ANO 4 - NO 24
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A Gravata do Pierre†
Paulo Murilo Castro de Oliveira
Instituto de Física - Universidade Federal Fluminense
Av. Litorânea s/n, Boa Viagem, Niterói, RJ 24210-340, Brasil
Introdução
Conheci meu ídolo Pierre Lucie no final da década de 60.
Eu era aluno de um curso vestibular, e Pierre havia sido
contratado naquele ano como professor de Física deste
curso. Há quem diga que esta contratação tinha como
objetivo tirá-lo da banca do exame vestibular unificado
do Rio de Janeiro. Se foi este o objetivo, a tentativa foi frustrada
porque Pierre só permaneceu lá durante aquele ano.
Eram turmas enormes em salas enormes, e eu cheguei
atrasado para a primeira aula de Física. Tentei entrar meio escondido, procurei algum lugar
vazio naquela multidão, e me sentei lá no fundo da sala, atrás de uma pilastra que me fazia
balançar a cabeça de um lado para o outro na tentativa de acompanhar o vai-e-vem do
professor em cima de um tablado também enorme. Era um sujeito com a cabeça
precocemente branca, forte, baixo e com uma energia impressionante. Falava um português
perfeito, mas com sotaque claramente francês. Andava o tempo todo de um lado ao outro
da sala, falava sem parar, fazia perguntas a estudantes aleatórios que não respondiam,
apalermados com aquela energia toda. Percebi que aquele era o tal “Pierre”, autor da apostila
de Física ilustrada pelo Henfil, que eu havia recebido no ato da matrícula e já começara a
ler avidamente (que depois seria transformada no livro “Martins e Eu”).
Fiquei curioso com a gravata vermelha que ele usava. Era certamente a única peça
nova do seu vestuário. Eu nunca havia assistido aulas com professores de gravata! Já no
meio da aula, começou a falar sobre o pêndulo. Queria saber como o período de oscilação
dependeria do comprimento. Lançou mais uma daquelas perguntas a um aluno aleatório
(não tanto, felizmente para mim, porque o escolhido sempre estava sentado nas primeiras
filas).
Apontando para o infeliz, perguntou: “O que você acha? O período aumenta ou diminui,
quando se encurta o barbante?” Como sempre, o sujeito apalermado nada respondeu. Mas
um outro aluno, encorajado pelo anonimato das filas de trás da sala disse: “Dois pi raiz de ele
sobre ge”. Era o que Pierre queria! Pulou indignado no tablado, e gritou: “Não, não e não! Isto é
uma fórmula! Não é às fórmulas matemáticas que as perguntas devem ser dirigidas! DEVE-SE
PERGUNTAR À NATUREZA!” As letras maiúsculas indicam que o volume do grito aumentou na
última frase. Imediatamente arrancou a gravata do pescoço, amarrou o apagador nela, e mostrou
o pêndulo para todos verem em silêncio absoluto. Primeiro, segurava a gravata pela ponta, e
balançava. Depois, segurava pelo meio, encurtando o comprimento do pêndulo, e balançava
de novo. Fez isto repetidas vezes, durante uns dois ou três minutos, e o silêncio continuou
absoluto. Aproveitou este tempo para observar os rostos dos alunos estupefatos, um a um.
†
Nota da equipe do Folhetim: O presente texto foi escrito em 1995, à pedido da profa Suzana Sousa Barros, para ser
incluído no livro em homenagem ao saudoso prof. Pierre Henri Lucie.
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Assim eu conheci Pierre Henri Lucie. Ele me conheceu numa aula posterior, quando
tive coragem de me manifestar, o que já havia se tornado comum a vários colegas, depois
de algumas aulas. A esta altura, ele já estava falando sobre cinemática, introduzindo o
conceito de aceleração. Perguntava: “Se a aceleração é zero e a velocidade é diferente de zero,
como é o movimento?” E lá vinha alguma resposta de algum aluno, que dava origem a outra
pergunta: “E se a velocidade é zero e a aceleração é diferente de zero?” E mais uma resposta
qualquer. Alguém mais afoito fez uma pergunta: “E se a aceleração e a velocidade forem ambas
iguais a zero?” Pierre repetiu a pergunta, e alguém respondeu: “Neste caso, o móvel está parado.”
E ele mesmo, Pierre, confirmou: “Isto mesmo, com aceleração e velocidade nulas, o móvel está
parado.” Eu não concordei, tomei coragem, e disse: “Não necessariamente.” Pierre reafirmou:
“Se a aceleração é zero, sendo ela quem mede a variação da velocidade, uma velocidade nula não
pode variar e vai continuar sendo nula!” Eu continuei não concordando, e, apesar da provável
reação fulminante, apelei timidamente para a matemática: “E se xis variar com tê ao cubo?”
Veio a esperada reação: “NÃO ME VENHA COM FÓRMULAS!” E continuou a aula sob meus
protestos íntimos e silenciosos, restritos ao meu próprio pensamento.
Acabou aquela aula, houve mais uma de outra matéria. No intervalo de meia hora
depois desta última, eu estava comendo um sanduíche quando vi Pierre correndo atrás de
mim. Ele já havia ido embora, e pensou na minha questão dirigindo o carro a caminho de
casa. Percebeu que eu estava certo, deu meia volta, e estava ali na minha frente dizendo:
“Você tem razão! A aceleração pode ser zero num dado instante, mas deixar de ser zero logo depois, e
aí a velocidade vai variar!” Eu fiquei todo orgulhoso e disse: “é isto mesmo!”
Minha amizade com Pierre começou neste dia, e foi bastante intensa durante quase
17 anos. Depois do exame vestibular, fui parar no ITA, onde pretendia cursar engenharia
aeronáutica. Fiquei só um semestre, horrorizado com as aulas de Física. Meu professor
pertencia à TFP, e usava terno e gravata (que nunca tirou para simular um pêndulo). As
aulas eram sobre a vida e obra de São Tomás de Aquino, considerado o maior cientista da
humanidade. Nas provas, no entanto, éramos obrigados a resolver problemas de mecânica
tirados do conhecido livro de M. Alonso e E. Finn. Decidi não continuar no ITA, e me transferi
para o curso de Física da PUC do Rio de Janeiro. Quem arrumou a burocracia da
transferência foi meu amigo Pierre Lucie, que também havia abandonado o curso vestibular
e retornado à PUC. Durante todo o ano seguinte, vim a ser seu aluno direto, na disciplina de
Mecânica Clássica, seguindo o conhecido livro de K.R. Symon. Ele nos ensinou a formulação
Lagrangeana da Mecânica. Durante todo o meu curso de graduação, Pierre foi sempre a
vítima predileta de minhas perguntas e dúvidas. Eu achava que ele sabia toda a Física, e
esta crença absurda realmente se concretizava em qualquer diálogo que tínhamos: de
uma forma ou de outra, ele sempre me fazia descobrir a resposta que eu procurava.
Fui promovido a pós graduando, na própria PUC, e contratado como auxiliar de ensino
e depois, professor. Durante dois semestres, eu e Pierre fomos colegas na mesma equipe
de Física I, e guardo até hoje várias anotações, dele e minhas, daquela época. Fomos colegas
também, durante os últimos 7 anos da sua vida, na banca examinadora do vestibular
unificado do Rio de Janeiro: ele era o chefe, eu mais dois colegas, os chefiados. Cada
questão era minuciosamente analisada durante meses, melhorada, modificada, lida e relida.
Durante esta época, Pierre se aproveitou da infraestrutura da fundação que realizava
estes exames, para editar a revista “Contacto”. O objetivo era a apresentação de materiais
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e métodos didáticos para e por professores de segundo grau (não só de Física). Guardo
todos os números, e até hoje consulto os excelentes textos lá escritos. Eu mesmo sou
autor de três destes textos, e tive meus primeiros enfrentamentos com “referee”. Este, hoje
eu tenho certeza, era o próprio Pierre. Estas três são sem dúvida as minhas publicações
mais trabalhosas: cada texto teve que ser reformulado diversas vezes antes de publicado.
Na tarde do dia 16 de setembro de 1985, eu visitei a PUC (não trabalhava mais lá, mas
ainda mantinha contato com vários colegas). Como sempre, dei um pulo na sala do Pierre
para abraçá-lo. No dia seguinte, eu e minha esposa (que se orgulha de ter sido a única
orientada do Pierre em pós graduação) fomos ao seu enterro.
O Período do Pêndulo Simples
Quando Suzana Sousa Barros me pediu para escrever algo para este volume,
lembrando da gravata do Pierre, resolvi descrever uma experiência numérica sobre o pêndulo
simples que costumo usar na disciplina de Física I, e que também serve para o segundo
grau. A questão que se coloca é descobrir como varia o período com a amplitude. Pierre
perguntaria: “O que você acha? O período aumenta ou diminui, quando se balança mais forte ?” E
completaria: “Não adianta vir com fórmulas matemáticas do tipo ‘dois pi raiz de ele sobre ge’,
porque se trata apenas de uma aproximação válida para pequenas oscilações”. A maneira mais
simples de resolver o problema é através da máxima do próprio Pierre: “Pergunte diretamente
à Natureza!” Ou seja, montar a experiência e medir. Trata-se de uma montagem bastante
simples, e a medida do período requer apenas um pouco de cuidado e capricho.
Eu vou abordar aqui uma outra maneira de responder à questão: resolver o problema
no computador. Aliás, era exatamente esta alternativa que, no final da vida, havia se tornado
a nova mania do Pierre. Ele havia comprado um pequeno computador, e discutia muito
comigo sobre a solução numérica dos problemas (tema em que eu havia me metido antes
dele). Esta solução numérica é complementar à experiência direta do pêndulo. A comparação
dos resultados é também um bom instrumento didático no sentido da verificação da validade
da lei de Newton.
Primeiro, devemos aplicar a lei de Newton ao
movimento. Na figura 1, mostra-se um trecho da
trajetória circular, e o pêndulo no instante t formando
um ângulo θt com a vertical. Duas outras posições
do pêndulo são também indicadas: uma à esquerda
num instante anterior t−1, correspondendo a um
ângulo menor θt−1; e outra à direita num instante
posterior t+1, formando um ângulo maior θt+1. A
unidade de tempo adotada é um pequeno intervalo
∆t decorrido entre duas posições consecutivas do
pêndulo, como se estivéssemos tirando fotografias
sucessivas a intervalos regulares ∆t (fotografia
estroboscópica). As três posições mostradas na
figura correspondem a três instantâneos
consecutivos nesta série de fotos.
Figura 1
Esquema do pêndulo em movimento
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A velocidade da massa do pêndulo no primeiro trecho desde θt−1 até θt será a razão
entre a distância percorrida l (θt − θt−1) e o tempo decorrido ∆t, onde l é o comprimento do
pêndulo (raio da trajetória circular), ou seja
v1 = l
θ t − θ t −1
∆t
(1)
Da mesma forma, a velocidade no segundo trecho desde θt até θt+1 vale
v2 = l
θ t +1 − θ t
∆t
(2)
Para aplicar a lei de Newton, devemos calcular a aceleração que é a razão entre a
diferença de velocidades e o tempo decorrido desde o primeiro trecho até o segundo, ou
seja
a=
v 2 − v1
∆t
(3)
ou, ainda
a=l
θ t +1 − 2θ t − θ t −1
(4)
∆t 2
Note que usamos apenas os módulos das velocidades, sem nos importarmos com
suas direções. Desta forma, a aceleração obtida é apenas a componente tangencial (na
direção tangente à trajetória no instante t) do vetor aceleração. Isto significa que o produto
desta aceleração pela massa, ao invés de ser igual à força resultante, será igual à
componente tangencial desta força resultante.
Há duas forças atuando na massa do pêndulo: seu peso vertical mg apontando para
baixo; e a tensão do barbante apontando na direção do centro da trajetória. Esta segunda
foi omitida na figura 1, porque não contribui para a componente tangencial da resultante,
uma vez que sua projeção sobre a tangente à circunferência no instante t é nula. Resta,
então, a projeção do peso sobre esta tangente, que vale
F = − mg sen(θ t )
(5)
Igualando esta componente tangencial F dada na equação (5) ao produto da massa
m pela aceleração escalar a dada na equação (4), obtemos
g ∆t 2
θ t +1 = 2θ t − θ t −1 −
sen(θ t )
l
(6)
Nossa solução numérica vai se basear nesta equação (6), que nada mais é do que a
lei de Newton devidamente manipulada. Mas antes, vamos definir a condição inicial do
movimento. Ao realizarmos a experiência, como fez Pierre com a gravata, levantaríamos a
massa até que o barbante formasse um certo ângulo θ0 com a vertical, e largaríamos o
sistema sem velocidade inicial. Desta maneira, a amplitude da oscilação seria igual ao
valor θ0 escolhido. Bastaria, então, cronometrar o movimento a partir do instante de largada,
e medir o período.
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Seguiremos exatamente esta seqüência na nossa solução numérica. Vamos construir
passo a passo o gráfico do ângulo θ, no eixo vertical, contra o tempo t, no eixo horizontal.
Escolhido o valor inicial θ0, já podemos marcar o primeiro ponto do gráfico, para t = 0, em
cima do eixo vertical. O segundo ponto a ser marcado será θ1, para t = 1, depois de decorrido
o intervalo ∆t adotado como unidade de tempo. Temos, pois, que calcular o valor θ1. Já
escolhidos, conhecidos e fixados os valores de g = 9.81 m/s2, de ∆t = 0.005s e de l = 1m
(por exemplo), e fazendo t = 0 na equação (6), o valor requerido θ1 se expressa em função de
θ−1. Pierre perguntaria provocativo: “Quem é este θ−1?” A resposta: é o ângulo correspondente
à posição do pêndulo ∆t segundos antes do instante t = 0, como se o movimento já tivesse
começado anteriormente. Seria como se deixássemos primeiro o pêndulo realizar uma
oscilação completa, voltando à posição inicial θ0, e só então, neste preciso instante,
começássemos a cronometrar o movimento. Como θ0 é o valor máximo cercado
simetricamente no gráfico por θ−1 à esquerda e θ1 à direita, estes dois últimos devem ser
iguais. Da equação (6), fazendo t = 0 e θ−1 = θ1, acha-se finalmente
θ1 = θ 0 −
g ∆t 2
sen(θ 0 )
2l
(7)
ou
θ1 = θ0 − 0.000122625 sen(θ0) ,
(8)
para os valores numéricos exemplificados.
Já com dois pontos marcados no gráfico de θ contra t, o terceiro ponto será θ2, a ser
marcado no instante t = 2 (duas vezes o intervalo ∆t). Para determinar θ2, basta recorrer
novamente à equação (6), desta vez fazendo t = 1, ou seja
θ2 = 2θ1 − θ0 − 0.000245250 sen(θ1) .
(9)
O quarto ponto será θ3, a ser marcado no instante t = 3 (três vezes o intervalo ∆t).
Novamente a equação (6) nos fornece o valor
θ3 = 2θ2 − θ1 − 0.000245250 sen(θ2) ,
(10)
desta vez fazendo t = 2.
Usando sempre a equação (6) para achar
o novo valor θt+1 a partir dos dois anteriores, θt
e θt−1, já determinados, vai-se marcando um a
um os pontos no gráfico. Depois de muitos
pontos, pode-se observar a curva completa,
como na figura 2 construída para uma
amplitude θ = 10º = 0.174533radiano. O
período pode, então, ser medido diretamente
no gráfico. Neste caso, como a amplitude é
pequena, o resultado T = 2.0s coincide com o
da fórmula “dois pi raiz de ele sobre ge”.
Figura 2
Posição angular θ (em radianos) em função do tempo t (em
segundos). O pêndulo foi largado inicialmente da posição
θ0 = 10º = 0.174533radiano (amplitude). No caso, o pêndulo
tem comprimento l = 1m, a intensidade do campo
gravitacional terrestre vale g = 9.81m/s2, e o intervalo de
tempo adotado na solução numérica foi ∆t = 0.005s.
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A figura 3 mostra um outro exemplo,
desta vez para uma amplitude muito maior
θ0 = 135º = 2.356194radiano. Repare que o
período já aumentou consideravelmente
para T = 3.1s, em relação à figura 2.
Podemos concluir que o período aumenta
para amplitudes cada vez maiores,
respondendo assim à questão original.
Repetindo o mesmo processo para diversas
amplitudes, pode-se também construir o
gráfico do período em função da amplitude,
como mostra a figura 4.
Figura 4
Período T (em segundos) em função da
amplitude θ0 (em radianos), para o
mesmo pêndulo das figuras anteriores.
Figura 3
Posição angular θ (em radianos) em função do
tempo t (em segundos), para o mesmo pêndulo
da figura anterior, desta vez largado da posição
θ0 = 135º = 2.356194radiano.
Duas últimas observações se fazem
necessárias. Primeiro, todos os ângulos
devem estar expressos em radianos, não em
graus, porque usamos o fato dos arcos de
circunferência na figura 1 serem dados pelo
produto dos respectivos ângulos pelo raio do
círculo, para obter as equações (1) e (2), e esta
relação só é válida em radianos. Segundo,
para realizar a experiência com amplitudes
maiores que 90º, não poderíamos usar a
gravata do Pierre, e nem mesmo um barbante
flexível: a massa largada sem velocidade
inicial iria cair verticalmente (no início do
movimento), com o barbante frouxo. Teríamos,
alternativamente, que substituir a gravata por
um arame rígido.
Uma análise mais completa deste problema será publicada brevemente na Revista
Brasileira de Ensino de Física.
Nota incluída posteriormente (pelo autor):
No dia 17 de setembro de 1985, não pudemos ficar até o final do enterro. Perdemos o discurso proferido por Carlos Alberto
Aragão de Carvalho, meu colega e amigo de toda hora desde aquela memorável aula da gravata, passando pela PUC, até
hoje. Soube agora, através do próprio Aragão, qual foi o tema do discurso: a aula da gravata.
Nota da equipe do Folhetim:
A Revista Brasileira de Ensino de Física pode ser acessada no endereço http://www.sbfisica.org.br
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