ABC das classes por Guilherme Freitas Pesquisadores discutem características e impasses da mobilidade social no Brasil hoje Nos últimos anos, a expressão “nova classe média” se tornou mote para discursos muitas vezes conflitantes sobre a realidade nacional. Retratado ora como reserva de consumidores responsável pela dinamização de um mercado interno em expansão, ora como “capital político” decisivo disputado por todos os partidos, o enorme contingente de brasileiros que ascendeu economicamente desde a década passada está no centro dos debates sobre os rumos do país, mas continua a ser, para muitos, um fenômeno incompreendido. Procurando dar conta das transformações provocadas pela mobilidade social no Brasil, livros e estudos publicados recentemente colocam em questão o próprio conceito comumente usado para defini-la. Em “Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira” (Editora Boitempo), o presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), Marcio Pochmann, analisa os tipos de ocupação responsáveis pela dinamização da economia e propõe que o aumento de renda e poder de compra de uma parcela significativa da população ainda precisa ser acompanhado de reformas nas políticas públicas para educação e emprego. Em “Nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide” (Editora Saraiva), o economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas (FGV), defende o uso do termo como “um espelho” para uma sociedade em transição e apresenta estudos que projetam mais crescimento da chamada “classe C” nos próximos anos. Autor de “Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?” e “A ralé brasileira: quem é e como vive” (ambos publicados pela Editora UFMG), o sociólogo Jessé Souza critica o viés “economicista” das interpretações da realidade nacional, que restringe o conceito de classe ao valor da renda e acentua o que ele chama de “invisibilidade da desigualdade” brasileira. Economistas e sociólogo divergem sobre o papel do aumento da renda na formação de um novo estrato social Em “Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira” (Editora Boitempo), o economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), aponta o que considera um “equívoco” no debate público sobre a natureza e a dinâmica das transformações sociais recentes do país. Segundo Pochmann, a ascensão econômica de uma parcela significativa da população brasileira “não se trata da emergência de uma nova classe — muito menos de uma classe média”. O economista se justifica apontando que esse fenômeno, estimulado inicialmente por políticas públicas de redistribuição de renda e alavancado pela criação de 20 milhões de postos de trabalho ao longo da última década, é caracterizado por 94% de ocupações de até 1,5 salário mínimo em setores como o de serviços, o de trabalho terceirizado e o de trabalho para famílias, entre outros não associados à concepção de “classe média”. Pochmann avalia também que os estratos emergentes ainda não alcançaram nem o padrão de consumo nem a margem de poupança no orçamento familiar que são típicos da classe média, e portanto precisam ser analisados à luz de outros conceitos. — Definir classe social apenas pela renda e pelo poder de compra é simplificar a situação tanto da classe média quanto dos segmentos ascendentes. O que estamos vendo é que os segmentos na base da pirâmide ascenderam através da ampliação do emprego e do papel que teve o salário mínimo, numa situação em que qualquer ampliação de renda se traduz em mais consumo. Quando se fala em “nova classe média”, acho que há um equívoco em torno do que, na minha opinião, é a ascensão de um segmento dentro da classe trabalhadora, coerente com o perfil da transição da atividade econômica no Brasil, que é de crescimento do setor terciário — diz Pochmann, pré-candidato do PT à prefeitura de Campinas. Mobilidade exige investimentos em educação Para o economista, a ênfase na ideia de uma “nova classe média” pode influenciar a orientação de investimentos do Estado: “A interpretação de classe média (nova) resulta no apelo à reorientação das políticas públicas para a perspectiva fundamentalmente mercantil. Ou seja, o fortalecimento dos planos privados de saúde, educação, assistência e previdência”, escreve. Além disso, Pochmann considera que, apesar da mobilidade intensa na base da pirâmide social, a economia nacional não gerou muitos postos de trabalho tradicionais de classe média nos últimos anos, o que provoca um gargalo que precisará ser enfrentado com investimentos do Estado. — Fala-se muito no avanço da renda e do consumo entre os segmentos emergentes, mas isso em algum momento pode ter fim, porque o tipo de emprego que sustenta esse crescimento, além de instável, não permite uma renda crescente. O Brasil precisa dar um salto de investimentos na ampliação da estrutura produtiva, porque associada a isso está a incorporação de novas tecnologias, cujo resultado, aí sim, é um aumento da oferta de empregos com maior escolaridade e maior remuneração — diz Pochmann, que sublinha a necessidade de investimentos públicos em educação para garantir o acesso dos trabalhadores emergentes a esses postos. — Precisamos de uma modificação dramática no papel dos Ministérios do Trabalho e da Educação, é preciso que eles tenham uma visão integrada para os novos segmentos que emergem no mercado de trabalho. Hoje, não temos uma organização sobre isso do ponto de vista público. Chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS-FGV), o economista Marcelo Neri também considera os investimentos públicos em educação essenciais para a consolidação das transformações sociais, mas difere de Pochmann por adotar sem ressalvas a expressão que dá título a seu novo livro, “A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide” (Editora Saraiva). Neri justifica o uso do termo dizendo preferir falar em termos de “classe econômica”, e não de “classe social”, e aponta características da pirâmide brasileira que permitiriam considerar os setores emergentes como parte da “classe média”: — A classe média brasileira não é a americana nem a europeia, então não podemos tomar essas comparações como base. O 1% mais pobre dos Estados Unidos ainda tem 60% da população mundial mais pobre que ele. Por outro lado, nossa pesquisa mostra que o Brasil é uma “maquete” do mundo em termos de grau de desigualdade e de nível de renda, porque temos segmentos entre os mais ricos e os mais pobres do planeta. A classe média americana não é a classe média mundial — observa. Ressaltando a importância do emprego formal para as movimentações recentes na pirâmide social, o economista da FGV diz que “o grande símbolo da nova classe média brasileira é a carteira de trabalho”. Mas identifica uma “falta de empreendedorismo” na base da pirâmide social brasileira: — A nova classe média é formada principalmente por trabalhadores que conseguiram emprego com carteira, mas não é uma classe média de pequenos empreendedores. Os dados mostram que, enquanto há aumento do emprego formal, a proporção de pequenos empresários empregadores é bastante reduzida. O aumento de emprego formal pode ser explicado por um aumento de escala nas empresas e não por uma multiplicação de empresas — diz Neri, autor de um estudo recente que aponta tendências de crescimento dessa “nova classe média” até 2014 (disponível no site da FGV) — O crescimento econômico do Nordeste na década passada foi muito superior ao do Centro-Sul, mas a maior parte da população pobre da região permanece na chamada “classe D” e deve chegar à nova classe média nos próximos anos. Sociólogo alerta para desigualdade “invisível” Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o sociólogo Jessé Souza vem estudando as transformações e os impasses da estrutura de classes brasileira em livros como “Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?” (2010) e “A ralé brasileira: quem é e como vive” (2009), publicados pela Editora UFMG. Crítico das interpretações “economicistas” da sociedade nacional, Jessé considera que a associação frequente entre classe e renda torna superficial o debate sobre a “nova classe média” brasileira. — Associar classe a renda é fazer de conta que se fala de classe quando se escondem, na verdade, todas as questões que esclarecem a gênese social dos privilégios injustos. Daí que tenhamos tentado corrigir e criticar a expressão “nova classe média”, construída segundo este tipo de classificação superficial da realidade. Na verdade, a “classe média verdadeira” é uma das classes dominantes em sociedades modernas como a brasileira, porque é constituída pelo acesso privilegiado a um recurso social escasso de extrema importância: o capital cultural nas suas mais diversas formas — diz o sociólogo. Jessé rejeita a noção de “nova classe média” e procura construir um conceito de “nova classe trabalhadora” — os “batalhadores” do título de um de seus livros — , apontando como grande barreira para os segmentos emergentes o difícil acesso ao “capital cultural” detido pelas classes média e alta tradicionais (“seja ele ‘técnico’, como no caso de advogados, engenheiros, administradores, economistas etc., seja sob a forma de capital cultural ‘literário’ dos professores, jornalistas, publicitários”, especifica). — A vida dos “batalhadores” é marcada pela ausência dos “privilégios de nascimento” que caracterizam as classes médias e altas. Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias “verdadeiras”, quanto o capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de superexploração da mão de obra. Esses fatores fazem com que essa nova classe não tenha nada de “especificamente brasileira”, já que países como China, Índia e grande parte do sudeste asiático também devem boa parte de seu dinamismo atual a esse mesmo fenômeno — compara. Segundo Jessé, a ênfase nos discursos que associam classe e renda acentuam o que ele chama de “invisibilidade da desigualdade” brasileira. Enquanto o mercado e o Estado se concentram na ascensão de uma parte significativa da sociedade, que dinamizou a economia nacional nos últimos anos, o sociólogo lembra que há todo um grupo que fica esquecido e que ele chama (“provocativamente”, esclarece) de “ralé brasileira”: — A precariedade econômica e existencial da “ralé” implica a criação de uma classe que tende a se eternizar, posto que condenada ao “aqui e agora”. É uma classe literalmente “sem futuro”, pois jamais “planeja o futuro” dada a “urgência” da sobrevivência no presente. A “ralé” nunca foi, de resto, sequer “percebida” como uma “classe social” entre nós. É a existência dessa classe de abandonados sociais, no entanto, mais que qualquer outra coisa, que marca o atraso social e político brasileiro e o que, na verdade, explica nosso atraso relativo quanto aos países mais avançados em todas as dimensões da vida social. Fonte: Publicado originalmente no Caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo, de 12 de maio de 2012