A MULHER NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: IDEOLOGIA E INDIVIDUALIZAÇÃO DO SUJEITO * Gisele Pinheiro dos Santos RESUMO: Este Trabalho de Conclusão de Curso teve por objetivo compreender o processo de produção de sentidos sobre a beleza feminina no discurso publicitário, analisando discursivamente o slogan “Você pode ser o que quiser”, da empresa de cosméticos O Boticário, a partir do referencial teórico da Análise do Discurso. Os resultados da análise permitiram-nos perceber os efeitos ideológicos na propaganda do Boticário, evidenciando que ao mesmo tempo em que o discurso publicitário apresenta ao sujeito uma liberdade de escolha, submete-o cada vez mais ao mercado de consumo. Palavras-chave: Sujeito-mulher; Beleza; Discurso da publicidade ABSTRACT: The goal of this paper is to comprehend the process of sense production in relation to female beauty in the advertising discourse by analyzing the slogan “You can be whatever you want” by Brazilian cosmetics company O Boticário on the basis of the theoretical referential of the Discourse Analysis. The results of this analysis allow us to perceive the ideological effects in the O Boticário’s advertisement, evincing that the advertising discourse offers the citizen a freedom of choice and, at the same time, submits him to the consumption market increasingly. Keys words: Woman citizen; Beauty; Publicity discourse INTRODUÇÃO O século XX foi uma época de significativas mudanças para as mulheres, não apenas por sua efetiva participação no mercado de trabalho, mas pela transformação de sua vida privada, de sua relação com o corpo, pela construção de sua própria sexualidade. No livro O mundo das mulheres (2007), o sociólogo Alain Touraine afirma que as mulheres trazem em seu interior o desejo de descobrirem-se a si próprias e procuram experimentar uma vida transformada por elas, construindo uma imagem de si como mulher. A construção de si, de acordo com o autor, é construção de uma sexualidade através de uma * [email protected] 2 experiência do corpo, na qual o sexo ou o desejo sexual é um de seus aspectos principais. Nesse sentido, o corpo apresenta elevada importância como espaço de construção de si, o que pode explicar o fato de muitas mulheres desejarem transformá-lo por meio da maquiagem e tratamentos estéticos ou, melhor dizendo, o fato de a sociedade de consumo converter a beleza corpórea em objeto de desejo. Neste trabalho, procuramos compreender o processo de produção de sentidos sobre a beleza feminina no discurso publicitário; mais precisamente, como o discurso da mídia produz sentidos sobre o sujeito-mulher, interferindo em seus processos de identificação. Selecionamos como corpus de análise o slogan “Você pode ser o que quiser”, da empresa de cosméticos O Boticário, tendo como referencial teórico e metodológico a Análise do Discurso. Estruturamos o nosso trabalho em três partes. Em “Sujeito e sentido: uma perspectiva discursiva”, apresentamos alguns conceitos sobre a Análise do Discurso, assim como a constituição de nosso corpus de análise. Na segunda parte, “Língua e Memória”, fizemos um breve percurso pelos sentidos sobre a beleza feminina em algumas épocas a fim de relacionar dizeres presentes e dizeres armazenados na memória. E em “Texto e Linguagem: os sentidos tomam corpo” procedemos à análise lingüística e discursiva do nosso corpus “Você pode ser o que quiser”. As “Considerações finais”, a modo de um fecho, que se cobra de um autor, trazem alguns resultados que abrem caminhos para novas pesquisas. 1. SUJEITO E SENTIDO: UMA PERSPECTIVA DISCURSIVA A Análise do Discurso é uma área do conhecimento que trata das palavras em movimento e percorre alguns caminhos para compreender de que modo elas significam, uma vez que os sentidos não estão soltos e as palavras são múltiplas; elas não significam o tempo todo da mesma maneira, mas são carregadas de sentidos; sentidos que podem ser sempre outros, mas não qualquer um, porque temos a história. História e sentidos são, pois, inseparáveis para a AD. A reflexão promovida pela AD, de origem francesa, surge na década de 60 com Michel Pêcheux e resulta da relação entre as seguintes áreas do conhecimento: Materialismo Histórico, Lingüística e Psicanálise, tendo cada uma delas a sua especificidade. À luz desses campos de conhecimento, a Análise do Discurso constitui o discurso como novo objeto de estudo, o que, de acordo com Orlandi, afeta essas formas de conhecimento em seu conjunto. 3 Segundo a autora, “o discurso é palavra em movimento, prática de linguagem: com o discurso observa-se o homem falando. (...) O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana” (Idem, p. 15). Desse modo, a Análise do Discurso visa compreender e refletir sobre como um objeto simbólico, no nosso caso um slogan1 publicitário, produz sentidos e de que forma ele constitui significâncias para e por sujeitos. Essa reflexão permite ainda descobrir outras maneiras de compreender e produzir novos sentidos, rompendo, assim, com os sentidos já estabilizados, produzindo novas práticas de leitura. É na língua que o sentido é construído na relação do sujeito com a história. O sujeito discursivo atravessa a linguagem e ao mesmo tempo é atravessado por ela, através do simbólico. Parafraseando Orlandi (2003), podemos dizer que, em nosso trabalho, é no corpo a corpo sobre o corpo com a linguagem que o sujeito (se) diz. Ao dizer, o sujeito significa a partir de condições determinadas, de um lado pela língua, de outro pela história, pela memória do já-dito. Para Orlandi, a memória é “um saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, pela memória do já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra” (Idem, p. 31). Nesse sentido, as palavras dialogam umas com as outras e os dizeres evocam outros dizeres “realizados, imaginados ou possíveis” (p. 39). A memória, por sua vez, é afetada pelo esquecimento. Os sujeitos “esquecem” o que já foi dito – um esquecimento inconsciente – para ao se identificarem com o que dizem se constituírem em sujeitos. Há duas formas de esquecimento no discurso, segundo a AD (PÊCHEUX, 1988): o esquecimento enunciativo e o esquecimento ideológico. O primeiro produz no sujeito uma espécie de “ilusão referencial”, fazendo-o acreditar que existe uma relação direta entre pensamento / linguagem / mundo e dando a impressão de que o que ele diz só pode ser dito com aquelas palavras e não de outra forma. O outro esquecimento encontra-se na ordem do inconsciente e refere-se à maneira como o sujeito é afetado pela ideologia. Esse esquecimento dá ao sujeito a ilusão de ser ele a origem do discurso, como se não houvesse sentidos pré-existentes e as palavras significassem apenas o que ele quer. 1 O termo “slogan”, tal como o conhecemos, é de origem francesa. Entretanto, ele remonta à expressão escocesa “sluagh-ghairm”, que significa “grito de guerra de um clã”. Inicialmente usado na França com sentido pejorativo, o termo “slogan” designava doutrinamento, propaganda, reclame. Iasbeck (2002) diz que no século XVI, a Inglaterra transformou esse termo em “catchword” (palavra-engodo) e que no século XIX ele passou a significar para os ingleses, a divisa de um partido político, de uma ideologia ou de uma linha filosófica. Coube aos Estados Unidos, tempos depois, tornar o “slogan” conhecido em todo o mundo na acepção de divisa comercial. 4 Orlandi (2003) diz que tais ilusões são necessárias a fim de que a linguagem funcione na constituição do sujeito e na produção de sentidos. Falar em sentidos é falar em condições de produção e gostaríamos de destacar que os sentidos não estão no dizer em si mesmo, muito menos nas intenções de quem diz. É preciso situá-los em suas condições de produção, que compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação, bem como o contexto sócio-histórico, ideológico. Deve-se, assim, estabelecer as relações que eles mantêm com sua memória e também remetê-los a uma formação discursiva – e não outra – a fim de compreender os processos discursivos que aí se dão. É importante lembrar ainda que nos processos discursivos há todo um jogo imaginário que preside os dizeres, um jogo de situações e posições no qual os sujeitos fazem a imagem de si e dos outros. Essas imagens são denominadas por Pêcheux (1990) como formações imaginárias e têm a ver com o lugar de onde o sujeito fala e evidenciam as relações de força no discurso. Desse modo, na relação discursiva, são as projeções dessas imagens que constituem as diferentes posições e possibilitam passar de situações empíricas para as posições de sujeito no discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. Nas relações discursivas, palavras, sentidos e sujeitos estão sempre em movimento, significando em todo o tempo de muitas e diversas maneiras, mas determinadas pela História. Por esse motivo, palavras iguais podem ter outros significados quando se inscrevem em formações discursivas diferentes – religiosa, jurídica, pedagógica, política... - e para que haja sentido o homem é levado a interpretar. Daí pode-se dizer que o gesto de interpretação é que efetiva a relação do sujeito com a língua, com a história e com os sentidos. Não há sentido sem interpretação e este fato confirma a presença da ideologia. A ideologia é essencial para a construção do sujeito e dos sentidos. A língua é a materialidade específica do discurso, sendo este materialidade específica da ideologia. Assim, não há discurso sem sujeito, nem tampouco sujeito sem ideologia e é desse modo que a língua faz sentido. “O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer” (ORLANDI, 2003:46). O modo de interpelação do sujeito capitalista pela ideologia “faz intervir o direito, a lógica, a identificação” (idem:104). Com seus direitos e deveres, o sujeito do capitalismo ou “sujeito jurídico” tem a impressão de ser um sujeito livre em suas escolhas, com autonomia e liberdade individual e a ilusão dessa autonomia constituída ideologicamente é resultado de uma estrutura social bem definida: a sociedade capitalista. O Estado interfere nos processos de individualização do sujeito, condição essencial para que se possa governar. Submetendo o sujeito às leis, e ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável, o Estado 5 “individualiza a forma sujeito histórica produzindo diferentes efeitos de identificação do sujeito na produção dos sentidos” (ibidem:106). Em nosso trabalho, estamos buscando compreender como o espaço enunciativo publicitário individualiza essa forma-sujeito histórica, como produz sentidos sobre a mulher moderna. De outra perspectiva teórica, Bahktin (1997:41) afirma que “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”. Vale ainda acrescentar que a ideologia adquire outros sentidos no campo dos estudos da linguagem, diferentemente da Sociologia e do Materialismo Histórico, em que é definida, de modo geral, como “ocultação”. Em termos discursivos, ela é concebida como mecanismo fundamental do processo de significação, ou seja, enquanto prática significante, a ideologia surge como resultado da relação necessária do sujeito com a língua e a história para que exista sentido. Essa relação é possível uma vez que não existe uma relação unívoca entre linguagem/ mundo/pensamento. Dessa forma, a ideologia “intervém com seu modo de funcionamento imaginário” (ORLANDI, 2003:48). Em suma, compreender a ideologia na relação com a produção de sentidos é compreender que a ideologia é que possibilita a relação do sujeito com o sentido e é por meio dela que o sujeito se constitui e significa o mundo e a si mesmo. A partir daí questionamos: Como essas relações se dão no discurso publicitário que diz sobre a mulher, seu corpo, sua beleza, enfim, seu ser? Quando pensamos a análise, um dos pontos mais importantes a considerar, é, segundo a AD, a constituição do corpus, uma vez que “Decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas” (ORLANDI, 2003:63) O corpus resulta de uma construção do próprio analista, que seleciona o material seguindo os objetivos de sua análise e de sua pergunta discursiva. Em nosso caso, partimos da seguinte questão: Como se formulam os sentidos sobre a beleza da mulher no discurso publicitário e que efeitos eles produzem nos processos de individualização do sujeito? Trazemos como base material para nossa análise o slogan “Você pode ser o que quiser”, da marca O Boticário, assim como algumas propagandas dessa mesma empresa veiculadas em revistas e na internet a partir de 2005. A história do Boticário começou quando o farmacêutico Miguel Krigsner abriu uma pequena farmácia de manipulação no centro de Curitiba, em 1977. Hoje é uma das maiores empresas de cosméticos do Brasil, com aproximadamente 2.400 lojas e a maior rede de 6 franquias do mundo neste mercado. No Brasil, a empresa possui mais de 2.300 lojas, além de estar presente também no exterior, em 24 países. Escolhemos o texto “Você pode ser o que quiser” como unidade de análise por se tratar do slogan da empresa e não apenas de um determinado produto, e que vem se repetindo desde 2005. O próprio fato de um texto publicitário ser anunciado por uma empresa de cosméticos renomada, como o Boticário, e não por uma marca qualquer, produz o efeito de legitimidade ao dito, revelando que o lugar de onde se fala é constitutivo do dizer, o que representa condição de produção fundamental para a aceitação do que se diz. Essa observação nos permite, ainda, remeter o enunciado da propaganda do Boticário a toda uma filiação de dizeres sobre a beleza feminina e a situá-lo em sua historicidade, mostrando seu caráter ideológico. O dizer tem história. Os sentidos não se esgotam no imediato, assim como também não há um sentido único e prévio, mas um sentido determinado historicamente na relação do sujeito com a língua. 2. LÍNGUA E MEMÓRIA Tomando como base os pressupostos teóricos e metodológicos apresentados, iremos percorrer alguns caminhos de sentidos atribuídos à beleza, em diversas épocas, em busca dos sentidos e traçados ideológicos que a cercam, assim como os discursos que a legitimam. Refletiremos, assim, sobre como se dão os processos de individualização do sujeito nesses discursos, objetivando uma maior compreensão de nosso corpus: “Você pode ser o que quiser”. Desde a Grécia antiga até os dias atuais, artistas, filósofos, pintores e poetas se relacionaram com a idéia de belo sob diferentes perspectivas e olhares, evidenciando que a beleza é um referente imaginário, produzido em condições de produção determinadas. Enquanto para uns a beleza era a mais perfeita harmonia entre cores e formas, para outros representava uma tensão dramática, melancólica e obscura. Com ideais estéticos peculiares, cada época problematizou o conceito de belo à sua maneira e a definição de beleza passou por várias transformações através dos séculos. Para refletir sobre esse assunto, tomamos como referência o livro “História da Beleza”, de Umberto Eco (2004). A beleza, segundo ele, jamais foi algo “absoluto e imutável”, mas assumiu diversas faces conforme o período histórico. E isso não apenas no 7 que se refere à beleza física (feminina, masculina ou da natureza), mas também em relação à beleza das divindades, das idéias e das artes em geral. Na Antiguidade clássica, por exemplo, a idéia de proporção e harmonia revelou-se um dos traços marcantes da beleza. A partir de uma visão “estético-matemática”, em que a ordem e as representações numéricas eram essenciais para a compreensão do universo e do corpo humano, os gregos transformaram a simetria em fator determinante para a definição de belo. Assim, um ser, objeto ou coisa para ser considerado belo deveria obedecer ao princípio do equilíbrio entre realidades opostas. De acordo com esse princípio, a harmonia nasce da contínua tensão entre realidades contraditórias, uma não anula a outra, mas ambas se neutralizam e se tornam harmônicas justamente por se contraporem, dando origem à simetria. Eco (idem:72) cita como exemplo a antítese entre o amor e o ódio, a paz e a guerra, o bem e o mal e esclarece que “a harmonia não é ausência, mas equilíbrio de contrastes”. Nesse sentido, na Grécia antiga, a representação visual de uma bela donzela seguia as regras da justa proporção e harmonia. O artista ao criar uma imagem tinha o zelo de criar iguais todas as partes do corpo, desenvolvendo-o de maneira que seus membros mantivessem uma justa relação harmônica e regulando-o conforme as leis matemáticas que regem o universo. Surpreendentemente, o princípio da proporção não era privilégio das formas belas. Os seres feios, segundo o autor, também compõem a harmonia do mundo por meio da proporção e contrastes e a beleza nasce desses contrastes, isto é, da diferença.2 No capítulo dedicado à beleza dos monstros, ele enfatiza: “embora existam seres e coisas feias, a arte tem o poder de representá-los de modo belo e a Beleza (ou pelo menos a fidelidade artística) dessa imitação torna o feio aceitável” (ibidem:133). É interessante observar que muitos séculos depois, em uma sociedade estruturada social e economicamente diferente, sujeitos e sentidos se constituem e se produzem de forma diversa, há outros processos de individualização do sujeito em relação ao Estado. A feiúra já não é mais bem aceita como nas representações artísticas gregas. Ser considerado feio, ou estar fora do padrão vigente, é não se adequar ao mundo social, é estar “à parte”. Assim, o excesso de peso ou ausência de um rosto simétrico, de acordo com o modelo apresentado pela mídia, em nossa época, produz um certo estranhamento estético. Atravessada por questões 2 Para Saussure (1984), “na língua só existem diferenças”. Os elementos da linguagem só adquirem valor enquanto se opõem a outros, enquanto não se confundem com outros; não é, portanto, sua qualidade positiva que os caracteriza, mas, antes, sua qualidade opositiva e seu valor diferencial. A noção de valor se refere à comparação e oposições funcionais entre os termos do sistema lingüístico. 8 ideológicas, a percepção estética do sujeito é acessada pela memória metálica3, a partir de imagens identitárias. O sujeito reconhece a si mesmo na relação com o outro e estar em desacordo com a imagem que se tem do outro se torna muitas vezes motivo de depressão; a diferença produz ansiedade e angústia. A impressão que se tem do outro varia conforme a apresentação do corpo (beleza) no meio social e aquilo que não se aproxima do padrão de beleza estabelecido ideologicamente produz formas de rejeição. Mas voltemos ao trabalho de Eco. O ideal de beleza no período medieval estava intimamente ligado à proporção, à integridade, à clareza ou luminosidade e ao simbolismo das cores. Nas palavras de Tomás de Aquino (século XIII), citado por Eco, “o belo é constituído tanto pelo esplendor quanto pelas devidas proporções, de fato Dionísio afirma que Deus é belo como causa do esplendor e da harmonia de todas as coisas” (idem:100). Por essa razão, a beleza do corpo, segundo ele, consistia em ter os membros bem proporcionados, com a “devida luminosidade da cor”. A Idade Média retomou e re-significou a tradição grega, que afirmava ser a beleza resultado da relação harmônica entre as várias partes de um todo. Houve um deslocamento de sentidos sobre a idéia de proporção no decorrer do tempo. A proporção, entendida pelos gregos, como critério de beleza, não era a mesma que artistas medievais e renascentistas exploravam em suas obras de arte. Na Idade Média, segundo Eco, “manifestava-se uma disparidade entre o ideal da proporção e aquilo que se representava ou se construía como proporcionado”. Além da proporção, na cultura medieval, a cor também era um elemento essencial na concepção do belo. O próprio ar é belo, dizia o etimologista Isidoro (560-636), também citado por Eco, “porque aes-aeris”, assim denominado por apresentar o esplendor do aurum, ou seja, do ouro. Em sua definição, o ar resplandece como o ouro quando tocado pela luz. A beleza das pedras preciosas está nas cores, que nada mais são que a luz do sol e a matéria purificada. Os olhos são belos se luminosos, sobretudo se verde-azulados. A pele rosada simboliza umas das mais importantes qualidades na beleza de um corpo. Ainda segundo ele: “beleza física vem de venis, isto é, do sangue enquanto formosus, “belo”, vem de formo, que é o calor que move o sangue; de sangue vem também sanus, que se diz de quem não é pálido (ibidem:113). 3 De acordo com Orlandi (2005), memória metálica é a memória produzida pela mídia, pelas novas tecnologias de linguagem. Caracteriza-se por ser horizontal, não se produz pela historicidade, mas por um constructo técnico (televisão, rádio, computador, entre outros). Não há filiação de sentidos, apenas estratificação, repetição. 9 Em representações artísticas, discussões filosóficas, assim como no comportamento da sociedade da época, a simbologia das cores estava sempre presente. Eco esclarece que a riqueza e esplendor de determinadas cores eram sinônimo de poder, objeto de desejo. Para exibir seu poder, os senhores enfeitavam-se com jóias, ouro e usavam roupas de tonalidades mais preciosas, como a púrpura. A sociedade medieval era composta por pessoas ricas e influentes, mas também por pobres e deserdados e a diferença entre eles era ainda mais acentuada em suas vestimentas. Enquanto os ricos vestiam-se com roupas artificialmente coloridas, que passavam por complicadas elaborações químicas, os pobres usavam tecidos de cores pálidas, tecidos brutos, que de tanto consumidos pelo uso aparentavam estar sujos. O vermelho, o verde, e também ornamentos de ouro e pedras preciosas representavam a riqueza. Dessa forma, podemos compreender a cor como um referente simbólico significativo, que interfere nos processos de individualização do sujeito e também representa relações de força no jogo dos sentidos. O Boticário, em algumas de suas campanhas publicitárias, trabalha a simbologia das cores e a mulher do período medieval, situando-a num eixo temporal a partir da atualidade, encontro de uma memória com uma atualidade. Um acontecimento, dirá Pêcheux (1990). No site oficial da empresa, encontramos a seguinte descrição para divulgar a linha outono/inverno 2007 de seus produtos: ROYALTY COLLECTION REVELA NOVA DINASTIA DE BELEZA O luxo e a beleza da monarquia européia, em alta na moda atual, inspiram a nova coleção de maquiagem O Boticário Royalty Collection. Os novos produtos trazem uma alquimia de cores da realeza, do campo e da magia medievais. Desenvolvida com a consultoria de Fernando Torquatto, maquiador e consultor estratégico da marca, a coleção permite que a beleza de cada mulher seja valorizada com muito encantamento e sedução. “A estação celebrará um retorno aos tempos da nobreza, do luxo, em que a mulher torna-se o que quiser: uma rainha absoluta, uma feiticeira misteriosa ou uma camponesa de olhar ingênuo, mas sensual. É a estação do sonho”, diz Fernando Torquatto. Para a Análise do Discurso, nada na linguagem é indiferente ao sentido: as palavras, as construções, a ligação entre as unidades, entre outros. É interessante destacar nesse texto algumas palavras tais como “dinastia”, “luxo”, “monarquia”, “realeza” e “nobreza”. São palavras que indicam relações de poder, demarcando hierarquias no meio social. Embora os discursos publicitários generalizem um ideal estético para “valorizar a beleza de cada mulher”, só algumas mulheres podem ter acesso aos produtos. Os cosméticos sofisticados representam, nesse sentido, referenciais de uma determinada classe da sociedade. 10 “O luxo e beleza da monarquia européia” trazem em si uma memória, considerando que o padrão de beleza europeu há muito é tido como referência pela cultura ocidental. O sujeito é atraído pelos sentidos de uma beleza considerada ideal, nobre, e em várias épocas a tem buscado, ainda que não seja possível atingi-la. É a ideologia presente nas formações discursivas que afeta a relação do sujeito com o mundo, com o outro e consigo mesmo. A interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia apaga necessariamente a inscrição da língua na história, produzindo, assim, a evidência do sentido e do sujeito, embora nem sujeitos nem sentidos sejam transparentes. Os sentidos das palavras derivam de um conjunto de formações discursivas com uma dominante. Mas vale lembrar que não apenas as palavras significam. O lugar social do falante e do ouvinte também carrega vários sentidos, o que nos levou a perguntar quem seria o consultor da marca O Boticário, mencionado no site. Fernando Torquatto, além de consultor de beleza, é conhecido como o “famoso maquiador e fotógrafo das celebridades”. Durante o evento de lançamento da coleção Royalty, do Boticário, ele revelou alguns de seus “artífices” sobre beleza, ensinando às mulheres como fazer uma bela auto-maquiagem. Escolher um profissional para dar “dicas” sobre moda e beleza não é, portanto, algo aleatório. Essa escolha coincide com os interesses da Instituição, no caso a empresa de cosméticos, e passa por critérios de avaliação do profissional escolhido, considerando o reconhecimento por sua atuação no mercado como forma de garantir a legitimidade do discurso. Desse modo, os produtos do Boticário, são apresentados, na voz de “especialistas da beleza”, como um passaporte para o mundo do sonho, onde a mulher “torna-se o que quiser”. Para Orlandi (2003:42), “os sentidos não estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas”. As palavras significam de modo diferente de acordo com as posições daqueles que as empregam, isto é, elas mudam de sentido conforme as formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Por isso é importante lembrar da força que a imagem tem na constituição do dizer. “O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem” (idem). Assim, a imagem que temos de um consultor de moda/beleza não surge do nada. Ela se constitui entre o simbólico e o político, em processos que conectam discursos e instituições. Como a sociedade se constitui por relações hierarquizadas, são relações de força4, sustentadas no poder de diferentes lugares, que significam na comunicação. O lugar do qual o sujeito fala é constitutivo do que diz. Quando o sujeito fala a partir do lugar de 4 As relações de força representam os lugares sociais dos interlocutores e sua posição relativa no discurso. (ORLANDI, 2001) 11 consultor de beleza, suas palavras produzem efeitos de sentido diferentes do que se ele falasse de outro lugar. Na versão para revista5, referente a essa mesma coleção de produtos, O Boticário retoma inclusive a magia das histórias de contos de fada, como no texto: “Batom royalty com brilho de jóia. Essencial num tempo em que só o beijo de um príncipe podia quebrar um feitiço”. Alexandra Guedes, em “Publicidade: Um discurso de sedução” (1997), diz que existe uma contínua dependência do sujeito não tanto face ao consumo de produtos em si e por si, mas, especialmente, face a todo o mundo de significação que a publicidade constrói em torno deles e que, por ser experimentado como real pelo sujeito, vai progressivamente ganhando um estatuto existencial de autonomia e verdade. Todo o tempo, os discursos publicitários indicam o que é prestigiado ou não em termos de tratamentos estéticos, enfatizando o que deve ser consumido e como deve ser consumido. Adquirir um produto, não é, pois, usufruir apenas de suas qualidades intrínsecas, mas fazer parte do universo que os anúncios associam a esse produto. A simples aquisição dá ao sujeito a impressão de que ele pode alcançar outros bens não materiais como “a aceitação e o prestígio social, a beleza, a felicidade, a realização pessoal, o poder (grifo nosso), num processo em que os bens “intangíveis” se compram e se vendem sob a forma de mercadoria” (idem: 24). Dando um salto histórico, considerando os limites e o contexto histórico mais próximo deste trabalho, podemos dizer, ainda com Eco, que no início do século XX, houve uma explosão de ideais estéticos inovadores com a proposta dos movimentos de vanguarda européia, cujo experimentalismo artístico revolucionou o campo das artes, propondo uma nova interpretação para a idéia comum que os homens tinham de beleza. Segundo Eco, esse período tornou-se o cenário de um intenso conflito entre a “beleza da provocação” e a “beleza do consumo”. De um lado, a arte das vanguardas, futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, entre outros, buscava transgredir todos os cânones estéticos respeitados até aquele momento e propunha ensinar ao homem interpretar o mundo com olhos diversos. De outro, os apreciadores dessa arte mantinham ainda estreitas relações com o cânone da moda, vestindose de acordo com as tendências do momento e seguindo os padrões de beleza ditados pelo mercado de consumo, os quais a arte das vanguardas se opôs por mais de cinqüenta anos. 5 Publicado na revista NOVA em junho de 2007. 12 A beleza, na arte desse período, não mais se resumia na idéia de formas harmônicas, como na Grécia Antiga, mas, sim, na concepção de obras consideradas artisticamente belas. Através do contato com as vanguardas européias, artistas brasileiros iniciaram uma busca por novos rumos artísticos, dando origem ao movimento modernista, do qual a Semana de Arte Moderna – 1922 – se tornou o brado coletivo principal. A idéia era “deglutir” a cultura européia e renovar a arte a partir da valorização de elementos tipicamente nacionais. Uma das primeiras artistas brasileiras a adotar tendências modernistas em seus trabalhos foi a pintora Tarsila do Amaral, mesmo não tendo participado efetivamente da Semana de Arte Moderna. Numa edição comemorativa, O Boticário criou o perfume “Tarsila Rouge” como homenagem ao Dia Internacional da Mulher, divulgado na revista Veja em 08 de março de 2006. TARSILA DO AMARAL. UMA DAS PRIMEIRAS BRASILEIRAS A ACREDITAR QUE VOCÊ PODE SER O QUE QUISER. Tarsila do Amaral foi uma pintora que revolucionou, mesmo dentro de um grupo de inovadores. O “Manteau Rouge” (Manto Vermelho) é seu auto-retrato, criado após um jantar em Paris – em homenagem a Santos Dumont. Ela surgiu de vermelho, envolvente, marcante. E sua imagem foi motivo de inspiração também para O Boticário na criação de Tarsila Rouge. Conservadores, modernistas e moderados. Ninguém consegue ficar indiferente à atitude de quem é única. Assim como você. Através da intertextualidade, diálogo entre textos (imagens) e entre tempos, O Boticário retoma formulações de manifestações artísticas do século XX, mas ao mesmo tempo produz um deslocamento de sentidos, produzindo um discurso próprio a fim de seduzir o sujeito-mulher para o consumo. Nesse texto, há um deslizamento de sentidos, na medida em que Tarsila do Amaral inovou como pintora não por pintar sua própria imagem, mas por apresentar características inovadoras do Modernismo em seus trabalhos. Orlandi (2005) afirma que sujeito e sentido se repetem e se deslocam pela própria natureza incompleta do sujeito, dos sentidos e da linguagem. Mesmo que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode ser um deslocamento nessa rede. Sujeito e sentido poderiam ser os mesmos, contudo derivam para outros sentidos. A deriva e o deslize são, portanto, o efeito metafórico, a palavra que dialoga com outras. Nas palavras de Orlandi (idem:103), “é isso que significa a determinação histórica dos sujeitos e dos sentidos: nem fixados ad eternum, nem desligados como se pudessem ser 13 quaisquer uns. É porque é histórico (não natural) é que muda e é porque é histórico que se mantém”. 3. TEXTO E LINGUAGEM: OS SENTIDOS TOMAM CORPO O texto é uma unidade significativa, unidade de análise, materialidade concreta do discurso. Enquanto forma material – significante e significada – o texto é a unidade fundamental da linguagem, quando se pensa seu funcionamento, isto é, o fato de que ela faz sentido. Orlandi (2005:17) afirma que “a linguagem tende para a textualidade, tende a formular-se, dar-se corpo”. O texto é, assim, espaço de trabalho da linguagem. Ainda na visão da autora, o texto é a unidade que o analista do discurso tem diante de si e da qual ele parte. A finalidade é mostrar os mecanismos dos processos de significação que regulam a textualização da discursividade, em outras palavras, como um texto produz sentido. Desse modo, o analista remete o texto a um discurso, que por sua vez, se estabelece com um discurso anterior e aponta sempre para outros. Na perspectiva de uma análise discursiva, considera-se a “materialidade da linguagem”, ou seja, sua não-transparência, e para que se tenha acesso a ela é preciso trabalhar sua espessura semântica-lingüística, histórica e gramatical. “Em uma palavra, sua discursividade”, como escreve Orlandi (idem:21). Comecemos então por analisar a estrutura gramatical do texto “Você pode ser o que quiser”. Podemos dizer que esse enunciado contém duas orações, sendo a segunda uma oração subordinada adjetiva restritiva, conforme a chamada gramática tradicional. Temos a oração principal “Você pode ser o” (aquilo) e a oração adjetiva “que quiser” – que está funcionando como adjunto adnominal do pronome demonstrativo “o”, predicativo do sujeito. A Nova gramática do português contemporâneo, de Celso Cunha (1985), define essa oração da seguinte forma: “As orações subordinadas adjetivas vêm normalmente introduzidas por um pronome relativo, e exercem a função de adjunto adnominal de um substantivo ou pronome antecedente”. (:586) As orações subordinadas restritivas, como o próprio nome diz, restringem o significado do termo antecedente e são imprescindíveis para o sentido da frase. Fernando Felício Pachi Filho, em tese de doutoramento (2008), analisa as orações relativas a partir de uma leitura de Paul Henry. Segundo este trabalho, o funcionamento das relativas – restritivas e explicativas – oculta concepções rivais sobre a relação pensamento e 14 discurso. Assim, a restritiva, conforme observado acima, especificaria uma particularidade do antecedente. Essa particularidade permitiria uma identificação no mundo exterior e do pensamento, constituindo o objeto do discurso em “objeto exterior ao discurso”. A classificação gramatical, nesse sentido, teria como base a ordem do pensamento, por meio de um sujeito racional e universal, a fim de estabelecer a ordem do discurso como um reflexo da ordem do pensamento. Na Análise do Discurso, procura-se compreender a relação entre língua e discurso, sem, contudo, reduzir o discurso à língua, como acontece em concepções gramaticais e lingüísticas. Desse modo, em sua tese, Fernando Felício diz que Paul Henry critica o fato da relativa restritiva servir unicamente para limitar a idéia expressa como atributo do nome. Diante da dificuldade de se entender o funcionamento de tais orações a partir de definições gramaticais que consideram o sujeito a origem de seu dizer e busca somente classificar a ruptura ocorrida na linearidade lingüística, Henry apresenta o conceito de “saturação” para refletir sobre o funcionamento entre orações restritivas e explicativas. Esse conceito refere-se a formulações que podem entrar em relação de “paráfrase discursiva” conforme as condições de produção e interpretação. A formulação será saturada se puder ser situada em relação à outra formulação. Este “pôr em relação” diz respeito a relações intraseqüências e inter-seqüências, fazendo intervir aí os critérios “anterioridade” e “posterioridade” na cadeia. A relação inter-seqüência designa a modalidade de relação de duas seqüências discursivas diferentes que podem acontecer em relação a ela própria ou com outra seqüência. Tanto no caso das orações adjetivas restritivas quanto no caso das explicativas, o pronome relativo firma a relação entre o antecedente e a relativa como uma relação intraseqüência. No funcionamento da restritiva apaga-se a relação inter-seqüência, o que não ocorre no funcionamento da explicativa. Esse efeito de apagamento da relação inter-seqüência observado na adjetiva restritiva, na visão do autor, dá origem à ilusão do sujeito de ser a fonte do que ele diz. No caso do nosso slogan, tem-se a ilusão de um sujeito livre em suas escolhas, um sujeito que pode ser o que quiser. O verbo “poder”, presente neste slogan, também merece uma reflexão. Alguns lingüistas consideram o verbo “poder” um modalizador da língua portuguesa por contribuir para o sentido do discurso, determinando o modo como se diz. De acordo com Dubois (1973, p. 413): 15 Chamam-se modais, ou auxiliares modais, a classe dos auxiliares do verbo que exprimem as modalidades lógicas (contingente vs. necessário, provável vs. possível): o sujeito considera a ação expressa pelo verbo como possível, necessária, como uma conseqüência lógica ou como resultado de uma decisão, etc. Auxiliares modais são poder e dever, seguidos de infinitivo. Lobato (1975), ao tratar da “unidade de comportamento” desse verbo, destaca que a determinação dos valores semânticos do verbo “poder” depende das diferentes forças ilocutórias dos enunciados. Assim, além de expressar possibilidade, permissão, capacidade, o verbo “poder” também apresenta outros valores como “eventualidade, ordem, sugestão, solicitação”. Em nossa análise, consideramos o emprego do verbo “poder” não como mero complemento do verbo principal, como o apresenta a gramática normativa, mas um verbo polissêmico, que produz diferentes efeitos de sentido. Vejamos algumas paráfrases possíveis que podemos construir como um procedimento de análise: (1) Você é capaz de ser o que quiser. (2) Você tem a possibilidade de ser o que quiser. (3) Você tem o poder de ser o que quiser. (4) Você tem o direito de ser o que quiser. (5) Você deve ser o que quiser. Qual a diferença entre essas construções em termos de efeito de sentidos? Com o dito significa em relação ao não dito, às outras formulações possíveis? Como determinar os limites entre o sentido de uma e de outra? De acordo com Orlandi (2001), do ponto de vista discursivo, não existe o mesmo no diferente; formas diferentes produzem diferentes significados. As paráfrases também evidenciam relações distintas entre interlocutores. Nas construções estão as pistas com que o sujeito representa a si mesmo e ao seu interlocutor. No caso do texto publicitário, há diferentes efeitos acontecendo, como a persuação, a ideologia de sucesso e felicidade, a homogeneização, a própria individualização do sujeito. É no jogo entre paráfrase e polissemia que sujeitos e sentidos se constituem. A polissemia é “a fonte da linguagem uma vez que ela é a própria condição de existência dos discursos, pois se os sentidos – e os sujeitos – não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer” (ORLANDI, 2003:38). A autora explica ainda que nem os sujeitos, nem os sentidos já estão prontos e finalizados. Eles estão sempre se movimentando, fazendo seus percursos, se significando. “Você pode ser o que quiser”. 16 Etimologicamente, o verbo “querer” vem do latim quaerere, que significa “procurar, buscar”. Querer é, pois, um ato de vontade, típico de quem procura, busca ou deseja alguma coisa. Assim como o verbo “poder”, este verbo também faz parte dos chamados “verbos modais” e, segundo Lobato (1975), classifica-se na modalidade “volitiva”, isto é, na modalidade dos verbos que expressam vontade, desejo e intenção. Pesquisando no dicionário Novo Aurélio Século XXI (1999), encontramos as seguintes definições para este verbo: Querer. V. t. d. 1. Ter vontade de; desejar. 2. Ter a intenção de; projetar; tencionar, desejar. 3. Desejar possuir ou adquirir. 4. Ordenar, exigir. 5. Desejar, apetecer. 6. Consentir, permitir. 7. Necessitar de; demandar, requerer, pedir. 8. Ambicionar, cobiçar. 9. Ser de opinião, julgar, acreditar. 10. Pretender, solicitar. 11. Condescender em; dispor-se a. 12. Estar na iminência de; ameaçar; 13. Estar próximo de; ameaçar. 14. Ensaiar, tentar. 15. Ter a bondade de; fazer o favor de; dignar-se. 16. Ter possibilidade de; poder. 17. Desejar que (alguém) chegue a (certa posição). 18. Ter afeição; gostar, estimar. 19. Ter ou manifestar vontade firme e decidida. 20. Ter o desejo de estar (em certo lugar ou em certa companhia, etc.). 21. Ter necessidade, ânsia de; desejar. 22. Amar-se mutuamente. 23. Ato de querer; vontade; afeto; intenção. Podemos dizer que o verbo “querer” também produz diferentes efeitos de sentido dependendo das condições de produção em que está inserido. É possível compreendê-lo tanto no plano material (ambição), querer algo, querer ser alguém importante, quanto no âmbito das emoções, querer bem (a alguém), querer ser feliz, entre outros. No discurso da propaganda do Boticário, “querer” equivale a “poder”. Ao estimular a transformação do corpo como meio para expressar a individualidade, o discurso publicitário envolve as mulheres em uma rede significante do “poder / querer”, construindo ou reproduzindo imagens identitárias em torno de um mundo de sonhos onde tudo é possível. O enunciado “Você pode ser o que quiser”, por exemplo, leva-nos a pensar que o sujeito controla o seu querer, através de uma autonomia ideologicamente construída pela mídia. Assim, o sujeito moderno – capitalista – “tem sua impressão de unidade e controle de (por) sua vontade. Não só dos outros mas até de si mesmo. Bastando ter poder...” (ORLANDI, 2005:104). Não podemos nos esquecer de que no presente século, ao mesmo tempo em que se enfatiza a individualização do sujeito e sua autonomia, os discursos midiáticos colaboram para englobá-lo no mercado de consumo. O sujeito vive desse modo, uma constante contradição: é livre, porém submisso... ao mercado, ao consumo. Dessa maneira, podemos perceber a historicidade na língua, a necessidade de se articular sintaxe e semântica, pois é nessa relação que os sentidos se produzem e os processos de subjetivação acontecem ligados à formação social, ao Estado e suas instituições, que 17 estabelece progressivamente a necessária ilusão do sujeito de ser mestre de si e de seu dizer. Orlandi (2005) assinala que o sujeito, para dizer, submete-se ao jogo da língua na história e se não for assim não há como subjetivar-se. “Não se pode dizer senão afetado pelo simbólico, pelo significante. Não há sentido nem sujeito se não houver assujeitamento à língua” (idem:100). Sem deixar de lembrar que o assujeitamento para o sujeito moderno faz intervir o direito, a lógica, a identificação, conforme dito anteriormente. Assim, na interpelação não se separa exterioridade e interioridade, mesmo que para o sujeito essa separação seja uma evidência sobre a qual ele constrói duplamente sua ilusão: a de que ele é a origem de sua fala (e logo fala o que quer) e da literalidade, a de que há uma relação direta entre linguagem, pensamento e mundo (aquilo que ele diz só pode ser aquilo e não outra coisa). Daí a idéia de um sujeito livre, mas ao mesmo tempo submisso. A aparente “liberdade de escolha”, expressa no slogan do Boticário, de um sujeito que pode ser o que quiser, consolida-se nas (e com as) fantasias produzidas pelo discurso publicitário. Ao apresentar as últimas tendências da moda, com respeito à maquiagem e demais tratamentos de beleza, as propagandas do Boticário orientam as possibilidades de “ser” desse sujeito, direcionam seus desejos, sua vontade, seu modo de viver e o convidam a entrar num universo mágico onde todos os seus sonhos podem se tornar reais. Em O espetáculo como meio de subjetivação, Maria Rita Kehl (2003) formula assim a idéia de que a publicidade dirige-se ao desejo e responde a ele com mercadorias: A publicidade vende sonhos, ideais, atitudes e valores para a sociedade inteira. Mesmo quem não consome nenhum dos objetos alardeados pela publicidade como se fossem a chave da felicidade, consome a imagem deles. Consome o desejo de possuí-los. (...) O desejo é social. Desejamos o que os outros desejam, ou o que nos convidam a desejar. Uma imagem publicitária eficaz deve apelar ao desejo inconsciente, ao mesmo tempo em que se oferece como objeto de satisfação. Ainda segundo essa autora, o que a publicidade propõe aos consumidores é uma “pseudo-escolha”. Seja livre: seja o que quiser. Na imagem de uma “feiticeira misteriosa” da “rainha absoluta” ou da “camponesa de olhar ingênuo”, o discurso do Boticário oferece ao sujeito uma série de possibilidades de “ser mulher”. Todas elas, entretanto, refletindo certos padrões simbólicos do consumo. Ser o que quiser é ser atraente, bela, desejada, sensual, “ser” para seduzir. E para isso é preciso estar maquiada, perfumada e consumir os produtos do Boticário. 18 Na visão de Adorno, citado por Kehl, a indústria cultural apresenta-se como meio de satisfação de todas as necessidades do sujeito, mas, por outro lado, organiza essas necessidades de tal modo que o sujeito vê a si mesmo exclusivamente como um eterno consumidor, “um objeto da indústria cultural”. Pode-se dizer que a publicidade apela para a dimensão do desejo do sujeito-mulher através das imagens de belas mulheres, respondendo a esse desejo com o fetiche das mercadorias. As consumidoras, por sua vez, se identificam com essas imagens, “espelho espetacular de suas vidas empobrecidas” (KEHL, idem). Touraine (2007) diz que o problema não está na imagem de um corpo carregado de sexualidade, o problema reside, ao contrário, para as mulheres, na visão de um corpo privado de sexualidade, que foi transferida para a mercadoria. Hoje é possível dizer que “a dessexualização das mulheres por estas publicidades realiza-se em benefício de uma erotização dos objetos que se busca torná-los desejáveis, a fim de melhor comercializá-los” (p.103). Ao mesmo tempo em que as mulheres são estimuladas pela sexualização (através das imagens publicitárias), elas sentem-se privadas da própria sexualidade e de seu próprio corpo. Essa forma de dominação tende a tornar-se ainda mais acentuada no momento em que a sexualidade, o erotismo ou as relações sexuais são representados como sendo estrangeiros à construção de si, o que ocorre com mais freqüência na televisão e em muitas revistas femininas. Nesse sentido, o discurso publicitário substitui a sexualidade real por uma sexualidade a ser consumida, produzindo sentidos sobre o corpo feminino como um “corpo de consumo”. Para a AD, o corpo é o lugar material em que acontece a significação, não há corpo que não esteja investido de sentidos. O corpo do sujeito é um corpo ligado ao corpo social, ao corpo da linguagem, todos atravessados de discursividades. A linguagem dá corpo aos sentidos e a mulher, enquanto ser simbólico, se constitui em sujeito na e pela linguagem, tendo seu corpo ligado à corporalidade dos sentidos. A cultura do consumo produz sentidos sobre o corpo feminino, comercializando- o de forma incisiva. “Todas podem e devem ser belas”. Para isso, basta entrar em uma loja do Boticário, o universo mágico, onde as consultoras são as fadas-madrinha, os produtos são a varinha de condão. E a mulher? “Pode ser o que quiser” (?) Ao divulgar uma nova linha de produtos no início de 2008, a empresa de cosméticos lançou a promoção “O Boticário Muda Seu Visual”. Nessa campanha publicitária tem-se a 19 imagem de uma modelo vestida de fada segurando em das mãos uma varinha mágica e na outra um perfume da marca O Boticário. Logo acima, os seguintes dizeres: O que você mudaria em você? (Bom, a gente não concorda, mas faz sua vontade.) O enunciado “O Boticário Muda Seu Visual” nos faz questionar como um discurso publicitário silencia outros sentidos sobre a beleza feminina. Quando os anúncios das propagandas do Boticário apresentam as mulheres tal como elas podem vir a ser, não estariam mostrando, por implicação, o que elas não são presentemente? Isto é, se a propaganda retrata mulheres belas, felizes, socialmente seguras e bem-sucedidas, e se oferece para “mudar” o visual da leitora / ouvinte, não se segue que esta mesma propaganda considera as consumidoras feias, infelizes, isoladas e frustradas? “O dizer e o silenciamento são inseparáveis”, diz Orlandi (2007:152). “Se ao falar sempre afastamos sentidos não-desejados, para compreender um discurso devemos perguntar sistematicamente o que ele cala”. Há silêncio nas palavras, elas são carregadas de sentidos a não dizer, sendo o silêncio garantia do movimento dos sentidos. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise do texto “Você pode ser o que quiser”, assim como das demais propagandas, nos permitiu compreender como o discurso publicitário produz sentidos sobre o sujeitomulher, apresentando-o como livre, mas ao mesmo tempo submetendo seus desejos e sua vontade ao consumo. Pudemos perceber que ao estimular a transformação do corpo como forma de expressar a individualidade e “valorizar a beleza de cada mulher”, o discurso do Boticário envolve as mulheres num discurso ideológico de uma escolha e de um querer legitimado, além de apresentar uma variedade de “escolhas” de maneira naturalizada, apagando o seu caráter histórico, ideológico. Há relações de força nesses discursos em que determinados grupos sociais estão diretamente envolvidos na produção de sentidos sobre a beleza do corpo feminino, sempre numa escala hierárquica, evidenciando relações de poder. A publicidade dá visibilidade aos sentidos que interessam a esses grupos sociais, e que se tornam referência para os demais. 20 Tudo isso contribui para o processo de produção de sentidos sobre a beleza feminina e, considerando que a linguagem dá corpo aos sentidos (no que é dito), mas também implica sentidos (silenciados), compreendemos ainda os “não-ditos” na propaganda do Boticário, mas que também dão movimento aos sentidos. Vale dizer que essas considerações não terminam com um ponto final, definitivo. Ainda há muito a se dizer. A forma como delimitamos o nosso corpus determinou o modo de análise, mas o nosso objeto de estudo permanece aberto para novas leituras e interpretações. 21 ANEXO O Boticário Royalty Collection Perfume Tarsila Rouge 22 Propagandas do Boticário - Contos de Fada (2005) “A história sempre se repete. Todo Chapeuzinho Vermelho que se preze, um belo dia, coloca o lobo mau na coleira”. “Gabriela vivia sonhando com seu príncipe encantado. Mas, depois que ela passou a usar O Boticário, foram os príncipes que perderam o sono”. “Era uma vez uma garota branca como a neve, que causava muita inveja não por ter conhecido sete anões. Mas vários morenos de 1,80 m”. “Um belo dia, uma linda donzela usou O Boticário. Depois disso, o dragão que ela tanto temia ficou mansinho, mansinho e nunca mais saiu de perto dela”. 23 Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da linguagem. 8ª edição. São Paulo: Hucitec, 1997. CARVALHO, Castelar. Para compreender Saussure: fundamentos e visão crítica. 4ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1984. CUNHA, Celso e CINTRA, Luís Filipe Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985. DUBOIS, Jean. Dicionário de Lingüística. São Paulo, SP: Cultrix, 1973. ECO, Umberto. História da Beleza. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. FERREIRA, Aurélio. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª edição. 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