ANO 4 - NO 24 AGOSTO - 2005 PÁGINA 1 A Gravata do Pierre† Paulo Murilo Castro de Oliveira Instituto de Física - Universidade Federal Fluminense Av. Litorânea s/n, Boa Viagem, Niterói, RJ 24210-340, Brasil Introdução Conheci meu ídolo Pierre Lucie no final da década de 60. Eu era aluno de um curso vestibular, e Pierre havia sido contratado naquele ano como professor de Física deste curso. Há quem diga que esta contratação tinha como objetivo tirá-lo da banca do exame vestibular unificado do Rio de Janeiro. Se foi este o objetivo, a tentativa foi frustrada porque Pierre só permaneceu lá durante aquele ano. Eram turmas enormes em salas enormes, e eu cheguei atrasado para a primeira aula de Física. Tentei entrar meio escondido, procurei algum lugar vazio naquela multidão, e me sentei lá no fundo da sala, atrás de uma pilastra que me fazia balançar a cabeça de um lado para o outro na tentativa de acompanhar o vai-e-vem do professor em cima de um tablado também enorme. Era um sujeito com a cabeça precocemente branca, forte, baixo e com uma energia impressionante. Falava um português perfeito, mas com sotaque claramente francês. Andava o tempo todo de um lado ao outro da sala, falava sem parar, fazia perguntas a estudantes aleatórios que não respondiam, apalermados com aquela energia toda. Percebi que aquele era o tal “Pierre”, autor da apostila de Física ilustrada pelo Henfil, que eu havia recebido no ato da matrícula e já começara a ler avidamente (que depois seria transformada no livro “Martins e Eu”). Fiquei curioso com a gravata vermelha que ele usava. Era certamente a única peça nova do seu vestuário. Eu nunca havia assistido aulas com professores de gravata! Já no meio da aula, começou a falar sobre o pêndulo. Queria saber como o período de oscilação dependeria do comprimento. Lançou mais uma daquelas perguntas a um aluno aleatório (não tanto, felizmente para mim, porque o escolhido sempre estava sentado nas primeiras filas). Apontando para o infeliz, perguntou: “O que você acha? O período aumenta ou diminui, quando se encurta o barbante?” Como sempre, o sujeito apalermado nada respondeu. Mas um outro aluno, encorajado pelo anonimato das filas de trás da sala disse: “Dois pi raiz de ele sobre ge”. Era o que Pierre queria! Pulou indignado no tablado, e gritou: “Não, não e não! Isto é uma fórmula! Não é às fórmulas matemáticas que as perguntas devem ser dirigidas! DEVE-SE PERGUNTAR À NATUREZA!” As letras maiúsculas indicam que o volume do grito aumentou na última frase. Imediatamente arrancou a gravata do pescoço, amarrou o apagador nela, e mostrou o pêndulo para todos verem em silêncio absoluto. Primeiro, segurava a gravata pela ponta, e balançava. Depois, segurava pelo meio, encurtando o comprimento do pêndulo, e balançava de novo. Fez isto repetidas vezes, durante uns dois ou três minutos, e o silêncio continuou absoluto. Aproveitou este tempo para observar os rostos dos alunos estupefatos, um a um. † Nota da equipe do Folhetim: O presente texto foi escrito em 1995, à pedido da profa Suzana Sousa Barros, para ser incluído no livro em homenagem ao saudoso prof. Pierre Henri Lucie. ANO 4 - NO 24 AGOSTO - 2005 PÁGINA 2 Assim eu conheci Pierre Henri Lucie. Ele me conheceu numa aula posterior, quando tive coragem de me manifestar, o que já havia se tornado comum a vários colegas, depois de algumas aulas. A esta altura, ele já estava falando sobre cinemática, introduzindo o conceito de aceleração. Perguntava: “Se a aceleração é zero e a velocidade é diferente de zero, como é o movimento?” E lá vinha alguma resposta de algum aluno, que dava origem a outra pergunta: “E se a velocidade é zero e a aceleração é diferente de zero?” E mais uma resposta qualquer. Alguém mais afoito fez uma pergunta: “E se a aceleração e a velocidade forem ambas iguais a zero?” Pierre repetiu a pergunta, e alguém respondeu: “Neste caso, o móvel está parado.” E ele mesmo, Pierre, confirmou: “Isto mesmo, com aceleração e velocidade nulas, o móvel está parado.” Eu não concordei, tomei coragem, e disse: “Não necessariamente.” Pierre reafirmou: “Se a aceleração é zero, sendo ela quem mede a variação da velocidade, uma velocidade nula não pode variar e vai continuar sendo nula!” Eu continuei não concordando, e, apesar da provável reação fulminante, apelei timidamente para a matemática: “E se xis variar com tê ao cubo?” Veio a esperada reação: “NÃO ME VENHA COM FÓRMULAS!” E continuou a aula sob meus protestos íntimos e silenciosos, restritos ao meu próprio pensamento. Acabou aquela aula, houve mais uma de outra matéria. No intervalo de meia hora depois desta última, eu estava comendo um sanduíche quando vi Pierre correndo atrás de mim. Ele já havia ido embora, e pensou na minha questão dirigindo o carro a caminho de casa. Percebeu que eu estava certo, deu meia volta, e estava ali na minha frente dizendo: “Você tem razão! A aceleração pode ser zero num dado instante, mas deixar de ser zero logo depois, e aí a velocidade vai variar!” Eu fiquei todo orgulhoso e disse: “é isto mesmo!” Minha amizade com Pierre começou neste dia, e foi bastante intensa durante quase 17 anos. Depois do exame vestibular, fui parar no ITA, onde pretendia cursar engenharia aeronáutica. Fiquei só um semestre, horrorizado com as aulas de Física. Meu professor pertencia à TFP, e usava terno e gravata (que nunca tirou para simular um pêndulo). As aulas eram sobre a vida e obra de São Tomás de Aquino, considerado o maior cientista da humanidade. Nas provas, no entanto, éramos obrigados a resolver problemas de mecânica tirados do conhecido livro de M. Alonso e E. Finn. Decidi não continuar no ITA, e me transferi para o curso de Física da PUC do Rio de Janeiro. Quem arrumou a burocracia da transferência foi meu amigo Pierre Lucie, que também havia abandonado o curso vestibular e retornado à PUC. Durante todo o ano seguinte, vim a ser seu aluno direto, na disciplina de Mecânica Clássica, seguindo o conhecido livro de K.R. Symon. Ele nos ensinou a formulação Lagrangeana da Mecânica. Durante todo o meu curso de graduação, Pierre foi sempre a vítima predileta de minhas perguntas e dúvidas. Eu achava que ele sabia toda a Física, e esta crença absurda realmente se concretizava em qualquer diálogo que tínhamos: de uma forma ou de outra, ele sempre me fazia descobrir a resposta que eu procurava. Fui promovido a pós graduando, na própria PUC, e contratado como auxiliar de ensino e depois, professor. Durante dois semestres, eu e Pierre fomos colegas na mesma equipe de Física I, e guardo até hoje várias anotações, dele e minhas, daquela época. Fomos colegas também, durante os últimos 7 anos da sua vida, na banca examinadora do vestibular unificado do Rio de Janeiro: ele era o chefe, eu mais dois colegas, os chefiados. Cada questão era minuciosamente analisada durante meses, melhorada, modificada, lida e relida. Durante esta época, Pierre se aproveitou da infraestrutura da fundação que realizava estes exames, para editar a revista “Contacto”. O objetivo era a apresentação de materiais ANO 4 - NO 24 AGOSTO - 2005 PÁGINA 3 e métodos didáticos para e por professores de segundo grau (não só de Física). Guardo todos os números, e até hoje consulto os excelentes textos lá escritos. Eu mesmo sou autor de três destes textos, e tive meus primeiros enfrentamentos com “referee”. Este, hoje eu tenho certeza, era o próprio Pierre. Estas três são sem dúvida as minhas publicações mais trabalhosas: cada texto teve que ser reformulado diversas vezes antes de publicado. Na tarde do dia 16 de setembro de 1985, eu visitei a PUC (não trabalhava mais lá, mas ainda mantinha contato com vários colegas). Como sempre, dei um pulo na sala do Pierre para abraçá-lo. No dia seguinte, eu e minha esposa (que se orgulha de ter sido a única orientada do Pierre em pós graduação) fomos ao seu enterro. O Período do Pêndulo Simples Quando Suzana Sousa Barros me pediu para escrever algo para este volume, lembrando da gravata do Pierre, resolvi descrever uma experiência numérica sobre o pêndulo simples que costumo usar na disciplina de Física I, e que também serve para o segundo grau. A questão que se coloca é descobrir como varia o período com a amplitude. Pierre perguntaria: “O que você acha? O período aumenta ou diminui, quando se balança mais forte ?” E completaria: “Não adianta vir com fórmulas matemáticas do tipo ‘dois pi raiz de ele sobre ge’, porque se trata apenas de uma aproximação válida para pequenas oscilações”. A maneira mais simples de resolver o problema é através da máxima do próprio Pierre: “Pergunte diretamente à Natureza!” Ou seja, montar a experiência e medir. Trata-se de uma montagem bastante simples, e a medida do período requer apenas um pouco de cuidado e capricho. Eu vou abordar aqui uma outra maneira de responder à questão: resolver o problema no computador. Aliás, era exatamente esta alternativa que, no final da vida, havia se tornado a nova mania do Pierre. Ele havia comprado um pequeno computador, e discutia muito comigo sobre a solução numérica dos problemas (tema em que eu havia me metido antes dele). Esta solução numérica é complementar à experiência direta do pêndulo. A comparação dos resultados é também um bom instrumento didático no sentido da verificação da validade da lei de Newton. Primeiro, devemos aplicar a lei de Newton ao movimento. Na figura 1, mostra-se um trecho da trajetória circular, e o pêndulo no instante t formando um ângulo θt com a vertical. Duas outras posições do pêndulo são também indicadas: uma à esquerda num instante anterior t−1, correspondendo a um ângulo menor θt−1; e outra à direita num instante posterior t+1, formando um ângulo maior θt+1. A unidade de tempo adotada é um pequeno intervalo ∆t decorrido entre duas posições consecutivas do pêndulo, como se estivéssemos tirando fotografias sucessivas a intervalos regulares ∆t (fotografia estroboscópica). As três posições mostradas na figura correspondem a três instantâneos consecutivos nesta série de fotos. Figura 1 Esquema do pêndulo em movimento ANO 4 - NO 24 AGOSTO - 2005 PÁGINA 4 A velocidade da massa do pêndulo no primeiro trecho desde θt−1 até θt será a razão entre a distância percorrida l (θt − θt−1) e o tempo decorrido ∆t, onde l é o comprimento do pêndulo (raio da trajetória circular), ou seja v1 = l θ t − θ t −1 ∆t (1) Da mesma forma, a velocidade no segundo trecho desde θt até θt+1 vale v2 = l θ t +1 − θ t ∆t (2) Para aplicar a lei de Newton, devemos calcular a aceleração que é a razão entre a diferença de velocidades e o tempo decorrido desde o primeiro trecho até o segundo, ou seja a= v 2 − v1 ∆t (3) ou, ainda a=l θ t +1 − 2θ t − θ t −1 (4) ∆t 2 Note que usamos apenas os módulos das velocidades, sem nos importarmos com suas direções. Desta forma, a aceleração obtida é apenas a componente tangencial (na direção tangente à trajetória no instante t) do vetor aceleração. Isto significa que o produto desta aceleração pela massa, ao invés de ser igual à força resultante, será igual à componente tangencial desta força resultante. Há duas forças atuando na massa do pêndulo: seu peso vertical mg apontando para baixo; e a tensão do barbante apontando na direção do centro da trajetória. Esta segunda foi omitida na figura 1, porque não contribui para a componente tangencial da resultante, uma vez que sua projeção sobre a tangente à circunferência no instante t é nula. Resta, então, a projeção do peso sobre esta tangente, que vale F = − mg sen(θ t ) (5) Igualando esta componente tangencial F dada na equação (5) ao produto da massa m pela aceleração escalar a dada na equação (4), obtemos g ∆t 2 θ t +1 = 2θ t − θ t −1 − sen(θ t ) l (6) Nossa solução numérica vai se basear nesta equação (6), que nada mais é do que a lei de Newton devidamente manipulada. Mas antes, vamos definir a condição inicial do movimento. Ao realizarmos a experiência, como fez Pierre com a gravata, levantaríamos a massa até que o barbante formasse um certo ângulo θ0 com a vertical, e largaríamos o sistema sem velocidade inicial. Desta maneira, a amplitude da oscilação seria igual ao valor θ0 escolhido. Bastaria, então, cronometrar o movimento a partir do instante de largada, e medir o período. ANO 4 - NO 24 AGOSTO - 2005 PÁGINA 5 Seguiremos exatamente esta seqüência na nossa solução numérica. Vamos construir passo a passo o gráfico do ângulo θ, no eixo vertical, contra o tempo t, no eixo horizontal. Escolhido o valor inicial θ0, já podemos marcar o primeiro ponto do gráfico, para t = 0, em cima do eixo vertical. O segundo ponto a ser marcado será θ1, para t = 1, depois de decorrido o intervalo ∆t adotado como unidade de tempo. Temos, pois, que calcular o valor θ1. Já escolhidos, conhecidos e fixados os valores de g = 9.81 m/s2, de ∆t = 0.005s e de l = 1m (por exemplo), e fazendo t = 0 na equação (6), o valor requerido θ1 se expressa em função de θ−1. Pierre perguntaria provocativo: “Quem é este θ−1?” A resposta: é o ângulo correspondente à posição do pêndulo ∆t segundos antes do instante t = 0, como se o movimento já tivesse começado anteriormente. Seria como se deixássemos primeiro o pêndulo realizar uma oscilação completa, voltando à posição inicial θ0, e só então, neste preciso instante, começássemos a cronometrar o movimento. Como θ0 é o valor máximo cercado simetricamente no gráfico por θ−1 à esquerda e θ1 à direita, estes dois últimos devem ser iguais. Da equação (6), fazendo t = 0 e θ−1 = θ1, acha-se finalmente θ1 = θ 0 − g ∆t 2 sen(θ 0 ) 2l (7) ou θ1 = θ0 − 0.000122625 sen(θ0) , (8) para os valores numéricos exemplificados. Já com dois pontos marcados no gráfico de θ contra t, o terceiro ponto será θ2, a ser marcado no instante t = 2 (duas vezes o intervalo ∆t). Para determinar θ2, basta recorrer novamente à equação (6), desta vez fazendo t = 1, ou seja θ2 = 2θ1 − θ0 − 0.000245250 sen(θ1) . (9) O quarto ponto será θ3, a ser marcado no instante t = 3 (três vezes o intervalo ∆t). Novamente a equação (6) nos fornece o valor θ3 = 2θ2 − θ1 − 0.000245250 sen(θ2) , (10) desta vez fazendo t = 2. Usando sempre a equação (6) para achar o novo valor θt+1 a partir dos dois anteriores, θt e θt−1, já determinados, vai-se marcando um a um os pontos no gráfico. Depois de muitos pontos, pode-se observar a curva completa, como na figura 2 construída para uma amplitude θ = 10º = 0.174533radiano. O período pode, então, ser medido diretamente no gráfico. Neste caso, como a amplitude é pequena, o resultado T = 2.0s coincide com o da fórmula “dois pi raiz de ele sobre ge”. Figura 2 Posição angular θ (em radianos) em função do tempo t (em segundos). O pêndulo foi largado inicialmente da posição θ0 = 10º = 0.174533radiano (amplitude). No caso, o pêndulo tem comprimento l = 1m, a intensidade do campo gravitacional terrestre vale g = 9.81m/s2, e o intervalo de tempo adotado na solução numérica foi ∆t = 0.005s. ANO 4 - NO 24 AGOSTO - 2005 PÁGINA 6 A figura 3 mostra um outro exemplo, desta vez para uma amplitude muito maior θ0 = 135º = 2.356194radiano. Repare que o período já aumentou consideravelmente para T = 3.1s, em relação à figura 2. Podemos concluir que o período aumenta para amplitudes cada vez maiores, respondendo assim à questão original. Repetindo o mesmo processo para diversas amplitudes, pode-se também construir o gráfico do período em função da amplitude, como mostra a figura 4. Figura 4 Período T (em segundos) em função da amplitude θ0 (em radianos), para o mesmo pêndulo das figuras anteriores. Figura 3 Posição angular θ (em radianos) em função do tempo t (em segundos), para o mesmo pêndulo da figura anterior, desta vez largado da posição θ0 = 135º = 2.356194radiano. Duas últimas observações se fazem necessárias. Primeiro, todos os ângulos devem estar expressos em radianos, não em graus, porque usamos o fato dos arcos de circunferência na figura 1 serem dados pelo produto dos respectivos ângulos pelo raio do círculo, para obter as equações (1) e (2), e esta relação só é válida em radianos. Segundo, para realizar a experiência com amplitudes maiores que 90º, não poderíamos usar a gravata do Pierre, e nem mesmo um barbante flexível: a massa largada sem velocidade inicial iria cair verticalmente (no início do movimento), com o barbante frouxo. Teríamos, alternativamente, que substituir a gravata por um arame rígido. Uma análise mais completa deste problema será publicada brevemente na Revista Brasileira de Ensino de Física. Nota incluída posteriormente (pelo autor): No dia 17 de setembro de 1985, não pudemos ficar até o final do enterro. Perdemos o discurso proferido por Carlos Alberto Aragão de Carvalho, meu colega e amigo de toda hora desde aquela memorável aula da gravata, passando pela PUC, até hoje. Soube agora, através do próprio Aragão, qual foi o tema do discurso: a aula da gravata. Nota da equipe do Folhetim: A Revista Brasileira de Ensino de Física pode ser acessada no endereço http://www.sbfisica.org.br