Computador pessoal: uma plataforma para a Era do Acesso Lívia BERGO Mestranda do curso de Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora, MG Resumo Estamos diante de um novo tipo de capitalismo, totalmente reformulado, segundo as características da sociedade moderna e das inovações tecnológicas com as quais passamos a lidar nos últimos anos. Essa nova configuração econômica entra em conflito com um paradigma que nos acompanha há séculos e que muitos acreditavam ser indissociável da prática capitalista: a acumulação de bens, na forma de propriedade privada. Cada vez mais baseadas na lógica das redes, que se tornaram o modo principal de organização das atividades humanas, as relações de troca de bens entre vendedores e compradores dão lugar ao acesso a curto prazo entre fornecedores e usuários, ou servidores e clientes. Os usuários, que já não se interessam como anteriormente pelos bens (hardware), têm no computador a ferramenta ideal para acessar os diversos softwares disponibilizados, muitas vezes, gratuitamente pelos fornecedores, que pretendem estabelecer um contrato duradouro com o cliente por esse acesso. Como equipamento que converge diversas mídias, o computador pessoal torna-se a plataforma coringa que permite a fornecedores e usuários estabelecerem tais relações. Palavras-chave: acesso, redes, novas tecnologias, computador. Introdução Após anos de gestação, estamos diante de um novo tipo de capitalismo, totalmente reformulado, segundo as bases da sociedade moderna e das inovações tecnológicas com as quais passamos a lidar nos últimos anos. Essa nova configuração econômica entra em conflito com um paradigma que nos acompanha há séculos e que muitos acreditavam ser indissociável da prática capitalista: a acumulação de bens, na forma de propriedade privada. Essa realidade, que há muito guia as relações humanas na Terra, está diante de uma grande virada. Em direção à chamada Era do Acesso, onde os mercados são substituídos por redes e a noção de propriedade é substituída pelo acesso a bens e, especialmente, serviços. Por “serviços” entende-se “atividades econômicas que não são produtos ou construção, são transitórios, são consumidos no momento em que são produzidos e fornecem um valor intangível. [...] Os serviços não se qualificam como propriedade. São imateriais e intangíveis” (RIFKIN, 2001, p. 69-70). Nessa nova era, as relações de troca de bens entre vendedores e compradores cedem ao acesso a curto prazo entre fornecedores e usuários, ou servidores e clientes, que operam em rede. A tendência de cooperação mútua entre empresas e de provimento de serviços constantes para os clientes sobrepõe a tradicional disputa de mercado. O mundo comercial contemporâneo passa a ser dominado, assim, pelas relações de locação, empréstimo e, até mesmo, cooperativismo. Atentas aos novos rumos da economia, muitas empresas estão vendendo grande parte de seus imóveis, reduzindo estoques, alugando equipamento e terceirizando atividades. Ou seja, mudando da cultura da propriedade para a cultura do acesso. Na nova economia de rede, surgem alianças estratégicas, com uso conjunto de recursos e acordos para divisão de ganhos. A terceirização reúne empresas em torno de objetivos comuns, que, ao unirem forças, buscam otimizar suas operações, cada uma focando-se na atividade que lhe é principal. Elas deixam, assim, de vender umas às outras e passam a reunir os recursos coletivos, em uma complexa rede de negócios. Segundo Rifkin (2001), ao contrário do pensamento competitivo e excludente que dominou grande parte do século passado, o interesse próprio dita um rumo diferente em uma economia de rede. Ao inserir a própria empresa em uma rede de relações recíprocas mutuamente benéficas destinadas a otimizar o esforço coletivo, é mais provável que o sucesso de cada empresa seja mais garantido – o que alguns na comunidade empresarial referem como estratégia de vencer-vencer (p. 15). Por todo o mundo, grandes e pequenas empresas lutam para tornarem-se parte de redes comerciais em expansão. Ser deixada de fora do circuito pode significar fracasso imediato nesse novo mundo de alianças em constante mudança. Esfera comercial x cultural A mudança na maneira de pensar a necessidade outrora urgente de acumulação de capital físico estimula a valorização de outro tipo de capital: o capital intelectual. A nova economia dá mais valor a conceitos, idéias, imagens, ou seja, à criatividade humana. E esse tipo de capital nunca é trocado ou de fato vendido, mas apenas acessado, normalmente por tempo limitado. Nesse contexto, a demanda por acesso à cultura ou experiências culturais é cada vez maior. Segundo Rifkin (2001), estamos diante de uma mudança – ainda que de longo prazo – da produção industrial para a produção cultural. “A luta entre a esfera cultural e a esfera comercial para controlar tanto o acesso quanto o conteúdo da diversão é um dos elementos definidores da próxima era” (p. 6). Essa é uma questão bastante importante, visto que é um dos aspectos mais distintivos de cada grupo social o que está sendo agora negociado. Afinal, como bem define Freire (2004), a rede de significados e práticas de um grupo social é o que chamamos de cultura. Quer dizer, tudo o que os homens e mulheres aprendem com o grupo em que vivem, a começar pela língua que falam, seu modo de definir o que é feio ou bonito, certo ou errado, as técnicas, as regras sociais, as formas de expressão, tudo isso é cultura. O que acontece, então, quando transforma-se a cultura, ou o acesso a experiências vividas, em mercadoria? Neste momento, toda a vida está sendo convertida em commodity. E tudo, absolutamente tudo, pode ser potencialmente visto dessa forma, transformado todas as relações em econômicas. E, uma vez que tudo pode ser transformado em commodity e acessado a qualquer momento, podemos concluir que é o próprio tempo que está sendo negociado e alterado. O ser humano não mais adquire bens, mas sim o tempo durante o qual terá acesso a eles ou, principalmente, aos benefícios por ele trazidos, sem o ônus da posse. Despontam, assim, os grandes nomes do capitalismo cultural – como Time Warner, Disney, Sony, Microsoft etc. Empresas que, completamente inseridas na nova maneira de gerir fornecedores e clientes, vêm contribuindo para que a esfera cultural seja cada vez mais abocanhada pela esfera comercial. E para entender como mudanças tão significativas vêm se dando, é fundamental percebermos a influência das tecnologias e seu mais novo rebento: o ciberespaço. Pois, como diagnostica Rifkin (2001), “os mundos virtuais do ciberespaço e o entretenimento mediado eletronicamente de todo tipo estão se tornando rapidamente o centro de um novo hipercapitalismo que comercializa o acesso a experiências culturais” (p. 6). Os adventos da tecnologia As novas tecnologias mudaram tanto a maneira de nos expressarmos quanto a maneira de pensarmos, alterando profundamente nossa cultura e tornando-se elementos fundamentais a serem pautados quando pensamos sobre o futuro da humanidade. O impacto de tais avanços na sociedade moderna é indiscutível. A mudança das formas analógicas de comunicação para digitais apressou o processo de convergência. Textos, sons, imagens, vídeos, tudo o que é processado em um computador é transmitido através da linguagem binária, ou seja, uma sucessão de zeros e uns. Esse tornou-se o código universal de transmissão de dados, criando potencialmente a possibilidade de levar-se, de um lado a outro do globo, gigantescas quantidades de informação sem deformações ou erros. Para que tal potencial se realizasse, porém, era necessário fazer com que todas as transmissões ocorressem através de movimentos de nível atômico. Com a criação de semi-condutores, transistores, circuitos integrados e microprocessadores, tornou-se possível transformar os dados que inserimos no PC através do teclado em minúsculos sinais eletrônicos que se gravam no disco rígido, disquete, CD, entre outros. Tudo isso possibilitou que todo o acervo de conhecimento da humanidade passasse para uma base que pode ser universalmente captada e decodificada e que se desloca na velocidade da luz. Os bens imateriais puderam, assim, deixar para trás a matéria e se tornar algo fluido de maleabilidade e acessibilidade ilimitada. Essa fluidez possibilitou a transmissão sem fronteiras, tornando necessária a organização da navegação dessas informações. Os movimentos de nível atômico não precisam necessariamente ter uma base material. A informação digital pode ser distribuída através de ondas, retransmitidas por satélite, cabos óticos ou fios de telefone. E agora – ao contrário do que acontece na transmissão telefônica, por exemplo, em que a transmissão se dá por analogia –, o sistema digital permite que imagens, símbolos e sons naveguem da mesma forma, codificados em dígitos. Isto gerou uma base comum para todo o sistema de conhecimento, e tornou possível a transmissão de grandes quantidades de informação precisas. Como conseqüência de todas essas inovações, veio a tão anunciada convergência. O sistema digital permitiu a rápida união de todos os instrumentos que geram, transmitem e recebem dados sob suas diversas formas. E este conjunto de atividades adquiriu um papel absolutamente central nas atividades humanas em geral, tornando possível uma nova forma de conduzir os negócios: a vida economia global baseada em rede. As novas tecnologias de telecomunicações permitem que as empresas criem uma nova rede entre suas próprias operações e empresas terceirizadas. O processamento eletrônico mantém fornecedores e usuários em constante comunicação, trabalhando juntos para manter as operações diárias em tempo real. Para os jovens, a adaptação aos vários mundos simulados que compõem a economia cultural é natural. Eles já se sentem parte dessa nova era, nódulos inseridos em redes de interesses compartilhados. O mundo em rede A inovação guia a nova economia baseada em redes. É fácil identificarmos o quanto as novas tecnologias tornam-se ferramentas indispensáveis – e por que não dizer intrínsecas – à sociedade moderna. Porém, tais inovações potencializaram uma forma de organização social já antiga: as redes. Como identificou Castells (1999), essa configuração topológica, a rede, agora pode ser implementada materialmente em todos os tipos de processos e organizações graças a recentes tecnologias da informação. Sem elas, tal implementação seria bastante complicada. E essa lógica de redes, contudo, é necessária para estruturar o não-estruturado, porém preservando a flexibilidade, pois o nãoestruturado é a força motriz da inovação na atividade humana (p. 78). Tal estrutura é formada por um conjunto de nós, interconectados por ligações, mais comumente chamadas de links. As redes, como estruturas abertas capazes de expandirem-se de forma ilimitada, estão sempre aptas a abranger novos nós, desde que estes consigam comunicar-se dentro delas, ou seja, compartilhem os mesmos códigos de comunicação. Os processos dominantes em nossa atual realidade estão cada vez mais baseados em redes. Elas tornaram-se o modo principal de organização das atividades humanas, transformando, a partir de sua lógica, todos os domínios da vida socioeconômica. A Sociedade em Rede, definida por Castells (1999), é caracterizada por uma nova morfologia social, um sistema aberto dinâmico capaz de abarcar inovações sem comprometer seu equilíbrio. A difusão da lógica das redes modifica a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura. A presença da rede ou a ausência dela e as relações entre as redes entre si são fonte de dominação e transformação na sociedade. Computador como plataforma Os computadores, em especial, podem, hoje, realizar tarefas antes delegadas a inúmeros equipamentos, ou “terminais”, como fala Wolton (2003): Ontem, as coisas eram simples: o que dependia do telefone era diferente do que dependia do rádio e da televisão, e distinto do que concernia ao computador. Os terminais diferentes remetiam a atividades diferentes, a áreas diferentes, a culturas diferentes. Amanhã, ao contrário, tudo estará disponível no mesmo terminal. A mudança não é somente técnica, é também cultural, uma vez que não haverá mais diferenças entre atividades separadas durante séculos (p. 97) Estamos diante do surgimento iminente de uma convergência absoluta: uma máquina multitarefa, multimídia, com capacidade para acessar em tempo real toda e qualquer informação armazenada em toda e qualquer parte do mundo. E tal acesso, claro, se dá de acordo com a conveniência do usuário. Nessa nova configuração de produção customizada, inovação e atualizações contínuas, o ciclo de vida dos produtos é cada vez mais curto. Assim sendo, tudo se torna rapidamente desatualizado. E é nesse sentido que Rifkin (2001) indaga: “Por que assumir a propriedade de uma tecnologia ou produto que provavelmente estará desatualizado antes mesmo de ser pago?” (p. 16). Eis aí a vantagem de se investir em apenas um equipamento – o computador – ao invés de diversos, como TV, aparelho de som, telefone, videogame, entre tantos outros que podem ter seu uso substituído pelo do PC. Do contrário, o custo para se ter sempre a última geração de cada um desses equipamentos seria enorme. Como já vimos, as relações entre bens e serviços estão se invertendo. Ao contrário da Era Industrial, quando o objetivo era vender bens – e, por vezes, dar garantias de serviços aos produtos gratuitamente, como incentivo de compra –, atualmente, um número crescente de empresas fornece produtos gratuitamente, na esperança de iniciar relacionamentos de serviço de longo prazo com seus clientes. Esse já é há algum tempo o raciocínio das provedoras de TV por assinatura, que fornecem o equipamento de recepção, mas estabelecem com o cliente um contrato de acesso. Com o aumento de usuários de computadores e da Internet, essa tornou-se também a grande lógica de mercado do mundo virtual. Grandes empresas que antes lucravam com a venda de hardware e software começam a fazer a transição para se tornar provedoras de serviço. É crescente o número de softwares distribuídos gratuitamente, cujo custo para o cliente vem na forma de manutenção do acesso e atualizações. Essa é uma estratégia extremamente interessante para as empresas de tecnologia de informação, afinal, quanto mais pessoas estiverem ligadas por meio de programas de uma empresa, maiores os benefícios para cada participante e maior o valor dos serviços potenciais da empresa. Alguns vão além, não repassando custo algum para o usuário. O Joost (www.joost.com), por exemplo, é um programa que permite assistir TV pela Internet, na tela do computador. Porém, ao contrário das TVs por assinatura, não cobra dos clientes pelo acesso. Sua arrecadação se baseia na venda de cotas de publicidade, seja através de anúncios, seja através de programas ou canais exclusivos dos anunciantes. Conclusão As empresas do novo milênio focam-se cada vez mais na disponibilização de bens imateriais, culturais, e entretenimento. Os bens materiais tornam-se meras plataformas para os serviços, e a prática fundamental agora é estabelecer relacionamentos com os usuários finais. O marketing torna-se a principal ferramenta da nova economia de rede e controlar o cliente passa a ser a meta da atividade comercial. Transformar um relacionamento entre partes em commodity para acessar e partilhar propriedades tornou-se a essência da abordagem baseada em rede à vida comercial. O objetivo central das empresas é, agora, ter uma plataforma de apoio junto ao cliente, que permita estabelecer um relacionamento de serviços de longo prazo com este. O cliente, por sua vez, desfruta os benefícios dos serviços definidos sem o incômodo de adquirir e manter um produto. É nesse sentido que o computador desponta como equipamento único, convergente. Os anseios de posse, que eram estimulados pelo capitalismo industrial, deixam de ter peso nos dias de hoje. Os usuários não querem mais ostentar bens. Ao contrário, buscam facilidade e velocidade. O computador, como equipamento que converge diversas mídias, surge uma como plataforma coringa que permite a fornecedores e usuários estabelecerem relações para venda de acesso a experiências ou softwares que simulam as funções de antigos equipamentos. Estes, por sua vez, tornam-se, a cada dia, mais obsoletos. Herança de uma era em que a propriedade definia, até mesmo, personalidades. Bibliografia BARABÁSI, A. Linked. New York: Plume, 2003. CASTELLS, M. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ___________ A galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. FREIRE, B. M. O que é, o que é: Folclore e Cultura Popular. In: Boletim Salto para o Futuro - Cultura Popular e Educação. Rio de Janeiro: TV Escola, fev. 2003. 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