Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 22, no. 1, Marco, 2000
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Um Paradoxo Instrutivo
(An instructive paradox)
Eduardo Rino Alberto Segre, Manuel Fernando Ferreira da Silva
Departamento de Fsica, Universidade da Beira Interior,
6200 Covilh~a, Portugal
Recebido em 10 de junho, 1999
E apresentado e resolvido um paradoxo hidrostatico, tendo em mente um proposito didatico.
I Introduc~ao
II Analise
A Fig. 1 representa esquematicamente um reservatorio
de agua na parede do qual foi adaptada uma roda
cilndrica, de tal forma que ela pode girar em torno do
seu eixo horizontal (que passa por O); as intersecc~oes
em A e B s~ao de espessura desprezavel, apenas suciente para n~ao haver contacto e n~ao permitindo que
a agua passe atraves delas. O paradoxo e descrito a
seguir.
A
I
O
Percebemos de imediato que qualquer coisa deve estar
errada no raciocnio anterior, ja que as forcas de press~ao
exercidas pela agua s~ao normais a superfcie da roda;
elas n~ao podem exercer qualquer momento de rotaca~o
relativamente ao eixo, ja que as suas linhas de aca~o
intersectam-no. Mas ent~ao, o que e que esta errado na
aplicaca~o do princpio de Arquimedes? E o que aconteceria se a roda fosse deformada, de forma que as linhas
de ac~ao das forcas de press~ao ja n~ao intersectassem o
eixo?
Analisemos a situaca~o em detalhe. Sobre a roda,
alem do seu peso P~ e das forcas horizontal (R~ h ) e vertical (R~ v ) aplicadas pelo eixo, restam apenas as forcas de
press~ao produzidas pela agua (por simetria, a press~ao
atmosferica n~ao da origem a qualquer forca resultante).
As forcas de press~ao da massa lquida s~ao, portanto, as
unicas que poderiam produzir momentos em relac~ao ao
eixo da roda.
B
A
Figura 1. Esquema geral do dispositivo.
Fv
Rv
Rh
O
De acordo com o princpio de Arquimedes, a roda
estaria submetida, em primeira analise, a uma impuls~ao
vertical I~ de magnitude igual ao peso do lquido deslocado. Esta impuls~ao, atuando para cima, estaria aplicada no centro de gravidade da massa de agua deslocada.
Resulta claro que esta forca daria origem a um momento n~ao nulo em relac~ao ao eixo, pelo que esta montagem poderia ser usada para produzir trabalho sem
qualquer gasto de energia.
No que se segue, este paradoxo e resolvido, com objectivos didaticos.
P
F
h
B
Figura 2. Diagrama das forcas aplicadas a roda.
E evidente a partir da Fig. 1 que todas as forcas
de press~ao t^em uma componente horizontal que aponta
para a esquerda, e uma componente vertical que aponta
para cima ou para baixo. Por simetria, e dado que a
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do rect^angulo, cuja largura (A0 A00 ) pode ser escolhida
como igual a 1. Seja r = OA o raio da roda.
Comecamos por calcular a componente vertical Fv
da forca resultante de press~ao que a agua exerce sobre a
roda. Introduzindo a coordenada (ver Fig. 4), temos
que a press~ao num ponto generico P sera p = h , x nas
nossas unidades. O elemento de area sera dS = rd.
Logo, a componente diferencial vertical da forca sera
press~ao aumenta com a profundidade, a forca resultante
de press~ao tera uma componente horizontal F~h (para a
esquerda) e uma componente vertical F~v (para cima),
como se mostra na Fig. 2. Os pontos de aplicac~ao
destas forcas s~ao, por enquanto, desconhecidos.
A componente vertical sera (provavelmente) a impuls~ao referida no princpio de Arquimedes, mas a componente horizontal (que o princpio de Arquimedes n~ao
menciona) n~ao pode ser ignorada nesta situac~ao.
O nosso objectivo e vericar que o momento resultante de F~h e F~v em relac~ao a O e nulo.
dFv = ,pdS sin = ,(h , r sin )r sin d;
que deve ser integrada entre ,0 e +0 , onde 0 =
arcsin(h=r). Um calculo direto fornece
III Calculo
F~v = r2 (0 , sin 0 cos 0 )^i = (r2 0 , rh cos 0 )^i: (1)
N~ao vale a pena levar em conta o lquido acima do nvel
A; o efeito dessa porc~ao de lquido e apenas o de adicionar um valor constante a press~ao em todos os pontos
da superfcie da roda, tornando os calculos menos transparentes. Para simplicar a algebra, podemos tambem
fazer que o peso especco g do uido seja igual a 1, o
que equivale a medir o seu peso em unidades de volume.
A geometria do problema esta representada na Fig.
3, onde se mostra apenas a parte da roda que esta
imersa.
x
h
r
x
A
θ
A
P
θ0
O
A
pdS
z
r
h
O
O
O
B
z
B
Figura 4. Coordenadas usadas nos calculos.
y
B
Figura 3. Geometria da porca~o imersa da roda.
r20 e o volume do \sector cilndrico"
O0A0 B 0 O00A00B 00 de raio r e ^angulo central 20 ; rh cos 0
e o volume do prisma A00 A0B 0 B 00O00O0 (recorde-se que a
A base e o rect^angulo A0 A00B 00 B 0 , o eixo da roda e
0
O O00 e OAB dene o plano vertical de simetria do sis-
dimens~ao transversal tem comprimento unitario). Assim, F~v e, como era de se esperar, igual ao peso da agua
deslocada, nas nossas unidades.
O ponto de aplicac~ao desta forca de impuls~ao vertical Fv pode ser determinado somando todos os momentos elementares relativamente ao eixo O0 O00:
tema. Introduzem-se o eixo vertical x (paralela a BA
que passa por O) e os dois eixos horizontais y e z , sendo
este ultimo o eixo de simetria que passa por O. Sejam
^i, ^j , k^ os versores usuais ao longo de x, y e z , respectivamente. Seja h metade do comprimento do lado AB
c
Z
~v = (,pdS sin )r cos ^j = ,
= 2r 3
Z
0
0
Z
0
,0
sin2 cos d^j = 23 h3^j :
(h , r sin )r2 sin cos d^j
(2)
(3)
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O ponto de aplicac~ao de Fv tera ent~ao como coordenada zv o quociente entre v e Fv :
3
zv = 3(r2 ,2hrh cos ) ;
(4)
0
0
que e a coordenada z do centro de massa do lquido
deslocado, como e facil comprovar.
Calculemos agora a componente horizontal F~h das
forcas de press~ao. Temos
Z
F~h = (,pdS cos ) k^ = ,
Z
unidades, e a coordenada x do centro de massa desse
prisma.
Resumindo, calculamos (no esprito do princpio de
Arquimedes), as forcas aplicadas pelo resto do lquido
sobre a \lente" de agua deslocada pela roda. O
equilbrio desta \lente" de agua esta esquematizado na
Fig. 6.
A
0
(h , r sin )r cos d k^
(5)
Z 0
= ,2hr
cos d k^ = ,2h2k^:
(6)
Fv
,0
P
F
Fh
L
parede
0
Para obter o ponto de aplicac~ao desta forca F~h , seguimos um procedimento similar aquele que conduziu as
equac~oes (3) e (4) anteriores. Calculamos primeiro o
momento total produzido pelas componentes horizontais individuais das forcas de press~ao, em relaca~o ao
eixo O0 O00:
Z
~h = (,pdS cos )r sin (,^j ) = , 23 h3^j ; (7)
e agora a coordenada xh do ponto de aplicac~ao desta
forca:
(8)
xh = , h3 :
Note que, de acordo com as equac~oes (3) e (7), ~v +~h =
~0. A condic~ao de equilbrio e pois vericada.
B
Figura 6. Diagrama das forcas aplicadas a \lente" de
agua.
IV Outros exemplos
Este tipo de calculos pode ser generalizado ao caso de
uma \lente" lquida de forma arbitraria. Suponhamos,
por exemplo, que a superfcie da lente e gerada pela
rotac~ao de uma curva arbitraria em torno do eixo horizontal z , como na Fig. 7.
x
pd S
A
2h
4 h/ 3
h
z
h/ 3
F
h
B
Figura 7. Geometria de uma \lente" lquida de
revoluca~o.
2h
Figura 5. Analise da componente horizontal das forcas
de press~ao.
Como era de esperar, os resultados (6) e (8) representam, respectivamente, o peso do prisma equilatero
mostrado na Fig. 5, ou seja, 12 (2h)(2h) nas nossas
A equac~ao da superfcie e z = z () no sistema de
coordenadas cilndricas (; '; z ). O elemento diferencial de area da superfcie vem dado pelo vector
d
z
0
0
~
^
dS = n^ dS = (k , z ^)dd'
z d < 0 : (9)
que aponta para o exterior da \lente".
A forca de press~ao exercida pelo lquido e agora
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Z
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Z
F~ = ,pd~S = ( cos ' , h)(k^ , z 0 ^)dd'
= ,2hk^
Z
= ,h3 k^ , h
0
Z
0
(10)
Z
d , 2 cos 'z 0 (cos '^i + sin '^j )dd'
h
(11)
2 ddz d ^i:
(12)
Integrando por partes, e levando em conta que z (h) = 0, obtemos:
F~ = ,h3 k^ + 2
Z
h
0
z ()d ^i :
(13)
A componente z desta forca anula exatamente a forca devida a parede, que e agora exercida sobre um disco de
raio h (ver Fig. 8).
x
ϕ
h
y
Figura 8. Vis~ao frontal da base da \lente".
Efetivamente, cada fatia estreita do disco, de espessura dx e comprimento 2h sin ', esta submetida a uma forca
horizontal aplicada pela parede
dFparede = p(2h sin ')dx = (h , x)2h sin 'dx = ,2h3 (1 , cos ') sin2 'd';
express~ao que pode ser integrada entre 0 e para dar
F~parede = h3 k^:
(14)
(15)
Pode-se mostrar facilmente, usando metodos similares aos empregados anteriormente, que o ponto de aplicaca~o
desta forca tem coordenadas
xp = , h4 ; y = 0; z = 0:
(16)
A componente x da forca F~ (ver equac~ao (13)) compensa exatamente o peso da \lente" de agua:
Z
Z
PL = dV (,^i) = , dd'dz ^i = ,
= ,2
Z
0
h
z ()d ^i :
Z
2
0
d'
Z
h
0
d
Z
z ()
0
dz ^i
(17)
(18)
d
Resta apenas vericar agora o equilbrio dos momentos aplicados sobre a \lente" de agua. Como uma
alternativa ao metodo usado na Sec. III, podemos aqui
somar todas as contribuic~oes das forcas de press~ao apli-
cadas nos pontos P da superfcie, para xo. Como se
ilustra na Fig. 9, cada uma destas contribuico~es pode
ser considerada aplicada num ponto bem denido C , de
coordenada zC , onde todas as normais aos elementos de
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superfcie intersectam o eixo z .
~ n^ = ~0, em que n^ e paraPartindo da condic~ao CP
0
^
lelo a k , z ^ (ver equac~ao (9)), resulta
zC = z + z0 :
(19)
Por outro lado, a componente vertical da resultante des-
tas forcas sera, de acordo com a equac~ao (12),
d~F x = ,2 z 0 d ^i:
(20)
Somemos agora todos os momentos elementares que
estas forcas exercem em relac~ao ao eixo y:
c
Z
~y = zC dFx ^j = ,
= ,
Z
h
0
Z h
0
z + z0 2 z 0 d ^j
zz 0 d +
2
Z
h
0
!
(21)
!
Z z(0)
4
h
^
2 z dz ^j ;
d j = , 4 ,
0
3
(22)
d
apos fazer uma mudanca na variavel de integrac~ao.
Um corpo imerso (total ou parcialmente) num uido
ca submetido a uma forca vertical chamada impuls~ao.
Esta forca tem uma magnitude igual ao peso do uido
deslocado pelo corpo, aponta para cima, e actua no centro de gravidade do uido deslocado.
x
pdS
h ϕ
P
ρ
z
C
Figura 9. Perspectiva da \lente" de agua.
Isto anula exatamente os momentos restantes. Com
efeito, o primeiro termo na equac~ao (22) compensa o
momento produzido pela forca exercida pela parede
(ver equac~oes (15) e (16)). E, se dividirmos a \lente"
de agua em fatias de espessura dz e raio , o segundo
termo compensa os momentos devido ao peso das fatias
elementares (lembre que g = 1):
Z
z (0)
0
2 z dz =
V Conclus~oes
Z
0
z (0)
z (2 )dz:
ser aplicado de uma forma ligeira, como por vezes se
faz. E importante perceber muito bem o signicado do
princpio. Um enunciado tpico e o seguinte:
(23)
Do estudo efetuado anteriormente, cabe tirar uma conclus~ao simples: o princpio de Arquimedes n~ao deve
Por que e que, no nosso problema, n~ao podemos
usar este princpio? A resposta tem a ver com o signicado da palavra \imerso" ou, mais especicamente,
\parcialmente imerso".
Deve ser entendido que um corpo esta parcialmente
imerso num uido quando a superfcie que separa as
partes imersa e emersa e a superfcie livre do uido,
ou seja, a horizontal. Quando isto acontece, o volume
de uido deslocado pelo corpo estava previamente em
equilbrio estatico sob a acca~o do seu peso e das forcas
de press~ao do uido circundante. E possvel ent~ao substituir as forcas de press~ao pelo peso do uido deslocado (invertendo apenas o sentido). No nosso problema, a superfcie que separava as partes submersa
e exposta da roda n~ao era a superfcie livre da agua.
A porc~ao de agua deslocada encontrava-se previamente
em equilbrio estatico, mas esse equilbrio resultava n~ao
apenas do seu peso e das forcas de press~ao da agua
restante: havia mais uma forca, a forca exercida pela
parede vertical do reservatorio.
Caso o leitor deseje usar o conteudo deste artigo com
os seus alunos, podera tambem propor-lhes, adicionalmente, o seguinte problema, cujo objectivo e claricar o
signicado da palavra \imerso": Um objecto (Figs. 10A
ou 10B) encontra-se em repouso, em contacto direto
com o fundo do mar. Suponha que o objecto (o Titanic, por exemplo) vai ser levantado lentamente do
fundo mediante um cabo (Fig. 10C). Faca um graco
da tens~ao T durante o processo.
Eduardo Rino Alberto Segre, Manuel Fernando Ferreira da Silva
A
93
B
C
T
Figura 10. Esclarecendo o signicado da palavra \imerso".
Convem notar que, durante o processo de levantamento, a tens~ao do cabo sofre uma descontinuidade no
instante em que o objecto deixa de estar em contacto
com o fundo. O leitor podera vericar que essa \queda
de tens~ao" instant^anea no cabo corresponde ao peso
de uma coluna lquida com a mesma base horizontal
do objecto e altura igual a profundidade dessa base.
Pretende-se assim esclarecer que o princpio de Arquimedes apenas podera ser usado a partir do momento
em que o objecto deixa efectivamente de estar em contacto com o fundo. So ent~ao pode-se dizer que ele esta
\imerso".
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