JOVENS E INTERNET: DISCUTINDO DIVISÕES DIGITAIS Cristina Ponte1 FCSH- Universidade Nova de Lisboa Resumo O conceito de digital divide, divisão digital, tem sido criticado por sugerir que a divisão digital se faz por via da acessibilidade ou não a meios digitais, ignorando um quadro mais complexo que inclui também os tipos de uso, a sua qualidade e a sua eficiência (Norris, 2001). Também a universalização da expressão geração digital aplicada aos mais novos tende a ignorar parâmetros nacionais, sociais, culturais e educacionais que influenciam os seus acessos e usos efectivos das tecnologias digitais. Outros conceitos emergentes para pensar esta problemática são o de diferenciação digital, a acentuar o carácter dinâmico do fenómeno da desigualdade digital e a sua relação com as questões de desigualdade social, e o da participação digital, que convoca direitos de cidadania, ambos a deslocar o foco da tecnologia para a sociedade. Nesta comunicação, a discussão destes conceitos tem como base uma análise dos acessos e das práticas digitais de adolescentes e jovens (15-24 anos) residentes em Portugal, a partir de depoimentos recolhidos no âmbito de um projecto de investigação transnacional em curso sobre inclusão e participação digital2. Questionando gerações As novas tecnologias digitais inscrevem-se frequentemente como atributo fundamental da geração dos nascidos na segunda metade dos anos 1980 (geração net, geração digital), tanto em países onde a maioria da população adulta também acede à internet como em países onde o acesso e uso do computador e da internet ainda não fazem o pleno da sua experiência quotidiana. Esta generalização assenta num certo determinismo tecnológico inscrito como „marca geracional‟, que ofusca a relevância e a 1 Com um agradecimento a José Alberto Simões (FCSH-UNL), pela leitura crítica e sugestões. 2 Projecto Inclusão e participação digital. Comparação de trajectórias de uso de meios digitais por diferentes grupos sociais em Portugal e nos Estados Unidos (UTAustin|Portugal/CD/016/2008), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia; Coordenação: Cristina Ponte (Universidade Nova de Lisboa), José Azevedo (Universidade do Porto) e Joe Straubhaar (Universidade do Texas, Austin). 1 diversidade de contextos nacionais, socioeconómicos e culturais em que crescem adolescentes e jovens. Será que existe mesmo uma „geração digital‟, universal e transnacional, marcada pelas suas diferenças relativamente a gerações que a antecederam? Para uma visão menos generalista, vejamos um pouco sobre o que tem alimentado sucessivas designações geracionais. Designações geracionais surgidas nos Estados Unidos nas últimas décadas, provenientes sobretudo de estudos de comportamento de consumidores, como Baby Boomers (para os nascidos após a II Guerra Mundial até finais dos anos 1960), X-Generation (entre 1970 e meados dos anos 1980) e Millenials (depois dessa data) foram adaptadas na linguagem corrente e mesmo académica. Na sua forma condensada, circulam com uma naturalidade e universalização tais que dificultam o necessário questionamento sobre os seus limites. Entre outros, destacamos constrangimentos de ordem política, socioeconómica e cultural que marcam a história dos países e os contextos de vida dos seus cidadãos mais jovens. Vejamos brevemente, considerando a geração dos baby boomers (os pais da geração net): aqueles que cresceram nos anos 50-60 na sociedade norte-americana fizeram-no em condições bastante diferenciadas dos que cresceram nesses anos na sociedade portuguesa ou na brasileira, nomeadamente no que se refere ao nível da literacia e escolarização dos seus pais, de desenvolvimento económico ou de liberdade de expressão e de circulação de ideias. Nesses anos marcados por fortes manifestações cívicas na sociedade norte-americana e em vários países europeus, os jovens portugueses e brasileiros viviam sob ditaduras. Em 1970, a taxa de analfabetismo, residual nos Estados Unidos (1%), atingia mais de um terço dos brasileiros (33,7%) e um em cada quatro portugueses (25,6%), superando o valor atingido pelos Estados Unidos cem anos antes (20% da população sem saber ler nem escrever em 1870).3 3 Três décadas mais tarde, em 2000-2001, as taxas no Brasil e em Portugal continuavam longe de valores residuais, apesar de se terem reduzido, respectivamente para 13,6 e 9%. Fontes: http://nces.ed.gov/naal/lit_history.asp; www.ine.pt; http://www.ibge.gov.br 2 Torna-se portanto necessário ir além da designação lexical de geração enquanto “conjunto de pessoas que têm aproximadamente a mesma idade”4 e olhar para as gerações enquanto fenómeno social. Uma das primeiras conceptualizações sobre gerações na pesquisa social é do autor alemão Karl Mannheim, nos anos 1950. A expansão das relações geracionais de um nível de comunidade para um nível societal proposta pelo autor assenta na consideração de que o dinamismo da estrutura social marca as diferenças e interacções a nível político, económico e cultural, entre as várias gerações que vivem um mesmo tempo numa dada sociedade. Essas várias unidades geracionais podem ser identificadas qualitativamente pela sua gestalt, a sua afinidade de respostas e de participação conjunta num “destino comum” (Mannheim, in McLeod e Thomson, 2009, pp. 210-1). O autor sublinha o peso da influência dos anos de infância e de juventude na formação dessas unidades geracionais e faz notar que a forma que adquire a transmissão geracional vai depender do ritmo e da intensidade da mudança social. Assim, nas sociedades onde a mudança social se faz a um ritmo lento, os mais novos reconhecem-se nos mais velhos, podendo mesmo adoptar os seus valores, enquanto em sociedades de ritmos acelerados de mudança, os mais velhos serão mais receptivos aos mais novos. Gerações e media Os marcadores de infância e juventude e a atenção ao ritmo da mudança social estão presentes quando é considerada a relação dos mais novos com os media. Emergindo enquanto construção social no mesmo tempo histórico em que se afirmaram as indústrias modernas dos media impressos – meados do século XIX nas sociedades modernas – os conceitos de infância e de juventude foram marcados também pelos media: certos conteúdos impressos teriam efeitos negativos sobre as crianças, afectando as suas mentes inocentes, e sobre os jovens, incitando-os a comportamentos de imitação. Os possíveis efeitos perniciosos da literatura popular, e mais tarde de filmes ou de comics inscrevem-se nos discursos de media panics das primeiras décadas do século XX (Drotner, 1992; Critcher, 2008), em vagas sucessivas de repetição dos mesmos argumentos de medo moral. 4 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa: Círculo dos Leitores, p. 1876 3 A consideração dos media como marcadores de gerações vai intensificar-se a partir dos anos 1950-60, com novos consumos, a consolidação da globalização económica e cultural (entre outras indústrias globais estão as dos media e do entretenimento) e de aceleração do ritmo da mudança social. A geração da televisão, que vai dos anos 1960 até meados dos anos 1980, será a primeira a ser definida a um nível global, transnacional. Pode contudo ser diferenciada pelas próprias geografias do visionamento televisivo, em tempos em que o âmbito dos canais televisivos se restringia ao território nacional. Por exemplo, a tradição do serviço público televisivo na maioria dos países do norte e centro europeu seguiu nessas décadas uma tripla orientação na programação para jovens (informar, entreter, educar), enquanto o modelo norte-americano, de predomínio de canais privados, apresentou uma orientação vincadamente comercial e de entretenimento. A partir da década de 1980, as condições de visionamento televisivo são afectadas não só pela amplitude das mudanças tecnológicas por via do cabo e satélite e a emergência de novos canais, transnacionais, mas também pela emergência de utensílios como o telecomando e o videogravador. O acto de „ver televisão‟ tornou-se uma experiência mais decidida pelo espectador, nos seus tempos, espaços e modos de visionamento. A chegada de novos aparelhos, o aumento do número de canais, o acesso ao satélite e ao cabo, tudo isto vai provocar rupturas na “domesticação” (Silverstone e Hirsch, 1992) da televisão, da aquisição de novos aparelhos às rotinas e conversas. Entre outras mudanças, com o aumento do número de aparelhos, o „velho televisor‟ é deslocado para o quarto da criança ou do adolescente, estimulando formas de visionamento menos gregárias e mais individuais. A década de 1980 é também a da introdução dos primeiros computadores domésticos e dos jogos digitais, num ritmo imparável de diversidade e rápida obsolescência: ciclos geracionais no que se refere a novas tecnologias tornam-se cada vez mais curtos. Se a aceleração da sociedade de consumo e dos recursos tecnológicos digitais que se vem afirmando desde os anos 1960 marca as relações de crianças e jovens com os media, também os adultos não lhes ficaram indiferentes. Num tempo de acelerada mudança social, milhões de adultos iniciaram-se em teclados de computador e em linguagens 4 digitais e tiveram de realizar a sua alfabetização informática por via das suas ocupações profissionais, mas convém assinalar que muitos deles aderiram com prazer e entusiasmo a novas formas de entretenimento por via dos meios digitais, como os jogos. Este movimento de receptividade a valores da ludicidade associados à infância e juventude vai de encontro ao que assinalava Mannheim, na relação entre gerações e ritmos de mudança social. Na maioria dos países do norte europeu, os pais de crianças (6-17 anos) lideram nas estatísticas no que se refere ao uso da internet (Eurobarómetro, 2009), contrariando assim a visão dominante que atribui aos mais novos essa liderança. Para alguns sociólogos da juventude, a característica mais comum da geração que vive a sua infância e juventude com estes meios seria um conhecimento sofisticado dos produtos de consumo, que se sobreporia a diferenças de classe e de capital cultural. Há quase duas décadas, o investigador britânico David Cannon sublinhava que jovens com elevada escolaridade e os que tinham abandonado cedo a escola partilhavam um conhecimento detalhado de computadores, media, marcas de moda, de vestuário ou de desporto, todos se divertem a reunir factos e trivialidades, temiam o tédio, preocupavam-se com a aparência e procuravam um contínuo retorno e aprovação dos outros (Cannon, 1994, in Hengst, 2003, p. 117). A estas generalizações geracionais, que não são de hoje, importa contrapor um olhar mais analítico, que dê conta do que subjaz para além deste aparente „máximo denominador comum‟. O determinismo tecnológico na caracterização simplificada de gerações opera em torno de uma lógica binária. Nos Estados Unidos e circulando depois pelo mundo, obras de grande popularidade, como a de Don Tapscott (1998), opõem a geração dos baby boomers à geração net assentando no binómio televisão e internet. A primeira, a geração da televisão, seria uma geração acomodada aos conteúdos televisivos, decididos por produtores e programadores profissionais, seria mais conformista e mais marcada por uma visão mainstream do mundo); a segunda, a geração net, seria uma geração mais vivaça, analítica, criativa, segura de si, receptiva às diferenças e globalmente orientada por via da sua relação intuitiva e espontânea com as tecnologias e os ambientes digitais. São muitas as críticas que este reducionismo suscita, entre as quais a da comprovação de que a internet não aniquilou a experiência com conteúdos televisivos, embora tenha levado mais longe as possibilidades de um visionamento 5 televisivo individual e a la carte. Questões de estatuto social estão também ausentes destas análises, que nos dizem muito pouco sobre estes jovens, para além da sua idade e onde vivem: até que ponto representam uma visão do futuro que se aplique a todos os jovens é a questão crucial (Buckinhgam, 1998, p. 560, destaque do autor). Por outro lado, estes discursos continuam também a ignorar a presença e influência contínuas dos adultos na paisagem digital habitada pelos mais novos. Como sublinha Herring (2008), existem várias faces dessa influência por parte dos mais velhos. São adultos os que criam e regulam as tecnologias usadas pelos jovens, os que tiram os respectivos proveitos financeiros e os que orientam a publicidade para o mercado de consumo juvenil, em torno de estilos de vida de despreocupação, individualização e desprendimento em relação ao futuro, numa lógica de carpe diem que transparece também na publicidade ao entretenimento – e mesmo a outros consumos - dirigida aos mais velhos. Em contraponto a esse mesmo estilo de vida de „irresponsabilidade‟, encontramos outros discursos de adultos e dirigidos a adultos, nomeadamente o que perpassa pelas notícias. Aqui, os ambientes e as experiências digitais vividos por crianças e jovens são alvo de atenção jornalística quando associados a situações negativas, num discurso que alimenta prescrições normativas que reflectem valores e medos de adultos. As notícias sobre as relações dos jovens com os meios digitais incluem a vitimização (vítimas de conteúdos e de contactos perigosos) mas sobretudo a diabolização, erguida em torno de actos criminosos. Este padrão dos media noticiosos que transparece numa dimensão transnacional raramente dá conta das competências dos mais novos no domínio da tecnologia e ignora os seus direitos de expressão e de participação (Ponte, 2008; Ponte, Bauwens e Mascheroni, 2009). Por sua vez, a designada geração digital tem com frequência dificuldade em exprimir a sua relação com a tecnologia; quando interrogados sobre a sua experiência digital, os jovens respondem muito mais em termos das actividades que realizam por via do que a tecnologia lhes proporciona. Para muitos, a tecnologia digital existe nas suas vidas „desde sempre‟, numa experiência a que falta necessariamente uma perspectiva histórica e comparada com outros tempos e outros recursos. A tecnologia pode ser mesmo considerada „transparente‟ para a execução do fim social e nem para todos o manejo de aparelhos digitais é uma das suas actividades mais divertidas. 6 Nesta linha, acentua Herring (2008, p. 77), os usos das „novas tecnologias‟ para fins sociais por parte de jovens são bastante semelhantes aos usos das „velhas tecnologias‟ por parte de outras gerações, nos seus tempos de juventude – recordemos a troca de correspondência por postais ou cartas, ou o tempo passado ao telefone fixo, a falar com amigos. A designação “geração internet” reflecte sobretudo a perspectiva de uma geração demográfica para quem a internet e os meios digitais associados são uma novidade de relevo que apareceu num momento mais tardio da sua vida: é uma designação conferida por quem está fora do grupo e não uma designação emergente do grupo e que escolhe essa referência tecnológica para se auto-definir (Herring, idem, p. 78). Por tudo isto, como afirma o investigador britânico David Buckingham, “a chamada geração digital só pode ser convenientemente compreendida à luz de outras mudanças, como por exemplo a economia política da cultura juvenil, as políticas sociais e culturais, as práticas para regular a vida dos jovens e as realidades dos seus contextos quotidianos” (Buckingham, 2008, p. 14). Do acesso à diferenciação e à participação digital Em países de forte penetração digital, onde as desigualdades nas condições físicas de acesso estão praticamente ultrapassadas, tornam-se mais visíveis questões de diferenciação centradas nas desigualdades de recursos socioeconómicos e culturais, que vão pautar usos diferenciados dos meios digitais. Como sublinha Jan van Dijk (2006), o conceito de acesso material aos meios digitais compreende não só o acesso físico mas também outros tipos de acesso necessários para se conseguir uma disposição e conexão totais. Desde logo, o acesso motivacional (nem todos querem), afectado por factores não só de ordem social e cultural5 mas também de ordem psicológica, como a tecnofobia, a ansiedade ou o medo da experiência, 5 Pesquisas de natureza qualitativa realizadas por investigadores da Universidade do Texas, Estados Unidos, junto de comunidades pobres da cidade de Austin permitiram evidenciar a importância de culturas masculinas tradicionais, que rejeitavam usar o computador por o associarem ao trabalho feminino, a “coisas que fazem as miúdas”, e de estilos de vida de culturas minoritárias e de classes trabalhadoras (Rojas et al., 2004, in van Dijk, 2006). 7 encontrados sobretudo entre indivíduos mais velhos, com menor escolaridade e mulheres. Há ainda que considerar o acesso capacitado por uma literacia digital tanto ao nível dos saberes instrumentais ou operacionais (saber lidar com o hardware e o software) como ao nível do processamento da informação substancial (saber encontrar, seleccionar, processar e avaliar informação em fontes específicas seguindo questões específicas), que torne possível a concretização de pesquisas para a melhoria da posição do indivíduo na sociedade (van Dijk, 2006, p. 228). Mais do que acesso e de usos simples dos meios, para usos sobretudo decorrentes em espaços privados e de redes de proximidade afectiva, é neste patamar que se pode incluir a participação e integração social num espaço mais alargado, público, tirando partido das potencialidades acrescidas de intervenção comunicacional e de produção criativa de conteúdos. Enquanto tem havido bastante pesquisa sobre a aquisição de competências operacionais, escasseia a atenção sobre estes tipos de capacidades substantivas e críticas, nota van Dijk (2006). A colectânea de pesquisa centrada nos usos evidencia diferenças entre pessoas com níveis superiores de educação e de rendimentos, que usam aplicações mais avançadas do computador e da internet para informação, comunicação, trabalho, negócios e educação, e pessoas de posição social inferior, que usam aplicações simples para informação, comunicação, compras e entretenimento. Outras diferenças decorrem de recursos como a banda larga, que permite uma maior variedade de aplicações e usos mais activos e criativos da internet. Pode-se dizer, a esta luz, que a diferenciação digital dá conta das divisões digitais de modo recursivo: um fosso digital que desaparece deixa ver um novo fosso digital, quando se reduzem as diferenças no acesso à internet tornam-se mais visíveis diferenças nas destrezas e nos meios para a usar. Nesta perspectiva, “as características dos utilizadores da internet desempenham um papel mais importante do que as características da própria internet no modo como decorre a sua adopção e uso”, sublinham os investigadores holandeses Jochen Peter e Patti Valkenburg (2006, p. 297). Para testarem estas considerações no contexto holandês – onde mais de 90% dos adolescentes (13-18 anos) tinham acesso à internet nas suas casas em 2006 -, Peter e Vankenburg recorreram a um modelo analítico com a atenção a três linhas de diferença em relação ao que era habitualmente pesquisado nesta problemática: 1) a internet como 8 meio social e como meio de entretenimento, indo além da internet como meio de informação substantiva; 2) a ubiquidade da internet, possibilitada pelos meios móveis e redes sem fios, indo além da atenção à internet fixa, instalada nos computadores de mesa; 3) as práticas de adolescentes, menos escrutinadas do que as práticas de adultos no que se refere a formas de exclusão digital. A hipótese formulada pelos investigadores holandeses foi a de que as variáveis clássicas da desigualdade social, como os recursos socioeconómicos (escolaridade e rendimentos dos pais), cognitivos (a idade e a escolaridade do adolescente) e culturais (género, etnia), afectariam a diversidade dos usos da internet e a tendência crescente para uma interconexão ubíqua. A pesquisa foi realizada junto de 749 adolescentes (13-18 anos) por inquéritos online em torno de questões que incluíam as práticas na procura de informação específica, o uso de redes sociais, o recurso à internet para jogos e as modalidades de mobilidade no uso do digital. As conclusões foram de sentidos complementares, evidenciando que a o uso social da internet não é linear: por um lado, apontaram para a diferenciação social dos usos informacionais e de entretenimento bem como nos modos de usar e de tirar partido da mobilidade; por outro, evidenciaram o uso transversal da internet como meio social, menos marcado por diferentes recursos socioeconómicos e cognitivos. Também apareceram esbatidas diferenças de género e de etnia, visíveis em tempos anteriores de menor acesso dos adolescentes a meios digitais. Partindo destes enquadramentos e contributos, vamos então olhar no contexto português – distante do contexto holandês no que se refere à penetração social dos media digitais – como se processa a divisão e a diferenciação digitais entre jovens (15-24 anos). Inclusão e participação digital de jovens, em Portugal Na sociedade portuguesa, a problemática da inclusão e diferenciação digital distingue-se da maioria dos países da União Europeia: as crianças usam mais a internet do que os seus pais: em 2008, 68% das crianças (6-17 anos) usavam a internet, para 65% dos seus pais, com apenas cerca de um terço (32%) a declarar-se utilizadores frequentes (Eurobarómetro 2008). Esse fosso é ainda mais acentuado quando se considera o conjunto da população maior de 15 anos. Dados de 2008 apontavam que o número de 9 utilizadores da internet era de 41%, enquanto a percentagem de utilizadores jovens (1524 anos) atingia 81% (Obercom, 2009). O Gráfico 1, que apresenta a distribuição do uso do computador, internet e telemóvel por escalões etários, evidencia a diferença no uso do computador e da internet, que cai a pique a partir dos 25 anos e que são os mais novos (10-15 anos) os que mais acedem a essas tecnologias (na casa dos 90%). Mostra também, e por contraste, que numa sociedade com problemas de literacia digital, o uso do telemóvel decresce menos com a idade, com mais de metade da faixa etária mais idosa a aceder a este meio digital Gráfico 1: Uso do computador, internet e telemóvel por escalões etários Fonte: Instituto Nacional de Estatística, 2009 Outros estudos sobre públicos e audiências em Portugal sublinham que a televisão continua a ser o meio hegemónico, referido como sendo usado pela quase totalidade dos mais velhos e dos mais jovens (15+): ainda que as experiências televisivas tenham diferentes contornos, com os mais novos a recorrerem à internet para seguirem os conteúdos televisivos que lhes interessam (ERC, 2008). Nos últimos anos, sobretudo desde 2007, o governo português deu relevo a políticas públicas de inclusão digital associadas ao Plano Tecnológico de modernização do país. O estabelecimento de protocolos com indústrias de hardware e de software e operadoras móveis de comunicação, tornou possível a aquisição a baixo custo de portáteis com 10 ligação à internet em banda larga por estudantes de todos os graus de ensino. Em 2010, já tinham sido distribuídos 800 mil portáteis a estudantes, a que se juntavam os cerca de 325 mil portáteis vendidos a jovens e adultos no âmbito do Programa Novas Oportunidades, que procura dar resposta aos baixos índices de escolarização da população portuguesa6. Este acesso a um ritmo acelerado a computadores portáteis e a ligações à internet em banda larga não tem sido contudo acompanhado de programas de formação que vão além das funcionalidades operacionais, no âmbito de disciplinas de formação tecnológica. Escasseia também informação sobre o impacto destas medidas nas famílias dos jovens estudantes, na maioria dos casos sem terem experimentado o computador ou a internet. É neste contexto de mudança que surge o Projecto de Investigação Inclusão e Participação Digital (2009-2011), no âmbito do protocolo entre a Universidade do Texas e a Fundação para a Ciência e Tecnologia, de Portugal. O Projecto, que beneficia da pesquisa que vem sendo realizada há anos sobre este tema pela Universidade do Texas (ver Straubhaar et al., 2009) e que inclui uma dimensão comparada entre os dois contextos sociais, tem como objectivos principais: 1) fortalecer a inclusão, a literacia e a integração digital pelo conhecimento das condições e tendências de acesso e de apropriação por parte de utilizadores e não-utilizadores de meios digitais, com um foco nos grupos digitalmente excluídos; 2) promover a pesquisa e a educação avançada nos meios digitais, valorizando a formação de jovens investigadores; 3) contribuir para que indústrias digitais, decisores de políticas digitais e agentes sociais com intervenção nas comunidades (incluindo professores) compreendam as práticas de utilizadores (e de não utilizadores) de meios digitais, e tracem linhas de intervenção facilitadoras do alargamento da inclusão e da integração digital. 6 Informação recolhida em http://eescola.pt, a 8 de Junho de 2010. Só o programa e-escolinhas, conhecido pelo computador Magalhães, distribuiu mais de 400 mil computadores entre crianças a partir dos 6 anos no ano lectivo de 2008-2009 11 Considerando a família como unidade de análise, o Projecto erigiu como primeira fase de pesquisa empírica um inquérito qualitativo a famílias residentes em Portugal e no Texas, diferenciadas por características demográficas, por trajectórias de mobilidade (migração; regresso à escola na idade adulta, participação em programas de formação) e composição (famílias com e sem crianças; famílias cujos filhos não foram para o ensino superior. Em cada família foram entrevistados dois membros de gerações diferentes, a partir dos 15 anos, por estudantes de pós-graduação preparados e supervisionados por investigadores do Projecto. No total, foram entrevistadas em Portugal 65 famílias, a que correspondem 130 pessoas, das quais retiramos para a presente análise um grupo de entrevistados do grupo etário dos 15-24 anos. Ficou a cargo dos jovens entrevistadores a proposta de selecção de agregados familiares que obedecessem aos padrões apontados, tendo vários proposto famílias das suas redes de relações, o que terá contribuído para uma sobre-representação de estudantes entre os mais novos. Também a atenção às famílias migrantes (com um peso elevado entre a população do Texas, e com índices elevados de exclusão digital) como minoria social levou igualmente a uma sobre-presença de jovens imigrantes ou de minorias étnicas neste grupo. Note-se contudo que a amostra, pensada de acordo com critérios estabelecidos pelos investigadores, não tem pretensões de representatividade. Por outro lado, o facto de terem sido jovens investigadores a entrevistarem outros jovens em entrevistas semi-estruturadas, terá certamente contribuído para um conjunto de respostas particularmente expressivas, com uma reflexividade que não transparece nas respostas de natureza quantitativa. Retratos de inclusão e dos seus limites A análise vai incidir sobre 22 jovens, 11 de cada sexo e de cada grupo etário (15-19 e 20-24 anos), dos quais cinco são de nacionalidade brasileira e dois são luso-africanos. Dada a relevância da diferenciação socioeconómica, foi analisada a sua origem social, aferida pela escolaridade, o capital cultural e a profissão dos pais e a distinção foi estabelecida entre extracto social elevado (A-B); médio (C1), médio baixo (C2) e baixo (D). O Quadro I apresenta sumariamente a caracterização demográfica destes jovens, o seu acesso ao computador, à internet e ao telemóvel e ainda a indicação do segundo membro entrevistado do agregado familiar (parentesco, idade e uso da internet). 12 QUADRO 1 AQUI Como se pode verificar, todos os do grupo mais novo (15-20 anos são estudantes, enquanto no grupo dos mais velhos alguns exercem já actividade profissional. Predomina o extracto social médio e média baixo (16 famílias), para cinco famílias de extracto AB e uma de extracto social inferior. Os segundos entrevistados das famílias foram sobretudo as mães (19), nove das quais praticamente excluídas da internet (não uso ou uso raro) e duas com uso esporádico apesar de em praticamente todos os lares existir computador e internet. Jovens e internet: a diferenciação no uso Todos estes jovens são utilizadores da internet, a maioria declarando-se utilizadores frequentes, e quase todos têm telemóvel próprio, como se vê no Quadro I, numa quase igualdade de acesso material. As excepções encontradas nos mais novos (15-20) são de sentidos diferentes, indicadas aqui também em associação ao meio social de origem. As razões para um uso menos frequente da internet variam entre: - Uma baixa motivação pela internet, a contrariar a ideia da euforia digital partilhada por todos os jovens: Passo mais tempo com a televisão porque não tem que fazer nada (risos), declara Lucas, 17, AB Temos um computador há 11 anos, está no sótão. Uso a internet de vez em quando. Às vezes há aquela preguiça também de não querer subir as escadas, e ficar cá em baixo (risos) - Josephine, 15, C1. - Ausência de recursos: Nunca tive internet em casa. Vou à biblioteca… - Cátia, 17, D - Uma maior regulação parental, que se estende ao telemóvel: Posso ir à internet no escritório do meu pai, e o meu pai também tem um daquelas pens USB para internet, então pode ser em qualquer lugar com a pen. Durante o ano escolar é só sextas, sábados e domingos, durante uma hora. Durante as férias, por exemplo as férias do verão, pode ser todos os dias durante uma hora mais ou menos. (…) Agora 13 estou sem telemóvel porque eu abusei um bocadinho. Durante a noite eu também usava para falar com as minhas amigas, mas agora eu uso este que fica aqui em casa, quando chego em casa eu mando mensagens para o meu pai - Fernanda, 15, AB. Além das razões motivacionais e de ordem socioeconómica, questões de ordem cultural como as presentes na mediação familiar marcam assim diferenças na frequência do acesso à internet. Tal vai na linha de investigações internacionais, que evidenciam que são os lares de extractos sociais mais elevados e com maior capital cultural os que apresentam maior regulação parental no uso das tecnologias por parte dos filhos e uma menor profusão de aparelhos ao seu dispor (Livingstone, 2002; Livingstone & Bober, 2006). Esta mesma relação foi encontrada numa pesquisa recente realizada em Portugal (Ponte e Malho, 2008), com os pais da classe média a manifestarem contradições entre a ansiedade pelos riscos da tecnologia e o desejo de tudo proporcionarem aos filhos. Em contraste com o depoimento de Fernanda, acima, vejamos como a tecnologia orienta a „vida de jogos‟ do Pedro, da mesma idade e de uma família de classe média baixa: Tenho um portátil e uma torre, mas não dou muito uso a torre. A internet está em todos os locais. Até na casa de banho. Quando eu era mesmo pequeno e não tinha conhecimento totalmente da tecnologia, o que eu gostava mais de fazer era correr mesmo. Quando me tornei adolescente deixei de correr e me agarrei mais na Playstation e comecei a correr mais na Playstation. Tenho rádio, Mp3, consola, computador, Playstation, sistema de som, tenho comandos. Tudo o que facilita a minha vida de jogos. A maioria dos 22 jovens refere possuir ou aceder a um computador portátil em casa, com alguns a apontar mesmo a existência de mais de um portátil, em vários casos chegados recentemente aos lares por via de políticas públicas de acessibilidade à internet já referidas. As condições individuais de acesso à internet por banda larga incrementaram-se assim e é com orgulho que jovens de famílias com menores recursos económicos falam deste incremento: O computador encontrava-se no meu quarto. Agora encontra-se pela casa toda. É portátil. - Belmiro, 24, C2 Costumo usar a internet fora de casa, na escola, às vezes não apanho rede dentro da sala [de aula] e tenho de levar a minha pen Banda Larga. Também na casa dos meus tios, quando vou lá visitar, com o meu computador. - Pedro, 15, C2 14 A caracterização dos telemóveis é ilustrativa destas diferenças. Ter o modelo mais recente, mais poderoso e na moda é mais referido por jovens de famílias de classe média, média-baixa, num contraste com um certo distanciamento face à vaga consumista da tecnologia, expresso em famílias com mais recursos. Há contudo coincidência e transversalidade social nos principais tipos de usos, as mensagens para os amigos e chamadas telefónicas: O telemóvel era do meu pai, é um Nokia, já está meio quebrado. Não dá para fazer muita coisa. Fotos, mas nunca uso ele. Só mensagens ou telefonar. Nem tem internet, acho. - Lucas, 17, AB Telemóvel tenho desde que tive seis anos. O que tenho agora é um Touch, tem tudo. Tem youtube, tem Messenger, tem tudo, tudo um pouco. Todos os dias, SMS e chamadas ilimitadas e internet – Ana Rita, 15, C1 Tenho um telemóvel tão bom que só lhe faltam asas para ele voar. Se puser asas nisto, ele descobre tudo. Tenho um Sony Ericson, já tem acesso ao MSN e tudo. Já é um telemóvel razoável. É mais para falar e para trocar mensagens com a minha mulher e também uso o MSN. Costumo usar para despertador também. E para temporizador, por causa da comida. Também uso para ouvir música porque dá para mp23. - Belmiro, 24, C2 Para alguns destes jovens de camadas sociais com mais recursos económicos, o „primeiro computador‟ em casa faz parte da sua existência (sempre tivemos computador; desde sempre). A maioria aponta os 8-10 anos como o momento em que se iniciou na internet. A ligação aos novos media digitais nas famílias de menores recursos económicos faz-se por movimentos opostos. Na nossa amostra, a quase totalidade das famílias com menores recursos investiu na aquisição de computador e (mais tarde) no acesso à internet, valorizados em termos das políticas públicas como instrumentos úteis para as aprendizagens escolares, como se pode ver pelo número elevado de portáteis em jovens de famílias com menores recursos. Mais significativo será o investimento nos telemóveis, por parte de famílias de extracto social médio e média-baixo, com aquisição para os seus filhos de telemóveis de 3ª Geração, e outros apetrechos informáticos ligados ao lazer, como vimos com o Pedro, acima. Em muitos lares, estas aquisições implicaram sacrifícios e traduzirão não só o desejo de estar em sintonia com a maioria 15 mas também um contributo para uma auto-imagem de sucesso, a contrariar as condições de pobreza em que muitos pais viveram a sua infância e juventude: Acho que conseguimos dar-lhe a ele o que não conseguiram dar-nos a nós… o que é muito importante. O Bruno teve, teve consolas, teve mp3, teve... É assim... nós tentávamos dar-lhe tudo aquilo que ele pedia. Foi sempre tendo acesso a essas coisas todas. Às vezes não tão caras, mas foi tendo... foi tendo sempre tudo – mãe do Bruno José, 47 Entre estes equipamentos digitais, o computador e a internet ocupam uma posição especial não só pelo seu preço mas também pelos receios de riscos de acesso a conteúdos e contactos perniciosos. Estes receios confirmam que são os pais que não usam a internet os que mais exprimem preocupação com estes tipos de riscos online (Eurobarómetro, 2008). Apesar de todo o empenho no bem-estar material do filho, a família do Bruno José resistiu a proporcionar-lhe o computador: Tive computador no meu 9º ano. E foi um computador sem internet. Os meus pais eram um bocado cépticos em dar-me a internet. Ouviam muita coisa de pedofilia. E depois porque também não tinham muito conhecimento sobre protecção de indivíduos, as firewalls e essas coisas, e então “ah, não sei quê, estragas o computador e depois como é que é…” - Bruno José, 22 Noutros casos, o computador chegou ainda mais tarde: O primeiro computador foi oferecido por uma vizinha. Mais tarde comprámos um novo. Fui eu que o comprei. Basicamente para ir à internet - Carla, 22, C2 A excepção neste conjunto de famílias provém do agregado familiar com menos recursos materiais. A mãe de Cátia, 17, recusou fazer a ligação à internet em casa quando o seu filho de sete anos recebeu o computador Magalhães, do Programa eescolinhas, por medo da exposição a predadores sexuais („ele ouve-se cada coisa‟). Na sua entrevista, ao mesmo tempo que fala com orgulho de que conseguiu escrever o seu nome no computador, durante a frequência de um curso de formação para adultos, esta mãe solteira de três filhos afirma nunca ter visto um computador com internet (Como é que é, não sei). Na sua entrevista, Cátia reproduz os receios da mãe: 16 O que eu uso mais a internet é para fazer os trabalhos da escola. Eu não gosto das outras coisas, não tenho assim muita confiança (…). Foi a mãe e mais a televisão e os jornais e... a dizerem aquilo. E depois também a mãe avisou e eu desisti dessa ideia.7 O ambiente de aparente generalização destes 22 jovens aos mesmos equipamentos é cortado assim por dinâmicas contraditórias marcadas em termos de extracto social, na diferenciação entre famílias. Encontramos famílias com maior capital cultural a distanciarem-se das práticas consumistas generalizadas, num discurso da diferença que evoca a lógica da „distinção‟ (Bourdieu, 1979). Nas camadas com menos recursos, encontramos também a diferenciação entre o dar tudo - por um contraste com uma infância e juventude de pobreza material recordadas pelos pais entrevistados - por um lado, e o medo paralisante dos riscos tecnológicos que pode barrar a inclusão digital dos seus filhos, por outro. Em ambos os casos, estarão presentes reflexos dos discursos dominantes, de adultos, que vimos atrás: o publicitário a incidir no fascínio da tecnologia; o jornalístico, a dramatizar a sua perigosidade. Entretenimento, „cultura‟ e „informação‟ Os depoimentos destes jovens evidenciam bastante proximidade com os resultados encontrados junto dos adolescentes holandeses, excepto no ponto da ubiquidade, que é pouco referida espontaneamente. Esta relativa menorização da mobilidade possibilitada pela portabilidade do computador pode também decorrer de ainda existirem relativamente poucos pontos públicos com wireless e ainda baixos níveis de penetração da internet móvel, ao contrário da realidade holandesa em 2006. Como apontava a pesquisa de Peter e Valkenburg, usos da internet como meio de comunicação entre amigos bem como a sua dimensão de meio de entretenimento são socialmente transversais: para além dos jogos, a partilha de músicas e de vídeos e o visionamento de filmes descarregados no computador. Além do entretenimento e da comunicação com os amigos, todos referem o uso do computador e da internet para os 7 Cátia, que só dispôs do computador em casa por alguns meses, até se avariar, não refere contudo os trabalhos escolares quando recorda que o usava para “pôr as músicas em dia no MP3” ou para jogar com o irmão. Apesar das afirmações de concordância com as preocupações da mãe, noutro momento da entrevista expressa um „estado de alma‟ diferente: Se eu tivesse internet em casa criava depois um site, ia ao Messenger e falava com as minhas colegas todas… ou então sacava filmes para eu ver… 17 trabalhos de casa (os estudantes) ou para busca de informação utilitária ou relacionada com entretenimento: Estou sempre a ver filmes e procuro ver na internet informação sobre eles: críticas, estreias, actores… - Daniela, 18, AB Em vários depoimentos de jovens do sexo masculino, transparece uma certa prática criativa de manejar a tecnologia, associada também a permutas de conteúdos entre amigos: Ponho os discos na Xbox ou no laptop, no youtube às vezes. Ponho os meus discos todos no i-tunes, no i-pod depois. Os amigos me põem num stick e me dão – Lucas, 17, AB. Quando estou em casa e não me apetece ligar o computador, ligar a aparelhagem torna-se mais fácil. Costumo ver filmes no computador e na playstation. Meto na playstation, serve como DVD, e vejo na televisão. Se for um CD pirateado tem de ser no PC. Mas se for um DVD original, basta meter na Playstation e já dá para ver o filme. Televisão, só se for para jogar playstation. Para mim os computadores servem principalmente para trabalhos e internet, costumo estar mais tempo na net a jogar poker – Bruno, 22, C2 As geografias do entretenimento e do trabalho escolar estão claras nos testemunhos dos mais novos, para quem o acesso à internet em casa é sobretudo associado ao prazer, à ludicidade, à fruição de um tempo agradável e despreocupado, vivido em contacto com os amigos ou pela satisfação de emoções, pela música, o cinema, as imagens do YouTube… O computador serve para ouvir música, estar no MSN e às vezes quando se tem trabalhos para apresentar na escola, pesquisar um bocadinho. Em casa, o computador não é para um uso cultural, é mais entretenim… na escola tem que se fazer os trabalhos, então é muito mais cultural estar a pesquisar na escola porque tenho aquela obrigação do que em casa... - Mónica, 15, C2 Quando estou na escola, normalmente é mais pesquisa. Se me esqueci de um trabalho ou se vou apresentar um trabalho. Em casa é mais lazer. É Youtube para ver vídeos (risos). Jogos, com pouca frequência, mas sim, através de consolas. - Itamar, 15, AB 18 Competentes no acesso operacional ao hardware e ao software, nota-se cotudo na maioria dos depoimentos destes jovens uma quase ausência de referência a um acesso substantivo e estratégico à informação que transcenda os seus interesses de entretenimento. Os termos „pesquisa‟ e „pesquisar‟ na maioria das vezes não significam mais do que „ir ao Google‟ e encontrar rapidamente a primeira informação disponível, sem a analisar. Esta é outra tendência partilhada, a valorização da internet pela rapidez com que aparecem conteúdos, por contraste com a menor velocidade de outros meios de comunicação social. Ser mais rápida é o atributo dominante da internet nas falas destes jovens independentemente das suas diferenças sociais e digitais, a sugerir uma postura de conformismo perante os conteúdos que contraria as considerações de Tapscott, atrás apontadas, sobre o sentido crítico activado pela pesquisa. Uso a internet para as pesquisas, para escola, e para me manter em contacto com os meus amigos e família. Podia pesquisar por um livro ou revistas, só que também tem livros que posso não ter acesso então eu prefiro também ir para internet que eu posso pesquisar mais rápido digamos. - Fernanda, 15, AB Eu uso o computador para falar com as pessoas do Brasil, principalmente… pra procurar emprego e pra me informar de alguma coisa e porque acho que é um meio mais fácil para as duas coisas, mais rápido. - Morgana, 22, C1 Na internet a informação é mais rápida. Uso muitas vezes para fazer trabalhos da escola. Para estar informada, vejo os telejornais, na televisão, e a internet também porque dão menos trabalho. A informação é de mais fácil acesso. Não precisamos de perder tanto tempo para teres acesso a ela – Carolina, 17, C2 Todos os dias uso por causa do Hi5, os comentários, falar com os amigos... para saber as notícias uso também a internet. (risos) É mais rápido… a internet é de banda larga, podemos usar todos os dias, toda a hora. Todos os lugares. Pra todo lado que eu vá, mesmo se for no carro, vou na internet, todo o dia. Ana Rita, 15, C1 A gente chega à internet, tem logo lá os títulos. Aconteceu isto, isto e isto. Pronto. Não precisamos de ver mais nada, só precisamos de ler aquilo. Se a gente vir o noticiário da noite, a notícia prolonga-se muito. - Belmiro, 24, C2 19 Neste conjunto de depoimentos, escasseiam os que incluem a dimensão participativa de que se falava no início, no sentido de uma atenção ao mundo e de uma intervenção no espaço público. Dois dos depoimentos sobre os usos da internet, tirando mais partido estratégico do seu potencial de comunicação e cruzando-a com outros recursos, dos novos e dos velhos media. Advêm de dois jovens da mesma idade (22 anos) e formação universitária em Ciências da Comunicação. Um destes jovens é proveniente de uma família de classe AB, com ambos os pais licenciados, e outro provém de origem social modesta, cujos pais têm apenas a 4ª classe, o que recusa determinismos sociais, sublinha a importância do capital cultural adquirido e reconhece a mobilidade social que ocorreu nas últimas décadas, no país. Encerramos com um deles, a comentar como acompanhou uma campanha eleitoral recente: A internet permite escolha e, quando existe isso, as pessoas escolhem o que querem ver. Eu uso não só para comunicar, uso para pesquisa, para ter um blog, para me manter em contacto com o mundo. Para as eleições, usei a televisão, através dos debates e das análises que se fazia. E, depois, também, a internet e alguns jornais. Um bocado de tudo. Tentava buscar informação em vários pontos, através do Twitter, porque nós conseguimos informação que não se tem através da internet e do jornal. João, 22, AB. A rematar Contrariando um uso generalizado de expressões como geração net ou divisão digital, este texto procurou dar conta da necessidade de considerar a diferenciação social que caracteriza os contextos de acesso e de uso das novas tecnologias digitais. Com base na pesquisa empírica tornam-se visíveis semelhanças mas também diferenças nos modos como jovens de meios socioeconómicos e culturais diversificados acedem e usam as tecnologias digitais. Quando a sociedade se apresenta razoavelmente avançada no proporcionar do acesso digital aos seus cidadãos, emergem diferenças de ordem sociocultural. Encontrámos variações numa certa auto-apresentação elitista relativamente à posse de bens tecnológicos e numa maior intervenção parental por parte de famílias de classes superiores, de um lado, e de uma (aparente) resistência ao acesso por via de um medo social que recolhe mais adesão junto de camadas sociais menos instruídas, sobretudo do sexo feminino. Por parte dos jovens entrevistados, assinalámos mais semelhanças do que diferenças nos seus usos informacionais, comunicacionais e de entretenimento, com a maioria a sugerir um domínio da tecnologia onde escasseia 20 uma dimensão de literacia crítica na procura dos conteúdos e a não tirar partido das potencialidades de criatividade e participação cívica, agenciadas por um pequeno número destes jovens, detentores de maior capital cultural. Por outro lado, ainda que a internet esteja muito presente nas suas vivências, a televisão – e os seus formatos e conteúdos - continua a ser um meio de referência para a informação e o entretenimento junto de bastantes jovens. Nas suas variantes, estas conclusões confirmam a necessidade de se considerar a geração digital nas suas diferenças internas, de não a desligar dos seus contextos de existência e de incentivar políticas de inclusão digital que não excluam a dimensão da literacia crítica e da participação pública. Bibliografia Bourdieu, P. 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