30 O ESPAÇO NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES E SEUS REFLEXOS PARA A ANÁLISE GEOGRÁFICA Damião Silva Gato1 Tatiane Fróes Queiroz1 Resumo O espaço que embora costumeiramente seja visto como algo estático revela-se dinâmico caracterizado e constituído em sua complexidade por inúmeras variáveis. Vê-se sujeito às transformações cuja origem está na capacidade intelectual e funcional daquelas que o habitam, os homens. Em detrimento disso, nota-se a gradativa artificialização do mesmo em prol das necessidades produtivas do ser humano. Estando o espaço no bojo desse processo de intensificação das relações dos seus agentes formadores, algumas alterações efetivaram-se no que diz respeito à conceituação de algumas categorias de análise geográfica, de um modo particular o próprio espaço e seus objetos constitutivos, sendo, portanto, necessária uma amplitude de conhecimento para caracterizá-los. Palavas-chave: Espaço. Homem. Transformação. Universalização. O estudo da questão espacial vem se acentuando de acordo com a evolução do pensamento geográfico. Em cada um dos estágios evolutivos da geografia, o espaço ganha conotação diferenciada, seu valor de significância varia de acordo a época e a visão dos estudiosos que tratavam a questão. Ainda que costumeiramente se associe o termo espaço a diversos significados e mediante a inesgotável necessidade de estudá-lo, propõe-se no presente artigo, embora de forma sintetizada, uma análise que se incuba de tratá-lo de forma ecúmena, adquirida e intensificada a partir de seu processo de ocupação, bem como, os reflexos da citada transformação na renovação conceitual de algumas categorias de análise da geografia. Para tanto, faz-se necessário a utilização de contribuições dadas por alguns autores que buscam efetivar a análise do espaço situado, ocupado e alterado pelo homem. Em meio aos referidos autores, procura-se destacar Milton Santos (1994), que por diversas maneiras, aborda a referida questão, dando ao espaço a já citada acessibilidade às transformações, que por sua vez perpassam pela capacidade humana de alterar quantitativamente e qualitativamente o espaço em que esteja circunscrito. Diante disso, tratando-se de um tema dotado de complexidade, não se vê esse trabalho livre de limitações. Convém antes de analisar os processos de alteração a que se sujeita o espaço geográfico, buscar a sua conceituação de um modo a compreender dentro de sua gênese os fatores contributivos para a sua configuração visto que a busca por um conceito de espaço demandou discussões entre os geógrafos, chegando alguns deles a inventarem novas denominações como espacialidade. Diante dessa problemática, Santos (1994, p. 25) afirma a necessidade de se ter Uma teoria, isto é sua explicação, é um sistema construído no espírito, cujas as categorias de pensamento reproduzem a estrutura que assegura o encadeamento dos fatos. Se a chamarmos de organização espacial, estrutura espacial, organização do espaço, estrutura territorial ou simplesmente espaço, só a denominação que muda, e isso não é fundamental. O problema é encontrar as categorias de análise que nos permitem o seu conhecimento sistemático, isto é, a possibilidade de propor uma análise e uma síntese cujos elementos constituintes sejam os mesmos. () ___________________________ 1 Graduandos em Licenciatura em Geografia pela Universidade Estadual da Bahia, Departamento de Ciências Humanas – Campus VI, Caetité – BA. ([email protected]) / ([email protected]) +Geografia´s, Feira de Santana, n. 1, p. 30 – 34, maio / nov. 2008 31 Contudo, verifica-se que o autor supracitado considera o espaço como sendo um “conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objeto·”.s geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento”(1994, p.26), pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais”. Ainda no bojo da atribuição de conceitos ao espaço geográfico, pode-se concordar com Corrêa (1995, p.15) quando afirma que a expressão espaço geográfico ou simplesmente espaço, por outro lado aparece como vaga, ora estando associada a uma porção especifica da superfície da Terra identificada seja pela natureza, seja por um modo particular como o homem ali imprimiu as suas marcas, seja como referência à simples localização. Adicionalmente a palavra espaço tem o seu uso associado indiscriminadamente a diferentes escalas, global, continental, regional, da cidade, do bairro, da rua, da casa e de um cômodo no seu interior. Torna-se interessante a verificação feita pelo autor a cerca do espaço em suas diversas escalas de análise, visto que, direta ou indiretamente todas as ações efetivadas no mesmo certamente irão refletir em suas mais variadas maneiras na composição, organização ou no seu processo de construção. A tendência, como já afirmado acima, é que a ação do homem, mesmo que gradativamente, altere o meio em que vive modificando e produzindo o seu espaço habitado, aliado ao percorrer do processo histórico e das descobertas efetivadas pelo mesmo, segundo Dollfus (1991 p.11) “a fisionomia da Terra está em perpétua transformação. Toda a paisagem que reflete uma porção do espaço ostenta as marcas de um passado mais ou menos remoto, apagado ou modificado de maneira desigual, mas sempre presente”. De fato, o processo de transformação não só do espaço geográfico, mas de tudo que o compõe não é algo recente, e sim fruto de uma construção acima de tudo histórica, que vem sendo desenhada ao longo dos séculos, resultante dessa evolutiva relação do homem com os agentes naturais. As conseqüências desse processo se estabelecerão sob variados aspectos e dentre as quais, se poderia dizer que, contemporaneamente, a universalização do mundo comporta-se como o conjunto de vários resultados intrínsecos ao atual relacionamento do homem com o meio em que está inserido, sob a égide de suas inúmeras manifestações. Diante dessa constatação, convém concordar com Santos (1998, p.50), quando o mesmo afirma que o processo de globalização acarreta a mundialização do espaço geográfico cujas principais características são, além de uma tendência à formação de um meio técnico, cientifico, e informacional: a transformação dos territórios nacionais em espaços nacionais da economia internacional; a exacerbação das especializações produtivas no nível do espaço[...]. A referida universalização se dá de um modo particular e dentre outros fatores devido a pressões externas a uma determinada realidade seja de um Estado, território, ou mesmo de uma comunidade e tem origem na capacidade do homem (principal agente modificador do espaço), sob a orientação de específicas estruturas políticas e, sobretudo, econômicas para “moldar” o cotidiano e não para tomar conhecimento das possíveis conseqüências, tais como a descaracterização de uma cultura, de um modelo de vida social, político e econômico, de uma espoliação de alguns e a reconfiguração do espaço, enfim. Sob esse aspecto Santos (1994, p. 17) esclarece que a mundialização que se vê é perversa. Concentração e centralização da economia e do poder político, cultura de massa, cientificização da burocracia, centralização agravada das decisões e da informação, tudo isso forma a base de um acirramento das desigualdades entre países e entre classes +Geografia´s, Feira de Santana, n. 1, p. 30 – 34, maio / nov. 2008 32 sociais, assim como da desintegração do indivíduo. opressão e O espaço há muito tempo estudado e conceituado por diversos teóricos (não só geógrafos) ganha, diante de tal realidade, a necessidade de ser visto com mais ênfase, isto porque, o espaço esteve sempre associado a objetos que o compõe, sejam eles sociais, naturais, geográficos, enfim, por ter o espaço esta característica indissociável acaba por se sujeitar à citada universalização. Em conseqüência disso, até a própria geografia vista há décadas como uma das disciplinas incumbidas de estudar dentre outros fatores o espaço, necessariamente, torna-se global, ou seja, capaz não de abarcar a totalidade, mas de abranger-se em suas diversas áreas de conhecimento para acompanhar essa galopante transformação. Alguns fatores devem ser levados em conta na medida em que se propõem estudar sobre os distintos aspectos do espaço em sua condição ecúmena. Em busca de um aprimoramento em seu modo de vida, o ser humano revela-se dinâmico, capaz de adequar quase tudo à sua necessidade, o efeito transformador não atinge apenas o meio que o circunscreve, geralmente reflete-se, alterando outros setores do meio social e natural. Para uma melhor compreensão, basta que se analise, por exemplo, o crescimento da população mundial nos últimos séculos, devido a adequações e melhorias de saúde e saneamento. Embora desigualmente distribuídas, provocou-se uma queda nas taxas de mortalidade e o conseqüente aumento na expectativa de vida acompanhado do também crescimento da taxa de natalidade. Simultâneo a isso, os avanços científicos e tecnológicos contribuíram também para que a população mundial duplicasse em algumas décadas. Paralelamente, surge um desigual crescimento quantitativo, e, sobretudo, qualitativo das riquezas mundiais em diversas áreas do globo, uns dos fatores característicos de conseqüência das desigualdades e dos desajustes sociais verificados e acentuados na segunda metade do século XX, foram os contingentes populacionais que se deslocaram de países mais empobrecidos rumo a países mais desenvolvidos, orientados pela expectativa de melhores condições sociais, porém marcados em alguns casos por inúmeras dificuldades, entre elas a expropriação da mão-de-obra. Nesse contexto, convém afirmar a contribuição dada por esse fenômeno à intensificação da hoje vista heterogeneidade populacional. Nos países mais abastados, a crescente evolução industrial e tecnológica artificializava cada vez mais o meio geográfico, tornando-o gradativamente um espaço instrumentalizado, capaz de produzir em larguíssima escala. Na medida em que se ampliavam os níveis tecnológicos desses países, aumentava também a dependência e a subordinação dos países não industrializados chamados durante décadas de subdesenvolvidos. Quanto às migrações, essas passaram a ser não apenas de âmbito internacional, visto que, dentro dos próprios países, havia áreas de desenvolvimento econômico e industrial mais elevados, aspecto característico de países pobres, cujas disparidades são, em alguns casos, enormes, acarretando, por conseguinte, os aglomerados populacionais, (fato observado, por exemplo, na região Sudeste do Brasil, mais especificamente, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro). Esse processo se tornou comum nos países menos industrializados devido à desestruturação e má distribuição de renda. Todo esse processo transformador fez com que houvesse uma renovação conceitual em algumas categorias de análise da geografia, a título de exemplo temos a região, antes vista como entidade autônoma com aspectos particulares, agora sob a égide dessa universalização, já não pode considerar-se tão autônoma assim. Embora que a compreensão de uma região exija um conhecimento maior de suas variáveis, formas, funções, organizações, etc., mesmo assim torna-se possível ponderar a sua desautomização, visto que a citada +Geografia´s, Feira de Santana, n. 1, p. 30 – 34, maio / nov. 2008 33 internacionalização acaba por “atropelar” diversas dessas características regionais. Um fator por muito tempo comum às regiões, foi a possibilidade das mesmas produzirem quase tudo de que necessitava para a sua reprodução, de um modo a ser reconhecida a existência dos circuitos regionais de produção. Porém dentro de uma lógica internacionalizadora, as regiões acabam por se sujeitar a especialização produtiva, isto é, especializam-se em apenas uma ou mesmo duas etapas pelas quais passaria um determinado produto, desde o começo do processo produtivo até o consumo final. Para tanto se faz necessária a consideração de alguns fatores que diretamente auxiliam nesse processo de perca de autonomia da região, nesse sentido Santos (1994, p.50) afirma que com difusão dos transportes e das comunicações cria-se a possibilidade de especialização produtiva. Regiões se especializavam, não mais precisando produzir tudo para a subsistência, pois com os meios rápidos e eficientes de transportes, podem buscar em qualquer outro ponto do país ou mesmo do planeta aquilo que necessitam. Ainda no que tange os processos de transformação espacial, bem como as conseqüências sofridas pelas categorias de analise da geografia, torna-se necessário ponderar acerca da paisagem, constantemente transformada. Sua conceituação diz que se trata daquilo que conseguimos enxergar, aquilo que nossa percepção alcança. Isto significa dizer que, embora não ao mesmo tempo, podemos conhecer inúmeros tipos de paisagens. Por conta disso, convencionou-se caracterizá-la como paisagem artificial, isto é, aquela transformada pelo homem, e a paisagem natural que, arriscadamente, pode-se dizer que é aquela não mudada pelo esforço humano. Para Santos (1994, p.65), “a paisagem é um conjunto heterogêneo de formas naturais e artificiais, é formada por frações de ambas”. Todas essas alterações na paisagem geralmente se atribuem à necessidade humana de criar instrumentos de trabalho, que na evolução do processo histórico, tornaram-se gradativamente mais complexos, ligados às descobertas de novas técnicas e maneiras de produção e reprodução do espaço. A partir disso, podese constatar uma determinada variação nos graus de alteração da paisagem efetivados pelo homem, e que o autor anteriormente citado chama de funcional, isto é, momentânea e de acordo com a ocasional necessidade, ou estrutural, que se caracteriza pelas alterações de velhas estruturas ou formas e o surgimento de novas. Os conhecimentos dessas várias transformações antes abordadas sedimentam a compreensão das alterações ocorridas no espaço habitado, que por sua vez, engloba todos esses fatores, pois de acordo com Santos (1994, p.71). O espaço seria um conjunto de objetos e relações que se realizam sobre estes objetos; não entre estes especificamente, mais para os quais eles servem de intermediários. Os objetos ajudam a concretizar uma serie de relações. O espaço é resultado da ação dos homens sobre o próprio espaço, intermediados pelos objetos naturais e artificiais. Dessa forma, o espaço mostra-se inteiramente dinâmico, estando sempre na esfera da dependência de ações e relações com seus objetos. Em meio aos inúmeros fatores responsáveis pela dinamicidade espacial, Milton Santos ressalta a existência de fixos e fluxos caracterizados pelo trabalho humano materializado (casas, rodovias, bairros, etc.), e pelo movimento e circulação, respectivamente. Ambos ao interagirem-se, permitem análise de fatores como a produção, circulação distribuição e consumo daquilo que é produzido no espaço. Os fixos em si, sejam eles naturais ou sociais, originam os sistemas de engenharia, que nada mais são do que os sistemas de trabalho agregados a natureza. Sendo assim, fica bem claro que não há sistemas de engenharia sem que haja uma modificação do antes tido como natural. Com relação a estes sistemas, ainda vale ressaltar que +Geografia´s, Feira de Santana, n. 1, p. 30 – 34, maio / nov. 2008 34 quanto maior for a sua eficiência mais se produz em menos tempo, acentuando a divisão de outro fator intrínseco ao espaço, o trabalho. O ser humano distingue-se de outros animais pela sua capacidade de produção e invenções e não de simples repetições, isso se dá por intermédio do trabalho. O trabalho, que em sua gênese, se caracterizava apenas como meio de se garantir a sobrevivência, ganha com o passar do tempo, conotação diferente, passa a significar, em alguns casos, sacrifício, tortura, e, em outros, meios de exploração e acúmulo de capitais. O trabalho, nessa significância, passa a exigir de quem produz uma maior agressividade sobre os meios naturais, ocasionando alterações e a imposição de novas formas a natureza, adquirindo o homem um determinado controle dela, substituindo-a cada vez mais por objetos tecnificados. Devido a esses fatores, é que, em meio ao estudo da Geografia se faz necessário estudar não apenas os aspectos físicos inerentes ao espaço, como relevo, vegetação, hidrografia, etc., mas a ação do homem e sua capacidade manipuladora diante de tais aspectos. Por conta disso, é que comum e erroneamente, se dicotomiza a geografia em física e humana, porém Santos (1994, p.50) afirma que “não há geografia física que não seja uma parte da geografia humana. O que há, na verdade é uma geografia do homem, que podemos subdividir em geografia física e humana.” O espaço torna-se então contraditório em alguns aspectos, pois, diluídos em seus fatores constitutivos se encontram, algumas disparidades, algo confrontante, geralmente entre o que foi inovado que é o que precisa ser conservado, os que se privilegiam e os que são prejudicados. Enfim, existem sempre esses processos dialéticos que fazem do espaço habitado algo dotado ainda mais de complexidade e dinamicidade. Levando em consideração os aspectos anteriormente mencionados, pode-se inferir que o espaço tem a sua dinamicidade acentuada a partir da interferência do homem sob as mais variadas formas. Tal fato ocasiona dentre outros acontecimentos a mundialização espacial mediante a intensificação de algumas relações de produção e circulação em detrimento das próprias relações humanas, verificadas no processo de expropriação e desintegração do indivíduo. Até mesmo a geografia não ficou imune às referidas transformações, visto que, algumas de suas categorias de análise tiveram que se adequar no que tange algumas características conceituais. Antes mesmo de apenas conhecer a sua capacidade transformadora, e em conseqüência disso mudar o que está ao seu redor, dever-se-ia ao homem, grande modelador do espaço, ter como constante a análise não apenas dos fatores positivos, da transformação espacial, mas de algumas ingerências ou mesmo prejuízos decorrentes dessa considerável apropriação não, simplesmente, para si, mas para tudo aquilo que circunscreve o espaço habitado. De um modo que não se negue os positivos aspectos oriundos de tantas evoluções decorridas da transformação espacial. Referências: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 9. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço, um conceito chave da geografia, In: CASTRO, Iná Elias; GOMES, Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.) Geografia conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. DOLLFUS Olivier, O espaço geográfico 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. SANTOS. Milton, Metamorfose do Espaço Habitado. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1994. ______. Técnica espaço e tempo. Globalização e meio técnico científico informacional. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1998. +Geografia´s, Feira de Santana, n. 1, p. 30 – 34, maio / nov. 2008