Linguagem: produtividade e sistematicidade Referências: Chomsky, Noam, Syntactic Structures, The Hague, Mouton, 1957. Chomsky, Noam, Aspects of the Theory of Syntax, Cambridge (Mas.), The MIT Press, 1965. Chomsky, Noam, Knowledge of Language, New York, Praeger, 1986. Chomsky, Noam, New Horizons in the Study of Language and Mind, Cambridge, Cambridge University Press, 2000. Faria, Isabel, et al., Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1996. Lycan, William G., Philosophy of Language, London, Routledge, 2000. Rodrigues, Adriano, Introdução à Semiótica, Lisboa, Presença, 1991. (1) Pouca gente sabe que, em 1931, Adolf Hitler visitou os Estados Unidos e, durante esta visita, fez turismo, teve um breve envolvimento amoroso com uma senhora chamada Maxine em Keokuk, no Iowa, experimentou peyote (o que fez com que ele tivesse alucinações com hordas de sapos e rãs vestidos com pequenas botas e a cantar o Horst Wessel Lied), infiltrou-se numa fábrica de munições perto de Detroit, encontrou-se secretamente com o vice-presidente Curtis para discutir o mercado futuro das peles de foca, e inventou o abridor de latas eléctrico (cf. Lycan, Philosophy of Language). (2) W gadjhafkl wkemvodw boemtnsm qoeuqrefqe. (3) O João gosta de gelado de baunilha. (4) Baunilha de gosta de o gelado João. A frase (1) exemplifica a produtividade da linguagem, já que certamente o leitor jamais terá lido esta frase antes – e, no entanto, é capaz de compreendê-la, tal como em frases mais “banais”, como (3). Já (2) e (4) são exemplos de diferentes “anomalias”: (2) é uma 1 simples sequência de letras sem nenhum sentido em Português, enquanto (4), embora compostas por palavras que têm significado, é sintacticamente mal construída. Produtividade: um falante é capaz de produzir um número infinito de frases (bem formadas de acordo com as regras sintácticas, e com significado). “O homem mordeu o cão.” “O homem mordeu o cão que mordeu o gato.” “O homem que gosta de gelado de baunilha mordeu o cão que mordeu o gato.” “Ninguém acredita que o homem que gosta de gelado de baunilha mordeu o cão que mordeu o gato na casa de massagens.” “Se ninguém acredita que o homem que gosta de gelado de baunilha mordeu o cão que mordeu o gato na casa de massagens, então não há problema.” (1) (2) Não há um limite para a frase mais extensa. Não há um limite para o número de frases. Sistematicidade: os elementos das frases podem ser reaproveitados em outras frases, de acordo com as regras sintácticas. Ou seja, se um falante compreende a frase “O João ama a Maria.” também é capaz de compreender a frase “A Maria ama o João.” Como explicar a produtividade e a sistematicidade? Proposta: através da composicionalidade. Composicionalidade sintáctica: a estrutura de uma frase é exaustivamente determinada pelos seus constituintes e o modo como estão combinados. 2 Composicionalidade semântica: o significado de uma frase é exaustivamente determinado pelos significados dos seus constituintes e o modo como estão combinados. Exemplo: Estrutura sintáctica da frase “O Pedro partiu para Paris às dez horas” F SN SV DET N O Pedro SV V partiu SPREP SPREP às dez horas PREP SN para N Paris F: Frase SN: Sintagma Nominal SV: Sintagma Verbal DET: Determinante N: Nome (“substantivo”) V: Verbo SPREP: Sintagma preposicional PREP: Preposição (Cf. Introdução à Linguística Geral e Portuguesa) 3 Exemplos (simplificados) de regras sintácticas: F → SN SV (toda frase é composta por um sintagma nominal e um sintagma verbal) SN → (DET) (SADJ) N (SADJ) (um sintagma nominal é composto por um nome, que pode ser opcionalmente precedido por um determinante e um sintagma adjectival, e opcionalmente precedido de um sintagma adjectival). SPREP → PREP SN (um sintagma preposicional é composto por uma preposição e um sintagma nominal). SV → V (SN) (SPREP) (um sintagma verbal é composto por um verbo, opcionalmente seguido de um sintagma nominal, que pode ser opcionalmente seguido de um sintagma preposicional) (Cf. Introdução à Linguística Geral e Portuguesa) 4 Estrutura hierárquica da linguagem (combinatória a todos os níveis) Frases (estruturas de constituintes sintácticos) Palavras Significantes Morfemas Fonemas Não significantes Traços distintivos Dupla articulação (Jakobson, Martinet): as frases e palavras são constituídas a partir da articulação de elementos significantes mínimos (os morfemas); os morfemas, por sua vez, são constituídos a partir da articulação de elementos não significantes (os fonemas, que são combinatórias de traços distintivos). A dupla articulação é uma das características que distinguem a linguagem dos sistemas de comunicação de outras espécies. 5 Linguagem: “uso infinito de meios finitos” Léxico: número finito (embora vasto) de elementos significantes. Sintaxe: sistema de regras que combina itens lexicais de acordo com um número finito de categorias e produz a partir daí um número infinito de frases. Segredo: aplicação de regras recursivas (Chomsky). Basicamente, regras em que o output de uma operação pode servir como input para a operação seguinte. Exemplo (extremamente) simples: F → F + “e” + F (a conjunção de duas frases compõe uma outra frase) Recursividade e composicionalidade permitem explicar a produtividade e a sistematicidade da linguagem. A autonomia da sintaxe Exemplo: frases “sem sentido”, mas bem construídas. Ideias verdes incolores dormem furiosamente (cf. Chomsky, Syntactic Structures, 1957). Outro exemplo: ambiguidade estrutural. Ninguém acredita que o homem que gosta de gelado de baunilha mordeu o cão que mordeu o gato na casa de massagens. Sintaxe: componente que “gera” um número infinito de descrições estruturais de frases, que recebem uma interpretação fonológica e uma interpretação semântica. 6 Algumas características da linguagem “Criatividade”, “infinidade discreta” (Chomsky): produção e compreensão de um número infinito de frases compostas a partir da combinação de elementos discretos, ou seja, descontínuos (aspecto “digital” da linguagem na base da sua estrutura combinatória). Dupla articulação (Jakobson, Martinet): elementos significantes produzidos a partir de elementos não significantes. Arbitrariedade do “signo” linguístico (Saussure): a palavra “cão” não morde! “Deslocamento” (Hockett): a linguagem permite comunicar informação sobre eventos e entidades ausentes, quer sejam contemporâneos, passados ou futuros, assim como fictícios ou mesmo inexistentes. A linguagem como “órgão mental” (Chomsky e a “faculdade da linguagem”) Princípios e parâmetros A complexidade das estruturas sintácticas conduz à hipótese de que cada criança nasce com um conjunto inato de princípios universais da linguagem, um complexo sistema cognitivo teorizado como a “Gramática Universal”. Uma vez exposta a um determinado ambiente linguístico, a criança (ou mais exactamente, o seu sistema cognitivo linguístico) identifica os parâmetros próprios ao idioma, e a partir daí deriva as regras mais específicas. Pode dizer-se, assim, que cada nova geração “recria” a linguagem. É incorrecto falar-se no “aprendizado” de uma língua materna; tratase, antes, da maturação de um sistema cognitivo (activada pela exposição ao ambiente). 7 Algumas evidências: (1) (2) (3) argumento da “pobreza do estímulo” “pidgins” e crioulos linguagens gestuais criadas por crianças surdas Competência e desempenho (performance) Chomsky (Aspects of the Theory of Syntax, 1965): A competência é o “conhecimento” estritamente linguístico de cada falante, que lhe permite produzir e compreender um número infinito de frases. O desempenho é o exercício efectivo da competência, e não é estritamente linguístico, mas envolve a interacção de vários sistemas cognitivos (donde, cepticismo de Chomsky sobre a possibilidade de um estudo científico da performance). Linguagem-E e linguagem-I Chomsky (Knowledge of Language, 1986): A linguagem-E corresponde, grosso modo, às “línguas” tal como vulgarmente referidas; o “E” quer dizer tanto “externa” quanto “extensional” (no sentido da definição de um conjunto em extensão como uma “lista” dos seus elementos). A linguagem-I, por sua vez, corresponde ao estado da “faculdade da linguagem” no cérebro de cada falante; o “I” quer dizer tanto “interna” quanto “intensional” [é mesmo com “s”!] (no sentido da definição de um conjunto em intensão como a especificação das regras que geram os seus elementos). Apenas a linguagem-I pode ser objecto de conhecimento científico, já que a linguagem-E resulta de contingências históricas, culturais, sociais e políticas (Cf. Max Weinreich: “Uma língua é um dialecto com um Exército e uma Marinha”). 8