1 Uma Solução Democrática para o ‘Dilema Discursivo’ Resumo: Tanto na jurisprudência analítica, como na teoria da escolha social, abunda a literatura acerca de um suposto paradoxo gerado pela agregação, por regra de maioria, de juízos acerca práticas ou decisões a tomar, logicamente dependentes de premissas (ou razões), as quais poderão ser ou proposições atómicas, ou proposições complexas, ou ambas. Veja-se o seguinte exemplo: Um grupo parlamentar tem que tomar uma decisão acerca da construção de um aldeamento turístico num local considerado reserva natural. Suponha-se, para simplificar, que esse grupo é composto por três indivíduos, os quais concordam todos com a seguinte proposição ‘O aldeamento turístico deve ser construído se e somente se pelo menos uma das seguintes razões se verificar: ou é absolutamente necessário para a revitalização económica da região, ou é compatível com a preservação da reserva natural, ou deve ser feito porque a opinião pública não coloca nenhum entrave a uma decisão positiva. A proposição com que todos concordam pode ser denotada pela seguinte fórmula do cálculo C ↔ (R1 ou R2 ou R3), fazendo C corresponder à conclusão e R1, R2 e R3 às razões disjuntas apresentadas, respectivamente. Suponhamos também que cada indivíduo (A, B e C) raciocina de uma forma logicamente consiste e que todos concordam que a questão deve ser resolvida através de um voto por maioria (M). Vejamos então uma matriz possível para os juízos que cada um dos parlamentares fará sobre cada uma das premissas e sobre a respectiva conclusão. R1 R2 R3 C ↔ (R1 ou R2 ou R3) C A F F V V V B F V F V V C F F F V F M F F F V V 2 Os resultados reflectem o seguinte: O indivíduo A não acredita que a construção do aldeamento é absolutamente necessária para a revitalização económica da região, não acredita que a sua construção é compatível com a preservação da reserva natural, mas acredita que, na medida em que não há contestação, ela deve ser construída, logo vota favoravelmente pela decisão da construção. O indivíduo B não acredita na razão económica (revitalização), acredita na razão ecológica (preservação) e não acredita na razão política (dependência da opinião pública), logo vota favoravelmente pela decisão da construção. O indivíduo C não acredita em nenhuma das razões oferecidas, logo vota negativamente. Contudo, o resultado da votação varia consoante o procedimento decisório (por maioria) adoptado para resolver a questão. Dois procedimentos encontram-se à disposição dos parlamentares. O procedimento baseado na conclusão (pbc) ou o procedimento baseado nas premissas (pbp). Caso se siga o pbc, tendo em conta que a maioria, na coluna da conclusão, é favorável à construção, a decisão será favorável ao projecto. Caso se adopte o pbp, tendo em conta que para cada premissa, nas colunas das razões, existem maiorias que lhes são desfavoráveis, de modo a obter-se uma decisão logicamente coerente com as premissas, deve-se concluir (Modus Tollens) pela negação de C. É este o denominado ‘paradoxo doutrinal’ (Kornhauser e Sager, 1986), o qual virá mais tarde a ser designado por Philip Pettit (2001) como ‘dilema discursivo’. (E bem, dado que não estamos de maneira alguma na presença de um paradoxo). Ora, o debate acerca deste ‘dilema’, e da sua resolução, encontra-se directamente relacionado com a teoria política em geral. A cada uma das teorias da democracia, corresponde um ou outro destes procedimentos: o pbc ou o pbp. As teorias agregacionistas da democracia defendem que o tipo de razões apresentadas em defesa de uma qualquer decisão não são publicamente relevantes, não devendo, como tal, contribuir para a decisão final ao nível colectivo. O mesmo é dizer que as maiorias respeitantes a cada uma das premissas não é de todo relevante, mas apenas a maioria respeitante aos juízos individuais acerca da conclusão. Como tal, estes teóricos acham perfeitamente natural a adopção do pbc. Em termos mais gerais, defendem que todas as questões públicas complexas podem e devem ser reduzidas a questões públicas simples e resolvidas através da aplicação do pbc. Uma das grandes vantagens deste procedimento consiste no facto de cumprir todos os requisitos que é razoável impor a um processo decisório do tipo democrático. Ou seja, os requisitos do pluralismo, do respeito pela maioria e da integridade lógica (veremos mais detalhadamente como são 3 estes requisitos cumpridos). Ora, a argumentação subjacente às propostas dos defensores do agregacionismo são fortes, ainda que relacionadas com a sua concepção própria, e disputavel, acerca daquilo em que consiste a estabilidade política. Dizem eles que o conflito acerca da verdade das premissas ou razões (atómicas ou complexas) que os indivíduos devem considerar (na suposição da sua racionalidade) para alcançarem uma decisão individual final, apenas vem gerar ressentimento mútuo, conflitos doutrinas em geral, os quais podem perturbar uma decisão que tinha sido já alcançada através de um procedimento democrático perfeitamente límpido. Pelo contrário, os teóricos da democracia deliberativa apresentam uma diferente concepção de estabilidade democrática, mormente relacionada com o critério republicano e liberal de legitimidade do exercício do poder político. Ou seja, que a estabilidade - e, nomeadamente, a estabilidade democrática - é possível se e somente se houver lugar para a contestabilidade das decisões alcançadas por maioria. Assim, eles argumentam, e com razão (a meu ver), que a contestabilidade só é possível caso as razões utilizadas para tomar uma decisão estejam publicamente acessíveis, e, fundamentalmente, sob disputa. Assim sendo, as maiorias respeitantes aos juízos individuais acerca das razões em disputa são de todo relevantes para a decisão final. Ora, como é absolutamente indispensável que a conclusão seja logicamente coerente com as premissas, segue-se que a decisão final não deve ser obtida através da maioria dos juízos individuais acerca da conclusão, devendo antes seguir-se dedutivamente das maiorias respeitantes a cada uma das premissas i.e através do pbp. Mais especificamente: por Modus Tollens, como no exemplo anterior, ou por Modus Ponens, caso, suponhamos, as razões apresentem entre elas uma relação conjuntiva verificada (por exemplo, C ↔ (R1 &R2)). Contudo, a opção pelo pbp dos defensores da democracia deliberativa é tomada sob pena do incumprimento de um dos requisitos que é razoável impor a qualquer procedimento decisório democrático. Ou seja, ao não ter em conta a maioria correspondente aos juízos individuais acerca daquilo que deve ser feito, o processo corre o risco de tornar-se pouco democrático. O meu objectivo neste trabalho será, pois, defender que o incumprimento deste requisito é demasiado oneroso para os defensores do pbp, e que a ‘colectivização da razão’ (Pettit, 2001) por eles pretendida – ao seguirem o pbp – não é legítima do ponto de vista liberal, o qual coloca acima de tudo o valor da opinião do indivíduo para efeitos decisórios. Defenderei também que o pbc deve ser aplicado a todos os casos em que 4 existe uma agenda pública complexa, i.e. quando haja um conjunto de proposições a ser colectivamente decidido, e que as decisões alcançadas devem ser, para efeitos legais, vinculativas. Todavia, tentarei tornar compatível esta minha opção com o valor da constestabilidade. Para isso farei uso da ideia Rawlsiana de razão pública, a qual permitirá encontrar uma meio caminho entre a perspectiva agregacionista e a perspectiva deliberativa abrangente, através de restrições impostas ao tipo de razões admitidas para efeitos de deliberação. É certo que este caminho intermédio conduzirá a um relativo “incumprimento” de um dos requisitos, o pluralismo, incumprimento esse que, a meu ver, é menos oneroso do que aquele no qual incorre o defensor do pbp. Bibliografia: CHAPMAN, B., Public Reason, Social Choice and Cooperation, Toronto, Faculty of Law, 2001. BOVENS, L., e RABINOWICZ, W., “Democracy and Argument: Tracking Truth in Complex Social Decisions”, in Linguagem, Mente e Acção – Actas do Seminário de de Filosofia Analítica, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003. LIST, C., “The Discursive Dilemma and Public Reason”, London School of Economics, 2004. Em http://personal.lse.ac.uk/LIST/doctrinalparadox.htm PETTIT, P., “Deliberative Democracy and the Discursive Dilemma”, in Philosophical Issues (Supp.Nous) Vol.11, 2001. KORNHAUSER. L.A., and L.G. SAGER, “Unpacking the Court”, in Yale Law Journal 82, 1986. SEN, A., “A Possibility Theorem on Majority Decisions” 34 Econometrica 491.