicações contestadoras foram as que mais ganharam impulso. Durante o governo Regencial, que compreende o período de transição entre o governo de Dom Pedro I até a maioridade de Dom Pedro II, em meados de 1830, os jornais alternativos chegaram a somar mais de 50 publicações. Por causa de sua posição irreverente e panfletária, os jornais alternativos receberam o nome de Pasquins. Sobre eles, hoje, no Dicionário Aurélio, lê-se: “Sátira afixada em lugar público; jornal ou panfleto difamador”. 4 Nesta mesma linha de reforço moralista, em 1852, existiu o Jornal das Senhoras, e de 1863 a 1878 foi publicada a revista Jornal das Famílias. 5 A proliferação do jornalismo operário Dando um salto na história, chegamos a um dos grandes momentos das produções impressas alternativa, que foi a proliferação do jornalismo operário. No final do século XIX e início do século XX, surgiram cerca de 400 jornais anarquistasoperários. Apesar de seu surto ter se dado exatamente de 1880 a 1920, a publicação de jornais no meio das classes trabalhadoras sempre foi uma produção necessária para sua organização. Um dos primeiros jornais brasileiro e operário de que se tem notícia surgiu em 1847 e, foi idealizado por um grupo de intelectuais de Recife. Este jornal, como muitos outros da imprensa alternativa, recebeu um nome bastante sugestivo: O Proletário. O surgimento do jornalismo operário está intimamente ligado à produção de reflexão dos intelectuais que, impulsionados por suas idéias e percepções da situação política e econômica do país, forneciam conteúdo para os jornais alternativos. Tendo iniciado o desenvolvimento industrial por conseqüência da crescente produção cafeeira, estes intelectuais encontravam nos jornais operários o espaço para a divulgação de suas análises sobre a conjuntura emergente do país. Somado a essa fundamental contribuição dos intelectuais, está o crescimento quantitativo de operários imigrantes, principalmente, dos italianos e espanhóis, que vieram para trabalhar, principalmente na produção cafeeira. A presença massificada de trabalhadores imigrantes deu origem aos primeiros grandes centros urbanos, o que contribuiu para a consolidação fabril e a organização da classe proletária. A presença dos imigrantes foi tão significativa que muitos jornais, quase 60, eram editados em línguas estrangeiras, principalmente em italiano. Assim, a produção intelectual e a organização dos trabalhadores industriais foram os elementos fundamentais para o desenvolvimento de um jornalismo operário enraizado numa ideologia predominantemente ancarcos-sindicalista. Na verdade, o jornalismo operário do início do século XX cumpriu a função de unificar as lutas e os anseios dos trabalhadores e, por conseqüência, difundir a luta social. Esse jornalismo foi um forte instrumento de divulgação de modelos políticos, de bandeiras democráticas e, sobretudo, de divulgação das demandas e resistências de uma classe marginalizada. Nas páginas destes jornais, vinham estampadas as reivindicações dos trabalhadores, dentre elas a regulamentação da jornada de trabalho de oito horas. 6 “Assim, os inúmeros jornais lançados por iniciativas dos intelectuais foram armas importantes que levaram as idéias à discussão, criaram hábito de leitura e prepararam o terreno para o surgimento da imprensa operária na virada do século, que, com a presença dos operários imigrantes, em outra conjuntura, iria produzir os primeiros frutos da luta social. Essa etapa foi fortemente marcada pela orientação anarcossindicalista, ideologia que iria aparecer tanto na organização proletária como conteúdo e na forma como era produzida a imprensa operária.” (FERREIRA, 1988, p. 9 e 10). Assim como os pasquins contestadores do Brasil-colônia, o jornalismo operário se destaca pela importância de seus registros, reconstruindo a história das lutas e conquistas dos trabalhadores proletariados do país. Neste primeiro momento de uma imprensa alternativa organizada de maneira consistente e com maior visibilidade e influência no debate público, percebe-se o valor fundamental como documento e relato da participação da sociedade, tanto individual como coletiva, no processo histórico do país. Em suas páginas, refletiam-se as lutas e fraquezas de classes e, sobretudo, a situação político-econômica que atingia a população mais marginalizada. Oposição ao populismo A partir de 1920, o país é surpreendido pelo crescimento da imprensa convencional, principalmente em São Paulo. Neste período, o que caracterizava esta imprensa era a oposição ao governo da Primeira República, o que se estendeu, também, após a década de 1930, à política autoritária implantada por Getúlio Vargas, levado ao poder por meio de um golpe. No entanto, esta oposição da imprensa convencional ao governo estava fundamentada nos ideais do projeto liberal e de reforma da sociedade; assim, não demorou muito para que boa parte desta imprensa acabasse fazendo uma composição com o governo autoritário. Vargas conquistou o “apoio” das empresas de comunicação que, em troca de favores, ajudaram a implantar um governo populista. Outras empresas que não apoiaram espontaneamente o governo de Vargas foram submetidas à censura. No regime totalitário varguista, “o Estado, graças ao monopólio dos meios de comunicação, exerce censura rigorosa sobre o conjunto das informações e as manipula”. (CAPELATO, 1988, p. 66) 7 Desta forma, a produção de informações durante o Estado Novo teve características bastante particulares. Neste período, a imprensa foi fortemente influenciada pelo populismo de Vargas; assim, não só a imprensa escrita, mas todos os meios de comunicação foram manipulados e censurados sob a ótica da política varguista. Os encarregados da comunicação de Vargas produziam mensagens políticas e as transmitiam com o intuito de persuadir a população. As mensagens, em geral, eram produzidas para empolgar e envolver as multidões. Na verdade, buscavam o apoio da população para sustentar e dar raízes ao poder do popular presidente Vargas no Estado Novo. Algumas dessas técnicas de persuasão utilizadas para legitimar esse poder no Estado Novo e conquistar o apoio dos trabalhadores à política varguista foram destacadas pela professora Maria Helena Capelato, referindo-se a um dos importantes jornais ligados a Getúlio: “O jornal getulista ‘A Noite’ comentou que Vargas não se perdia no jogo de palavras. O discurso do chefe era elaborado com base em técnicas de linguagem: usava slogans, palavraschave, frases de efeito e repetições ao se dirigir às massas. Os meios de comunicação reforçavam a figura do líder com frases do tipo ‘a generosa e humanitária política social do presidente Vargas’, ‘reiteradas e expressivas provas de carinho ao presidente Vargas’, ‘a popularidade do presidente Vargas’, ‘homenagem de respeito e testemunho de gratidão ao presidente Vargas’.” (CAPELATO, 1988, p. 67) A criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) favoreceu a construção de uma ideologia varguista. Este departamento era responsável por produzir e divulgar o discurso de Vargas proferidos em inaugurações, comemorações, visitas e outros atos públicos. Normalmente, estes discursos serviam de “matéria-prima” para a produção da imprensa varguista da época. Tanto foi que, com a instalação da censura, em 1937, os jornais que não adotavam o discurso de Vargas eram tidos como “publicações inconvenientes”. Segundo a professora Capelato, “a partir de 1940, 420 jornais e 346 revistas não conseguiram registro no DIP. Aqueles que insistiam em manter sua independência ouse atreveram a fazer críticas ao governo tiveram sua licença cassada”. (Ibidem, p. 70) Nesse cenário, em que a emergente imprensa convencional fazia alianças e composições com o governo de Vargas, as manifestações populares e a insatisfação da 8 sociedade foram apaziguadas e camufladas pela sedutora política populista. Pouco se têm notícias da existência de uma imprensa contestadora ou alternativa, já que as insatisfações da sociedade haviam sido ‘sanadas’ durante o Estado Novo. As atitudes populistas cooptaram até mesmo as classes inferiores, de onde nasciam e se inspiravam as publicações alternativas. No entanto, entre as poucas vozes dissonantes do Estado Novo está a imprensa comunista que circulava clandestinamente, mesmo intimidada pela dura censura estadonovista. Na luta contra o comunismo, Vargas não se limitou somente à repressão, mas também em criar uma imagem através da propaganda diária e nacional de que estes eram indivíduos sem sentimentos humanos e, sobretudo, colaboradores da desagregação nacional. Todas as produções veiculadoras de idéias e pensamentos, quaisquer que fossem elas, estavam sob suspeita de pregar ideais comunistas. “A cruzada anticomunista de ‘caça as bruxas’ foi tão exacerbada que se chegou ao ponto de proibirem alguns textos de literatura infantil, sob a alegação de que esses acobertavam supostos diálogos comunistas”. (Almeida in Carneiro, 2002: 260) Mesmo com a censura e a perseguição da ditadura de Vargas, os grupos mais radicais de formação política e ideológicas de oposição resistiam e se manifestavam isoladamente. “Essa situação de rígido controle, entretanto, não impediu que grupos ativistas (comunistas, integralistas, nazistas, fascistas), cada qual em diferentes momentos, se organizassem tentando romper o círculo do poder instaurado pela ditadura varguista”. (ALMEIDA in CARNEIRO, 2002, p. 261) A consagração da Imprensa Alternativa Esse breve percurso histórico acaba por revelar que a trajetória da imprensa alternativa no Brasil está intimamente ligada às lutas democráticas, que procuraram garantir, ao longo dos tempos, a liberdade de manifestação e a pluralidade de visões sobre a realidade. Nesse sentido, esse mesmo percurso feito por esse ensaio nos conduz agora a um dos momentos mais importantes, senão o mais significativo, do jornalismo alternativo brasileiro. Durante o século XX, o Brasil foi marcado por regimes autoritários. Depois do golpe de estado de Vargas, em 1930, o país sofreu mais uma intervenção, também sob a forma de golpe, mas desta vez, militar. Em 1964, o governo foi tomado pelos militares, sob a alegação de que era preciso defender a nação do “fantasma do comunismo”. A 9 instalação do aparato militar no governo brasileiro provocou revolta e empurrou parcela significativa da sociedade para a produção e consolidação de uma comunicação alternativa, que representasse a oposição aos interesses dos grupos políticos dominantes. Neste período, teve início a mais importante e conhecida seqüência de publicações alternativas do Brasil, cujo objetivo era contestar o governo ditador e fomentar o regime democrático.5 As primeiras publicações alternativas dessa fase surgiram nas grandes capitais, concentrando-se, principalmente, no Rio de Janeiro e em São Paulo. O surgimento desta imprensa nestas cidades não aconteceu apenas por mero acaso ou apenas por suas significativas participações na política e na economia do país. A concentração dos grandes nomes do jornalismo brasileiro antenados ao momento político é que rendeu este pioneirismo a estas cidades. Mas, não demorou muito e a imprensa alternativa espalhou-se por outras capitais, até atingir cidades menores, no interior do Brasil. Com pouco tempo de vida, consideradas algumas exceções, essas publicações chegaram a somar mais de uma centena de jornais diferentes, em um curto período de tempo. Segundo o professor Bernardo Kucinski “ao fim de 15 anos de ditadura militar brasileira, havia nascido cerca de 160 periódicos de vários tipos – satíricos políticos, feministas, ecológicos, culturais -, que tinham como traço comum a intransigente oposição ao governo”. (KUCINSKI, 1998, p. 178) Grande parte destas publicações era impressas em formato tablóide, o que equivale à metade dos jornais comuns de grande circulação, os chamados stander. Este tamanho lhes rendeu o nome de “imprensa nanica”, o que caracterizava também o seu pequeno espaço na sociedade. De modo pejorativo, o nome “imprensa nanica” foi utilizado para atribuir-lhes valores degradantes, algo imaturo, pequeno e sem relevância. Outro adjetivo que disputava o ofício de nomenclatura para essas produções foi o de “imprensa marginal”, isto porque estes jornais circulavam paralelamente aos da grande imprensa, e não eram tidos como oficiais. “Imprensa marrom” também foi um dos apelidos dado às publicações alternativas para tentar atribuir o caráter sensacionalista. No entanto, a palavra “alternativa” foi a que mais se sobressaiu – e criou referências. Isso porque, segundo Bernardo Kucinski, “o radical de ‘alternativa’ contém quatro dos significados essenciais dessa imprensa: o de algo que não está ligado a políticas 5 Como marco inicial desta nova fase da imprensa alternativa, destaca-se a publicação do Pif-Paf, lançado em maio de 1964. 10 dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos 60 e 70, de protagonizar as transformações sociais que pregavam”. (KUCINSKI, 2003, p. 13) Esses jornais reuniam um misto de profissionais idealistas, mas com os pés fincados na realidade do país. Em geral, além de jornalistas consagrados, somavam-se focas6, políticos ativistas de esquerda e intelectuais. Num primeiro olhar, pode parecer estranho que a imprensa alternativa tenha conseguido reunir os grandes nomes do jornalismo brasileiro. No entanto, a aliança da grande imprensa com o sistema ditatorial implantado fez com que estes profissionais buscassem novos rumos, encontrando nas pequenas publicações uma alternativa para o fazer jornalismo. Neste mesmo caminho, outros grupos também buscavam transformações sociais, como os políticos de oposição, ou melhor, as esquerdas e os intelectuais. Em geral, buscavam novos espaços de atuação, já que o fechamento das instituições, como sindicatos, movimentos estudantis e partidos políticos deixou estes grupos deslocados e insatisfeitos. Os grupos de esquerda, por sua vez, encontraram na imprensa alternativa um espaço de formação e reorganização política e ideológica, enquanto que os intelectuais, que resistiam à repressão nas universidades, investiam nesta imprensa como uma possibilidade de manutenção e germinação para a produção intelectual. Assim, jornalistas, políticos e intelectuais desempenhavam papel fundamental na sociedade, pois criaram na imprensa alternativa um espaço de sustentação à oposição ao regime militar. “Curiosamente, os jornalistas da imprensa alternativa não se viam como heróis ou protagonistas da resistência à ditadura, apesar de objetivamente ter sido esse o seu papel. Viam-se como jornalistas comuns, vivendo as circunstâncias de seu tempo, e para os quais ‘livre-pensar é só pensar’.” (KUCINSKI, 1998, p. 179) A esses profissionais, somaram-se mais uma grande quantidade de humoristas, chargistas, cartunistas, enfim, diversos desenhistas que tiveram um significativo espaço e papel na imprensa alternativa. Esse quadro de profissionais contribuiu, principalmente, com a criatividade na interpretação dos fatos políticos, dando às publicações novas formas de comunicação e novas linguagens. A imprensa alternativa 6 Jornalistas recém-formados, em início de carreira. 11 inovou explorando a linguagem visual. A imprensa alternativa também inovou incorporando ao jornalismo novas formas de produção, com entrevistas e reportagens investigativas. O Pasquim, por exemplo, publicou grandes entrevistas que marcaram edições, enquanto que os jornais Movimento e Opinião desenvolviam reportagens investigativas fundamentais para a formação político-conjuntural. Com tantas contribuições, seja política, intelectual ou artística, as várias publicações alternativas mantinham-se firmes no propósito e na sua essência jornalística. No entanto, a diversidade de pensamento deu origem a dois grupos distintos de imprensa alternativa. O primeiro, que Bernardo Kucinski chama de corrente ideológica, publicava matérias de protestos e manifestações, dando destaque para a organização da sociedade. Essa valorização do popular fez crescer o interesse e um sentimento pelo nacional. Aproximava-se do pensamento marxista e tinha visões amplas e coerentes da política, o que contribuiu para perceber o crescimento desesperador da dívida externa do Brasil, ainda em 1973. O segundo, a corrente existencial, fundamentava-se numa oposição radical ao pensamento massificado implantado pelos Estados Unidos. Esse grupo tinha como princípio a contracultura norte-americana. Aproximava-se do existencialismo de Jean-Paul Sartre, buscando novos modos de perceber o ambiente. Apesar dos diferentes modos de pensar, dos diferentes modos de produzir, dos diferentes modos de falar com a sociedade, estes jornais representavam uma alternativa ao modelo político ditatorial; portanto, uniam-se em ideais anti-capitalistas e contrahegemônicos. “O que identificava toda a imprensa alternativa era a contingência do combate político-ideológico à ditadura, na tradição de lutas por mudanças estruturais e de crítica ortodoxa a um capitalismo periférico e ao imperialismo, dos quais a ditadura era vista como uma representação.” (KUCINSKI, 1998, p. 182) Com o fim do regime militar, os jornais alternativos existentes naquele momento quase que desapareceram por completo. Alguns jornais até sobreviveram após a ditadura, como é o caso do semanário O São Paulo, que foi fundado pela Arquidiocese de São Paulo, em 1956, e foi duramente censurado pelos militares. Entretanto, esses que 12 resistiram perderam seus traços e características originais, vinculadas à contestação da ditadura. A essência do jornalismo alternativo Na busca da essência do jornalismo alternativo, as produções durante o regime militar foram bastante expressivas. Entretanto, não é somente o regime militar autoritário que justifica e explica a existência da imprensa alternativa como espaço de resistência ao modelo autoritário e dominante. Na verdade, a construção de uma contrahegemonia ideológica também dá sustentação e garante a essência de um jornalismo guiado por um modelo ético e político, cujo objetivo é fomentar a democracia de pensamento. É bem verdade que a imprensa alternativa durante o Regime Militar teve uma expressão sem igual na história do jornalismo de oposição. Contudo, essa definição de imprensa alternativa não pode ser limitada em um único período só porque sua representação foi mais expressiva. Apesar da grande importância da imprensa alternativa dos anos de 1960 e 1970, que pautou e abriu novas e grandes possibilidades de enfrentamento, esse tipo de jornalismo contestador sempre existiu na história da imprensa do Brasil. Aliás, como vimos no resgate deste ensaio, pouco antes da instalação da imprensa oficial no Brasil-colônia, já circulavam os boletins contestadores ao governo português, que difundiam os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade inspirados pela Revolução Francesa de 1789, mas negados pelos colonizadores. O surgimento desses boletins, dos famosos Pasquins, dos jornais operários, dos jornais comunistas, mesmo com suas particularidades e limitações, não podem ser ignorados em detrimento do “grande jornalismo alternativo” produzido durante a ditadura militar. Ao contrário, eles têm características que os aproximam e os definem como uma possibilidade de expressão e de contestação e enfrentamento a um pensamento, um regime, um projeto, uma política, uma cultura, uma ideologia hegemônica. “A imprensa alternativa dos anos 70 pode ser vista, assim, em seu conjunto, também como sucessora da imprensa panfletária dos pasquins e da imprensa anarquista, na função social de criação de um espaço público reflexo, contrahegemônico. (...) 13 O impulso ético, essencial a aventura alternativa, não morreu, pois ele é inerente ao homem e principalmente ao jovem. Mas hoje ele escolhe como objeto de sua ação em primeiro lugar a natureza; em segundo lugar as minorias, o muito pobre, o desalojado, o enfermo de Aids, a criança abandonada; em terceiro, as manifestações artísticas e culturais, como o rap e os grafites. Na condução desse impulso alternativo e dos inúmeros projetos de intervenção estão hoje as entidades não governamentais e não os partidos políticos. É um novo mundo alternativo, ainda nos primeiros passos, e cujo destino é ainda difícil de se imaginar.” (KUCINSKI, 1998, p. 5 e 178) O caráter contestador e de enfrentamento pode ser identificado no percurso da imprensa no país. Foram assim com os irreverentes Pasquins do século XIX, que enfrentavam a colonização portuguesa; foi assim com os bravos jornais operários, que denunciavam a exploração da crescente massa de proletários do final do século XIX e início do século XX; foi assim com os poucos jornais comunistas que resistiam aos ditames do populismo de Vargas; foi assim com os consagrados alternativos dos anos de 1970 que contestaram e se manifestaram contra o autoritarismo militar e contra a introdução da cultura norte-americana. Os caminhos percorridos por esse jornalismo legitimam um tipo de imprensa que tem como finalidade, no seu fazer jornalístico, abrir uma nova possibilidade, uma nova alternativa de reflexão e interpretação da realidade contextualizada em seu tempo, ou ainda, servir como espaço de contraposição – seja no plano político ou ideológico – à situação dominante. Embora a denominação de imprensa alternativa seja a que melhor contempla suas características e objetivos, a constatação de suas características possibilita ainda dar outros nomes a essa imprensa: Jornalismo Contestador, por exemplo, porque seu caráter de enfrentamento esteve presente em toda a história fazendo oposição às políticas e ideologias dominantes. Jornalismo Social, porque representa as aspirações, anseios e interesses das classes inferiores da sociedade, que por sua vez são maioria. Jornalismo Popular ou Comunitário, porque nasce de uma relação próxima da sociedade. Mesmo que produzido por grupos distintos, esses segmentos estão organizados a partir da realidade popular, como é o caso das ongs, sindicatos, movimentos populares, igrejas, pastorais sociais, e em alguns casos, como micro ou pequenas empresas, produzindo um jornalismo independente do capital. “Enfim, a mídia de proximidade caracteriza-se por vínculos de pertença, enraizados na 14 vivencia e refletidos num compromisso com o lugar e com a informação de qualidade e não apenas com as força políticas e econômicas no exercício do poder.” (PERUZZO, 2005, p. 81) Jornalismo alternativo, no entanto, é a que melhor se encaixa e define essa prática porque que tem uma natureza diferente da imprensa convencional, desde sua concepção, passando pela forma de produção, até atingir os objetivos. Este último, o Jornalismo Alternativo contempla todas as outras denominações, sobretudo, porque engloba a possibilidade de ver e refletir sobre os acontecimentos sobre outro ponto de vista, mesmo que essas reflexões não tenham as mesmas dimensões da grande imprensa. Não se trata, porém, de juntar tudo em um caldeirão, misturar e tirar um conceito conveniente, mesmo porque, esse conceito não é imutável, mas deve ser analisado à luz dos diversos contextos históricos. No entanto, a apuração e a comparação dos fatos permitem identificar afinidades e agrupar as características que ajudam a definir estas produções impressas alternativas. A produção de um jornalismo enraizado no compromisso social, por exemplo, é uma dessas afinidades que permearam por toda a história da imprensa alternativa. Nesse resgate histórico, é possível identificar um jornalismo que representa os interesses coletivos da sociedade e não os interesses das elites dominantes, um jornalismo que é pautado como uma prestação de serviço, portanto – preocupa-se com o bem-comum – e não como um empreendimento comercial. Nesse sentido, essa prática jornalística se fundamenta em princípios e valores que prezam a democratização da informação e a liberdade de expressão. Necessariamente, a presença da ética deve compor esse quadro de valores, já que o compromisso desse jornalismo é com o interesse comum e não com o interesse próprio de quem o produz – ou do anunciante que o sustenta. Além disso, uma das características que merece ser ressaltada diz respeito ao conteúdo produzido por esse jornalismo. A diversidade de temas abordados por esse jornalismo contestador garante uma outra possibilidade de pensamento e a pluralidade de idéias. Longe da produção tecnicista, do reducionismo das linguagens, das mesmices das pautas e temas propostos pela grande imprensa, esse jornalismo dá outras alternativas para olhar a realidade por meio da diversificação de enfoques, ou pelo menos, aborda os acontecimentos sob o enfoque comprometido com o social. 15 Considerações finais Trazer à tona toda a trajetória histórica do jornalismo contestador e refletir sobre os rumos da grande imprensa teve como finalidade identificar um outro “tipo” de jornalismo, que chamo de alternativo porque, de certa forma, sempre esteve à margem de uma imprensa convencional, mas que, sobretudo se fundamenta em alguns eixos, entre eles: Jornalismo como serviço público, porque está comprometido, em primeiro lugar, com a informação e não com o capital, portanto, não tem função mercadológica nem é produzido do ponto de vista da mercadoria; tem como princípio o bem comum, portanto, desempenha função social. Jornalismo como instrumento de formação da cidadania porque defende interesses populares e democráticos, abordando pautas e temas sob o enfoque das maiorias. Jornalismo como garantia da pluralidade de vozes e pensamentos, porque fornece para o leitor elementos que possibilitam a construção da reflexão e da crítica contextualizada em seu tempo e, além disso, foge das mesmices e do reducionismo da grande imprensa. Para não deixar dúvidas nem suscitar confusões: embora esse jornalismo que identificamos nesse trabalho possa receber vários nomes, o mais utilizado, que engloba toda produção considerada marginal, e que mais contempla suas características e objetivos, é Imprensa Alternativa. No fundo, porque representa uma alternativa não só à imprensa convencional, mas uma alternativa à natureza dominante do sistema sócio, político, econômico e cultural do país. Referências ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de. Caça às bruxas: repressão e interventoria Agamenon Magalhães. 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