Globalização Ideologizada
ClaudioTéllez,
Analista Internacional e Matemático.
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Demonizada, satanizada e vilipendiada por onze de cada dez intelectuais "pop"
(digo onze de cada dez, porque pelo menos um deles defenderá duas teses
contraditórias), a globalização está aí e é uma realidade. O processo de globalização
econômica proporciona, mediante a crescente mobilidade de bens e de fatores de
produção, uma integração cada vez maior da economia mundial e a criação gradativa de
um espaço econômico comum. Enquanto uns vêem nesse processo a possibilidade de
concretizar o sonho da vitória da racionalidade sobre a barbárie, outros consideram a
globalização como um sofisticado mecanismo de enriquecimento de uns poucos às
custas do sofrimento de muitos.
Esse processo, contudo, não é de hoje. Observando somente pelo prisma do
comércio internacional, a título de ilustração, notamos que a integração comercial do
mundo vem ganhando fôlego, progressivamente, pelo menos desde os tempos de Adam
Smith. Por sinal, se a liberalização do comércio é uma das características da
globalização, devemos notar que não se liberaliza o comércio de uma hora para a outra.
Afinal de contas, as nações se abrem às relações comerciais mediante negociações com
as outras nações. Em uma dada negociação, o que está em jogo são sempre os interesses
de todas as partes. Um acordo que pode ser benéfico para duas partes, no balanço geral,
não será necessariamente benéfico para todos os diversos grupos que compõem cada
uma dessas partes. Um tratado de livre comércio, por exemplo, proporciona para alguns
produtores um mercado maior para a colocação dos seus produtos. Ao mesmo tempo,
porém, abre os mercados locais para uma concorrência mais acirrada. Sob a perspectiva
dos agregados, esse aumento da concorrência levará a melhores resultados para todos.
Já sob a visão particular de um determinado agente econômico, a abertura para a
concorrência pode significar tanto prosperidade quanto o fim do jogo.
Em suma, a integração da economia mundial envolve uma miríade de
negociações onde cada parte luta acirradamente pela defesa de seus próprios interesses.
É por isso que a globalização econômica é um processo lento e, ao mesmo tempo,
inelutável. Lento (apesar de estar em aceleração), porque qualquer tentativa de criar um
espaço econômico comum de uma hora para outra requereria uma dose gigantesca de
arbitrariedade e terminaria por eliminar a espontaneidade que caracteriza as relações
econômicas no mercado livre. Inelutável, porque o homem é um agente transformador
do mundo e os progressos técnico-científicos proporcionam um contato maior entre as
pessoas das mais diversas regiões, intensificando as comunicações e, naturalmente, as
negociações e demais interações econômicas entre os povos.
Quem acredita, portanto, que é possível implementar rapidamente a globalização
plena para benefício de toda a humanidade, está apenas defendendo, mesmo sem saber,
a criação de um mundo politica e economicamente centralizado. No outro extremo,
quem defende o fim da globalização, por considerá-la excludente, está na verdade
defendendo um "outro mundo impossível", que contraria uma coisa que é essencial na
natureza dos seres humanos: a sede pelo conhecimento.
O ponto crítico dessas duas posições extremadas é o mesmo: ambas são
ideológicas. Cabe, aqui, esclarecer o conceito de ideologia. É comum que as pessoas
confundam "ideologia" com "ideário", "convicção" ou "doutrina". Um ideário, ou um
conjunto de idéias a respeito de algum tema ou problema, pode ou não ser ideológico.
Em geral, um ideário pode representar um conjunto de diretrizes que ajudam a situar em
uma determinada perspectiva. Já o termo "convicção" envolve essencialmente a retidão
de princípios e, portanto, convicções pertencem ao domínio da moral. Convicções
podem se tornar ideológicas quando envolvem o comprometimento com uma
determinada causa. Uma doutrina é um conjunto de elementos que servem de base ou de
referencial para algum sistema, que pode ser político, religioso ou de outra natureza. O
termo "doutrina" vem do latim, "doctrina", que significa ensinança, instrução. O apego
desmedido a uma determinada doutrina também pode conduzir à ideologia.
Toda ideologia envolve pelo menos três elementos: prescrição, racionalismo e
idealização. Ideologias são construções racionais, isto é, nascem do exercício
intelectual. Elas prescrevem uma série de medidas a serem adotadas para a consecução
de um determinado fim, considerado como o "mais benéfico" para todos (ou para o
maior número de pessoas). Esse fim é idealizado e, portanto, os construtos ideológicos
priorizam a transformação ou mesmo a negação da realidade em nome de algo que
supostamente será desejável. O ideal de um mundo onde não há desigualdade de
nenhuma espécie e onde todas as relações humanas são pautadas pelo amor e pela
fraternidade é considerado, por muitos, como um fim pelo qual vale a pena adotar
qualquer meio. A "paz mundial", outro fim considerado altamente benéfico e desejável
para todos, exalta os melhores sentimentos de jovens e de candidatas a misses ao redor
do mundo.
Quando, através do exercício da razão, chega-se à elaboração de um conjunto de
princípios que, caso implementados, conduzirão a um fim desejado, tal como a uma
sociedade justa e fraterna, ou mesmo a um mundo livre de guerras, podemos estar diante
de uma ideologia. O fim idealizado não será, necessariamente, condizente com a
realidade. A razão, que é fundamental para a atividade científica, termina por negar a
própria possibilidade do conhecimento científico quando não está limitada pelo real.
Além do mais, a afirmação de que as coisas "deveriam ser" de uma determinada
maneira confere ao postulante um alto grau de arrogância. Afinal, por que um certo
indivíduo deverá saber o que é melhor para os demais?
Quem se compromete com a causa de construir uma sociedade justa, fraterna e
harmoniosa está apenas defendendo a imposição, à humanidade inteira, do que uma
certa pessoa ou um grupo limitado de pessoas entende por justiça, fraternidade e
harmonia, a partir de uma série de mecanismos racionais que não têm comprometimento
algum com a realidade. Quem não sabe realmente o que está fazendo, isto é, quem
apenas adere a uma determinada corrente ideológica por impulso altruísta, está sendo
ingênuo. Assim, quem realmente acredita na possibilidade de construir um "outro
mundo possível" é tão cândido quanto quem realmente acredita que "o livre comércio
vai pacificar o mundo".
O que nos resta quando nos afastamos das ideologias? Resta-nos o desejo de
compreender melhor como o mundo funciona, para a partir daí identificar as melhores
possibilidades para o desenvolvimento, a prosperidade e o bem-estar. É possível,
portanto, ser prescritivo sem ser ideológico. Para tanto, há que ter a humildade de não
colocar a razão acima da realidade e de ater-se ao que "é" em vez de defender o que se
acredita que "deveria ser".
Os intelectuais "pop" que satanizam, vilipendiam e demonizam a globalização
econômica, por considerá-la assimétrica e excludente, estão comprometidos com
construções ideológicas tanto quanto os intelectuais (geralmente "não-pop") que
defendem a globalização por considerá-la um caminho para a paz mundial. Sonhos (ou
delírios) à parte, o processo de globalização econômica é real. Podemos gostar dela ou
não, porém buscar compreendê-la, antes de tentar modificá-la, é um compromisso
responsável com a honestidade intelectual.
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