VIII CONFERÊNCIA DAS CIDADES
Câmara dos Deputados
9 a 11 de outubro de 2007
1º PAINEL: ACESSO AO SOLO URBANIZADO 1
Palestra: Prof. Carlos Morales Schechinger
Universidad Nacional Autónoma de México
O tema da minha apresentação será Acesso ao solo urbano. E começo
por uma primeira pergunta: o que é uma política de acesso ao solo urbano?
É corrigir o desastroso acesso ao solo de milhões de pessoas do passado ou
prevenir para que não volte a ocorrer no futuro? Isso parece muito óbvio,
mas muitas políticas de organismos internacionais e de muitos países
colocam mais ênfase em corrigir o desastroso problema do passado do que
em prevenir. O mal acesso ao solo está crescendo acima da capacidade dos
governos de resolver o problema. Pouco está sendo feito para abrir um
novo acesso ao solo de boa qualidade. Precisamos abordar ambas as
políticas. Há muitos países que estão apenas corrigindo. Só corrigir pode
alimentar um círculo vicioso de mau uso do solo. Espero que no futuro
apenas trabalhemos com políticas de prevenção e já tenhamos superado o
círculo vicioso da correção.
E pergunto o que o Brasil está fazendo? Está corrigindo ou
prevenindo? Acho que a lei brasileira, o Estatuto da Cidade tem todos os
instrumentos para permitir o acesso ao solo. O Estatuto é um instrumento
muito poderoso e criativo que está sendo difundido pelos organismos
internacionais como modelo para outros países. Uma primeira leitura do
estatuto me dá a impressão que ele foca mais em corrigir que prevenir e
isto me preocupa. Uma segunda leitura me convence que ele contém todos
os instrumentos para implementar uma política forte de prevenção do
acesso ao solo no Brasil.
Vou abordar os temas “Justa distribuição de ônus e benefícios” e
outras políticas para ampliar a oferta de bom solo no Brasil e na América
Latina. São elas: banco de terras, política de mercado de solo, desregulação
do mercado de solo, subsídio para a compra de solo e por último a
Tolerância. Regularização fundiária e melhorar os serviços inscreve-se em
uma política de tolerância.
Justa distribuição de cargas e benefícios
As cidades necessitam de todos os usos urbanos. Com frequência, as
políticas focam apenas em moradia social. Mas as cidades necessitam de
todos os usos. Há usos rentáveis, que atraem o mercado. Os proprietários
preferem ter comércio, indústria, casas de luxo,... porque representam
lucro. Eles não querem em seus terrenos moradia para pobres, nem que
sejam destinados para espaços públicos ou reserva ambiental, porque não
1
Palestra proferida em espanhol na VIII Conferência das Cidades da Câmara dos Deputados traduzida e
transcrita por Paula Santoro e revista por Otilie Pinheiro.
são rentáveis. Mas tanto as rentáveis, como as não rentáveis são
necessárias. As rentáveis vão acontecer, as não rentáveis, sozinhas, não
acontecem. Os proprietários querem benefícios, mas não querem ônus.
As cidades necessitam de grandes empreendimentos. Muitos desses
projetos vão se dar na periferia onde tradicionalmente as cidades crescem
na América Latina. Para ser viáveis e bem localizados precisamos combinar
usos rentáveis e não rentáveis nos mesmos projetos, e mesclar ônus e
benefícios. Como são grandes projetos é preciso que este projetos sejam
financiados também pelo capital privado, é preciso que todos os
proprietários se associem. Teremos sempre os proprietários que querem
estar fora do projeto, deixando que os que tiverem dentro arquem com o
ônus e paguem as despesas enquanto eles ficam de fora e aguardando
receber todos os benefícios pela boa localização do seu imóvel e sua
conseqüente valorização. Os que argumentam que podemos conseguir a
adesão de todos os proprietários em uma mesa de negociação e resolver
tudo, são ingênuos. Não entender isso é pensar que as negociações vão
resolver os problemas urbanos. A legislação atual em muitos países
favorece aos proprietários resistentes ao projeto urbano. Para solucionar
existe um instrumento que não está no Estatuto da Cidade, o
reparcelamento de grandes glebas.
O “reparcelamento” de grandes glebas ou “reajuste de terras”, existe
em vários países e permite mudar por pactuação os parcelamentos e usos
existentes. A definição do polígono da gleba deverá ser feita num plano
diretor participativo e não pelos proprietários. O projeto tem que ser multiuso e fazer com que os proprietários resistentes se associem. Em outros
países o instrumento utilizado é a desapropriação, mas o problema é como
se calcula o valor da indenização. A desapropriação, não pode conter
expectativas de valorização futura, esta é a regra chave. Se o proprietário é
indenizado no valor comercial considerando as expectativas futuras ele
ganha antecipadamente.
Em muitos países há regras que privilegiam a propriedade e tornam
obrigatória a indenização muitas vezes no valor de mercado que incorpora
no valor do solo atual as expectativas de valorização pelos usos futuros. E
eu não vejo porque indenizar o proprietário por expectativas não realizadas
e por uma valorização criada pela cidade! A filosofia de desapropriação deve
mudar. Deve-se pagar pelo uso atual, descontando os investimentos
públicos. Em alguns países pode-se leiloar em leilão público o terreno dos
proprietários resistentes e qualquer interessado pode comprar. Assim
chega-se ao máximo preço. Esse sistema de leilão, vocês podem crer, que
faz com que o preço suba, mas não será mais alto do que o preço de
mercado que será definido pelo que o projeto pode suportar. Se o projeto
tem um grande componente social o empreendedor vai considerar isto na
sua oferta de preço.
Para os proprietários resistentes podem ser utilizados os seguintes
instrumentos: parcelamento compulsório, IPTU progressivo no tempo,
desapropriação com indenização sem pagar as expectativas de valorização
futura e descontadas os impostos, ou leilão compulsório. Mas deverão ser
aplicados só aos proprietários que não queiram se consorciar.
A Colômbia e o Brasil têm a experiência mais avançada da América
Latina, no tema da gestão urbana. Na Colômbia, temos a lei 388/97 que
prevê planos parciais de grandes glebas em áreas de expansão, com muitos
proprietários que são convidados a se consorciar e todos tem que entrar no
projeto. Os que resistem são desapropriados no valor médio do
investimento e não vão receber o que esperava especulando. Se faz um
cálculo do que o projeto pode agüentar e desconta-se sua parcela nas
despesas do investimento. O projeto Novo Usme de Bogotá é emblemático
dessa política. Com 900 hectares levou anos para ser aceito e implantado.
Possui imensas áreas para moradia social, prevê toda a urbanização,
equipamentos sociais e uma mescla de usos que vai gerar empregos para a
população e assegurar um preço final de lote acessível para que a
população possa pagar e auto-construir sua moradia.
Esta forma de desenvolver a periferia nas cidades é muito comum em
outros países. Na Alemanha existe a partir do século XVI. A Espanha tem
um sistema muito desenvolvido. Os que o criticam, geralmente são os que
têm interesse especulativo. Da Espanha é que chegou à Colômbia há duas
décadas. Existe também em países de língua inglesa como a Austrália, a
Nova Zelândia e a África do Sul mas a Inglaterra não implantou. No Japão
este mecanismo é muito consolidado, inserido na cultura japonesa e o
governo já não precisa mais promovê-lo. Os próprios proprietários tomam a
iniciativa de se associar, sabem que não podem especular e optam por ter
todos um lucro médio e desenvolvem os projetos. Também é aplicado na
Coréia, Índia, Ceilão e Quênia. Na América Latina destaca-se a Colômbia.
Eu argumento que o Estatuto da Cidade já contém os instrumentos para
fazer esse tipo de projeto.
Estamos falando de projetos que desde o início prevêem toda a infraestrutura, todos os usos públicos e ambientais reservados e protegidos e
um percentual de moradias para pobres. E prevêem outros usos que vão
gerar empregos para os moradores. As famílias não vão precisar esperar 30
anos para receber as melhorias que só chegariam quando a família já
tivesse se desintegrado. Na Espanha a reserva para moradia popular é de
20%. Em nossos países o grande desafio é como vamos incluir uma
demanda de 40 ou 60% de usos para pobres. Também temos que enfrentar
a concorrência de outros usos como comércio, serviços e moradia para
classe alta e classe média, que se não forem previstos vão pressionar as
áreas ocupadas pelas classes baixas.
Vou tratar de um problema recorrente. As políticas voltadas
exclusivamente para população de baixa renda acabam sendo direcionadas
para a classe média. Os governos se esquecem que a moradia média
também deve ser atendida. É triste ver que os países estabelecem um
sistema de subsídio para moradia social, que acaba sendo utilizado para a
classe média. Não podemos nos limitar a dar moradia para pobres pois eles
podem ser pressionados e expulsos pela classe média e só lhes restará a
moradia em favelas. Infelizmente o programa habitacional mexicano tão
divulgado não é um programa social é um programa de moradia para a
classe média. Precisamos gerar nesses projetos, solo para moradia média e
rica para que não concorram com moradia social. Por isso é um tema
urbano!
Precisamos concorrer com o mercado informal e criar acesso aos
pobres a preços baixos. O mercado informal é caro e ruim. É preciso
garantir preços no máximo iguais ao mercado informal mas com boa
localização, segurança e imediato. Eu pergunto aos “moradiólogos”: o que é
moradia digna? Que só tenha um teto, banheiro e lugar para cozinhar e
dormir? Acaso a moradia não tem uma dimensão urbana? O tema mais
importante é a localização na cidade. De que me adianta ter uma casa boa
mas a 50 quilômetros longe do meu emprego? O problema da moradia
longe, é que não há solução possível para melhorar uma má localização.
Para isso é preciso garantir projetos em lugares onde se assegure todos os
demais usos da cidade. Sem necessidade de subsídio externo. Pois o projeto
é auto-financiado. Pela escala do projeto, pela mescla de usos, pela
neutralização dos proprietários resistentes. Porque os custos dos serviços
para prevenir são mais baratos que corrigir. E mesmo quando houver
necessidade de subsídio, por exemplo, num projeto com 40 e 60% de
moradia social, será mais barato, o subsídio estará previsto no início, com
regras claras e o projeto será em parte financiado pelos outros usos.
Outras políticas: Bancos de terras, liberalização, desregulação,
subsídio e tolerância.
Banco de terras é uma ação direta do estado que compra a terra
antecipadamente. Hoje em dia, há um pensamento de compra massiva de
terras pelo Estado. A que preço? a preço de mercado? não é viável.
Compram desapropriando, com regras que privilegiam o proprietário, o
governo está pagando a valorização futura antecipadamente. A não ser que
nossas constituições e a legislação subseqüente modifiquem o critério de
desapropriação e estabeleçam que o valor da indenização seja no máximo
do preço do uso atual. Se o uso atual é agrícola, te indenizo a preço
agrícola. O estado não tem obrigação de indenizar por algo que não existe.
Se o valor do solo é produto do esforço da coletividade, por que ela tem que
pagar? Não é produto do esforço do particular. Ainda pior, quando o valor
estabelecido no IPTU é o valor do uso atual e ao desapropriar incorpora a
expectativa de valorização futura. Por que dois critérios diferentes quando
desaproprio e quando cobro o IPTU?
O que é o IPTU, afinal? A maneira como os municípios recuperam o
que se investiu na cidade. Se o IPTU é cobrado num valor que não incorpora
o investimento coletivo a capacidade de investimentos é baixa. Os países
com os mais altos IPTUs são os mais desenvolvidos, porque são conscientes
de que estão recebendo a valorização produzida pela coletividade. Não
porque têm receita maior mas porque a cidade é consciente que é ela que
produz a valorização do imóvel e portanto recupera esta valorização pouco
a pouco.
Se se quer fazer um banco de terras correto, é preciso mudar as
regras da desapropriação. Se não os projetos de moradia popular vão exigir
subsídios externos para pagar aos proprietários a valorização esperada. Só
o anúncio de que o governo vai comprar terras na periferia já valoriza as
terras. O subsídio externo, já está provado, faz subir os preços do solo.
Ainda que vá um avaliador experiente, o que ele verifica é um mercado
contaminado pelo anúncio de que haverá um banco de terras.
Uma experiência da América Latina nesse sentido, é o caso do
México. Na década de 80, a lei de reserva territorial e outras leis com
enfoque de função social da terra, incluíam todos os usos, auto-financiados.
Se tomaram terras de propriedade coletiva chamadas “ejidales”, e as
transformavam em urbanas pagando em valor agrícola. Nessa época se
começou a ganhar a guerra contra a informalidade. Na cidade de Águas
Calientes, onde se começou isso, acabou a informalidade com oferta
massiva de terras bem localizadas e equipadas para os pobres. Inclusive
quando tivemos os terremotos, Águas Calientes não sofreu tanto, pois tinha
solo barato. Mas a Constituição de 1992 e as leis mudaram, produto da
pressão do tratado de livre comércio com os Estados Unidos e passaram a
dar às desapropriações o valor comercial.
E agora também, os “ejidos", podem ser privatizados. Antes no Ejido
a terra era coletiva e não se podia vender. Agora se pode vender. Diziam
que era para impulsionar a agricultura metropolitana, mas não aconteceu.
Pois estão justamente privatizando esses espaços periféricos na cidade.
Agora eles especulam e os pobres têm que ir mais longe para conseguir
comprar.
Liberalização da economia é ótimo para a produção competitiva de
computadores e folhas de papel. Para produzir copo, para melhorar o preço
e a qualidade do copo. Mas a terra não é um copo e tem características
especiais que não permitem que seja competitiva. O proprietário de terra
tem a melhor vantagem da economia. A terra é escassa. A quantidade de
terra bem localizada, acessível, infra-estruturada, é muito pouca. E a terra
não apodrece, não é tomate. O proprietário não tem urgência de vender.
Tem terras boas, mas não são usadas e não apodrecem. Mas os brasileiros
tem um fator de apodrecimento da terra, que é o IPTU progressivo! Mas na
maioria dos países da América Latina isso não existe.
Um mercado liberalizado do solo incentiva a retenção da terra, obriga
a dispersão urbana, com alto custo de infra-estrutura, tem de estender as
redes de infra-estrutura para além da terra retida e ao mesmo tempo
valorizá-la gratuitamente!! O acesso do pobre ao solo liberalizado é acesso
ao solo mal localizado, em zonas segregadas ou de alto risco. O mercado
informal de terras é o melhor exemplo de livre mercado do solo. Todos os
países do mundo têm contribuição de melhoria, mas não a cobramos.
Estamos dando de presente infra-estrutura para o especulador.
Experiências da América Latina em liberalização do solo para reduzir
preços não funcionaram. O Chile eliminou o perímetro urbano, liberalizou os
preços do solo, e os preços subiram, porque os proprietários retiveram as
terras para vender a preço urbano. A retenção promoveu a procura por
terras mais afastadas.
As experiências de eliminar normas de qualidade da moradia,
esperando que reduzam os preços, também funcionaram. A história da
moradia popular no livre mercado na América Latina é de baixa qualidade e
altos preços. Porque se tem um componente no preço de moradia que não
se comporta como os copos e os tomates, é o solo. Típico em nossos países
é que os governos reduzem os tamanhos do lote e da construção, reduzem
impostos à moradia, e o preço da terra não se reduz, somente a qualidade
se reduz. A Colômbia tem avanços e retrocessos. Como a nova lei que
permitiu reduzir os lotes de 70 m² para 35m². O preço duplicou, não
abaixou. Se eu aumento a densidade, o preço é mais alto. No Panamá o
mercado é totalmente livre, com altíssimas densidades, preços do solo
altíssimos e os pobres não tem acesso. A maioria dos países não faz mais
produção direta de moradias.
Eu pergunto se a revisão da Lei 6.766 vai nessa direção. Flexibilizar
as normas pode aumentar o preço do solo.
Dar um subsídio é a típica política liberal, que acredita que o mercado
vai funcionar sozinho. Se ele funciona sozinho, porque é necessário
subsídio? Se o subsídio ajudar os pobres a comprarem casa, eu aplaudo.
Mas a política de subsídio, acompanhada de desregulamentação não produz
uma moradia melhor, mas aumenta os ganhos do proprietário.
Quero falar do Chile, que tem o maior subsídio do mundo, 6% do PIB.
Há 25 anos há uma produção massiva de moradia. Um estudo recente da
Universidade Católica do Chile mostrou que 2/3 do subsídio foi para
incrementar os preços do solo. Hoje o Chile está fazendo uma avaliação
crítica de sua política de moradia, mas muitos países estão copiando essa
política como México, Costa Rica, Argentina e Venezuela. Não há estudos,
mas os preços estão subindo.
Se vai subsidiar, assegure-se que é para uma melhor moradia. O
Brasil tem de cuidar muito da sua política de subsídio.
A última política é a tolerância com a irregularidade. Não podemos
seguir alimentando este ciclo vicioso.
Cinco conclusões
Há sim uma responsabilidade moral de regularizar mas não pode ser
política de futuro. Temos de ter presente que estamos regularizando o mau
acesso ao solo do passado.
É preciso de uma política preventiva agressiva para ofertar bom solo,
bem localizado, barato, bem servido, seguro, hoje e não daqui a 30 anos.
Uma política que não drene os recursos da atividade produtiva, do
salário, do comércio, da indústria e sim que recupere a valorização da terra.
Subimos todos os impostos menos o do solo. Aos que produzem, cobram
impostos, aos que não produzem não cobram. Cobrar permitirá uma grande
recuperação financeira.
Que imponha obrigações aos proprietários, que não os subsidie.
Se for subsidiar... garanta que seja para melhorar a qualidade das
moradias.
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