Notas sobre a tela em branco Uma conversa entre Fernanda Lopes e Rafael Alonso Rafael Alonso: Começaria nossa conversa a partir de uma frase do seu texto: “O artista carioca parece nunca ter como ponto de partida a tela em branco”1. Todas as pinturas são possíveis, certamente! Principalmente se considerarmos que quase todo (ou todo) o tipo de imagem já foi produzido, a possibilidade para estas novas pinturas seria a produção de um discurso artístico que empregasse de maneira distinta os modelos pré-existentes. Todo artista é, invariavelmente, amparado e confrontado pela história da arte. Dificilmente há um trabalho em que não seja possível identificar uma genealogia, um parentesco visual e/ou também discursivo com trabalhos anteriores. Acredito, portanto, que este grau zero, a tela em branco, não seja possível para nenhum artista. Daí a questão do espólio, que dá nome à exposição. Quando a proposição artística em questão toma a forma de pintura, este arquivo, este espólio (história da arte), esta herança (com todo o peso que ela carrega), torna o terreno mais instável pela necessidade de se lidar com pelo menos 500 anos de imagens, práticas e discursos. A operação que em Guston converteu um pintor expressionista abstrato em figurativo, hoje se daria no âmbito do discurso? Fernanda Lopes: Concordo, todo artista lida com a história da arte e é sempre possível identificar genealogias e parentescos. A questão é que nem sempre isso está na obra no sentido de ser matéria-prima de trabalho. Quando digo que suas telas não têm como pontos de partida telas em branco, me refiro ao fato de você partir, se apropriar, do que já existe. De você se referir literalmente ao que já existe enquanto arte ou, mais até, enquanto imagem. Fico pensando que muitas obras já viraram imagens, no sentido que já entraram na lógica de consumo e circulação de hoje. Daí de repente seja possível que a proteção de tela de um computador e uma pintura de paisagem do Turner convivam não só no imaginário comum como também na sua produção. Daí também não seja uma operação penosa para você interferir em um trabalho de outro artista a partir do momento que ele vira a imagem de um convite. Não é o trabalho, mas uma representação dele. É até engraçado usar essas palavras, como “representação”, para falar dessas questões. Sempre fico com a sensação de que elas estão mudando de significado. Ou 1 O artista de refere à frase do texto crítico, escrito para o folder da exposição, intitulado Todas as pinturas são pinturas possíveis. ampliando ou mesmo atualizando seus significados. O mesmo acontece com a ideia de “abstrato” e “figurativo” que você chega a falar acima. Será que a operação converteu mesmo Guston de um abstrato para um figurativo ou ele “entendeu” que a ideia de figuração podia ser mais ampla do que até então estávamos ou estamos acostumados a lidar? Penso muito nisso vendo uma parte considerável da jovem produção em pintura e até mesmo de pintores de outras gerações em trabalhos atuais, como Rodrigo Andrade (e as telas apresentadas na 29a Bienal de São Paulo, ano passado). Não acho que sejam essas pinturas figurativas porque acredito que elas não partem do mundo, e sim de um registro técnico do mundo, uma imagem, e que como toda imagem pode ser cortada, montada, colada, alterada, construída. Acho que isso permite, por exemplo, que seu horizonte não coincida na tela Defeito. Permite usar fitass adesivas e elásticos. Tenho, nesse sentido, duas perguntas: 1. Como você define o que vai ser pintado por cima dos convites? 2. O que o fez voltar aos desktops? Por que revisitar sua própria produção? RA: Respondendo à primeira pergunta, não há um balizamento estético ou de tema. Existe de maneira geral a predominância da paisagem e da geometria, mas esta não é uma obrigação. Identifiquei algumas maneiras de operar a partir da estrutura préexistente do convite, seja utilizando a imagem do trabalho ou do verso (note que nem sempre a apropriação é da imagem do trabalho), com as informações referentes à mostra em questão. Cada convite suscita um tipo de intervenção. Há ocasiões em que a imagem impressa é bastante interessante e minha interferência é mínima. Portanto bastante da referência original permanece. Nestes casos é possível identificar claramente quem foi meu “colaborador”. Outras vezes a imagem é muito pobre de elementos, então nesses casos deixo apenas a parte do original que identifica este “colaborador”. Por vezes a imagem do convite é interessante, mas um pequeno elemento gráfico capta minha atenção, como no caso do políptico Nave em estação, no qual construí paisagens acadêmicas em torno de um fragmento do logotipo de uma galeria. Existem ainda convites em que a estrutura gráfica do verso é muito mais instigante, seja cromaticamente, seja por alguma palavra nele impressa, nestes casos minha “parceria” é com o designer ou com o responsável pela programação da instituição, galeria. Portanto, o que vai ser pintado depende da negociação destes fatores. Sobre sua segunda pergunta, acho que o que me fez voltar foi a percepção de que o problema da pintura, da paisagem, da paisagem mediada, da imagem eletrônica, da cor, da utilização destas próteses (computadores), entre outros presentes nessa série, são um campo muito vasto que merece ser investigado com mais cuidado. Caso contrário, meu trabalho poderia se ver reduzido à mera pesquisa de materiais e não é bem por aí que gostaria de trafegar. FL: Mas a exploração de materiais e de maneiras de construção de uma pintura lhe interessam não? Poderia falar sobre os trabalhos que usam, por exemplo, elásticos e fitas adesivas? Como chegou a esses materiais e o que interessava neles? Gostei quando fala “o que vai ser pintado depende da negociação de fatores”. Acha que “negociação” é um termo que faz parte da sua produção? Fico ainda com uma curiosidade: por que escolheu a pintura como suporte? O que acha que ela pode lhe dar que nenhum outro suporte pode? RA: A exploração do material me interessa, suas propriedades físicas bem como sua carga de significados. No caso dos elásticos e fitas adesivas o que me interessou no primeiro momento foi a tentativa de construção do objeto artístico a partir destes materiais do cotidiano. Em Objeto auto-destrutível (de 2006) construí uma pequena escultura feita de lâminas de vidro envolvidas por elásticos de escritório. As propriedades físicas destes dois materiais atuam de maneira a destruir o objeto. Interessou-me pensar neste objeto artístico que causa sua própria ruína; na relação de uma escultura com o tempo. O elástico é, por natureza, maleável, tende a se moldar, e estruturante, junta outros objetos e os transforma em blocos. O vidro é um material duro, mais “agressivo”, repele o contato. De modos distintos, no entanto, ambos são frágeis. A pressão dos elásticos sobre as lâminas de vidro estruturam o bloco. Ao mesmo tempo, as arestas afiadas do vidro tendem a dilacerar esses elásticos estruturantes. O contato dos dois materiais é capaz de produzir, durante um tempo limitado, o objeto desejado, mas este mesmo contato é responsável por sua ruína. Em Desktop (2008) utilizo fitas adesivas para construir uma imagem, uma paisagem ideal, (como os fundos de tela do Windows). Ao mesmo tempo estes trabalhos estão associados a um aspecto da paisagem urbana carioca, os vendedores ambulantes e seus isopores para venda de bebida. Esses ambulantes utilizam fita adesiva colorida para reforçar a estrutura das caixas; as fitas, que em um primeiro momento eram material estruturante, tornaram as caixas objetos estéticos, composições cromáticas. O trabalho resulta da negociação entre o material ordinário, a minha paisagem local, a paisagem mediada pelo computador e referências da historia da pintura. Sem dúvida, o termo negociação está sempre presente em meus trabalhos. Talvez seja chegar a certo ajustamento entre as questões teóricas que norteiam minha pesquisa, a prática da pintura e as referências históricas quase sempre presentes nos trabalhos. Ainda respondendo às suas perguntas, não vejo a pintura hoje como uma mídia que tenha algum privilégio em relação às outras; que proporcione uma solução que nenhum outro meio proporcionaria. Mas, se há um motivo para que eu pinte, além de meu sincero gosto pela prática em si, talvez seja a possibilidade de diálogo mais direto com a tradição histórica (que faz parte diretamente de meu modo de operar). Nesse sentido, de fato acho que a pintura talvez tenha algum privilégio.