Memórias imemoráveis MEMÓRIAS IMEMORÁVEIS DE CERTO FUNCIONÁRIO (ENTREGADOR) DA ÁGUA PURA A SUCURSAL DO INFERNO Paulo A. Vieira RIO DE JANEIRO, JULHO/2006. -1- Água Pura – A sucursal do inferno - 2 - Memórias imemoráveis Nascer pobre é pedir para sofrer Sabendo disto é que eu gostaria De ser Porque a pobre vida somente um dia toda é de doer. Mas que castigo eu fui merecer, Estou pagando por algum pecado?! Viver pra sempre assim, humilhado Com esse destino que me conduz, Será que atirei pedras na cruz?! Vai pro inferno, azar desgraçado! Paulo A. Vieira -3- Água Pura – A sucursal do inferno À D. Márcia, Mazinho (apesar de tudo), Eric Riboredo e a toda “peãozada” que deu o sangue trabalhando na Água Pura. Acreditem: Eu era feliz e não sabia... - 4 - Memórias imemoráveis ÍNDICE NA “ÁGUA PURA” É ASSIM ... - Pág. 07 LAMENTO DE UM ENTREGADOR Pág. 15 A VERDADE ABSOLUTA - Pág. 23 SAÍDA VETADA - Pág. 27 S.O.S - Pág. 28 RETORNO INFELIZ - Pág. 29 NEGÓCIO FRUSTRADO - Pág. 33 O ÚLTIMO SUSPIRO - Pág. 35 O ENTREGADOR DE AÇO - Pág. 43 “O operário cada vez se empobrece mais quando produz mais riquezas.” (Karl Marx) -5- Água Pura – A sucursal do inferno - 6 - Memórias imemoráveis NA “ÁGUA PURA” É ASSIM... Há trabalho que se suporte Outros do tipo “ainda se atura”, Há trabalhos que levam à morte Ou que fazem beirar a loucura. - Desafie então a sua sorte Trabalhando na Água Pura! Um serviço um tanto arriscado De tão pesado, até desespera, Imagine um triciclo quebrado Descendo a mil numa banguela; Pode deixar o sujeito acamado O crânio rachado e as costelas. Uma fábrica de gerar doente Seja peladura ou arranhão, Coluna não há quem aguente É muito esforço e contusão. E ainda se pode ficar contente Quando não quebra garrafão. -7- Água Pura – A sucursal do inferno Para cada garrafão quebrado Eis que surge uma cena ingrata; No salário já vem descontado Pelo empregador sangue de barata. É o entregador sendo maltratado Tal qual um cachorro vira-lata. Nem Jesus Cristo no calvário Sofreu tamanha humilhação, Em sua época não havia otário Que trabalhasse por comissão; O justo deveria ser um salário Mais porcentagem em cada galão. Pra compensar o trabalho extra Que há de sempre aparecer, Desacompanhado de gorjeta Fazendo o entregador sofrer; Lavar garrafão de madame besta Sem ter caixinha é de doer. - 8 - Memórias imemoráveis É a “caixinha” que fortalece O salário do trabalhador, Tem gente que até se esquece Do direito de um entregador, Que faz por onde e merece Uma moeda de qualquer valor. Lembrando aqui uma raça Existente no Rio de Janeiro, Certamente a pior desgraça E que abrange o mundo inteiro. Nenhum entregador aguenta Essa racinha tão nojenta Que é a do “pirangueiro”. Um miserável que faz conta Da moedinha de 1 centavo, Merece mesmo levar uma ponta Não passa de um corno safado. Um filha da puta, um “mindingo”, Deixa de ir à missa aos domingos Para não ter que dar um trocado. -9- Água Pura – A sucursal do inferno Pode até parecer loucura Gostar de um lugar assim, Ser entregador na Água Pura É buscar o seu próprio fim, Um trabalho que é a mistura Daquilo que há de mais ruim. Mas o diabo que se condena Não é tão feio como se pinta, Tem dias que até vale a pena Fazer entregas, mas não se minta: Tem que haver feriado em cena Ou que o mês seja de trinta. Um trabalho onde não há patrão Talvez por isso até seja bom, Ruim é descarregar caminhão Ir pra Botafogo ou Leblon, E ainda ter que limpar chão Uma invenção do Seu Ision. - 10 - Memórias imemoráveis Sem essa de lavar banheiro Entregador não é escravo, Isso é serviço de faxineiro E pra isso ninguém é pago; Acrescentem mais dinheiro Ou a faxina fica de lado. É do Mazinho essa obrigação Não faz nada o dia inteiro, Só vive a soprar garrafão Em perturbação é o primeiro; O seu diploma de musculação Procure usar no banheiro. O entregador que se preza Vive reclamando a toda hora, Pede acordo, chora e reza, Implorando pra ir embora. Desenganado, até Deus despreza, Rogando ao Diabo uma melhora. - 11 - Água Pura – A sucursal do inferno Até porque ser despedido Isso é caso de muita luta, Nem que alguém tenha ofendido Algum cliente filha da puta. No entanto, vem logo o castigo, Um “Leblon” bem sacudido Como uma espécie de multa. Não é à toa que um Fulano Que sequer vem trabalhar, Consegue ficar quatro anos Empregado neste lugar. Aqui se aceita todo mundo, Safado, vigarista, vagabundo, Basta apenas saber pedalar. O sofrimento só é constante Para quem decide encarar, Aquele novato, o iniciante, A qualquer hora pode rodar. Somente a carteira assinada É a garantia confirmada De quem pretende bagunçar. - 12 - Memórias imemoráveis Tantos por aqui já passaram Alguns sequer completaram o dia, Mas em sua passagem deixaram Um rastro de sangue e agonia. Hoje, enfim, os que escaparam Encontram-se loucos ou se deparam Em alguma sala de psiquiatria. Dos que começaram o ano Resta a metade da demanda, O velho Jorge do Turano O Karlão da Nova Holanda, E o Marcelo Manjubinha Morador lá da Rocinha Que “faz água” pra caramba. Tem o “Berone” Marcha-Lenta Trabalhando clandestino, Haroldo Bucha, ninguém aguenta, Só sabe viver dormindo, E o André, sujeito sem futuro, Uma briga de foice no escuro É mais bonita que ele rindo. - 13 - Água Pura – A sucursal do inferno E o narrador deste fatos Que não se esconde na história, Testemunha de alguns atos Que hão de ficar na memória, E que jamais esquecerá a loucura De haver pisado na Água Pura Uma prisão sem escapatória. No fim, a liberdade prevalece, Apesar de muito se lamentar, Trabalhou na Água Pura não esquece Vez ou outra se pensa em voltar. É um castigo que ninguém merece, Mas a gorjeta que fortalece É um incentivo para retornar. Dê seu sangue por este lugar Que haverá de se arrepender, Faça o seu nome se destacar Que vão fazer você sofrer, E se ficar em 1º no placar Não vá depois se lamentar Das dores que irão lhe ocorrer. RIO, JUNHO/2003 - 14 - Memórias imemoráveis LAMENTO DE UM ENTREGADOR Num momento de inspiração Acompanhado de lucidez, Faço da minha situação Nada boa há quase um mês, Virar versos sem pretensão De serem a bola da vez. É que ficar um mês de férias Sem para tanto receber, É deixar que a miséria Bata à porta, pode crer! Um exemplo pra essa galera Que um dia quiser se atrever. São trinta longos dias Olhando para as paredes, Visitando a casa de tias, Se balançando numa rede; Chega até dar uma agonia, Como quem sente sede. - 15 - Água Pura – A sucursal do inferno Sem ter o que gastar E sem ter para onde ir, O jeito é tentar descolar Um “0800” pra se divertir; Pobre nasceu para se ferrar E ai daquele que desmentir. Somente com dinheiro na mão É que se consegue ser feliz, A mulherada chove de montão, Donzela, casada, até meretriz. E não me venham com sermão Mostrando o que a Bíblia diz. Enquanto tiver arroz e feijão Lá em casa para eu comer, Fome eu não passarei, não, Mas sei que isso não é viver. Da vida eu quero emoção E mais chance para vencer. - 16 - Memórias imemoráveis No entanto, voltar a trabalhar, Encarar novamente a “Água Pura”, A minha vida não vai melhorar, Só vai aumentar minha amargura. E o meu tédio ainda vai acabar Levando-me às trevas da loucura. Mas voltando a falar de dinheiro Que é a maior alegria do povo, Aliás, desse mundo inteiro (Isso não é um fato novo), Na Água Pura ele é “forasteiro”: É como procurar cabelo em ovo. Dinheiro aqui só sai aplicado Ou em forma de pagamento, Não para o entregador ferrado Mas para o fornecedor nojento. Para nós ele já vem descontado No pneu, no aro, no rolamento... - 17 - Água Pura – A sucursal do inferno E acontece um fato engraçado Quando é dia de pagar geral: O Mazinho, “patrão” desgraçado, É o primeiro a fugir do local. Chega a ser até debochado: É a vergonha de pagar tão mal. Dona Márcia, minha companheira, Ouça com atenção o que digo: Não seja a senhora a primeira A só olhar para o seu umbigo. Conceda-nos, pois, uma maneira De se livrar de tanto castigo. Se ponha no nosso lugar, Pelo menos, por um segundo, E pare de tanto nos explorar, Entregador não é vagabundo. Aqui é onde se pode encontrar As piores entregas desse mundo. - 18 - Memórias imemoráveis Tem a Mascarenha de Moraes, O suplício de todo entregador, A rua Assis Brasil não fica atrás, Visconde de Albuquerque, causa até dor. Botafogo, Leblon, ainda quer mais? Um ser humano merece mais amor. Chega de pagar por peça quebrada Quando muitas vezes temos razão, E parem com tanta tarefa pesada Como ter que descarregar caminhão. Sem falar na atitude impensada De nos descontar até garrafão. Entregador só vive cansado, Dorme que só uma cadela, Café da manhã é aquilo regado À base de pão com mortadela. A fraqueza tem como resultado Um funcionário cheio de “mazela”. - 19 - Água Pura – A sucursal do inferno É só olhar para a cara do sujeito Por exemplo, a do Vandinaldo, Pinta de honesto, um otário perfeito, Trabalha que só um condenado. Não fosse a mentira, seu maior defeito, Eu teria mais pena do desgraçado. Lúcio Cachaça é um batalhador, Diria um vencedor por natureza. Defeitos à parte, é trabalhador E mora longe que é uma tristeza. Pega ônibus, trem, carroça, até trator E ainda enfrenta essa dureza. Tem o João Martins, esse nanico Que fugiu da seca lá do Ceará, Baixou no Rio pensando ficar rico, Mas como diz o ditado popular: “Sonho de merda acaba no pinico” E na Água Pura veio se lascar. - 20 - Memórias imemoráveis Gilson Gigolô é o tipo do sujeito Puxa-saco e metido a brigão, Nunca foi um entregador perfeito, É também o que mais quebra galão. Como descarregador tem um defeito: Quer ser o dono do caminhão. E o Júlio, o que se pode dizer? Bem, é um mentiroso inveterado. Na mentira, para melhor saber, Ganha até mesmo do Vandinaldo. Conserta bebedouro e sabe convencer As velhinhas a pagarem dobrado. Thiago Bafão, o Thiago Carahiba, Esse é amigo do Gilson Dentinho, Sonha um dia conhecer a Paraíba. Para isso, tá juntando um dinheirinho. Mão de vaca, brigou com a barriga, Economiza até no troco do cafezinho. - 21 - Água Pura – A sucursal do inferno E eu nem sei se o “Azedo”, Aquele que mora lá no “Chapéu”, Se ele já melhorou do dedo Naquele seu disfarce fiel. O que não era nenhum segredo, Não conseguia disfarçar seu medo Nesse “ganha-pão” tão cruel. Vou finalizar esse meu lamento Que se faz tão necessário, Para lembrar aos quatro ventos Que entregador não é otário. Trabalha que só um jumento E nunca sabe o que é aumento Nessa merreca de salário. RIO, ABRIL/2005 - 22 - Memórias imemoráveis A VERDADE ABSOLUTA Faltar à toa dia de serviço Não é honrado se justificar, Até porque é um compromisso Do qual devemos nos orgulhar. Sagrado até, não me esqueço disso, Mas não posso permanecer omisso Vendo a sacanagem nos rodear. Uma firma que não respeita Seus empregados e seus valores, Que nem está aí para as caretas Que denunciam as nossas dores, Merece é passar pela caneta Daquele homem da capa preta, Da beca desprovida de cores. Sua Excelência, o senhor juiz, Lá de um conhecido Ministério, Proporcionar-me-á um final feliz Sem demora, sem nenhum mistério. E o tal acordo que outrora fiz Já o enterrei em um cemitério. - 23 - Água Pura – A sucursal do inferno Só alguém de capacidade elevada E de poder para mudar o jogo, Dará um jeito nessa “crentaiada” Que só faz entregador de bobo. Enganam ao povo, a Deus, até Belzebu, E enquanto seus empregados tomam no c... Pensam que estão livres do fogo. Ao longo desses quase quatro anos Há muito cheguei numa conclusão: É algo contra os direitos humanos, Subir morro e descarregar caminhão. Ipanema, Leblon, afetam nosso juízo, Ralar nesse caminhão causa prejuízo, Seja pra coluna ou ter que pagar galão. Entregar água mineral no Leblon Ou qualquer mercadoria que seja, Não é um serviço lá muito bom, Isso é coisa que ninguém deseja. Todo dia parte do Leme, sem destino, Mais um carregamentozinho cretino, E quem não quiser que não veja. - 24 - Memórias imemoráveis São seis quilômetros que afastam Um entregador desse sofrimento, E as mesmas rodas que arrastam Esse triciclo velho, pesado e lento, Nunca me ajudam a esquecer o pior. Será que esse trampo não ficaria melhor, Quem sabe, no lombo de um jumento?! Cabe exclusivamente ao gerente, O nosso Pastor, Éric Riboredo, Acabar com esse sistema vigente E que mata o entregador de medo. Cinco da tarde, 1 água em Ipanema, Para atender à Dona Filomena Que esqueceu de pedir mais cedo. Isso é uma tremenda sacanagem, Entregador também tem direito, 50 centavos de porcentagem Para realizar todo esse feito, É melhor jogar na vida do crime, Porque fazer parte desse time Tem que ter o juízo imperfeito. - 25 - Água Pura – A sucursal do inferno A Dona Márcia até que é legal, Sai por aí, distribuindo alegria, O Mazinho é que é cara de pau E em gente assim ninguém confia. Agora, para mostrar reciprocidade, Economizo a saliva e, na verdade, Até já parei de desejar-lhe “Bom dia!”. O “Bom dia!”, assim como o prejuízo, No fim do mês já vêm descontado, E não adianta sequer dar o aviso De que o triciclo já está quebrado. É Wellington tirando nota confusa, Laís comentando a respeito da blusa... E o serviço saindo todo errado. A necessidade faz o gato pular, Cobra que não anda, não engole sapo. E a verdade, essa nunca vai mudar, Não adianta, portanto, todo esse papo. Enquanto existir um pobre miserável Haverá sempre um patrão imprestável, Do qual nunca se largará o saco. RIO, MAIO/2006 - 26 - Memórias imemoráveis SAÍDA VETADA Meu sonho de liberdade foi frustrado, Coitado, acabou ficando para depois. O desejo daquele caviar importado Ficou somente no feijão com arroz. E apesar do meu orgulho abalado, Do meu corpo ferido, machucado, Não quero aqui dar nome aos bois. Pois, é como diz o ditado nobre: Aquele que trabalha para pobre, Acaba pedindo esmola para dois. RIO, MAIO/2006 - 27 - Água Pura – A sucursal do inferno S.O.S - “Eu vou tirar você desse lugar...” Até hoje espero por Odair José. O tempo passou, só fizeram enrolar, É tanta mentira que nem levo fé. Conversa de crente já sei como é; Meu ouvido não é pinico, pra começar. Façam minhas contas, vou dar no pé; A Água Pura não perde por esperar. RIO, JUNHO/2006 - 28 - Memórias imemoráveis RETORNO INFELIZ Estou de volta e inconformado Com esse destino que me conduz, Serei para sempre um revoltado Buscando no fim do túnel uma luz. Será que atirei pedras na cruz, Estou pagando por algum pecado?! Vai pro Diabo, serviço desgraçado, Com esse salário que te faz jus. Ofuscado pelo brilho que reluz De um otimismo agora redobrado, Eu nunca mais serei explorado, Conversa de patrão não me seduz, Que finge acreditar em Jesus Explorando e humilhando empregado. - 29 - Água Pura – A sucursal do inferno Dizem que a escravidão acabou. Eu, sinceramente, não acredito. Quem diz isso nunca precisou Trabalhar nesse serviço maldito, Onde só tem funcionário aflito Pelas desgraças que já passou. Seja um pedestre que atropelou Ou a velha que lhe deu um grito. Cliente ruim tem de todo tipo, Com um deles alguém já cruzou. Aquele que o Demo amaldiçoou No seu “conhecimento” infinito, E o miserável de sorriso bonito Que uma moeda sempre negou. - 30 - Memórias imemoráveis A vida oferece altos e baixos, É preciso mesmo ter paciência, Depender de patrão é esculacho, É afundar na própria falência. É relevante usar a inteligência E nesse ponto eu me encaixo, Pois nunca que me rebaixo A qualquer ato de negligência. Se é compromisso de urgência Alguma ideia eu sempre acho, Existem mil formas de cambalacho Pra serem usadas numa emergência, Pois comigo não tem clemência; Aqui o buraco é mais embaixo! - 31 - Água Pura – A sucursal do inferno Por fim, eu gostaria de dizer Ao novato que se encontra ali: - Cuidado para não se arrepender, A sucursal do inferno é aqui! Meu Deus, como eu já sofri Nessas entregas, sem perceber Que castigo de pobre é sofrer, Mas eu nunca que vou desistir. E agora, sequer, consigo sair, Resolveram, de fato, me prender, Nesse triciclo ainda vou morrer; Por favor, alguém me tire daqui! Antes que essa pôrra venha falir E nada restando para se fazer. RIO, 29/JULHO/2006 - 32 - Memórias imemoráveis NEGÓCIO FRUSTRADO A cada dia que passa Mais eu sinto vergonha, De trabalhar nessa desgraça, Conviver com esses “pamonhas”, E que ainda acharam graça Do indivíduo preso na praça Vendendo a sua maconha. Entregador da Água Pura Que foi preso à luz do dia, Após cometer a loucura De descer a escadaria, Do morro lá do Chapéu, Portando um “coquetel” Que algum lucro lhe daria. A PM fez que não viu, Deu as costas, foi embora. Porém a Polícia Civil “Grampeou” na mesma hora. E levou o nosso amigo Pra um determinado abrigo Onde está até agora. - 33 - Água Pura – A sucursal do inferno O desespero é profundo Para qualquer entregador, Fazendo um serviço “imundo” Por tão pequeno valor. Como diz aquele ditado: Nem sovaco de aleijado Consegue ser tão sofredor. E agora, o que fazer? Nenhum erro se justifica, Não vamos, agora, defender Ou apoiar quem só critica. Se há algum responsável, Seria o patrão miserável Com esse salário de “titica”. Mas, vacilou aqui tem perdão, Na Água Pura é sempre assim, Lugar onde emprega ladrão E que é descoberto no fim, Mostrando para a sociedade Que a verdadeira capacidade Do empregador é comer capim. RIO, 14/AGOSTO/2006 - 34 - Memórias imemoráveis O ÚLTIMO SUSPIRO A minha vida é uma tristeza, Nada acontece, para variar. Eu sequer tenho a certeza De que algo vai mudar. E pra aumentar a frustração Trancaram-me nessa prisão, Sem chance de me soltar. Por Deus, o quê que eu fiz Para merecer tanto castigo? Eu nunca fui tão infeliz, E é por isso que eu digo: Nenhum sofrimento é nobre, Tudo só cai no “lombo” do pobre Desamparado e sem abrigo. A vida não pode esperar, Eu quero a minha “alforria”, Para eu poder, então, viajar, E só assim a minha alegria Finalmente ela vai voltar. Nunca mais vou me lembrar De toda e qualquer agonia. - 35 - Água Pura – A sucursal do inferno Vivo em busca da felicidade E longe de qualquer tortura. Minha ambição, na verdade, Era ser gari da Prefeitura. Mas para minha infelicidade, Com tanto serviço nessa cidade, Vim parar logo na Água Pura. As escolhas que nós fazemos Nem sempre dão bons resultados. Às vezes, nem chance temos, Só apenas de ser humilhados. Até porque trabalhar com crente Que é a pior espécie de gente, Deixa o sujeito mais revoltado. Não há palavras de consolo E que me façam entender, Sou pobre, mas não sou tolo, E cego é quem não quer ver. É muito fácil para um cidadão Se esconder em uma religião, Com uma Bíblia sempre a reler. - 36 - Memórias imemoráveis “- Com uma Bíblia na mão E uma cara de débil mental, Pregando a enganação Da Igreja Universal. Ou será que é outra igreja dessas? Ah, não faz mal. Igreja de enganar Otário é tudo igual!”. (Gabriel, O Pensador) Crente rico é um hipócrita, Não acredita e nem confessa. Crente pobre é um idiota, Que se engana com promessa. Para viver nessa realidade Cheia de ódio e de maldade, Só o dinheiro é que interessa Não sou nenhum mercenário, Sou apenas um realista. Já me fizeram de otário, Tentaram tapar minha vista... Lamento essa minha arrogância, Mas de crente quero distância; Estão fora da minha lista! - 37 - Água Pura – A sucursal do inferno Voltando ao ponto inicial Um emprego é uma conquista, Ralando aqui só me dei mal E eu que era tão otimista... Agora é meter a firma no pau, Descolar uma grana legal E procurar um bom analista. Mais uma vítima da Água Pura E que ainda não recobrou o tom, Testemunha viva dessa loucura Das cansativas idas ao Leblon. Um sobrevivente, herói e poeta, Que decidiu cair fora na hora certa, Pois ainda sabe o que é bom. É natural que o cansaço Tenha tomado conta de mim, O meu corpo é só inchaço, Um sofrimento que não tem fim. Agora só restou-me o bagaço, O selim arrancou meu cabaço E vou levando a vida assim. - 38 - Memórias imemoráveis Foram mais de 33.000 As águas que eu entreguei, Cada cliente, puta que pariu! Velha chata, maluco, até gay. Mas também muita gente boa, Inclusive, algumas “coroas” Com as quais eu namorei. Neste depósito da Água Pura Baixa toda corja de gente: O nanico, de baixa estatura, Alto, forte e até deficiente. Sem falar nos tipos imundos: Ladrão, traficante, vagabundo... A escória está toda presente! Tudo quanto é cafajeste, Mas também muito coitado, Reprovado em qualquer teste Ou pela vida abandonado. Gente que vive na sarjeta E que vem atrás da gorjeta; Às vezes sai decepcionado. - 39 - Água Pura – A sucursal do inferno Eu levaria meu tempo todo Falando deste lugar estranho, Não quero aprofundar nesse lodo Senão daqui a pouco eu apanho. Mas quero apenas ressaltar, A saúde vem em primeiro lugar; Esse é o nosso maior ganho. A minha única ligação Com esta empresa fodida, É por conta da situação Desta loja estar quase falida. E para aumentar o meu stress Sequer pagam o FGTS, Um atraso para a minha vida. Ainda que eu quisesse Já não dava mais para “ralar”. Quem sente dor não esquece E nem dá para ignorar. É a coluna dolorida, A saúde comprometida; É o cúmulo do azar! - 40 - Memórias imemoráveis Um homem que nunca mente, Às vezes, pode levar um tempão Para provar que está doente E sem a menor condição, De atender imediatamente À exigência de um cliente E em seguida, à do patrão. Só quero agora me curar, Dor nas costas não é moleza. Nunca mais volto a trabalhar E a enfrentar essa dureza. Serviço bom para mim, talvez, Só trabalhando metade do mês, E não sofrendo nessa tristeza. Estou pensando em me “encostar”, Dar entrada na aposentadoria, Tirar o meu tempo para viajar, Esquecer de vez essa agonia. Lá na Paraíba, eu posso apostar, Nunca mais vou querer lembrar Que fui entregador algum dia. RIO, 01/NOVEMBRO/2006 - 41 - Água Pura – A sucursal do inferno O ENTREGADOR DE AÇO Foi na falta do que fazer Que ontem me pus a lembrar, De um “peão” bom pra valer E a sua história eu vou contar. Trata-se de um “coroa”, Um sujeito gente boa Que não tem medo de ralar. Nunca aqui, na Água Pura, Houve um caso parecido, Um exemplo de bravura E de um homem destemido. Ele tem mais de “quarenta” E o “véi” ainda aguenta Encarar esse suicídio. Vai gostar de trabalhar assim Lá pras bandas da “Baixada”, Encarar esse serviço ruim E nunca reclamar de nada, Recebe de mim um elogio: Entregador assim, no Rio, Merece um patrão camarada. - 42 - Memórias imemoráveis Para encarar essa jornada E ainda morar tão longe, É preciso ter fé na parada E uma paciência de monge. Preguiça com ele não tem vez, Só de pensar na entrega do mês Tem “neguim” que até se esconde. Todo dia, podem acreditar, Antes mesmo de o sol nascer, Ele já começa a se levantar E nunca falta o que fazer. Arruma-se, prepara a marmita, Escova o dente lá na “bica” E numa prece se põe a dizer: - Senhor, muito obrigado Por mais este dia de ação. À noite, mesmo cansado, Farei uma outra oração. Para “Nossa Senhora da Caixinha” Me aproximar mais das velhinhas, Mas só as de bom coração! - 43 - Água Pura – A sucursal do inferno E corre para pegar o trem Lá pelas quatro da manhã, Não espera por mais ninguém, “Voa” que nem avião da TAM. Antes, toma um café com “broa”, Dá um beijinho na “patroa”, Aquela que é sua maior fã. E quando o galo vem cantar Esse “véio” já está a caminho, Sem ter com quem conversar, Às vezes, ele viaja sozinho. E finalmente chega à Central, Pega um ônibus da Real, Já com dois sacos de lanchinho. E às seis horas, sempre fiel Ele chega em Copacabana, Atravessa a Princesa Isabel, No boteco toma uma “cana”, E se prepara pra mais um dia, Cheio de gás e correria Para levantar uma grana. - 44 - Memórias imemoráveis Mas aí começa uma espera Da qual ele não pode fugir: Fica na porta de sentinela Esperando o Mazinho abrir. E o tempo vai se passando, Os outros “peão” vão chegando, Uns a chorar, outros a sorrir... Esse é o “Antônio Virgulino”, Um descendente de Lampião, Caboclo, forte, desde menino, Lá pelas quebradas do Sertão. Um paraibano macho e valente Que faz inveja a muita gente, Por sua garra e determinação. Quando criança não pôde estudar, Mas felizmente aprendeu a ler. Nas entregas sabe se virar, Nome de rua dá pra entender. Porém, se vê algo diferente, Ele vem, pergunta pra gente; Um segundo não pode perder. - 45 - Água Pura – A sucursal do inferno Ele até já deixou de almoçar Por uma entrega lá no Leblon, Como crente que vive a pregar, Para ele tudo sempre está bom. Carreto recusado pela gente, Para ele é como um presente; Seu “Toin” nunca perde o tom! E se alguém se descuidar Ele toma a vez na moral, Fura a fila sem se desculpar, Tudo na maior cara de pau. Seu Antônio é mesmo um barato, Com aquele seu bigode de rato E com aquela cara de mau. Encara um caminhão carregado Como se estivesse brincando, É forte como um boi de arado E tem disposição até sobrando. Para acompanhar esse coroa Tem que ter a saúde muito boa, Ou alguém vai sair reclamando... - 46 - Memórias imemoráveis A sua fama de olho grande O incomoda um pouquinho, Pois ele não é um muquirana E tampouco um cara mesquinho. E essa sua correria desesperada, Além de prejuízo, não dá em nada, Como puxar o saco de Mazinho. E Seu Antônio já aprendeu Que o bom é ficar na moleza, E também já se convenceu Que é melhor fugir da brabeza. Carreto longe até o Diabo teme, A preferência é ficar pelo Leme, Tapeando com muita esperteza. Enfim, vou por aqui encerrar, Desse testemunho não abro mão. Só pra esclarecer, devo lembrar: Tudo o que falo é de coração. Estou certo de que finalmente Encontrei um grande concorrente Que merece minha consideração. RIO, 02/MARÇO/2008 - 47 - Água Pura – A sucursal do inferno AGRADECIMENTOS A Água pura foi para mim uma espécie de “Faculdade” no Rio de Janeiro, uma verdadeira lição de vida, um lugar onde eu realmente aprendi muita coisa. Principalmente, a “abrir os olhos”, ficando mais esperto diante das maldades da vida. Brincadeiras à parte, agradeço o “aprendizado forçado” que tive ao longo desse período (2003 a 2007), convivendo com pessoas tão diferentes e de níveis tão desiguais, desde o simples empregado até o alto empresário. O trabalho em si era pesado e de certa forma, até desumano, nunca quis me enganar. Mas serviume de alerta para que eu buscasse algo de melhor na minha vida. Na verdade, ainda estou buscando. - 48 - Memórias imemoráveis Entre fevereiro de 2003 a janeiro de 2009 eu entreguei 41.613,5 águas na Água Pura / Leme / Rio - 49 - Água Pura – A sucursal do inferno FLAMENGO ATÉ MORRER... DE RAIVA! Vermelho e preto são as cores De um clube que lota as gerais, Mas que não intimida os rivais Com seus milhões de torcedores. Uns mulambentos e agitadores Que até esquecem os seus ideais, Nunca assistem a uma partida em paz. E só para aumentar seus rancores Disseram adeus a Libertadores; - Isso já não lhes pertence mais! 10/MAIO/2008 - 50 -