141 Revista Brasileira de Ensino de F sica, vol. 23, no. 1, Mar co, 2001 Esfera Condutora em Movimento: Campos, Potenciais e D uvidas A moving conducting sphere: elds, potentials and questions G.F. Leal Ferreira [email protected] Instituto de F sica de S~ ao Carlos, USP CP 369, 13560-970, S~ ao Carlos, SP Recebido em 22 de dezembro de 2000. Aceito em 05 de fevereiro de 2001 Os potenciais e os campos de uma esfera metalica carregada em movimento s~ao obtidos das formulas de transformac~ao relativsticas. Mostra-se que no sistema estacionario e a forca de Lorentz sobre a carga supercial que e normal ao elipsoide - como e vista a esfera em movimento{, n~ao o campo eletrico. Duvida aparece na interpretac~ao do potencial vetor que adquire a `esfera' para o referencial estacionario. Faz-se uma breve apreciac~ao do signicado das transformac~oes de Lorentz conforme sugerido por J.S. Bell e L. Janossy, no quadro inicialmente intentado por Lorentz-Poincare. Com ele, livra-se a Teoria da Relatividade, como usualmente apresentada, de paradoxo gritante. Fields and potentials of a moving conducting sphere are obtained from the relativistic transformation formulae. It is shown that for a stationary system the Lorentz force over the supercial charge is normal to the ellipsoid {how the moving sphere is then seen{, and not the electric eld. Questions appear in the interpretation of the vector potential, attributed by the stationary system to the moving `sphere'. A brief account of the meaning of the Lorentz transformation, as suggested by J. S. Bell and L. Janossy, within the line initially pursued by Lorentz and Poincare, is carried out. With it, a way out of a rather crude paradox in the as presented Relativity Theory is found. I Introdu c~ ao A descoberta dos metais como condutores eletricos por Grey [1] foi de import^ancia fundamental no desenvolvimento teorico do Eletromagnetismo. Atraves dela o conceito de potencial eletrico foi estabelecido, dando origem a Teoria do Potencial Eletrostatico. Assim, um condutor colocado em um campo eletrico (ou carregado eletricamente) adquire um potencial. Tomemos, por exemplo, uma esfera condutora carregada. Todo seu interior esta a um mesmo potencial, que sabemos calcular. Vamos supor, porem, que ela seja colocada em movimento, adquirindo velocidade constante. Qual o seu novo potencial em relac~ao a terra? Usando as formulas de transformac~ao relativsticas dos potenciais [2] obtem-se facilmente a resposta desejada, mas um problema se apresenta: o de como se interpreta sicamente as grandezas em movimento. Mais ainda: enquanto no referencial em que a esfera e estacionaria o vetor potencial pode ser ignorado, agora ele ja n~ao e nulo em um referencial em que a v^e em movimento, inclusive com o interior da massa condutora adquirindo um valor constante. Que sentido tem ele? No que segue, alem da obtenc~ao dos potenciais e campos eletrico e magnetico, no sistema K, mostraremos que a normal ao elipsoide metalico, achatado na direc~ao do movimento, { como a esfera e vista em K {, e paralela a forca de Lorentz que age sobre as cargas superciais. O artigo termina com considerac~oes sobre a origem dos campos em K, sobre os problemas de interpretac~ao fsica do potencial eletrostatico e do potencial vetor. Alem disso, e feita uma breve discuss~ao sobre o sentido das transformac~oes de Lorentz e a forma de livrar alguns paradoxos da Teoria da Relatividade. II Os potenciais No sistema K ' ha uma esfera condutora de raio R, carregada com carga Q e portanto ao potencial V0 = Q=R, no sistema CGS gaussiano adotado aqui. O seu centro ocupa permanentemente a posic~ao x0 = y0 = z 0 = 0. O sistema K v^e o sistema K' se deslocar com velocidade v na direc~ao +x e o centro da `esfera' esta em x = y = z = 0 quando t = 0; Fig. 1. Se os potenciais s~ao 0 (~x0 ; t0 ), A~ 0 (~x0 ; t0 ) em K 0 , as formulas de transformac~ao [2] d~ao para os potenciais 0 (~x; t), A~ (~x; t) em 142 K, G.F. Leal Ferreira sendo c a velocidade da luz, Ax (~x; t) = 0 (~x0 ) c (1) Ay (~x; t) = Az (~x; t) = 0 (2) (~x; t) = 0 (~x0 ) (3) com =q 1 1 (4) 2 c2 e o potencial coulombiano 0 (~x0 ) = p 02 Q 02 02 ; r0 R x +y +z (5) r0 R 0 (~x 0 ) = Q R (6) ~x0 ; t0 e ~x; t est~ao relacionados pela transformac~ao de Lo- rentz x0 = (x t); y0 = y; = z 0 = z (7) em especial a superfcie da `esfera' e vista como um elipsoide em K , achatado na direc~ao x, de equac~ao 2 (x0 t)2 + y02 + z02 = R2 (8) Para se achar os potenciais em K , as Eqs. 1-3, e a Eqs. 7 devem ser usadas. Em particular, os potenciais constantes na `esfera' s~ao Ax = Q cR ; Ay = Az = 0; = Q R (9) III Os campos No exterior da esfera condutora em K 0 o campo e puramente eletrostatico. No sistema K este campo sera o de uma carga em movimento com velocidade v, de express~ao bem conhecida [2,3] (ou derivaveis dos potenciais da sec~ao anterior). Sem perda de generalidade vamos por t = 0. Os campos eletrico E~ e magnetico B~ s~ao ^ ^ ^ ~ = Q (xi + y j + z k) E (10) [ 2 x2 + y2 + z 2]3=2 e ~ ~ = xE (11) B c para pontos exteriores ao elipsoide, Eq. 8. No interior ~ eB ~ s~ao nulos. E Com a nalidade de estudar as forcas sobre as cargas superciais, vamos comecar por achar a normal ao elipsoide condutor. O gradiente N~ da Eq. 8 ~ = 2 x0^i + y0 ^j + z0 k^ N (12) Por outro lado o campo efetivo E~ f sobre as cargas superciais e ~ f (x0 ; y0 ; z0 ) = E ~ (x0 ; y0 ; z0 ) + ~ xB ~ (x0 ; y0 ; z0 ) E c Usando-se a Eq. 11 ~ Ef (x0 ; y0 ; z0 ) = 1 2 c2 (13) 2 ^ ~ (x0 ; y0 ; z0 ) + x0 Qi E c2 R3 e agora usando-se explicitamente a Eq. 10 ~ f (x0 ; y0 ; z0 ) = Q ( 2 x0^i + y0^j + z0 k^) E R3 (14) (15) que comparada com a Eq. 12 mostra que Ef e paralelo a N~ . Isto e, e o campo efetivo e n~ao o campo eletrico que e normal ao condutor. Ja a descontinuidade do campo eletrico na superfcie do condutor deve estar relacionada com a densidade de carga supercial , ou seja ~ ~ 4 = E (x0 ; y0; z0 ) N (16) jN~ j e usando as Eqs. 10 e 12 sera p 4 Q (17) 4R x20 + y02 + z02 A integral de na superfcie do elipsoide de revoluc~ao [4], isto e, s 2 Z +R @x0 () 2 (x0 (); ) 1 d (18) @ R p e de fato igual a Q, com = y02 + z02. Figura 1. A esfera de raio R, carregada com carga Q, representada em tracejado, esta em repouso no sistema K 0 , o qual se move em relac~ao a K com velocidade ~ . K v^e a esfera como um elipsoide (traco cheio) contraido na direc~ao do movimento. = 143 Revista Brasileira de Ensino de F sica, vol. 23, no. 1, Mar co, 2001 IV Discuss~ ao n ^ versor da direc~ao que aponta da carga ao ponto consi- IV.a Os campos E interessante notar que os campos eletrico e magnetico se combinam na forca de Lorentz, produzindo forca normal ao elipsoide, como discutido na sec~ao anterior, mas no interior eles s~ao, separadamente, nulos. E se, generalizando demonstrac~ao conhecida no caso da esfera, consideramos os campos gerados pelas cargas nas duas sec~oes na superfcie do elipsoide determinadas pelos ^angulos solidos elementares convergentes de cada lado a um ponto interior qualquer, ver-se-a que de fato eles se anulam. IV.b Os potenciais Mais interessante e a discuss~ao dos potenciais porque nela entra, adicionalmente, a relev^ancia dos mesmos como entidades fsicas [5]. Na Introduc~ao armamos que a descoberta dos metais como condutores de eletricidade foi de muita import^ancia para a teoria do potencial. Mas na verdade os metais ou os eletrons metalicos fazem mais do que conduzirem bem: eles s~ao sensveis ao potencial. Uma pequena esfera neutra condutora, trazida as vizinhancas de um corpo eletrizado, adquire o potencial que existia no local, sem que tenha havido passagem de carga para ela e sem que seja um efeito de campo eletrico. Uma ligac~ao dela a terra mostrara que seu potencial era de fato n~ao nulo. Por isso podemos dizer que os eletrons metalicos sentem o potencial. Tudo isso parece claro com os condutores parados. Os potenciais da sec~ao 2, Eqs. 1-3, satisfazem a condic~ao de Lorentz (vale dizer, os potenciais s~ao retardados e n~ao instant^aneos). Apesar disso, a densidade de carga supercial da Eq. 17 e a de um elipsoide equipotencial eletrostatico com carga Q, e , que e dada por [6] x2 y2 + z 2 1=2 Q 0 0 0 e = (19) 4ab2 a4 + b4 sendo a o semi-eixo achatado e b o de revoluc~ao, que e igual a na Eq. 17, com b = R e = b=a: Porem, o potencial eletrostatico e correspondente [6] seria = Qparccosa=b = Qarccos=c (20) e b2 a2 derado na posic~ao retardada. Pode-se mostrar que este fator faz com que o potencial retardado Ur da carga em movimento torne-se, surpreendentemente, no mnimo, igual ao instant^aneo, sem distinc~ao entre aproximaca~o e afastamento. Ele e Ur (r; ) = r q Q 1 2 sen2 c2 (21) sendo r e as coordenadas polares agora instant^aneas do ponto considerado, estando o eixo polar na direca~o e sentido de ~ e a origem na carga em movimento. Para = 0, Ur e igual ao instant^aneo mas para > 0; Ur se torna maior, e tanto maior quanto maior for =c. E se ligassemos por um o condutor a `esfera' em movimento a uma outra, id^entica a ela e igualmente carregada, porem parada no sistema K , haveria passagem de carga da `esfera' de K 0 para a de K ? Parece que este deveria ser o caso. E interessante notar que no problema que estamos discutindo ocorre com o potencial diferentemente do que ocorre com a temperatura em termodin^amica relativstica [7]: nesta a temperatura atribuida a um corpo em movimento e menor do que a temperatura propria do mesmo, de forma que o calor tenderia a passar do corpo parado ao em movimento. As coisas cam mais complicadas - a menos que seja por desconhecimento do autor { com o potencial vetor, inexistente em K 0 mas diferente de zero em K . Este atribui mesmo a massa metalica um valor para essa grandeza, Eq. 9, mas isso n~ao quer dizer que os eletrons metalicos sejam sensveis a este potencial (embora o sejam a sua derivada no tempo, induc~ao eletromagnetica), como s~ao ao escalar. Mas os eletrons em pares bos^onicos dos metais no estado supercondutor [8] s~ao sensveis ao potencial vetor, que tende a se anular no seu interior. E neste caso, o que K poderia dizer do potencial vetor que atribui a massa metalica em movimento? Estas perguntas aparentemente sem resposta indicariam que ainda estaramos um pouco longe de entendermos bastante Zur elektrodynamik bewegter K orper (sobre a eletrodin^ amica dos corpos em movimento) [9], apesar dos progressos realizados nesses quase cem anos. R menor do que o da Eq. 9. Concluimos ent~ao que o retardo aumenta o potencial alem do valor esperado pela simples contrac~ao da esfera em elipsoide. Que o valor do potencial retardado seja maior que o instant^aneo parece paradoxal se simplesmente relocalizamos a posic~ao da carga no tempo retardado, pois isto daria para o potencial retardado em relac~ao ao instant^aneo valor menor quando a carga se aproximasse do ponto e maior quando se afastasse. Mas quando raciocinamos com cargas localizadas devemos corrigir o potencial pelo fator (1 ~ n^ =c) 1 da formula de Lienard-Wiechert, com V A transforma c~ ao de Lorentz e paradoxos O problema que estivemos estudando tem a virtude de colocar frente a frente a realidade macroscopica com conceitos que usualmente requerem uma revis~ao dramatica da forma com que encaramos aquela realidade. Refermo-nos aqui as transformac~oes de Lorentz entre pontos abstratos do espaco-tempo de dois referenciais. J.S. Bell [10] defende o ensino da Teoria da 144 Relatividade que comecasse reconhecendo que, idealmente, a orbita circular do eletron no atomo de hidrog^enio em movimento seria vista como elptica, achatada na direc~ao do movimento. E, qualitativamente, isto aconteceria pelo aumento da forca entre o proton e o eletron na direc~ao normal e sua diminuic~ao na direc~ao do movimento (como na Eq. 10, para o campo eletrico). E a linha inicialmente tentada por Lorentz e Poincare [11], mas logo abandonada `pelo fascinante arrojo do ... ponto de partida' da concepc~ao de Einstein [12], a qual o proprio Lorentz veio a aderir [13]. A linha LorentzPoincare foi cuidadosamente reintroduzida por Janossy [14], que claramente estabelece que a transformaca~o opera entre as coordenadas espaco-temporais ~x0i ; t0i no sistema K 0 , de pontos materiais i, que t^em coordenadas ~xi ; t isto e, simult^aneas, em K . Para se justicar a passagem da contrac~ao da orbita do atomo de hidrog^enio a contrac~ao de Lorentz, envolvendo corpos rgidos, podese invocar o Teorema de Feynman [15], (ou Teorema de Hellmann-Feynman) pelo qual, no quadro da Mec^anica Qu^antica n~ao relativstica, as forcas intra e intermoleculares s~ao de natureza eletrica. A restric~ao `n~ao relativstica' seria relevada pelo fato das interac~oes em jogo serem de curtssimo alcance. Tem que ser reconhecido que essa interpretac~ao encerra um certo carater conspiratorio, qual seja o da Natureza providenciar a contrac~ao de Lorentz e a dilatac~ao do tempo dos relogios em movimento de forma a fornecer em todos os sistemas em movimento uniforme relativo o mesmo valor para a velocidade da luz. Esse incoveniente e no entanto mitigado pela bem superior base fsica com que fundamenta a teoria quando comparada a arrojada mas bastante abstrata concepc~ao de Einstein. Figura 2. a) a regua R tem o mesmo comprimento que o orifcio AB , quando em repouso; b) R e vista encolhida pelo ch~ao, quando se move em relac~ao a ele, com a predic~ao que caira quando passar por ele; c) porem, segundo R, e AB que se contrai quando esta em movimento para a esquerda; d) o paradoxo e resolvido impondo-se que a contrac~ao se da nos corpos solidos, isto e, a esquerda de A e a direita de B . A clara atribuic~ao da contrac~ao a materia livra a G.F. Leal Ferreira teoria de indesejaveis paradoxos, como o da regua e do orifcio que discutimos agora brevemente. Na Fig. 2a, a regua R tem comprimento igual ao do orifcio AB , praticado no ch~ao, quando ela esta em repouso. Em 2b ela se move paralelamente ao ch~ao com velocidade v, em direc~ao ao orifcio, como vista do ch~ao. Como ela esta em movimento e se contrai, a conclus~ao e que devera cair ao passar por AB . Em 2c v^e-se a situac~ao do ponto de vista da regua em movimento: ela v^e o ch~ao movendo-se com v, e como AB esta contraido porque em movimento, a expectativa, conitante com a analise anterior, e que ela n~ao caira ao AB se situar por debaixo dela. Aqu atribuimos a contrac~ao ao espaco AB , mas para Lorentz-Poincare e a materia que se contrai. Assim, e o ch~ao a esquerda de A e a direita de B que se contraem e a conclus~ao que a regua tira, Fig. 2d, e a que caira no orifcio, extinguindo o paradoxo. Em [10] uma outra situac~ao constrangedora e discutida. Agradecimentos O autor agradece ao CNPq a bolsa de produtividade. References [1] P. Devaux, Histoire de l' Eletricit e, Presses Universitaires de France, colec~ao `Que sais je' 1954, cap.II. [2] W.G.V. Rosser, Classical Electromagnetism, Butterworths, Londres, 1968, Cap.6. [3] R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, The Feynman Lectures, vol.II, Addison- Wesley, Reading (1965), Cap.26. [4] R. Courant, Calculo Diferencial e Integral, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1952, Cap.IV [5] E.J. Konopinski, Amer. J. Phys., 46, 499 (1978). [6] L. Landau e E. Lifchitz, Electrodynamique des millieux continus, Edi c~oes MIR, 1969, Cap.1 [7] R. Tolman, Relativity, Thermodynamics and Cosmology, Oxford at Clarendon Press, 1934, paragrafos 69 e 70. [8] Ref. 3, Vol.III, Cap.21. [9] H.A. Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski and H. Weil, The Principle of Relativity, Dover Public., pg.35. [10] J.S. Bell, Speakable and unspeakable in quantum mechanics, Cambridge University Press, Cambridge, 1987, Cap.9. [11] H.A. Lorentz, The theory of electrons, Dover Publ., Nova York, 1952, Cap.V. [12] Ref.10, paragrafo 194, pag.230. [13] Ref.10, `Notes', paragrafo 72 , pag.321 [14] L. Janossy, Theory of Relativity based on Physical Reality, Akad emiai Kiado, Budapest, 1971. [15] R.P. Feynman, Phys. Rev., 56, 340 (1939).