Liberdade
Moeda
João Ferreira do Amaral
Moeda única I
O custo
de uma
utopia
O euro não auxilia a maioria dos Estados europeus a adaptarem-se à
globalização, até os prejudica. Isso sucede porque não é possível uma mesma
moeda contemplar os interesses de Estados tão diversos. O euro também
não serve Portugal, pois não só agravou a actual crise, como torna muito
mais difícil ultrapassá-la. Devemos pois abandonar este projecto utópico.
50
XXI Ter Opinião
Austeridade Liberdade
XXI Ter Opinião
51
Liberdade Moeda
Dinamarca
Q
UANDO se aborda a grande questão que é a da moeda única europeia, principalmente num momento em que esta atravessa uma crise
indesmentível, duas interrogações
surgem imediatamente: será que uma moeda
única é um bom projecto para a Europa? E será
que, adoptando o euro, Portugal pode acompanhar esse projecto?
Vamos abordar sucessivamente as respostas a estas duas questões.
Discutir se a moeda única é um bom projecto para a Europa depende obviamente de se saber o que se pretende com o processo de integração europeia.
Das múltiplas visões desse processo vamos excluir à partida duas: a daqueles que
consideram que a integração europeia é uma
inevitabilidade e a dos que defendem que não
deve existir integração e muito menos uma
união de Estados.
Excluímos estas posições porque elas não
são relevantes para o nosso tema: se a integração é uma inevitabilidade ou é se é algo de indesejável (em ambos os casos, afirmações de
que discordamos frontalmente), então não
vale a pena discutir a existência de uma moeda única europeia.
Restam dois grandes grupos de posições: a
daqueles que entendem o processo de integração como a construção progressiva de um Estado europeu que substituirá os Estados-membros – que é a chamada concepção federalista;
e a do grupo (em que nos incluímos) que entende o processo de integração como a construção
de uma organização de Estados soberanos cuja
missão principal é a de ajudar esses mesmos
Estados a exercer as suas funções no difícil contexto criado pela aceleração da globalização.
Um dos domínios onde é mais evidente a
diferença entre as duas posições é justamente o
52
XXI Ter Opinião
domínio monetário. Mas não é o único: a segurança interna e externa e a política externa são
outros exemplos flagrantes em que a diferença
de posições é muito nítida.
Se o que se pretende da integração é chegar a um Estado europeu mais ou menos federal, então a moeda única é algo que faz sentido,
uma vez que deixa de existir a preocupação de
compatibilização de interesses nacionais.
Num Estado federal (e não consideramos a
posição, que qualificamos de pouco séria e até
de hipócrita, de se dizer que se pretende uma
federação sem criar um Estado europeu), o interesse do todo prevalece sobre os interesses
das partes, no caso, dos Estados federados.
Ora a existência de uma moeda própria
para um Estado, ou pelo menos a possibilidade
de controlo da moeda que utiliza, é, como veremos mais adiante, um instrumento essencial
na defesa dos interesses desse Estado, pelo que,
para o federalista – que pretende, justamente,
fazer subordinar os interesses dos Estados ao
interesses do Todo, concebido de forma mais
ou menos metafísica – há toda a vantagem na
criação de uma moeda única.
No caso específico da União Europeia, os
federalistas mais exacerbados, cuja posição
acabou por vencer no Tratado de Maastricht,
acordado na cimeira desta cidade em finais de
1991, defendiam que se deveria avançar rapidamente para a realização da moeda única porque tal impulsionaria/obrigaria à realização da
união política europeia, leia-se, à criação de um
super-Estado federal.
As consequências desta visão, estamos
hoje a pagá-las e a um preço muito elevado,
mas nem por isso a posição federalista mudou. Quando toda a gente já se apercebeu de
que a crise europeia actual é em grande parte fruto da inevitável inadequação da uniformização federalista forçada das políticas
Quase todos os
países da moeda
única abdicaram
do poder de
emitir moeda
sem o mínimo
protesto, com a
honrosa excepção
da Dinamarca,
onde o eleitorado
soube dizer não
em referendo. Em
Portugal, contudo,
o bloco central
impediu a consulta
ao povo.
Christine Grunnet / Reuters
&
Moeda Liberdade
comuns europeias em geral e da política monetária em particular, os federalistas não encontram melhor solução para a crise do que...
o reforço do federalismo!
Já quanto à posição que defendemos – que
a União Europeia deve existir para auxiliar os
Estados e não para os substituir – posição que
gostamos de designar por confederal, a moeda
única só se justificará se, de facto, auxiliar os
Estados. Nunca como um fim em si mesmo ou,
pior ainda, como alavanca para a criação do super-Estado europeu. E a verdade é que, para a
maioria dos Estados, a moeda única não os auxilia a adaptar-se à globalização. Pelo contrário, prejudica-os. Vamos ver porquê.
Importância da moeda
A cegueira
federalista não
compreendeu
que, ao destruir
o poder dos
Estados
nacionais, está
a destruir a
democracia,
cujo quadro
de referência
é o nacional.
Está também
a destruir
o próprio
processo de
integração
europeia.
A moeda, além de ser imprescindível para
o funcionamento de qualquer economia moderna é também um instrumento insubstituível da política económica.
São dois os aspectos essenciais desse carácter instrumental.
Em primeiro lugar, pela sua referência externa, ou seja pelo valor da moeda de um país
em relação ao valor das moedas de outros países, o que normalmente se designa por taxa
de câmbio. A taxa de câmbio de uma moeda
de um país em relação às dos outros não é arbitrária. O seu valor deve evoluir em consonância com a competitividade da economia desse
país. Se, por exemplo, a economia é pouco competitiva, gerando défices na balança de pagamentos, então o que está indicado é desvalorizar a moeda de forma a que as exportações do
país se tornem mais baratas no exterior – e assim se possa exportar mais – e as importações
se tornem mais caras, permitindo que em certos produtos a produção interna possa competir com os produtos importados.
Se o país não dispuser de moeda própria,
fica sujeito a gerar défices das contas externas
e, portanto, dívida externa de tal monta que,
mais cedo ou mais tarde, os bancos internacionais deixam de emprestar dinheiro aos bancos
nacionais e estes vêem-se obrigados a cortar o
crédito à actividade económica interna, gerando a depressão, o desemprego, e pondo mesmo
em causa, nos casos mais graves, a existência
do país. Como se compreenderá, num processo
acelerado de globalização, em que a concorrên-
cia mundial se torna feroz, é ainda mais importante dispor de um instrumento que permita
ao país reagir aos choques concorrenciais que
vêm do exterior.
Não é possível uma mesma moeda contemplar os interesses de Estados tão diversos como
são os que constituem a zona do euro.
Desta forma, é uma grave irresponsabilidade abdicar da moeda própria quando não se
dispõe, no espaço da união monetária, de mecanismos gerais de reacção aos choques externos que cada Estado sofra. Foi o que sucedeu – e
continua a suceder – com o euro, devendo ficar
bem claro que a existência de um mecanismo
de transferências de dinheiro para os Estados,
supostamente compensadoras dos choques externos, preconizada por alguns, não resolveria
o problema porque teria efeitos diferentes de
uma desvalorização cambial – que, na verdade,
em situação de comércio livre, é o único instrumento apto a lidar com aqueles choques.
Mas não é só a vertente externa que é importante no que diz respeito à moeda enquanto instrumento de política económica. Outra componente fundamental tem a ver com
o poder de emissão monetária. É espantoso
como os países que favoreciam a moeda única abdicaram deste poder sem o mínimo protesto, com a honrosa excepção do eleitorado dinamarquês que soube dizer não em referendo.
Em Portugal, recorde-se, o bloco central impediu o referendo.
Para um Estado, abdicar da emissão monetária significa que passa a estar dependente dos mercados financeiros para o seu financiamento. E isto, nos dias de hoje, é quase um
crime. Era possível tal suceder no século XIX,
como aliás ocorria efectivamente, e os Estados, em consequência, tornavam-se por vezes
insolventes, o que também sucedeu em Portugal nessa época. Mas no século XIX o papel do
Estado era muito mais reduzido do que é hoje.
Quase não tinha serviços de saúde e poucos
eram os de educação. A segurança social pública era mínima e a população era jovem. Hoje
não é assim e por isso é quase impensável que
um Estado se torne insolvente. Se tal suceder,
seguir-se-á o caos económico e social.
Daí que seja importante que os Estados disponham de um financiamento de último recurso. Não para o usarem de forma leviana,
mas para se respaldarem em situação de crise
profunda, quando o funcionamento do Estado
é, afinal, mais necessário. Esse financiamento
de último recurso é a emissão monetária.
XXI Ter Opinião
53
Liberdade Moeda
Vemos, pois, muito claramente na origem da moeda única a concepção federalista de destruição do poder dos Estados-nação.
Sem moeda, os Estados ficam desprovidos de
instrumentos fundamentais da política económica que dêem corpo ao prosseguimento
de objectivos próprios. Ficam, assim, dependentes do Todo.
Mais: a cegueira federalista não compreendeu que, ao destruir o poder dos Estados
nacionais, está a destruir a democracia, cujo
quadro de referência é o nacional. Está também a destruir o próprio processo de integração europeia, pois a impossibilidade de
prosseguir os interesses nacionais agrava as
tensões entre os Estados, como sempre sucedeu ao longo da história e agora se vê muito
claramente. Pode bem ser que a moeda única
seja a coveira da integração europeia.
Havia soluções alternativas? Com certeza.
A utilidade da existência de uma moeda europeia não está em discussão. Uma moeda europeia forte contribuiu, sem dúvida, para a estabilização monetária do espaço europeu, muito
perturbada nos inícios dos anos 90 pelos movimentos especulativos que se seguiram à precipitada liberalização dos movimentos de capitais, completada em 1992.
Portanto, o que está errado na moeda única europeia não é o ser moeda europeia: é ser
única (ou tendencialmente única). O que estaria indicado para conjugar os interesses nacionais com a estabilização monetária europeia seria a coexistência da moeda europeia
com as moedas nacionais, como aliás chegou
a ser proposto durante as discussões entre os
Estados sobre a forma de realização da moeda europeia.
Mas tal solução, que faria a União Europeia exercer o seu papel de auxiliadora dos
Estados nacionais no cumprimento das respectivas funções, como defende a posição
confederal, ia contra a posição federalista extremada de substituir os Estados nacionais.
Prevaleceu a utopia federalista sobre as realidades políticas e económicas. E, de novo, tal
como a história tem demonstrado muitas e
muitas vezes, quando se pretende que a utopia prevaleça sobre a economia, o resultado
final é ficarmos sem economia e sem utopia.
54
XXI Ter Opinião
Podemos acompanhar o euro?
Portugal, para mal de todos nós, tornou-se um exemplo do que pode suceder quando
um país com uma estrutura produtiva relativamente débil adopta uma moeda única muito forte, portanto com um valor externo inadequado à sua economia.
Progressivamente, a adopção do euro levou
a que as empresas portuguesas se voltassem
para o mercado interno, especializando-se na
produção de bens e principalmente de serviços
protegidos da concorrência externa, os chamados bens e serviços não transaccionáveis.
Tal deriva, que se verificou desde meados
da década de 90, já desde a preparação para
a moeda única, fez desindustrializar rapidamente o país. Para dar só um exemplo, o peso
conjunto da agricultura, da indústria e da parte transaccionável do turismo no PIB desceu de
cerca de 30% em 1995 para pouco mais de 22%
em 2008, no início daquela que ficará certamente conhecida no futuro pela primeira crise
da globalização.
Esta desindustrialização (em sentido lato,
ou seja, perda de peso dos bens transaccionáveis) levou a défices crescentes da balança de
pagamentos e à acumulação de dívida externa, que foi ainda possível financiar durante dez
anos. Mas em meados da década passada já era
visível que mais cedo ou mais tarde Portugal
teria uma crise própria de financiamento da
economia. A crise internacional só veio apressar essa crise nacional, mas ela era inevitável.
A essa crise externa, e em grande parte em
consequência dela, veio juntar-se a crise da dívida soberana, que, para assegurar o financiamento do Estado, levou Portugal a subordinar-se abjectamente aos países europeus que
emprestam o dinheiro. A todos os males económicos que criou a adopção da moeda única
por Portugal, juntou outro: veio pôr entre parêntesis a nossa própria capacidade de autogoverno. Dificilmente se poderia encontrar um
erro maior de política do que a nossa adesão ao
euro. E agora?
É visível que a política de austeridade não
resolve nada e só agrava a situação. Por uma
boa razão, aliás. É que o nosso problema é um
problema de distorção da estrutura produtiva, provocada, durante mais de dez anos, pela
adesão à moeda única. Endireitar de novo uma
Fábricas
abandonadas
A adopção do
euro levou a que
as empresas se
voltassem para
o mercado interno,
especializando-se
na produção de
bens e serviços
protegidos da
concorrência
externa.
Tal deriva fez
desindustrializar
o país. O peso
conjunto da
agricultura, da
indústria e da parte
transaccionável
do turismo no PIB
desceu de cerca de
30% em 1995 para
pouco mais de 22 %
em 2008.
Michel Vanden Eeckhoudt / Agence VU
Moeda Liberdade
estrutura produtiva desequilibrada, não é a
austeridade que o fará. Pelo contrário: só o
conseguiremos quando fizermos o investimento necessário a essa nova reconversão, o
que é praticamente impossível com uma política de austeridade tão exagerada.
Por isso, do nosso ponto de vista, qualquer
solução sustentável para o nosso país passa
pela saída do euro. E quanto mais cedo, melhor.
Mas este “mais cedo” infelizmente não poderá
ou não deverá ser já. Isto porque o processo de
saída, desejavelmente, deverá ocorrer só depois
de estabilizada a zona euro para podermos sair
de forma negociada e apoiada. Sair empurrados e sem apoio será quase tão mau como permanecer na moeda única e assistirmos, impotentes, ao definhamento total do país.
Quando um projecto se revela errado é
preciso abandoná-lo. Devemos, sem margem
para dúvidas, abandonar o mais rapidamente
que for possível o projecto utópico da moeda
única europeia.
XXI Ter Opinião
55
Download

Moeda única I