O SIGNIFICADO DE “TACTO PEDAGÓGICO” NOS MANUAIS DE PEDAGOGIA
E DE DIDÁTICA (ANTOLOGIA DE TEXTOS DO MAGISTÉRIO PRIMÁRIO
PORTUGUÊS , 1880-1960)1
Laura Girão
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, Portugal
“Na história [das ideias sobre a educação dos professores] há três fases, segundo o professor Payne,
no anúncio do seu curso na Universidade de Michigan em 1880:
‘1. A primeira concepção ... mais proeminente nas exigências legais para obter licença para ensinar é
que a instrução geral constitui capacidade para ensinar.
2. Uma fase ... caracterizada pelo estabelecimento de escolas normais, afirma que a instrução geral
acrescentada com conhecimento de métodos específicos, constitui capacidade para ensinar.
3. A concepção que presentemente ganha terreno é que o ensino deve deixar de ser uma arte empírica
e começar a ser uma arte racional; que o professor deve não só instruir-se em processos, mas
aprender o corpo de doutrinas que lhes serve de base e assegura a sua validade. Noutras palavras, a
arte de ensinar ultrapassou o seu estádio empírico e entrou no estádio racional ou científico. Esta fase
do pensamento é indicada pelo movimento geral, especialmente no noroeste, para fazer da ciência da
educação um ramo da instrução universitária. Como é uma das formas mais recentes da ciência, não
foi ainda constituída em forma articulada. De facto, está agora em processo de formação’” (COELHO,
1905, p. 29).
Passados mais de 100 anos sobre estas afirmações, citadas por Francisco Adolfo Coelho, de
um “processo” em marcha para a cientifização da “arte de ensinar”, é hoje reconhecido que a
história não foi nem linear nem, sobretudo, bem sucedida2. É verdade que, periodicamente e
ao longo de décadas marcantes — 1920, 1960 —, um novo fôlego foi dado ao “processo” de
cientifização. Em 1919, Edouard Claparède dizia, de novo, que “Hoje, começa a fazer-se luz,
e compreendemos que só a ciência, nomeadamente a psicologia, poderá fornecer à arte da
educação as técnicas que lhe permitem atingir com alguma certeza os fins que ela se propõe”
(Claparède, 1953, p. 81). E em 1965, um dos seus mais conhecidos discípulos, Jean Piaget,
repetia a necessidade de uma “ciência da educação suficientemente elaborada” auxiliando os
professores, ao modo como a biologia o faz com os médicos. Mas em 1996, em comunicação
1
Este trabalho resulta da pesquisa que efectuei para a elaboração da dissertação de mestrado, sob orientação do
Professor Doutor João Barroso, no curso de mestrado em Ciências da Educação, área de História da Educação,
da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, coordenado pelos Professores
Doutores António Nóvoa e Rogério Fernandes.
2
De entre a variada literatura, tanto na história da educação como na formação de professores, que hoje enuncia
a desilusão perante o percurso histórico da (não) aplicabilidade das ciências da educação, destaco a significativa
frase de David Labaree: “Boa parte da investigação sobre a história da reforma da formação de professores é
uma narrativa sobre a mediocridade persistente e a resistência à mudança ... [Esta é] uma triste história”
(Labaree, 2000, p. 228). (Ao longo deste trabalho, a tradução dos textos é da minha responsabilidade.)
2
apresentada a um colóquio subordinado ao tema “Métodos e técnicas de investigação
científica em educação”, Charles Hadji, recordando a passagem acima citada de Piaget,
conclui: “Trinta anos depois, em que ponto estamos? ... a esperança piagetiana de ver a
educação adquirir o estatuto da medicina não parece em vias de concretização” (Hadji, 2001,
pp. 37-38).
Tome-se o VII Colóquio Nacional da Secção Portuguesa da AIPEL/AFIRSE, realizado em
Novembro de 1996 em Lisboa, como uma ilustração do panorama contemporâneo da
investigação em educação (Estrela et. al., 2001). O diagnóstico do insucesso histórico das
ciências da educação na iluminação das acções educativas quotidianas feito por Hadji é
comum a todas as comunicações relacionadas com a problemática. Esta comunicações estão
entretanto longe de seguirem os mesmos pontos de vista sobre a natureza e funções das
ciências da educação. Como frisa Albano Estrela, “representam contributos ... diversificados”
e espelham “uma pluralidade de perspectivas com que se pode olhar cientificamente o objecto
Educação” (Estrela, 2001, p. 7). A interpretação da razão da distância persistente entre a
“ciência” e a “arte de educar” coloca um segundo nível de debate, mas não deixa de se
encontrar uma certa unanimidade nos textos. Desde as palavras de Payne em 1880 (Coelho,
op. cit.) e até aos anos 60 e 70 do século XX, a relação entre a “ciência” e a “arte de educar”
era vista à luz da metáfora do “progresso” científico. A distância era uma questão temporal,
uma distância que iria sendo diminuída com o progressivo desenvolvimento da ciência,
desenvolvimento acompanhado pela natural resistência à mudança da parte das estruturas
estatais ou profissionais. Esta interpretação progressista sofreu uma profunda mutação no final
do século XX. Mantendo-me no horizonte do Colóquio da AIPEL/AFIRSE, como ilustração
de correntes contemporâneas, é visível que se torna difícil ou impossível encontrar nos textos
actuais a metáfora do progresso ou dos “estádios” de desenvolvimento da ciência, pelos quais
deveremos aguardar. Os textos, tematicamente correspondentes, de Coelho, de Claparède ou
de Piaget, acima citados, são oriundos de uma perspectiva comum aos anos de 1880, 1920,
1960, que tinha como pano de fundo, com maiores ou menores variações, a ciência positivista
e o modelo das ciências exactas ou ciências da natureza. Cerca de 100 anos depois do curso de
Payne em Michigan, o debate coloca-se justamente em termos de questionar seriamente a
natureza epistemológica e metodológica de uma ciência adequada à investigação em
educação, em geral, e de uma ciência da “capacidade de ensinar”, em particular. No texto de
abertura do livro onde foi editado o Colóquio de Lisboa, Jacques Baillé resume a situação
actual da investigação em educação nestes termos: “a questão que se põe às ciências da
educação não é a de saber se elas são científicas ou não, a questão que se põe é a de saber se
elas são ciências da natureza ou não” (Baillé, 2001, p.33)3.
3
Nesta passagem, Baillé manifesta-se em sintonia com as ideias em D. Sperber. La contagion des idées. Paris:
Odile Jacob, 1996.
3
Nos parágrafos precedentes evoco em termos gnoseológicos as relações entre a “ciência” e a
“arte” de ensinar, mesmo se seguindo o fio cronológico do arco 1880 a 1980. O eixo do
trabalho que apresento é contribuir para clarificar de que se fala ao falar deste saber
específico, reclamado pela ciência, mas talvez ainda hoje na mão da “arte”. Retornemos à
citação inicial, de Francisco Adolfo Coelho, a fim de focalizar com maior precisão o tipo de
conhecimento presente — ou desejável que presente — na “capacidade de educar”. Olhemos
as palavras de Payne não pelo lado da história da investigação em educação, como até agora
foi feito no presente texto, mas pelo lado da profissão como educador. Está claro nas palavras
do conferencista norte-americano de novecentos o processo de profissionalização da profissão
docente, tal como foi tematizado por António Nóvoa (1987). Contada pelo lado da profissão
docente, a história das ideias sobre a educação dos professores (Coelho, op. cit.), revela a
ascensão sociológica de uma profissão, independentemente dos remanescentes problemas
gnoseológicos, e independentemente dos impasses das linhas de força sociais e políticas que a
cruzam ainda hoje. Seguindo a análise de Nóvoa, permeando as quatro etapas do processo de
profissionalização4, estão duas dimensões: a dimensão ética ou de “um conjunto de normas e
de valores”, e a dimensão dos conhecimentos ou de “um corpo de saberes e de saber-fazer”
(Nóvoa, 1987, p. 89). Nos termos de Payne (Coelho, op. cit.), a dimensão dos saberes dos
professores pode dividir-se na “instrução geral”, uma exigência própria à segunda etapa do
processo de profissionalização, e consensual a qualquer debate sobre formação de professores
(Zeichner, 1983, p. 3), e na “instrução geral acrescentada ...”, que tem a ver com os saberes
propriamente pedagógicos e didácticos. É nesta dimensão dos saberes “acrescentados”,
próprios dos professores, que a problemática gnoseológica da relação entre as ciências da
educação e a profissão docente se situa. É o saber pedagógico e didáctico que é disputado
entre a “arte” e a “ciência” na arena da profissão docente.
A constituição histórica da dimensão gnoseológica específica da profissão docente — e,
sobretudo, da dimensão axiológica, de que não trato neste trabalho — é anterior ao processo
em que decorreu a profissionalização dos professores e tem parte da sua origem inscrita nos
primórdios da formação do modelo escolar (Nóvoa, 1987, p. 74). Um estudo conduzido nesse
sentido poderia identificar, por exemplo, num livro seminal para a profissionalização dos
professores como o é a Conduite des écoles chrétiennes, de Jean-Baptiste de La Salle (Julia,
1995, pp. 369-370), para além das grandes alterações introduzidas na organização da sala de
aula ou nas relações de hierarquia, certos preceitos, simples, mas que qualquer professor do
ensino elementar ainda hoje reconhecerá e reconhecerá justamente na sua banalidade e
evidência, i.e., como fazendo parte de um património de saberes próprios. O recente interesse
4
Recordo que António Nóvoa enuncia deste modo as quatro etapas histórico-sociológicas do processo de
profissionalização da actividade docente: “1. Prática a tempo inteiro (ou como ocupação principal) da actividade
docente; 2. Criação de um suporte legal ao exercício da actividade docente; 3. Estabelecimento de procedimentos
institucionalizados de formação específica, especializada e longa dos docentes; 4. Constituição de associações
profissionais (sindicais ou não) de docentes” (Nóvoa, 1987, p. 90).
4
da historiografia pelas práticas pedagógicas, pelo reduto do dia-a-dia e dos lugares concretos,
tem confirmado esta permanência de “doutrinas” seculares que fundam a acção dos
professores, à margem das ciências da educação. É fazendo apelo à “viragem historiográfica”
na base desta nova história que Agustín Escolano Benito analisa a autonomia histórica do
círculo da “cultura empírica” por contraposição às institucionalmente dominantes “cultura
científica” ou “cultura política”, ao longo dos ciclos marcantes da história política espanhola
da viragem do século XIX para XX e ao longo do século XX (Escolano Benito, 2000, p. 202 e
p. 204 ss.). Marc Depaepe, por seu turno, ressalta as palavras antigas que se encontram no
Curriculum belga de 1936, documento inovador e “internacionalmente apreciado”, fortemente
marcado pelas ideias de Decroly, e onde se lê entretanto que “‘em adição à essencial ciência,
há a maravilhosa arte da educação’ ... Como nenhuns outros, os desenhadores do curriculum
louvam a ‘prudência’, a ‘sabedoria’, o ‘tacto pedagógico’ ... e entendem que é mais fácil
formular estes princípios do que aplicá-los“ (Depaepe, 2001, pp. 64-65).
Não são só as décadas passadas que se movimentam e pensam, em parte, segundo traços
seculares do saber pedagógico. A investigação actual em formação de professores é
aparentemente ainda com as mesmas “doutrinas” seculares de saberes próprios da acção
docente que se confronta. No texto já citado, Baillé, a propósito dos conhecimentos vindos da
investigação experimental em educação, lembra que “o ideólogo ... ou o professor já
denunciaram há muito tempo um método que se fundamenta numa experiência que não está
de acordo com a sua” e que, independentemente destas pesquisas ou até contra estas, “cada
professor ... acredita que sabe o que tem de fazer com os seus alunos para que estes tenham
sucesso” (2001, p. 33). Acontece que, e é nesse sentido que Baillé conclui o seu texto, a
abertura pós-moderna dos trabalhos científicos actuais à assunção de novos modelos
epistemológicos e metodológicos, abertura que se sente nos textos da AIPEL/AFIRSE,
transforma radicalmente o lugar dado a estes “saberes” no corpo da própria ciência. A “arte
empírica” do ensino, que no discurso do professor Payne em 1880 e, no pensamento de
Francisco Adolfo Coelho em 1905, estava à porta de entrada — ou de saída — do edifício do
saber válido da “arte racional” ou científica, ganha, pelo contrário, em muitos discursos do
final do século XX, uma centralidade produtora de conhecimento. António Nóvoa resume
deste modo o novo panorama gnoseológico: “A partir dos anos de 1980, a literatura
especializada [sobre formação de professores assinala] ... a existência de outras formas de
conhecimento profissional baseadas sobre a experiência pessoal, sobre o diálogo com os
colegas, sobre o senso comum ou sobre a reflexão individual e colectiva” (Nóvoa, 2001,
entrada “Conhecimento Profissional”).
É neste contexto de uma nova e diferente ciência da educação, que pode encarar e aprender
com o antigo saber próprio dos professores, que se situa o meu trabalho de pesquisa. O saber
próprio dos professores, ou a dimensão pedagógica do saber docente, tal como é formulado
5
nos termos de 1880, refere-se não só ao “conhecimento de métodos específicos” ou de
“processos”, como ao “corpo de doutrinas que lhes serve de base e assegura a sua validade”
(Coelho, op. cit.). A questão que coloco é a seguinte: se, passados mais de 100 anos, o “corpo
de doutrinas” fundantes do procedimento dos professores não foi satisfatoriamente obtido —
como os parágrafos iniciais deste texto pretendem ilustrar —, com base em que tipo de
“doutrinas” ou de conhecimentos fundantes actuaram na sua generalidade e no seu quotidiano
os professores, ao longo desta centúria? Com base em que tipo de conhecimentos orientaram o
seu bom sucesso em sala de aula? Procurei uma resposta a esta questão revendo literatura
crítica especializada, que adiante especificarei, e analisando de um modo muito focalizado a
literatura de formação pedagógica e didáctica dos professores primários portugueses, editada
ao longo de parte do arco temporal atrás explorado: 1880 a 1960. É o relato dessa pesquisa
que constitui a segunda parte deste texto.
Após uma primeira fase de trabalho, reunindo os 58 manuais de formação pedagógica e
didáctica editados em Portugal durante quase 100 anos e destinados ao magistério primário
(publicados, “grosso modo”, entre as décadas de 1880 e 1960, são 95 obras no total, se
considerarmos as várias reedições de uma mesma monografia), considerei o “corpus”
seleccionado do ponto de vista da sua função. Os manuais de pedagogia pretendiam, em
última instância, orientar a acção bem sucedida do professor. Ditados programaticamente pelo
Estado, escritos por especialistas das ciências da educação — ou pelos antecessores dos que se
tornariam especialistas em ciências da educação —, destinados ao uso dos professores, os
manuais de pedagogia e de didáctica são fontes singulares, apropriadas para trabalhar a
questão que dominou a minha pesquisa: Qual dizem os manuais considerados ser a condição
essencial, se a há, ao bom sucesso da acção do professor “in situ”?
É conveniente precisar os termos da questão. Tratou-se de perguntar pela condição essencial:
(i) à acção do professor e não à acção educativa no seu todo, o que implicaria uma
consideração muito diferente dos diversos sujeitos e elementos em causa; (ii) à acção do
professor “in situ”, em situação de sala de aula, que tem de ser distinguida da acção do
professor quando planifica uma aula, quando avalia os exercícios dos seus alunos no silêncio
de um gabinete de trabalho, ou quando estuda e aprofunda os seus conhecimentos numa acção
de formação; (iii) à acção bem sucedida, ou seja, a acção docente que efectivamente ensina e
que faz efectivamente aprender, e não simplesmente da acção do professor x que ocupou os
alunos y, em sala de aula, durante o período de tempo z. Neste sentido, Israel Scheffler lembra
que “ter ensinado alguém a nadar é mais do que ter estado ocupado a ensinar alguém a nadar;
é também ter sido bem sucedido” (Scheffler, 1974, p. 60).
Na segunda etapa do trabalho, a questão de pesquisa, focalizada na condição essencial ao
sucesso da acção do professor “in situ”, foi directamente colocada ao texto dos manuais.
6
Como respondiam a esta questão? Compulsado todo o material reunido, sobressaiu um termo:
“tacto pedagógico”. Vários dos manuais afirmavam que por este termo pretendiam designar a
faculdade necessária ao sucesso da acção do docente “in situ”. Era essencial ter-se “tacto
pedagógico”. Mas também podiam dizer significativamente o mesmo utilizando o termo “tino
pedagógico”. Ou “bom senso”. Ou “inteligência” pedagógica, ou “senso pedagógico”5. A lista
de termos que respondiam à questão da pesquisa estendeu-se, ao longo da fase de recolha dos
dados, a termos semelhantes entre si e semelhantes no uso que lhes era reservado no discurso
dos manuais. Estes termos são possíveis de reunir no que denominei “constelação do ‘tacto
pedagógico’”, uma metáfora (sobre uma metáfora) que procurei configurar conceptualmente
na investigação, e que analisei com algum pormenor. Ressalto os seguintes resultados:
1) A diversidade de contextos em que são usados os termos é extrema. A diversidade é
temática (gestão do horário escolar, ensino da língua materna, do desenho, da aritmética,
manutenção da disciplina), cronológica (o mesmo termo é verbalizado do mesmo modo em
1890 e em 1950), ideológica (o defensor da Escola Activa diz o mesmo que o autor mais
tradicional), política (o anarquista ecoa as palavras do homem do Estado Novo). Por contraste,
ressalta a imutabilidade da situação para o professor. A situação é sempre a do professor que
sabe gerir, na sua sala de aula (ou em situação afim, visitas de estudo, por exemplo), tudo a
contento. O aluno não se fatiga demasiado, o aluno aprende a ler rapidamente, o aluno não
perturba a aula, etc., etc.
2) O que é ter “tacto pedagógico”, de acordo com os manuais? A metáfora do professor com
“tacto pedagógico”, assim como o significado do conjunto dos outros termos da
“constelação”, aponta para o mesmo retrato: trata-se de um professor que exercita e afina um
modo de conhecimento em que sabe, por uma espécie de sondagem permanente do que o
rodeia, evitar o que tem más consequências, escolhendo o mais adequado à circunstância ou,
em rigor, à situação em sala de aula.
3) A obtenção e a gestão do “tacto pedagógico” é do domínio pessoal. Os textos são firmes na
exposição da impossibilidade de ensinar a ter “tacto profissional” ou “senso prático”. Um
manual em 1944 precisa que a estes “(...) não é possível ensiná-los nas aulas de metodologia:
orientam-se... nada mais” (Gaspar et. al., 1944, p. 206). Todavia, não se trata simplesmente de
um procedimento “natural”. A análise feita aos textos permite concluir que esta capacidade é
não tanto um talento mas antes um permanente e sério esforço de atenção às circunstâncias
presentes, em ordem a responder com conformidade: “(...) o tacto do mestre ajudará os seus
conhecimentos [sobre História Pátria, no caso]. A necessidade obrigá-lo-á a recorrer a uns,
apurando o outro” (Gaspar et. al., 1944, p. 387).
5
Localizei termos desta natureza em 84% do universo das primeiras edições dos manuais de pedagogia e de
didáctica do magistério primário português, entre 1868 e 1973. Anexa à dissertação, compus uma antologia que
transcreve, cronologicamente, as passagens onde ocorrem o termo “tacto pedagógico” e outros semelhantes. A
recolha das passagens com referência ao “tacto pedagógico” foi exaustiva. A antologia reúne cerca de 100
trechos.
7
Na terceira fase do trabalho, a questão inicial desdobrou-se numa problemática: Que natureza
tem esta faculdade ou conhecimento através do “tacto”? Como conviveu com a progressiva
cientifização da educação entre os séculos XIX e XX? Falar em “tacto pedagógico” é falar
num fenómeno apenas português? Sobrevive algo da “constelação do ‘tacto pedagógico’” nos
dias de hoje? Se sim, ou se não, por quê? O exercício que fiz foi tentar responder a estas
perguntas investigando o que a literatura crítica lhes respondia.
O primeiro conjunto de evidências que acarreei, com base na literatura crítica especializada,
esclarece que a “constelação do ‘tacto pedagógico’” é visível para além dos manuais de
pedagogia portugueses e para aquém dos meados do século XX. Em França, o estudo de
Michèle Roullet (2001) sobre fontes homólogas permite ver que o conceito do “bom senso”
do professor possui uma presença determinante nos manuais de pedagogia entre 1880 e 1920,
ao longo do que Nanine Charbonnel (1988) denominou o “momento Compayrè”. Na
Alemanha, a literatura pedagógica apresenta uma extensa lista de bibliografia crítica
especializada na noção de “tacto pedagógico”, cuja cunhagem do termo faz remontar a
Herbart (Muth, 1982). Finalmente, na literatura anglo-saxónica actual sobre formação de
professores é possível encontrar referências a termos-chave que são ou relativamente
equivalentes ou efectivamente os mesmos analisados nos manuais que pesquisei:
“pensamento reflexivo”, em Donald Schon, “inteligência pedagógica”, em Louis Rubin,
“tacto pedagógico”, em Max Van Manen (Alarcão et. al., 1998).
O segundo conjunto de evidências que mobilizei para interpretar a “constelação do ‘tacto
pedagógico’” repousa na reflexão hermenêutica de Hans-Georg Gadamer (1984). Seguindo a
sua perspectiva, é possível afirmar que o tipo de conhecimento em causa na “constelação do
‘tacto pedagógico’” remonta ao que a tradição humanista (tal como é entendida e apresentada
por Gadamer) há muito defendeu e estudou como sendo o tipo de conhecimento próprio do
mundo das relações humanas. Aristóteles escreveu sobre a “phrónesis” ou “prudência”, Vico
sobre o “sensus communis”. Gadamer analisa, neste contexto, o próprio termo “tacto”. Este
tipo de conhecimento, pré-científico, prévio ao conhecimento científico-natural, comum aos
homens, não é, todavia, como o filósofo longamente rebate, menos autónomo e menos válido
por si mesmo do que o conhecimento considerado científico. Pelo contrário, de algum modo é
fundante relativamente ao conhecimento da ciência. A monumental análise de Gadamer
permite compreender a razão dos limites e insuficiências do conhecimento “científico” face ao
conhecimento “humanístico”, sendo este último o adequado ao que alguém está a viver “in
situ”, a fim de se poder decidir o que é ou não correcto fazer nessa situação.
A interpretação, através da filosofia de Gadamer, da natureza do conhecimento essencial ao
professor “in situ”, permite enunciar uma explicação para a presença da “constelação do ‘tacto
pedagógico’” no discurso, passado e actual, sobre formação de professores, e para a
8
persistência deste discurso não científico, ao longo de cerca de 100 anos de tentativa de
consolidação das ciências da educação. Atendendo aos trabalhos de autores como Gadamer,
para o caso das “ciências do espírito” ou, no que toca às ciências da educação, de autores
contundentes como Nanine Charbonnel, dir-se-á que o facto de o conhecimento científiconatural ter sido o modelo epistemológico e metodológico das ciências da educação desde a sua
constituição no final do século XIX gerou uma funesta ilusão acerca dos limites e das
possibilidades da ciência da educação. Neste trabalho, tentei abordar o problema da natureza
dos conhecimentos fundantes do profissionalismo na “arte” docente, focalizando o professor
em situação de sala de aula, obtendo bom sucesso porque é só focalizando essa situação que
se pode verificar que o que o professor precisa de mobilizar é, não exactamente um conjunto
de princípios que aplica em acção, mas aquilo que Gadamer define como sendo a forma de
conhecimento própria da tradição humanista, aquilo que é apontado nos manuais como
“tacto”. Trata-se de uma forma de conhecimento que é de outra ordem que não a científiconatural, mas não de uma “subordem”, como sublinha Gadamer. Nessa leitura, é inevitável que
resulte natural o facto de as ciências positivistas nunca terem fornecido à orientação do
professor “in situ” os conhecimentos necessários à acção e, por consequência, parece resultar
não só natural como necessária a permanência da “constelação do ‘tacto pedagógico’” até aos
dias de hoje.
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