g g y NIETZSCHE, A LIÇÃO SCHOPENHAUER E O ETERNO RETORNO Nietzsche, Schopenhauer’s Lesson and the Eternal Return Resumo Arthur Schopenhauer está presente no desenvolvimento da filosofia nietzschiana. Tanto que, nos seus escritos, Nietzsche o homenageia, tecendo elogios à originalidade do filósofo, e examina aspectos da obra de Schopenhauer que subsidiam a formulação de sua crítica da cultura. Este artigo indica elementos dessa influência, situa a tese do Eterno Retorno como uma resposta de Nietzsche ao pessimismo encarnado por Schopenhauer e aborda algumas breves implicações do Eterno Retorno no pensamento contemporâneo. Palavras-chave existência – cultura – diferença – vontade – valor – potência. Abstract Arthur Schopenhauer is present in the development of Nietzsche’s philosophy. So much so that in his writings, Nietzsche pays him homage by praising his originality and examines some aspects of Schopenhauer’s work that support the formulation of his criticism of culture. This article indicates some elements of this influence, bringing up the Eternal Return theory as Nietzsche’s answer to Schopenhauer’s pessimism, indicating some implications of the Eternal Return to contemporary thinking. Keywords existence – culture – difference – will – value – power. impulso nº 28 83 CARLOS ALBERTO SOBRINHO Bacharel em Letras. Mestre e doutorando em Educação pela PUC-RJ. Técnico em Assuntos Educacionais do MEC [email protected] g g y A fecundidade das idéias desenvolvidas por Nietzsche ainda hoje reverbera nos debates empreendidos pela cultura. No esforço de reflexão sobre as questões mais candentes das últimas décadas, o renovado exame da obra do filósofo demonstra o vigor do seu pensamento. Não obstante o valor da contribuição filosófica do século XIX, há reconhecidas limitações do seu alcance diante dos problemas erigidos pelo atual contexto sóciopolítico. Todavia, as dificuldades inerentes à aproximação do presente com o passado não nos impede de reconhecer, na investigação teórica de Nietzsche, um campo de possibilidades para enfrentar as inquietações do mundo contemporâneo, melhor compreender as circunstâncias históricas deste início de século e aprofundar o diagnóstico de nosso tempo. Como indagava Benjamin, afinal, em nossa relação com o futuro, “não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes?”.1 Nessa perspectiva, visitaremos os fragmentos de “Schopenhauer como Educador”, reunidos no capítulo III das Considerações Extemporâneas, e alguns dos principais aspectos sobre o “Eterno Retorno”, apresentado pela seleção de textos de Gérard Lebrun, e publicados pela Editora Nova Cultural, na coleção Os Pensadores. A fim de explorar as vicissitudes dos referidos temas, recorreu-se a leituras complementares, entre as quais destaca-se o relato de Gilles Deleuze como participante do VII Colóquio Internacional de Royaumont “Nietzsche”, realizado em 1964 – momento em que no Brasil a formação do diferente não tinha horizonte, e a diferença sobrevivia à condenação e ao expurgo. Outros textos mais clássicos de Deleuze também foram consultados, além do posfácio do professor Antônio Cândido à publicação brasileira Os Pensadores, da Editora Abril Cultural e do trabalho do professor italiano Domenico Losurdo (Nietzsche e La Critica della Modernità. Per una Biografia Politica), um ensaio contundente sobre a natureza histórica e política da crítica nietzschiana. A LIÇÃO SCHOPENHAUER Arthur Schopenhauer viveu entre 1788 e 1860. Diz-se ter sido um filósofo que não queria se vincular à escola pós-kantiana mas que, na realidade, inspirado pela aproximação com pensadores indianos e com Kant, conseguiu formalizar uma filosofia da vontade não muito distante do que Fichte já havia proposto. Por outro lado, sabe-se também que, em 1865, depois de abandonar o curso de teologia na Universidade de Bonn, Nietzsche descobriu Schopenhauer em Leipzig, ao se deparar com o título de seu principal trabalho, “O Mundo como Vontade e Representação”, exposto na vitrine de uma livraria. Ficou imediatamente impressionado com o que encontrou. Durante 1 BENJAMIN, 1993, p. 223. 84 impulso nº 28 g g y onze dias, leu ávida e atentamente as duas mil páginas do livro, e acabou por conhecer toda a obra do filósofo. Embora no contexto do idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling e Hegel) a doutrina de Schopenhauer seja identificada como portadora de poucos elementos originais, a lição extraída por Nietzsche dessa viagem relaciona-se à importância de um pensador não se dobrar às opiniões alheias e às imposições acadêmicas, buscar a independência do Estado e da sociedade, respeitar a si próprio e, no confronto com a ordem estabelecida, ser, sobretudo, fiel às suas idéias e à sua verdade. Nove anos depois, um dos resultados desse encontro foi aparecer na Terceira Extemporânea, publicada em 1874, “Schopenhauer como Educador”. KANT, A VERDADE E O PINTOR Segundo Nietzsche, todo pensador íntegro que estipulava sua trajetória a partir de Kant corria o risco de cair, primeiro, no isolamento e, depois, sofrer o desespero da verdade, desde que fosse vigoroso nos seus sentimentos e nos seus desejos. Porém, ele reconhecia ser escassa a presença dessas qualidades no campo filosófico, e admitia que, na verdade, a extensão da influência transformadora de Kant ainda era muito reduzida no espírito de sua época. Entretanto, no testemunho de Heinrich von Kleist, um conhecido escritor de peças teatrais, Nietzsche teve o exemplo vivo do trauma a ser enfrentado por quem se submetia inteiramente ao batismo de Kant. Tocados no cerne de sua verdade, ponderava o filósofo, só os homens mais ativos e mais nobres, “que nunca agüentaram permanecer na dúvida”,2 experimentariam o abalo como efeito da filosofia kantiana. Na reação de Kleist ao projeto kantiano, o que comove Nietzsche é o modo como o dramaturgo alemão foi afetado pelo pensamento, na sua relação mais íntima com a vida. “Não podemos decidir se aquilo que denominamos verdade é verdadeiramente verdade ou se apenas nos parece assim. (...) Se a ponta desse pensamento não atinge teu coração, não sorrias de um outro que se sente profundamente ferido por ele, em seu íntimo mais sagrado. Meu único, meu supremo alvo foi a pique, e não tenho mais nenhum.”3 De acordo com Nietzsche, esta maneira de sentir, quando desacomodam-se as convicções mais caras aos pensadores, é condição necessária para o entendimento, depois de Kant, da importância de Schopenhauer como educador. Isto é, somente desinvestindo-se do ceticismo e do relativismo, suscetíveis de serem provocados na alma popular pela sentença kantiana, é que os escritos de Schopenhauer puderam encarnar o sentido trágico na interpretação da vida como um todo, a partir de sua própria experiência. Em meio a diversas descobertas e ao pleno desenvolvimento científico, ao realizar a crítica do interesse dos cientistas pelo detalhe, Nietzsche invoca a vida como pintura universal, e lembra que “é preciso adivinhar o pintor para entender a imagem”.4 O universal está para a imagem pintada assim como o pintor está para a tela. Sem a apreensão do conjunto, apenas os fios singulares das ciências não conseguem traduzir o tecido vivo das cores e dos materiais da existência. Para Nietzsche, a grandeza de Schopenhauer foi caminhar no sentido animado e penetrante da imagem do mundo, sem se restringir à erudição ou ao refinamento conceitual da escolástica. A potência pedagógica de sua filosofia está em, admitindo o cisma, a dúvida e as contradições inerentes a todo pensamento – na urdidura intrincada e insondável dos movimentos que compõem a pintura viva do ser –, oferecer-se como imagem da vida para a compreensão do sentido individual, ou favorecer, na leitura da medida singular, o entendimento dos sinais da dimensão universal. “Toda grande filosofia (...) sempre diz unicamente: esta é a imagem de toda a vida, aprende nela o sentido de tua vida. Ou vice-versa: lê tua vida e entende nela os hieróglifos da vida universal.”5 Tanto a alusão a Schopenhauer quanto a referência a Kleist traduzem o elogio ao caráter inovador da filosofia de Kant, e também significam uma crítica às teorias do conhecimento que, com o apogeu do Iluminis3 4 2 NIETZSCHE, 1996, p. 289. impulso nº 28 5 KLEIST, H.W. In NIETZSCHE, 1996, p. 289. NIETZSCHE, 1996, p. 290. Ibid. 85 g g y mo, empenhavam-se na construção objetiva e científica do mundo, desvalorizando a implicação do sujeito nessa construção, descartando a subjetividade. Esse é o primeiro ponto a ser destacado dos fragmentos analisados que homenageiam Schopenhauer: só posso conquistar a dimensão da vida universal se nela eu contemplo o horizonte da minha própria vida. Um segundo aspecto observado por Nietzsche é relativo ao impasse do pensador moderno em sua aventura de sobrelevar-se, de transfigurar a natureza e caminhar para a civilização. Diferente dos filósofos gregos, que faziam a defesa intransigente da physis em toda a plenitude de sua beleza e liberdade, Nietzsche apontava o embaraço entre o esforço de superação da vida imediata e a dúvida quanto ao valor mesmo da existência como um dos problemas que contagiavam o juízo e o pensamento modernos. Ou seja, a grandeza da vida só poderia ser tangível mediante a renúncia à vontade de compreender o seu verdadeiro valor. Nessa situação encontrava-se o falso dilema do empreendedor e do juiz, ou do reformador e do filósofo, tal como Nietzsche o nomeia: quanto mais eu realizo, mais me abstenho de julgar o produto da minha realização, e quanto mais eu me ocupo do julgamento das minhas ações e do mundo, mais me distancio de efetivar minha vontade de empreender. “Um pensador moderno (...) sempre sofrerá de um desejo não cumprido: (...) ele considerará ser um homem vivo, antes de poder acreditar que pode ser um juiz justo.”6 A esta disjunção Nietzsche atribui o nascimento do espírito empreendedor da filosofia moderna – uma poderosa máquina de “fomentadores da vida” –, emigrando do presente em direção ao avanço do processo civilizatório. Todavia, adverte o filósofo, na transformação da natureza, a vida moderna sempre deixa um resto: nessa trajetória obstinada, ou cessa o realizador ou cala-se o juiz, a crítica. Justo na capacidade de escapar de tal armadilha reside a virtude de Schopenhauer. Nietzsche empenha-se em mostrar que a grandeza do filósofo no confronto crítico com as feridas do seu tempo não representa uma luta infecunda, dirigida contra o lutador e destinada a converter-se na sua autodestruição. Ao contrário, Schopenhauer exerce a sua liberdade mesmo é ao combater, na cultura, os valores que o impedem de afirmar a diferença do seu pensamento. Quando Schopenhauer torna-se hostil ao que em si mesmo encontra, não é para negar-se, mas, sobretudo, para expulsar de seu interior as mazelas de sua época, o veneno da cultura que deforma e limita sua aspiração a uma outra humanidade. Nietzsche, traçando o perfil do filósofo moderno, compara a sua subordinação ao tempo como o vínculo do enteado à figura da falsa mãe indigna; em nome de um reino saudável para a vida, ela deve ser afastada. A advertência quanto ao papel crítico do filósofo frente ao movimento moderno assinala a legitimidade da aventura de Schopenhauer. Equivocamse, em vista disso, os intérpretes que dele extraem apenas a mensagem da ruína. Seus escritos, mais do que um defeito do escritor, significam a tentativa de depuração das marcas visíveis da doença contemporânea: uma vida sem clareza e sempre pronta a ser hipocritamente condenada. Nietzsche recusou o pessimismo de Schopenhauer, mas depois de nele reconhecer uma força: “sua hostilidade, no fundo, está dirigida contra a impura mescla do incompatível e do eternamente inconciliável, contra a falsa solda do contemporâneo com sua extemporaneidade; e, afinal, o suposto filho do tempo se mostra apenas como seu enteado”.7 Celebrada por Nietzsche, esta é a manobra de Schopenhauer: a defesa do pensamento para além da vida contemporânea, que aprisiona a filosofia na crítica imobilizadora ou na realização acrítica. O homem, empenhado no curso de seu projeto criador, não encalha entre o desejo de viver e a dúvida sobre o valor da vida; em toda a extensão da sua liberdade e diferença com os valores culturais, ele eleva à altura 6 7 O EMPREENDEDOR, O JUIZ E O EXTEMPORÂNEO Ibid., p. 291. 86 Ibid. impulso nº 28 g g y da consideração trágica o exame da existência para tornar-se universal. O Estado, como resultado da civilização e objetivo último da humanidade, só cabe na convicção da mais ferrenha estupidez daquele que tem no serviço estatal o seu supremo dever. Em oposição a esta promessa de felicidade anunciada pela inovação política, Nietzsche propõe a destruição de toda forma de estupidez como tarefa superior ao dever de servir ao Estado. Ao contrário dos professores de filosofia, acolhidos no conforto das organizações governamentais, o filósofo vê na vida moderna os sintomas de um provável aniquilamento da cultura: a descrença religiosa, a crescente hostilidade entre as nações, o avanço desmesurado da ciência e o potencial destrutivo da economia monetária. Nietzsche vaticina que, num mundo onde não há mais lugar para a contemplação, a simplicidade, o pensamento, “tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, inclusive a arte e a ciência de agora”.8 A capacidade de antecipar os graves problemas na proporção do que hoje enfrentamos é o testemunho do seu estilo ousado e visionário. Não deixa de ser notável que o perfil traçado pelo filósofo para o final do século passado ainda permaneça familiar a muitas das atuais análises de nossos dias, especialmente quando diagnostica a condição humana frente aos ideais modernos: o “homem culto degenerou no pior inimigo da cultura, pois quer negar a doença geral e é um empecilho para os médicos”.9 Por reconhecer na cultura o quadro de uma debilidade generalizada, Schopenhauer não cede ao ímpeto de conjurar, impotente, os atos políticos encenados diante de si, nem tampouco à tentação de compor o elenco da comédia social que oferecia como horizonte para a vida, o bom cidadão, o erudito, o comerciante ou o filisteu. Ele não aceita esses limites, ajusta a sintonia dos sentidos e dá início à investigação detalhada de seus próprios demônios, do seu inconformismo com o crescimento do mundo moderno, cuja esperança reservada aos homens não ia além da sua participação residual no devir do Estado. “É uma decisão pavorosa! (...) Pois agora ele precisa mergulhar na profundeza da existência, com uma série de perguntas insólitas nos lábios: Por que vivo? Que lição devo aprender da vida? Como me tornei assim como sou e por que sofro então com esse ser-assim? Ele se atormenta: e vê como ninguém se atormenta assim.”10 Ao ressaltar a escolha de Schopenhauer, Nietzsche observa que, na relação da vida com a cultura, em nome do projeto comum da civilização e da convocatória ao adesismo irrefletido do jogo contemporâneo, o homem não deve mutilar a sua diferença. Antes de se ocupar como um fantoche na burla do vir-a-ser moderno, Schopenhauer oferecese em sacrifício como primeira condição para medir as coisas à medida de si, à medida do seu ser. Associar-se ao sentimento infeliz, purgar a desilusão diante de toda a inverdade que lhe assaltava o juízo foi a empresa de Schopenhauer para acercar-se da verdade, para encarnar o sonho da existência livre do peso do mundo e nascer transfigurado. “Sua força está em esquecer-se de si mesmo; e se ele pensa em si, mede a distância de sua alta meta até si e é como se visse um desprezível monte de detritos atrás e abaixo de si.”11 A ascese de Schopenhauer permite a Nietzsche verificar que as ações de valorização da cultura moderna incentivadas pelas autoridades não fazem senão promover o bem e a existência do Estado e de uma elite conformada. Juntos, negociantes, artistas e eruditos tratavam apenas de defender os seus interesses imediatos e de zelar ciosamente pelos benefícios que conseguiam auferir. Este é mais um dos preceitos apreendidos de Schopenhauer. Na fronteira da história que se anunciava, Nietzsche denuncia como a dimensão da vida, convertida aos estreitos limites da sobrevivência moderna, levou o homem original a sofrer de uma cruel má vontade e do mais terrível desprezo, em condições onde o apare- 8 10 O ESTADO, O MUNDO DA CULTURA E A EXISTÊNCIA 9 Ibid. Ibid. impulso nº 28 11 Ibid. Ibid. 87 g g y cimento da sua singularidade tornava-se praticamente inexistente. À expansão do Estado correspondia o afastamento insular da existência revolucionada e do sentido livre e elevado da cultura. AS INSTITUIÇÕES CULTURAIS, A FILOSOFIA E A EDUCAÇÃO A partir do programa crítico de Schopenhauer, que desnuda a índole fugaz e inconsistente do mundo moderno, Nietzsche especula sobre algumas possíveis conseqüências para os estabelecimentos de ensino preocupados com a tarefa de instituir uma educação além da cultura da moda. De início, ele entende como necessária a mudança de objetivos dos educadores superiores, cujas raízes remontam ao ideal da Idade Média de formar eruditos. Sua recomendação é de que a primeira medida deve consistir em decantar os pensamentos das influências medievais de formação cultural. No seu prisma, com Kant, estabelece-se uma bifurcação fundamental para o pensamento e, conseqüentemente, para as instituições de cultura: o caminho das benesses modernas e o caminho do autogoverno. No primeiro, a instituição cultural é compreendida na base de um conjunto de dispositivos e de leis por meio do qual seus integrantes legitimam-se e afastam os proscritos; no segundo, ela é tida como organização sólida de apoio e incentivo aos talentos, resguardando-os do “egoísmo míope do Estado”12 e da tentação bajuladora do espírito novidadeiro. A recusa da adesão fácil defendida por Nietzsche tem como meta um alvo superior ao da erudição. Ele é bem claro em seus propósitos quando defende não ser tarefa da educação e da cultura criar eruditos hipócritas, conformados à sua história mais recente. O intuito, na verdade, é o de cultivar homens efetivos, homens livres com disposição heróica; trata-se de formar pensadores. Para tanto, a investigação de si como princípio educacional adquire tal relevância no pensamento nietzschiano que, mesmo admirando Kant, ele não concede ao ilustre intelectual o mérito de ter suplantado a condição de erudito. Embora nele reconheça o portador de uma genialidade inata, Nietzsche considera-o como gênio em estado latente. Do seu ponto de vista, isto ocorre porque o filósofo, ao contrário do erudito, além de ter de ser um pensador, deve ser também um homem empenhado em “retirar de si a maior parte do ensinamento”13 que almeja e servir “para si mesmo de imagem e abreviatura do mundo inteiro”.14 A distância em relação à existência moderna era ponto de honra para o filósofo. O empenho, o esforço para ir além da opinião corrente, eram iniciativas consideradas fundamentais e necessárias à liberdade do pensamento: “Quando alguém se vê por intermédio de opiniões alheias, o que há de admirar se até mesmo em si próprio ele não vê nada além de... opiniões alheias. E assim são, vivem e vêem os eruditos”.15 Tanto Schopenhauer quanto Goethe, ao se despirem das máscaras da incultura e, se alimentando no passado, fundarem um processo de autoconhecimento, experimentaram o júbilo de ter da vida, na aventura pesada de cada uma de suas odisséias, a mais leve e digna das imagens. Nos termos de Nietzsche, viram “o sagrado como juiz da existência”.16 Foram ao encontro de uma única tarefa, de um único sentido, isto é, fundar, mediante a educação de si, uma diferença criadora e uma nova concepção de cultura, em oposição aos interesses decorativos do mundo moderno. Nietzsche não vê com bons olhos a filiação de pensadores ao Estado, pois entende que por estar comprometida com a “faca da verdade”,17 a liberdade do pensamento não pode ser rebaixada à função docente como meio de vida. Encerrada na cátedra, a filosofia corre sérios riscos de se acomodar como saber universitário, abdicando do juízo e da crítica inclusive ao próprio Estado. “Se alguém suporta, pois, ser filósofo em função do Estado, tem também de suportar ser considerado por ele como se tivesse renunciado a perseguir a verdade em todos os seus escaninhos.”18 13 14 15 16 17 12 Ibid. 88 18 Ibid., p. 297. Ibid. Ibid. Ibid. Ibid., p. 298. Ibid. impulso nº 28 g g y Na qualidade de concessões profundamente danosas, Nietzsche rejeita o pensamento como profissão, o filósofo como funcionário e a filosofia como erudição. A contemplação do filósofo deve ser semelhante ao olhar do poeta, e não o exercício de um filólogo, de um conhecedor de línguas ou de um historiador. Ao institucionalizar a filosofia, suspeita Nietzsche, o Estado moderno transformou a atividade filosófica num aglomerado de sistemas e de críticas ininteligíveis, de onde os jovens, depois de submetidos ao martírio de percorrê-lo, saem aliviados e convictos dos benefícios do amparo cristão e estatal. Vimos com Nietzsche que a lição de Schopenhauer pode ser traduzida em no mínimo três princípios fundamentais: 1. a subjetividade como via de acesso ao universal; 2. o distanciamento das imposições do presente como meio do desenvolvimento autocrítico e recurso de aproximação crítica da história; e 3. a banalização da cultura promovida pelo alargamento do Estado e a incompatibilidade do pensamento filosófico com o instituto da educação moderna. Depreendemos que a linha de sucessão referida por Nietzsche – Kant, Goethe e Schopenhauer – apresenta uma trajetória comum relativa à importância que estes intelectuais concederam ao exame de suas inquietações confrontadas aos imperativos históricos dos séculos XVIII e XIX, sobretudo em face do projeto do sujeito moderno. Inaugurado com o Iluminismo, o movimento de objetivação do mundo contrasta com a postura desses pensadores que, em nome do livre exercício da diferença frente ao que Nietzsche observou como a intranqüilidade da mundanização – “a crença no mundo” –,19 lançaram-se ao desafio de inscrever na história do mundo moderno o que poderíamos chamar de políticas da subjetividade: o recrutamento do sujeito pela teoria do conhecimento de Kant; a exploração poética de Goethe sobre a vida humana em todas as suas ramificações; a vontade como dimensão trágica da vida, de Schopenhauer; e a vontade de potência no eterno retorno, de Nietzsche. 19 Ibid., p. 442. impulso nº 28 Em resposta ao que identificou na doutrina de Schopenhauer como a face do pessimismo, uma vontade de não – Schopenhauer concebeu a força da vontade como fundamento do mundo para aprisionar-se no sentimento da impotência –, Nietzsche formula a vontade em sua máxima potência, e propõe a radicalidade da diferença como o efetivo destino do eterno retorno, isto é, do vir-a-ser intempestivo. O ETERNO RETORNO Em 1881, durante o passeio por uma aldeia da cidade onde morava, Haute-Engandine, Nietzsche concebeu o eterno retorno, cuja tese, segundo Antônio Cândido, é a de que o mundo pode ser compreendido como um desenvolvimento alternado da criação e da destruição, do gozo e da dor, do bem e do mal. De acordo com as conclusões do VII Colóquio Internacional de Royaumont “Nietzsche”, o eterno retorno não constitui uma formulação que tenha sido objeto de exposições e desenvolvimentos sistemáticos de sua filosofia. O que há são notas e algumas indicações apresentadas na obra. Isto, contudo, não torna menor o valor do seu projeto que, conforme diz Nietzsche, pretende uma saída da mentira que já dura dois séculos. Mas que saída é essa? Como ela se organiza e quais são as ferramentas de Nietzsche para encaminhar tamanho empreendimento? Sob o risco de restringir a amplitude do trabalho de Nietzsche caindo num discurso imprudente e estéril, e mesmo ciente da aversão do eterno retorno às explicações e definições, buscar-se-á uma abordagem preliminar de alguns de seus principais aspectos. O DESMONTE DA CRÍTICA FILOSÓFICA Apesar de inicialmente afetado por Schopenhauer e de nele ter identificado o ato legítimo de um querer – o rompimento da existência com o divino e a demonstração dos fenômenos modernos como sintomas de uma vontade –, Nietzsche distancia-se dessa filosofia, sobretudo por não endossar a idéia da vontade como aquilo que se reflete na aparência, na ilusão do mundo, recusando-se a so- 89 g g y frer da consciência do conhecimento como representação. Em Nietzsche, a vontade não tem rosto, ela é múltipla, e só pode agir sobre uma outra vontade porque “só uma vontade pode obedecer àquilo que a comanda”.20 Deste ponto de vista, Nietzsche desobriga-se definitivamente da distinção metafísica dos mundos e anuncia a Vontade como o nome do libertador e do mensageiro da criação e da alegria – ânimo fundamental eternizado na afirmação. “Quem encontra no esforço o mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não receie nenhum meio! Isso vale a eternidade!”21 Segundo Nietzsche, há uma fonte de inspiração comprometedora de toda a filosofia: o princípio teórico que estabelece a distinção dos mundos da essência e da aparência, do verdadeiro e do falso, do inteligível e do sensível. Esta concepção, forjada por Sócrates, tornou a vida algo a ser julgado, medido e limitado por um pensamento que só pode se exercer em nome de valores tidos como superiores – “o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem”–,22 e produziu uma filosofia voluntarista e submissa. A predominância dos critérios superiores, assevera o filósofo, favoreceu em toda parte a vitória do não sobre o sim, da reação sobre a ação. Na matriz socrática e nas doutrinas judaico-cristãs encontramos “a gênese das grandes categorias do pensamento: o Eu, o Mundo, Deus, a causalidade, a finalidade etc.”,23 terrenos nos quais triunfaram os contra-sensos do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético. Estes três contra-sensos, segundo Deleuze, imprimem um tom bastante peculiar à filosofia da vontade. Neles, a fraqueza e a infelicidade renunciam às forças ativas e acusam o outro como causa da própria inanidade, tornam a ação vergonhosa e acomodam a impotência no sentimento da inveja, atri20 21 22 23 DELEUZE, 1976, p. 6. NIETZSCHE, 1996, p. 442. DELEUZE, 1976, p. 20. Idem, 1981, p. 25. 90 buem-se a si mesmas a falta primordial, introjetam o erro, dizem-se culpadas pelo engodo que presenciam da vida, dão o exemplo da renúncia, disseminam o contágio reativo por todas as forças e, finalmente, sublimam o fracasso nos valores piedosos e superiores à vida em nome da própria salvação no além. Eis a aliança de Deus com o homem para dizerem, um ao outro, não. Diz-se que alguém é forte porque ele carrega: carrega o peso dos valores “superiores”, sente-se responsável. Mesmo a vida, sobretudo a vida, parece-lhe difícil de suportar. As avaliações estão de tal modo deformadas que já não sabemos ver que o carregador é um escravo, que o que ele carrega é uma escravatura, que o carregador é um carregador-fraco – o contrário de um criador, de um dançarino.24 Sem embargo, a avaliação do filósofo vai mais além. Para Nietzsche, mesmo a tarefa kantiana de conferir à crítica uma dimensão abrangente e positiva, denunciando as falsas pretensões do conhecimento, não colocou em causa a aspiração de conhecer, não fez a crítica da verdade e, embora tenha criticado a falsa moral, não pôs em questão as aspirações da moralidade nem os seus valores. Todavia, essa passagem em revista da cultura ultrapassa a crítica da razão. Nietzsche observa que a predominância das formas reativas e acusatórias se expressam também na dialética, enquanto uma arte destinada a nos convocar para a recuperação de “propriedades alienadas”,25 para a recomposição do Espírito ou da consciência. Este objetivo da dialética contém o pressuposto de que nossas propriedades sugerem a vida e o pensamento em si como fenômenos mutilantes. Seria o caso então, pondera Deleuze, de nos tornarmos os verdadeiros sujeitos destas propriedades de mutilação? O sacerdote foi interiorizado pela Reforma mas não desapareceu, Deus foi morto mas o homem dele guardou e ocupou o essencial: o seu lugar. Sem a crítica dos valores, de fato, continuamos a sobrecarregar as costas com o entulho secular dos 24 25 Ibid. Ibid., p. 20. impulso nº 28 g g y valores estabelecidos, neles buscando algum reconhecimento. Na renúncia à crítica dos valores é que a afirmação da vontade confunde-se com a imposição, com o desejo de dominar; subordina-se aos interesses e imperativos da dominação para se eternizar no poder como a vontade do mesmo – à semelhança de um escravo que se torna poderoso mas que não se inventa como senhor. Para Nietzsche, a história universal é a história do modo como as forças reativas se apoderaram da cultura ou a desviaram em seu próprio benefício. “Os nossos senhores são escravos que triunfam num devir-escravo universal: o homem europeu, o homem domesticado, o bobo... Nietzsche descreve os Estados modernos como formigueiros, em que os chefes e os poderosos levam a melhor devido à sua baixeza, ao contágio desta baixeza e desta truanice.”26 Na lida com a total inversão dos valores, como escapar às proposições lógicas que, na verdade, escondem uma segunda intenção teológica? Que lei originária vai instituir o filósofo para dar conta do curso do mundo e da sua eternidade? Com quais recursos ele constrói um novo caminho? O ARSENAL TEÓRICO Para situar o eterno retorno, Nietzsche recorre aos conceitos de força, infinito e tempo, articulando-os com a idéia da situação global. Diz o filósofo que a força total, resultado da atuação da multiplicidade de forças do todo, não corresponde ao infinito. Apesar dessa força não poder ser medida, ela é determinada. O que é infinito é o tempo, o instante – “uma força eternamente igual e eternamente ativa”27 – em que todos os desenvolvimentos possíveis de força já transcorreram. Por isto, o que gerou o tempo e o que dele nasce é uma repetição, e a situação global de todas as forças sempre retorna. A infinidade só passou porque todas as possibilidades do que tem de ser na ordem e na relação de forças já se esgotaram. “Outrora se pensava que a atividade infinita no tempo requer28 uma força infinita que nenhuma 26 27 Ibid., p. 24. NIETZSCHE, 1996, p. 439. impulso nº 28 força esgotaria. Agora pensa-se a força constantemente igual, e ela não precisa mais tornar-se infinitamente grande. Ela é eternamente ativa, mas não pode mais criar infinitos casos, tem de se repetir: essa é a minha conclusão.”29 Uma conclusão a que Nietzsche chegou como forma de evitar a tendência da cultura em atribuir crédito ao teísmo. Ou se acredita na pluralidade de forças em retorno seletivo e criador, “em um processo circular do todo”,30 ou se crê em um Deus voluntário, fiador do mundo e do ser. Além da força, do tempo e do infinito, o arsenal teórico que suporta o eterno retorno abrange também a articulação de noções como vontade, acaso, sentido e valor. De início, ele considera como propriedade fundamental da força estar em relação com outra força, o que caracteriza a vontade. No relacionamento das forças, que se diferenciam em quantidade e qualidade, Nietzsche vê o acaso. Se nessa implicação do acaso as forças distinguem-se umas das outras em quantidade, elas são forças dominantes ou dominadas; quando a diferença entre as forças se expressa em qualidade, elas são ativas ou reativas. Como todas as forças encontram-se em estado permanente de movimento, umas em relação às outras, compreende-se porque Nietzsche propôs a vontade de potência como o princípio plástico determinante da relação entre elas. Enquanto é próprio da força agir ou reagir, à vontade de potência compete afirmar ou negar, apreciar ou depreciar. Pelo fato da vontade de potência também ser dotada das qualidades afirmativas ou negativas, que são anteriores às qualidades da força, é dela que derivam a significação do sentido e o valor dos valores. De maneira bastante abreviada, este é o tecido conceitual que permite a Nietzsche engendrar uma saída ao predomínio de uma visão plotiniana do mundo, ancorada no ideal religioso, moral e dialético, buscando um outro caminho para a filosofia, para a história e para a política. “Uma nova imagem do pensamento significa inicialmente o seguinte: o verdadeiro não é o elemento do pensamento. O ele28 O tempo do verbo, apesar de suscitar dúvidas ao leitor, corresponde ao texto original da publicação traduzida, e por isto foi mantido tal como está editado. 29 NIETZSCHE, 1996, p. 439. 30 Ibid., p. 440. 91 g g y mento do pensamento é o sentido e o valor. As categorias do pensamento não são o verdadeiro e o falso, e sim o nobre e o vil, o alto e o baixo, segundo a natureza das forças que se apoderam do próprio pensamento”.31 Assim entendidos os elementos centrais da Stimmung nietzschiana, neles, as referências à nobreza, à altivez e à mestria podem ser identificadas como sendo próprias da vontade de potência afirmativa, da força capaz de se transformar; por outro lado, a vileza, a baixeza e a escravidão figuram como categorias pertinentes a uma vontade de potência negativa. Estas qualidades da vontade, logo, em sendo afirmativas ou negativas, implicarão, respectivamente, num devir ativo e num devir reativo. Por conseguinte, a partir da orientação deleuziana, constata-se que o pensamento trágico de Nietzsche substitui o ideal do conhecimento, da descoberta do verdadeiro, pela interpretação e pela avaliação. Interpretar é fixar o “sentido” de um fenômeno, que é sempre parcial e fragmentário; avaliar é determinar o “valor” dos sentidos e totalizar os fragmentos, levando em conta a sua pluralidade. Em última instância, na condição de crítico da ciência e da cultura modernas, Nietzsche chama a atenção para “os direitos da diferença de quantidade contra a igualdade e para os direitos da desigualdade contra a igualação das quantidades”.32 UMA NOVA ALIANÇA COM O MUNDO Deleuze esclarece que o método de Nietzsche procura descobrir novas “profundidades” de sentido, alterando o espaço onde os signos se distribuem. Ao se alterar esse espaço, as interpretações se organizam em nova profundidade e cessam de ter o verdadeiro e o falso como critério. No lugar da lógica, funda-se uma topologia e uma tipologia do pensar, sentir e mesmo existir: as interpretações supõem não o que se interpreta, mas o tipo daquele que interpreta. No lugar da representação, não há nada, o que há é a máscara, a avaliação; não propriamente coisas a interpretar e avaliar, mas somente a vontade de potência, que é potência de metamorfose, potência de modelar as máscaras, potência de interpretar e de avaliar. A propósito desta espécie de horror vacui, que dispara os processos de sentido e não remete a nenhuma substância essencial de valor, Deleuze nos oferece um exemplo de toda a magnitude contemplada na vontade de potência: atrás da caverna platônica não há outra coisa senão outra caverna atrás de toda caverna, atrás de cada profundidade há “uma profundidade original, ontológica, (...) abismo abaixo de todo fundo”.33 A vontade de potência não é uma vontade que quer a potência ou que deseja dominar. Querer dominar é a imagem que os fracos fazem da vontade de potência, no seu mais baixo nível. Num grau mais elevado, ela não equivale à cobiça e nem mesmo à usurpação, porém guarda o sentido de dar e de criar. “Seu verdadeiro nome, diz Zaratustra, é a virtude que dá. Da mesma forma a máscara é a mais bela dádiva, testemunha da vontade de potência como força plástica, como a mais alta potência da arte. A potência não é o que a vontade quer, mas quem quer na vontade.”34 Sob a assistência de Deleuze, pode-se dizer que o papel da negação e da afirmação no perspectivismo nietzschiano, de acordo com o vetor de análise, assume muitas significações, coexistindo sob tensões variadas. Se procuro ver do alto, afirmar implica reconhecer diferença, jogar, criar; se busco analisar do ângulo do que se encontra abaixo, afirmar significa negar, se opor à diferença, ao que não corresponde àquilo que a visão do que está embaixo é. Em um outro exemplo dessa tensão, Deleuze ressalta a diferença entre o sim e o não do Asno e o sim e o não de Zaratustra. O primeiro, quando diz sim, quando acredita afirmar, não faz senão carregar. Ele acredita que afirmar é carregar, o valor de suas afirmações ele o avalia segundo o peso do que carrega. O que ele carrega? O “asno carrega antes de tudo o peso dos valores cristãos; de resto, quando Deus está morto, carrega o peso dos valores huma- 31 33 A VONTADE DE POTÊNCIA: 32 DELEUZE, 1976, p. 86. Ibid., p. 37. 92 34 ESCOBAR, 1985, p. 21. Ibid., p. 22. impulso nº 28 g g y nistas, humanos – demasiadamente humanos; enfim, o peso do real, quando não há mais valores de modo algum”.35 Eis o niilismo nietzschiano em seus três estágios: o peso de Deus, o peso do homem e o peso do último dos homens – a carga que nós conduzimos quando não temos mais o fardo da teodicéia. Ao que o asno diz sim ao mesmo tempo em que diz não a si mesmo, é ao niilismo: nele, a afirmação não é mais do que um fantasma, e o negativo, sua única realidade. Afirmar, para Zaratustra, não é sinônimo de carregar, assumir a carga; afirmar significa desfazer-se da carga, descarregar, fundar o ato solene e sublime da dança, da criação. O sim de Zaratustra é a afirmação do dançarino, o sim do asno é a afirmação do carregador; o não de Zaratustra é o da agressividade, da atitude, o não do asno é o do ressentimento. PRODUÇÃO DA DIFERENÇA E CRIAÇÃO DE NOVOS VALORES Dos conceitos apresentados por Nietzsche, o eterno retorno é um dos mais complexos e de difícil alcance. Isto porque as proposições de sua filosofia encontram-se estruturadas numa conformação metodológica onde se privilegia a interação múltipla de signos. Em sua obra sempre vigora uma pluralidade de sentidos, resultado das forças que ali se manifestam e atuam. Na visão do filósofo, tudo aquilo que há está sempre no regime de um complexo de sentido. Desse modo, toda possibilidade de interpretação remete à possibilidade infinita de interpretar, de se produzir outra interpretação. Mas isso não autoriza a que todas as interpretações tenham o mesmo valor e estejam no mesmo plano, porque, como vimos, o valor é determinado pela vontade de potência. Dentre as diversas abordagens possíveis, Deleuze sustenta ser o eterno retorno o tema que permite resgatar a importância e o sentido fundamental da afirmação na filosofia de Nietzsche. Para isso, ele distingue a originalidade do filósofo em contraste com as formulações mais clássicas do problema. Desde as raízes pré-socráticas, o eterno retorno constitui uma das idéias mais antigas da filosofia. Lá, conforme as civilizações e as escolas filosóficas da época, o conceito era articulado a outras noções especulativas e concebido sob variadas formas. De maneira geral, essas formas do eterno retorno eram vistas como ciclos incomensuráveis, que provavelmente não tinham uma abrangência total e nem mesmo eram consideradas como eternas. De acordo com Deleuze, no passado, o eterno retorno não chegou a se confirmar como uma doutrina. Na Antiguidade, ele era o resultado de uma interpretação das transformações ocorridas ou no mundo físico ou na dinâmica dos astros. De um lado, as mudanças cíclicas geradas na interação dos elementos qualitativos determinavam o retorno das coisas e dos corpos celestes; de outro, o movimento circular dos corpos celestes determinava o retorno das qualidades e das coisas. Nenhuma dessas abordagens corresponde ao pensamento de Nietzsche. Na expressão “eterno retorno” fazemos um contra-senso quando compreendemos retorno do mesmo. Não é o ser que retorna, mas o próprio retornar constitui o ser enquanto é afirmado do devir e daquilo que passa. A identidade no eterno retorno não designa a natureza do que retorna, mas, ao contrário, o fato de retornar para o que difere. Por isso o eterno retorno deve ser pensado como uma síntese: síntese do tempo e de suas dimensões, síntese do diverso e de sua reprodução, síntese do devir e do ser afirmado do devir, síntese da dupla afirmação.36 O eterno retorno de Nietzsche nos introduz numa dimensão não explorada, que não diz respeito nem à qualidade física nem à quantidade extensiva do mundo, mas, sobretudo, ao domínio das intensidades puras – domínio desenvolvido como lei da vontade de potência. Nietzsche visava a vontade de potência “como princípio ‘intensivo’, como princípio de intensidade pura”.37 36 35 DELEUZE, 1976, p. 23. impulso nº 28 37 Ibid., p. 40. ESCOBAR, 1985, p. 25. 93 g g y Nesse mundo de intensas flutuações, de signos e de sentidos, as identidades se dissolvem, e o querer de cada um só se exerce na medida em que abrange a extensão radical de toda alteridade. Nela, a presença a si se transforma em inumeráveis “outros”, e só pode ser apreendida como um instante, uma atualização fortuita, cuja causa está no seu envolvimento com toda a série. Assim, numa diferença de intensidade, os signos se estabelecem e se tornam “sentido” porque, ao se dirigirem para outras diferenças implicadas na diferença primeira, por meio delas retornam sobre si. O advento das flutuações ou intensidades que se atravessam umas nas outras caracteriza a vontade de potência; da volta e da re-volta em todas as danças, contradanças e mudanças dessas flutuações ou intensidades é que decorre o eterno retorno. Sob a força de Klossowski, assim Deleuze nos oferece a visão, a revelação e o enigma de Nietzsche. “(...) o mundo do eterno retorno é um mundo em intensidade, um mundo de diferenças, que não supõe nem o Um, nem o Mesmo, mas que se constrói sobre o túmulo do Deus único como as ruínas do Eu idêntico. O eterno retorno, ele mesmo, é a única unidade deste mundo que não desfruta disso senão “retornando”, a única identidade de um mundo que não tem do “mesmo” senão pela repetição.”38 Na repetição, a vontade visa atingir a sua maior intensidade, mas no infinito – onde não há distinção entre uma vez e uma infinidade de vezes –, a dimensão mais radical da diferença corresponde à máxima potência dela mesma. Onde não há mais medida é quando a expressão da diferença se exerce com maior radicalidade (1, 110, 1100, 11.000, 110.000, 1n). Mas que diferença seria essa que sai do mesmo e retorna em repetição? Deleuze nos assegura que o eterno retorno não é uma repetição mecânica, não é um ciclo, não supõe nenhum equilíbrio, nenhuma unidade, nem o mesmo ou o igual. Não é a volta do Todo, do Mesmo, nem um retorno ao Mesmo, e não tem nada em comum com a harmonia física e astronômica contemplada pelos antigos. Ele recorda, ainda, que Nietzsche, além de se opor à hipótese cíclica, faz uma crítica contundente à noção de Tudo, sentenciando que Tudo também não volta, já que o eterno retorno é essencialmente seletivo. A significação seletiva do eterno retorno se dá duplamente. Ele seleciona pela via do pensamento porque elimina as “meias-vontades”, e seleciona pela via do ser porque suprime as semi-potências. A dupla dimensão do eterno retorno consiste, portanto, na afirmação irrestrita do querer e do ser, e o que ele faz voltar é a potência extrema de tudo que passa pela prova. Apesar do esforço da cultura na igualação das diferenças, isto volta porque nada pode ser igual, nem o mesmo pode ser idêntico a si. O desigual, o diferente é a verdadeira razão do eterno retorno. Ele concerne apenas ao vir-a-ser e ao múltiplo, num mundo sem ser, unidade ou identidade. “Por toda a parte o eterno retorno se encarrega de autenticar; não identificar o mesmo, mas autenticar as vontades, as máscaras e os papéis, as formas e as potências.”39 Nas relações de produção da diferença, lembra Deleuze, encontra-se uma diferença de natureza entre as formas extremas e as formas medianas; entre a criação dos valores novos e o reconhecimento dos valores estabelecidos; entre atribuir-se valores em curso e criar novos valores. Esta é a marca mesma do eterno retorno, a que constitui o seu fundamento: “valores ‘novos’ são precisamente as formas superiores de tudo o que é”.40 Dentre os valores, há aqueles que não aparecem senão para se identificar com o reconhecimento da ordem e aqueles que se perpetuam, mesmo depois de aparentemente assimilados pela sociedade. Esses valores, que transcendem o seu próprio tempo de criação e sempre mobilizam novas forças sociais, testemunham a profundidade criadora da vontade de potência. É esse caos que Nietzsche afirmava ser não o contrário mas o próprio eterno retorno. Dessa agitação caótica e elementar, o filósofo acena com a transformação da vida e do pensamento em novo horizonte histórico e político, contemplando o super-homem como poeta, os trabalhadores como soldados e o eterno retorno como a própria vertigem da vida em poesia. 39 38 Ibid. 94 40 Ibid., p. 28. Ibid. impulso nº 28 g g y CONCLUSÃO Vimos que Nietzsche apreende da filosofia de Schopenhauer elementos para a formulação de sua abordagem sobre a cultura moderna. A primeira lição é relativa à importância de o homem investigar a si mesmo como condição necessária para atingir a compreensão crítica daquilo que se lhe impõe como história e como destino. A segunda diz respeito à consolidação dessa atividade investigativa. Ela é indispensável para a realização crítica da cultura, e pressupõe que o pensamento não renuncie à diferença que opõe ao seu tempo em nome de uma existência culturalmente autorizada. Pensar e viver devem ser faces de um mesmo projeto criador auto-sustentado. A terceira lição recomenda a prudência necessária na lida com a variante conservadora das instituições culturais, circunscritas aos interesses do Estado. Isto porque, nelas, a vida fica restrita aos horizontes estabelecidos pelo padrão vigente e a educação, reduzida aos objetivos de uma sobrevivência infecunda e subumana para o indivíduo. Este indivíduo, por mais que se lhe anuncie como propósito a igualdade de condições para todos, tem o direito de exercer a singularidade de seu projeto contra a modelização cultural e política. Por mais que lhe seja imposto o peso da carga dos valores estabelecidos, tem o direito de buscar novos valores para o homem e para a cultura. Por mais que lhe seja cobrada a identificação com a ordem cultu- ral, tem direito a fundar um pensamento, assumir a sua verdade e tornar-se sujeito de um caminho próprio. Diante da rendição à mediocridade cultural e política, Nietzsche compreende que o produto da coragem que institui o auto-exame, a crítica do presente e a independência do pensamento, ao invés de representar o pessimismo de nada querer, significa o retorno de uma vontade recalcada pela cultura, que não hesita em eternizar a vida e a alegria em suas máximas potências. Para concluir, deixo o fragmento de Domenico Losurdo, reunindo em breves palavras a imagem que, do alto a baixo, o vôo da águia permitiu-nos vislumbrar. O filósofo (...) não só pensa em termos profundamente políticos, mas enfrenta ainda o problema dos instrumentos necessários para o alcance dos objetivos anunciados: aspira explicitamente a um “novo partido da vida”, que ele convida a “criar” através da “grande política”, caracterizada pelo desprezo à mesquinharia chauvinista e provincial da “pequena política” nacional liberal e pela consciência que a contradição principal, a qual atravessa em profundidade toda manifestação cultural e em torno da qual quase tudo gira e deve girar, é aquela entre o senhor e o escravo.41 41 LOSURDO, 1997, p. 71. Referências Bibliográficas BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, v. 1. DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. __________. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 1981. DIAS, R.M. Nietzsche Educador. Rio de Janeiro: Editora Scipione, 1991. DIDIER, J. Dicionário da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Larousse do Brasil, 1969. ESCOBAR, C.H. et al. Por que Nietzsche? Rio de Janeiro: Achiamé, 1985. LOSURDO, D. Nietzsche e la Critica della Modernità. Per una biografia politica. Roma: Manifesto Libri, 1997. MORA, J.F. Diccionario de Filosofia. Madrid: Alianza Editorial, 1981. NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ROSSET, C. Lógica do Pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. impulso nº 28 95 g g 96 y impulso nº 28