ESPIRITUALIDADE BÍBLICA
Frei Aldir Crocoli, capuchinho.
“Espiritualidade” é uma realidade difícil de definir, por ser um substantivo abstrato. A
realidade concreta da qual deriva espiritualidade é “Espírito”. Ainda que não possa ser visto,
palpado ou tocado por não ser material, ele é muito concreto. Não dá para se duvidar de sua
“forma”. É o Espírito que dá concretude à existência e a configura por dentro e por fora, na sua
interioridade e em todas as suas relações. A “espiritualidade é o modo de vida de uma pessoa onde
o Espírito está presente, age, atua, comunica, inspira, determina”. Espiritualidade é o resultado da
presença transformadora do Espírito. É a sintonia ou conexão do espírito da pessoa com o Espírito
de Deus, da vida de alguém com a Vida de Deus. Toda a caminhada da espiritualidade consistirá
em permitir (= convidar e conceder real permissão) ao Espírito de Deus agir em nossa vida, em
nosso espírito. É um trabalho muito exigente em nós, a fim de possibilitar que Ele seja Ele em nós,
sem restrições. Os momentos de oração não são sinônimo de espiritualidade; são seu termômetro e
sua condição, mas não se equivalem.
A espiritualidade bíblica não é outra coisa do que conseguir sintonizar com o Espírito de
Deus que a Bíblia revela. E, sabe-se, não é o espírito de qualquer Deus; é do Deus de nosso Senhor
Jesus Cristo, Verbo do Pai. O povo bíblico fez uma experiência “canônica” desse Deus, no sentido
de que é uma experiência referencial e paradigmática à qual todos e sempre precisamos nos
reportar e confrontar para ter garantia de estar no rumo certo em termos de espiritualidade. Ela é a
régua que nos permitirá traçar linha reta entre o Espírito de Deus e nossa cotidianidade vital. Este
Deus é a resposta ao donde viemos e para onde vamos. É importante, pois, conseguir identificar o
“rio da vida divina” que vai percorrendo da primeira página do gênesis à última palavra do
apocalipse, tecendo curvas, saltando cascatas, criando remansos, formando ilhas ou represas, ora
deslizando suavemente por entre rochedos, ora recebendo o sol no rosto, ora se apresentando de
modo límpido e ora bem turvo e violento, mas sempre semeando abundância de alimentos e
remédios que a todos saciam e curam, como descreve o profeta Ezequiel (47,1-12).
Pretende-se abordar aqui neste ensaio uma possível síntese da espiritualidade bíblica em sua
perspectiva histórica. Serão apenas alguns aspectos dos principais momentos que marcaram a
caminhada de fé do povo e que se constituem em traços característicos que possibilitam reconhecer
quer o rosto do Deus que o foi conduzindo quer o rosto do povo que o foi buscando e descobrindo
ao longo de séculos de experimentação e tateio. Espera-se que forneça pontos de referência para
uma visão de conjunto e sirvam como um ponto de partida para ulteriores aprofundamentos. Se o
texto ajudar despertar e avivar a “sede de Deus” e purificar o conceito que temos de espiritualidade
já terá obtido seu resultado.
1 A formação histórica da experiência bíblica fundante
A Espiritualidade Bíblica, como uma espiritualidade revelada e canônica (normativa), teve
seu início entre os séculos XIII e XII aC. Ela foi gestada qual criança no útero da história. E, ao
nascer, mostrou um "salto qualitativo" de vida em relação à anterior, mal comparando, como o
surgimento hipotético do homem dos ancestrais antropóides. A revelação não se opõe à concreção
histórica. Antes, a revelação é sempre um movimento de mão dupla: é Deus que vem ao encontro
Espiritualidade Bíblica
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da humanidade revelando seu rosto, seu coração e sua prática; e é, ao mesmo tempo, a humanidade
caminhando na descoberta do Senhor, fruto de sinceras buscas.
Entre os teólogos biblistas é cada vez maior o consenso de que o tempo do êxodo, isto é, o
tempo dos séculos imediatamente anteriores ao início do último milênio antes de Cristo, foi este
berço do "nascimento" da experiência e da espiritualidade bíblicas por excelência.
Antes daquela data a humanidade vivia uma compreensão de Deus e uma prática religiosa
que era muitas vezes criada e sustentada pela estrutura de poder e dominação política. Cada reino
tinha seus deuses, criava suas festas e ritos. Geralmente, os deuses estavam muito ligados à
natureza e às lides da vida agrícola (visão funcionalista de deus) e/ou ao poder político. Os reis
eram sempre profetas e embaixadores participantes da divindade, quando não semideuses (filhos de
deuses). A religião estava, pois, a serviço da dominação. Como aconteceu a "grande virada" desta
cosmovisão religiosa? Segundo as recentes pesquisas bíblicas, podem ser assim descritas as
diversas experiências que confluíram para a formação da assim chamada "experiência fundante"
ou experiência básica da fé. Ainda hoje é extremamente útil para se poder compreender e viver
adequadamente a espiritualidade proposta pela Bíblia.
Para a formação da experiência fundante de Deus na Bíblia, confluíram ao menos três
principais experiências religiosas de diferentes povos: a do grupo mosaico, a dos seminômades do
Sinai e a dos seminômades palestinenses. Segundo as pesquisas das últimas décadas relativas ao
livro e ao tempo do Êxodo e à formação do povo de Deus, a formação da experiência fundante
teria acontecido num processo ecumênico de genuína fusão dessas várias experiências de Deus:
1.1 O grupo mosaico. As pessoas envolvidas nesta experiência quase todas escravas no
Egito. O grupo mosaico era composto por trabalhadores de tribos designados para edificar Pitom e
Ramsés, as novas residências imperiais junto ao Nilo e ao mesmo tempo fortalezas e celeiros. A
resistência do grupo veio consolidar-se com a liderança de Moisés. Pressionaram para sair... Foram
perseguidos... Ficaram livres, quando os carros do Faraó sucumbiram no mar.
O Deus desses escravos foi se revelando a eles como o Deus da Libertação, que eles
também chamam apenas e genericamente de “EL”. Em contato com os nômades das montanhas
do Sinai algumas décadas depois passarão a chamá-lo de "JAVÉ". Esse “El” é um Deus que mostra
sua força em meio à história: Ele liberta com mão forte e braço estendido. A intervenção histórica
de libertação tornou-se o principal traço do seu rosto. “EL” efetiva sua ação a partir dos
marginalizados (mulheres, crianças e homens oprimidos). Resgata-os da opressão, como seu
"Go'él", seu padrinho, seu parente mais próximo que paga o valor do resgate (a teologia da
redenção tem seu ponto de apoio histórico aqui).
De fato, esse povo constituído de escravos saído do Egito (em situação similar aos
“hapirus” da Palestina que eles encontrarão na caminhada) era portador de uma experiência que lhe
deu o “know how” (a experiência prática) de libertação para oferecer a outros. Eles, pobres e
fracos, conseguiram vencer a maior das potências do mundo político de então: o Faraó do Egito e
seu exército. Eis alguns passos deste processo que Paulo Cerioli detectou com olhos de quem
também experienciou, na prática, processo semelhante:
a) Dentro da mais dura escravidão começa com as parteiras Séfora e Fua uma desobediência civil e
uma resistência à opressão (Ex l, 15-22). Elas não cumprem as ordens do Faraó. Recrudesce a
maldade do Faraó que manda os seus compatriotas matar todas as crianças que nascem desses
escravos, a fim de que não se tornasse um grupo forte (Ex 1,22).
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b) Diante deste obstáculo político e jurídico, o povo escravizado avança na luta, aprendendo a usar
o sentimento maternal das mulheres dos poderosos para forçar a adoção. Aprendem, com a
assistência de “El” a usar a falta de compromisso dos poderosos com os filhos e conseguem
contratar as verdadeiras mães como amas. Estas os educam na tradição dos empobrecidos e ainda
são pagas para esta tarefa (Ex 2, 1-10).
c) Começa a organização para a fuga. Como furar o cerco da vigilância do exército? Para burlar a
vigilância solicitam três dias para ir oferecer sacrifícios ao seu “El”, deserto a dentro (Ex 5,3). O
Faraó desconfia e aumenta a repressão e a exploração. (Ex 5, 6-9). Ele usa o estratagema de jogar a
massa contra a liderança (Ex 5,21): os inspetores hebreus se queixam amargamente a Moisés! E
por pouco o Faraó não consegue criar divisão entre o povão e a liderança!
d) O povo descobre que precisa pressionar, pois libertação não se consegue de “mão beijada”.
Voltam a negociar com o Faraó a romaria de três dias. Este concorda apenas que seja feita dentro
do país (Ex 8,21). O povo dá uma desculpa e insiste que tem de ser a três dias de viagem. O Faraó
desconfia e se dá conta das verdadeiras intenções do grupo de Moisés, mas deixa ir desde que não
seja muito longe, pois aqueles escravos estavam se tornando uma “praga” para o governo central. O
povo aceita, mas logo o Faraó “rói a corda” (Ex 8,28).
e) Nova negociação, e o Faraó permite que façam a dita “romaria” desde que só os homens
participem dela. Ele se deu conta de sua verdadeira intenção (Ex 10,11). Assim seriam obrigados a
voltar a suas famílias. Recorde-se que as mulheres iniciaram a resistência! Por isso, o povo recusa
e são expulsos da sala de negociação.
f) Pouco depois, o povo força e desta vez o Faraó aceita que vão também as mulheres e crianças,
mas não podem levar nada. Ir de mãos abanando (Ex 10, 24). A fome obrigaria a retornar logo. O
povo não aceita, é expulso da sala de negociação e ameaçado de morte se voltar aí com a mesma
reivindicação. Êxodo 10,28 diz “Saia da minha presença e se eu tornar a vê-lo, você morrerá
imediatamente”.
g) Diz Cerioli, o povo se dá conta, então, que é preciso radicalizar. Traçam um plano bem
detalhado, até com senhas nas portas das casas para não haver engano (Ex 12, 23). E, à hora
marcada, o “anjo” entrou em cena. Desespero... Levam tudo o que podem. Quando o Faraó toma
consciência da situação manda o exército atrás. Este, com seus carros pesados que atolavam na
areia molhada e no barro, não consegue avançar. (Com uma mudança do vento pode ter vindo uma
maré...) Os escravos conseguiram escapar (Ex 14, 9). Uma experiência assim não dá para
esquecer1. Ela conferiu autoridade (know how) a seus portadores. Na caminhada pelo deserto se
encontram com outros povos seminômades da região do monte Sinai aos quais somam sua
experiência de fé.
Esta experiência foi, aos poucos, sendo refletida e transformada em “teologia”. Com ela se
elabora a página mais famosa do Êxodo, onde Deus des-vela seu rosto: um Deus que mudou de
partido. É de sua essência estar do lado do “lascado”, comprometido em devolver-lhe a dignidade
usurpada. É o Deus da libertação. Esse “EL” abandonou os grandes para aliar-se aos pequenos,
como mais adiante veremos. O coração desse Deus é constituído de “compaixão pelo oprimido”,
arrancando-o da escravidão”. Este é o traço característico de seu rosto. Em Êxodo 3, 7-8 está
1
CERIOLI, Paulo. O Ensinamento social da Igreja e o direito de organização social dos empobrecidos. Petrópolis:
Vozes, 1994, p. 22. É uma bela leitura do texto desde uma experiência vivida nestas lutas pela liberdade e pela posse
pela terra.
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sintetizado o que de mais relevante o Deus dos “menores” pode dizer de si: "Vi a aflição do meu
povo...desci para livrá-lo... e para fazê-lo subir..."
1.2 Os seminômades do Sinai e o seu deus Javé. O grupo sinaítico é extra-palestinense.
Viviam ao sul do Mar Morto, embora difícil de precisar aonde com exatidão, porque também o
monte Sinai é difícil precisar. Ali Deus se chamava “Javé”. Era assim conhecido bem antes de
Moisés. Javé se apresentava com duas características principais:
a) É um Deus epifânico, mais que teofânico, isto é, é um Deus que se manifesta sobretudo na
história mais que nos fenômenos naturais. Tanto o travão como os “atos de justiça de Deus na
história” são suas revelações. Por isso, ele tem também algo de "migrante" como entre os
seminômades da Palestina.
b) Mas o matiz principal é sua militância. É um Deus que não admite outros deuses a seu lado e
luta bravamente na defesa dos seus protegidos (Ex 20,3).
Esses seminômades, com a invasão dos edomitas no século XIII aC foram obrigados a
migrar para a região da Palestina.
1.3 Os seminômades palestinenses e seu deus paterno. Os povos seminômades que
habitaram a região sul da atual Palestina, com o enfraquecimento do poder controlador do Egito,
tinham conseguido criar focos de resistência cá e lá. Organizaram-se como segmentos sociais,
opondo-se, sobretudo, à política econômica dos reinos-cidades. Tinham um projeto social antiEstado e anticidade. Deram o nome de ISRA-EL ao seu país. Este nome, mencionado em
documentos do Egito de 1220 aC, é formado de uma frase: ISRA, verbo que significa "luta/lutará"
(ação não concluída) e EL, como sujeito, denominação genérica de Deus em quase todo o Oriente
Médio de então. Isto é, naquele contexto de sociedade religiosa, formaram a consciência de que
seu "Deus" tem a ver diretamente com a defesa dos espoliados e lascados, pois senão eles não
teriam conseguido resistir à dominação egípcia e de outras cidades-reino. Formaram a consciência
de que Deus lutava ao seu lado, em sua defesa, exatamente por ser um povo pobre, espoliado,
migrante, refugiado nas montanhas. Por essa razão eram conhecidos pelo apelido depreciativo de
“hapirus”
Este povo era criador de cabras e ovelhas. Vivia nas montanhas. A descoberta das cisternas
e do ferro lhe proporcionava chances de sobrevivência e até de agressão aos outros com o objetivo
de conseguir pequenos espaços de terra para plantar. Como não tinha terras, vivia em permanente
êxodo. Sua consciência de povo não lhe era dada pela terra, pelo lugar, e sim pela unidade clânica.
O ancestral era o ponto de identificação. O clã conferia a verdadeira identidade. Assim foi com
Abraão, Isaac, Jacó, Rebeca, Esaú (provavelmente cinco clãs totalmente diferentes e depois
costurados na história em família linear para solidificar uma aliança). O deus (EL) desses
seminômades apresentava as seguintes características:
a) Entre deus e a pessoa existe uma relação imediata e pessoal. Inexistem relações complexas tais
como sacerdócio e templo. Sonhos e mensageiros estabelecem a relação entre o divino e o humano
(Gn 18; 28). Este "deus paterno", “Deus do pai”, do ancestral, é um deus pessoal, não no sentido
de acontecer no indivíduo na compreensão moderna do termo, mas enquanto acontece na
experiência do coletivo clânico, sem a mediação de instituições sagradas.
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b) Este deus pessoal, paterno, é o El da companhia. Não são as pessoas que peregrinam a El e o
buscam em algum lugar sagrado (templo). É El quem vai junto com seus protegidos. Por isso é um
"Deus migrante" (carregam a Arca da Aliança em suas andanças). O migrante conta com Ele no
caminho. É celebrado na partida, na chegada e nas paradas. A história de Jacó é muito elucidativa
neste sentido (Gn 26 a 33). Veja-se, sobretudo: Gn 26, 12-25; 28, 10-22; 32, 23-33, etc.
c) É Deus da promessa. Gn 12-50 estão repletos de utopias e de promessas de terra e
descendência, exatamente as duas maiores aspirações para uma pessoa e de um grupo social
daquele tempo e lugar. Ele anima a caminhada do povo com visões sobre o futuro. Vive-se aí uma
expectativa de posteridade, terra e bênção.
1.4 A fundição da experiência fundante do Deus Bíblico. O encontro de pelo menos
esses três grupos, todos migrantes, foragidos e espoliados, foi possível devido à situação comum de
exploração que viviam e à forte utopia que carregavam dentro de si. Eles representavam um
projeto alternativo de vida e organização social. As diferenças na compreensão de Deus foram
sentidas como complementares. Ao grupo mosaico, porém, coube o papel especial, pois ele vencera
a opressão faraônica, enfrentando-a cara a cara. Esta era a melhor das "boas notícias". Era assim o
grupo "evangelístico". Veio a servir de catalisador da memória histórica. Sua experiência fez-se
constitutiva e fundante e se tornou uma “memória perigosa” porque é fonte de transformação e
revolução no autêntico sentido da palavra.
Esta integração entre as diferentes tendências teológicas não se deu ao acaso. Houve eixos
ao redor dos quais foi ocorrendo a aproximação das memórias religiosas.
a) Por um lado o javismo tribal se enucleava em torno de experiências históricas com o divino.
Seu eixo era a interpretação da história, não a interpretação da natureza. O javismo é, desde as
origens, uma hermenêutica, uma leitura da história.
b) Por outro lado, o javismo era estritamente relacionado à gente espoliada. É o caso dos
lavradores emigrados das planícies, após séculos de sofrimentos pelos saques egípcios. É o caso
dos seminômades como Sara e Abraão, para quem a simples aproximação das cidades significava
um perigo. É o caso dos beduínos do Sinai. É o caso dos escravos, extorquidos junto a Ramsés e
Pitom. O javismo é, claramente, uma interpretação da história a partir dos excluídos, de mulheres
e homens massacrados2.
"Deus ouve o clamor do povo" (Ex2, 23-24). Esta certeza percorre a Bíblia, especialmente
o período da formação do povo de Deus, como a seiva percorre a árvore, desde a ponta das raízes
até a extremidade das folhas. Esta é a novidade da Bíblia, a experiência revelada: a certeza de que
Deus ouve o clamor. Deus se colocou ao lado dos oprimidos, os libertou da opressão e lhes deu a
garantia: "Eu estou com vocês" (Ex 3, 12).
Toda esta experiência de Deus foi expressa no nome Javé. Os autores do livro do Êxodo
criam um fato, uma elaboração teológica para explicitar sua compreensão de Deus, ponto decisivo
na vivência de uma espiritualidade (3, 7 -15). Este texto foi tecido com tanta arte, que parece uma
pintura onde as letras do nome formam os traços do rosto de Deus:
Ex 3,7 ............Eu vi a miséria do meu povo .....................................................................
2
Cfr SCHWANTES, M. As tribos de Javé, uma experiência paradigmática. Em: P. SUESS (org.) Queimada e
semeadura. Petrópolis: Vozes, 1988, pp 153-166. É uma bela síntese da grande obra de GOTTWARD "As tribos de
Javé"
Espiritualidade Bíblica
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Ex 3,7 ....................ouvi o seu clamor ............................................................................
Ex 3,8 ................... desci para libertá-lo .........................................................................
Ex 3,10 ................. eu te envio para fazer sair o meu povo...............................................
Ex 3, 12 ......................... ESTOU com você ..................................................................
Ex 3,14 .......................... ESTOU QUE ESTOU .............................................................
Ex 3,14 .......................... ESTOU me mandou até vocês .................................................
Ex 3,15 ..........................JAVÉ (ESTÁ) me mandou até vocês .........................................
Ex 3,15 .. .....este é o meu NOME para sempre .................................................................
Ex 3,15 ... esta será a minha INVOCAÇÃO de geração e geração .........................................
Estas frases mostram que o nome JAVÉ (em hebraico JHWH, isto é, ESTÁ no sentido de
presença comprometida) deve ser entendido como sendo abreviação de ESTOU QUE ESTOU.
Exprime a absoluta certeza da presença de Deus junto ao seu povo. É como se Deus dissesse a
Moisés: TÔKETÔ, isto é, “certissimamente estou com você nesta missão de fazer sair o meu povo
do Egito. Disso você não pode duvidar". E ao que tem coragem de crer neste nome e de invocá-lo
Deus responde: "Eu vou protegê-lo, porque ele conhece o meu NOME. Ele me invoca e eu vou
atendê-lo" (Sl 91,14)3.
Esta compreensão e relação com Deus fez com que o povo elaborasse um novo projeto
social, baseado na partilha dos bens ao invés de seguir a lógica da concentração (Ex 16), na partilha
do poder onde muitos participam das decisões (Ex 18), numa legislação realmente em favor dos
menos favorecidos e da defesa e promoção da VIDA (Ex 20), etc. Mas também esta experiência de
Deus fez surgir condensações em forma de oração ou de catequese que iam assim perpetuando sua
mística através dos tempos.
Nasceram destarte diversas formulações do “CREDO” cujo
conteúdo será abordado no próximo item por ser extremamente interessante e estar presente em
muitos salmos, hinos e reflexões teológicas na Bíblia.
2 Os “dogmas do credo" histórico do povo bíblico
Parece ser elucidativo ter presente aqui o "Credo": do povo bíblico conhecido amplamente
no VI século aC, mas de origem muito anterior. Estão presentes na Bíblia três versões: a versão
litúrgico-celebrativa (Dt 26, 5b-10), a catequético-educativa (Dt 6, 21-25) e a versão política (Jos
24, 1-13). Eles reúnem os vários elementos acima mencionados: a itinerância, o reconhecimento
da situação de opressão, a interpretação de Deus na história, etc. Será apresentada aqui apenas
uma versão para facilitar sua observação e para dispensar o trabalho da busca:
"Meu pai era um arameu errante: ele desceu ao Egito e aí residiu com
poucas pessoas. Depois tornou-se uma nação grande, forte e numerosa. Os
egípcios, porém, nos maltrataram e humilharam, impondo uma dura escravidão
sobre nós. Clamamos então a Javé, Deus de nossos antepassados, e Javé ouviu a
nossa voz. Ele viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. E Javé nos
tirou do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com
sinais e prodígios. E nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra: uma terra onde
corre leite e mel. Por isso, aqui estou, Javé, com os primeiros frutos da terra que
tu me deste" (Dt 26, 5b - 10a).
3
CRB . A Formação do Povo de Deus. Rio de Janeiro: CRB/Loyola, 1990, 60-62.
Espiritualidade Bíblica
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Detendo um pouco o olhar sobre esta formulação do credo histórico do povo bíblico, podese perceber aí alguns gonzos (grandes ferrolhos/dobradiças), os alicerces, os "dogmas" 4 da grande
experiência de fé que formam como que a mística da espiritualidade bíblica. Parecem estes, em
grandes linhas:
Éramos escravos no Egito e clamamos a Javé. "Os egípcios nos maltrataram e
humilharam, impondo uma dura escravidão sobre nós" (Dt 6,21; 26,6). O credo inicia declarando a
condição de espoliado e explorado, de pobre, itinerante e marginalizado. O povo revela a Deus sua
situação de grande necessidade: vive na miséria, luta pela sobrevivência. Sente-se joguete dos
grandes impérios que usam as pessoas em função de seus interesses econômicos, políticos e
militares. É o povo todo nesta situação! E Javé vê esta situação (Ex 3, 7).
2.1
Hoje também nossa relação com Deus deve começar com a confissão de nossa
criaturalidade, de nossa fragilidade e pequenez, além de sempre ser realizada desde os mais
pequenos, desde a opção pelos pobres. A Virgem Maria reza que Deus olha para a humilhação dos
pequenos e rejeita os soberbos (Lc 1,51). Jesus mostra que a oração do orgulhoso é vã (Lc18, 814). São Francisco no Cântico do Sol confessa que “homem algum é digno de sequer nomear a
Deus”. Sem descer do trono da auto-suficiência (seja psicológica, econômica, cultural ou social)
não se encontra Deus, pois é a pior forma de ateísmo (Ver Gênesis).
Por outro lado, também a alienação impede a manifestação de Deus na história, porque a
pessoa pobre é como que cegada pelo sistema. Não lhe permite ver a realidade que vive e assim
discernir as forças do mal e o agir de Deus. Um trabalho pastoral sério não pode dispensar esta
dimensão da fé bíblica.
2.2 Ele (Javé) ouviu nossa voz. Ele viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão
(Dt 26,7). Javé "ouve" o grito: "conhece" os sofrimentos. Ele reconhece o valor da pérola
enlameada, o imenso valor contido em vaso de barro. É a experiência do “Deus Oprimido” como
diz Benjamim González Buelta. O Deus Bíblico é um Deus sensível ao sofrimento, um Deus que
não se conforma com o sofrimento injusto. É um Deus "humano", o Deus da compaixão, que tem
entranhas de misericórdia, incapz de esquecer seus filhos (Os 11,8). Não é indiferente aos
pequenos e sem voz e vez. “Nosso Deus põe-se do lado dos famintos e injustiçados, dos pobres e
oprimidos, dos injustamente vencidos", como canta a versão do salmo 145 de Valdeci Farias. Ele
toma o partido dos indefesos. Ele é o verdadeiro Go'el do povo, o padrinho que resgata da
escravidão, como o livro do Levítico o apresenta (25,25.39-40). São João evangelista vai retomar
este conceito de Go’el para falar do Espírito Santo. Ao dizer “paráclito” está na prática traduzindo
este conceito do AT.
2.2 Javé nos tirou com mão forte e braço estendido, com sinais e prodígios contra o Faraó (Dt
6,22;26,8). O povo reconhece a força de Deus intervindo no processo de libertação. Não fosse Ele
não teria havido a libertação. Sentiram que Deus os impelia a lutar, a buscar a libertação de todas
as formas: unindo-os por serem muito dispersos e desentrosados; fortificando-os por não terem
nenhuma experiência de luta contra as astúcias e a força dos grandes, etc. Não por uma intervenção
mágica ou milagrosa na história, mas mediante a força das lideranças humanas como Moisés,
Aarão, Míriam, Josué, etc5. Os egípcios confiavam em forças exteriores (carros e cavalos), ao passo
que os hapirús, confiavam em Deus presente neles.
4
A palavra "dogma" aqui não tem a acepção de verdade revelada e afirmada solenemente pela Igreja. Antes é
empregada como simples sinônimo de “querigma” ou conteúdo de fé.
5
Cf. CERIOLI, Paulo. O Direito de Organização dos Empobrecidos. Coleção "Ensino Social da Igreja" Vol. VI.
Petrópolis: Vozes, l994, 21-27.
Espiritualidade Bíblica
8
Captar a presença libertadora de Deus na história é sinal de maturidade de fé, mas ao mesmo
tempo passo possível apenas àqueles que vivem as duas condições anteriormente citadas.
2.3 Javé introduziu-nos na terra que havia prometido a nossos antepassados, terra onde corre
leite e mel (Dt 6,23; 26,9). Não bastou tirar da escravidão; Javé conduziu o povo a uma nova terra
que também pode significar aqui, uma pátria, uma organização sócio-político-econômica em
função da vida. Muitas vezes na Bíblia aparece a menção de Jerusalém como símbolo de uma
nação/povo organizado em favor de seus cidadãos e não em favor do dinheiro ou do poder. De fato,
não existe vida sem terra e trabalho para todos. O compromisso de Deus com o povo é concederlhe terra abundante e boa (onde "corre leite e mel") para plantar, morar, organizar-se (sem
necessidade de esconder-se), sentir-se em casa, ter um lugar ao sol, ter uma identidade políticosocial. A promessa e a utopia são parte inerente da Espiritualidade Bíblica. O Evangelho falará em
cêntuplo e abundância de vida.
Então Javé nos ordenou cumprir todos estes estatutos, temendo a Javé para que sempre
nos corra tudo bem e para nos dar a vida (Dt 6,24). Não basta estar numa terra fértil. Faz-se mister
responder de modo mais efetivo e compromissado. É preciso chegar a uma organização social mais
justa, instituir um compromisso, criar um "ethos" que faça respeitar e promover a verdadeira vida.
Os mandamentos são, por um lado, o fruto da sabedoria do povo porque levam à convivência
pacífica e fraterna, onde todos, especialmente os mais fracos, são respeitados e amparados. Uma
legislação social adequada é, assim, o outro lado da medalha do presente da terra e de sua garantia.
Por outro lado, a LEI é o símbolo da sabedoria de Deus, pois por meio dela o povo tem uma
garantia de vida, como expressa e canta muito bem o maior salmo 119 (118) - e também o salmo 19
(18). Neste sentido os mandamentos são assim a melhor expressão da aliança de Deus com seu
povo e, da parte deste, um compromisso de caminhar para a felicidade.
2.5
Dos cinco aspectos mencionados, apenas um é de responsabilidade do povo. Porém sem
esta participação e colaboração humana, Deus não realiza sua parte, pois Ele apenas sabe lidar com
sujeitos livres e responsáveis.
Nestes cinco gonzos se articulará a fé do povo bíblico: o reconhecimento da situação de
miséria, a compaixão (ouvido) misericordiosa de Deus, sua intervenção libertadora na história, o
dom da posse de uma terra6 e os mandamentos (aliança) como expressão e organização sóciopolítica.
Esta experiência de quase três séculos marcou indelevelmente o povo de ISRA-EL. Foi um
tempo decisivo para o restante da caminhada do povo. O tempo todo dos juizes foi vivido sob o
influxo direto desta organização marcada pela fé no Deus "Go’el" 7. Depois que o povo, sob a
influência das nações vizinhas optou por ter um Rei, o império tornou inviável aquela organização.
A mística também ia se esfriando na grande maioria do povo. Foi quando surgiram os primeiros
profetas, pelo século X aC como memória subversiva do passado.
3 – O projeto de Deus
6
Josué 24, 13: “Eu vos dei uma terra pela qual não suastes, cidades que não construístes e nas quais agora viveis,
vinhas e olivais que não plantastes e dos quais agora comeis”.
7
Eis algumas passagens onde Deus é mencionado como Go’el: Nm 35,19; Is 41,14; 43, 14; 44,6.24; 49,7; 59,20; Jr
50,34; Sl 19,15; 78, 35; Jó 19,25; Rt 2,20.
Espiritualidade Bíblica
9
O projeto de Javé8 que sustentava a experiência fundande, segundo Frei Carlos Mesters,
tinha as seguintes características:
1a – Sociedade igualitária. Ao contrário das demais organizações nacionais, o povo de Isra-el
caminha como uma sociedade sem classes. As diversas tribus eram, não como se pensa de
parentesco de sangue, mas grupos sociais com autonomia, em pé igualdade com os demais.
2a – Autonomia produtiva. A terra, praticamente único meio de produção de bens, não podia ser
vendida ou comprada; apenas usada. A instituição do ano sabático e do ano jubilar tem por objetivo
fazer devolver a terra aos que a perderam por razões várias. A acumulação de bens, portanto, está
proibida.
3a – Descentralização do poder. No sistema tribal o poder se exerce na forma de subsidiaridade,
isto é, o que pode ser decidido na base não deve ser levado para uma instância superior. Ex 18 é o
texto chave. Os pais e anciões execem esse poder. A tentação do poder corrompe a cabeça e o
pensamento.
4a – Leis que defendem o sistema igualitário. Os dez mandamentos foram criados nesta
perspectiva e não como geralmente são lidos e explicados. Estão aí para defender a vida e o projeto
de liberdade e igualdade do povo como um todo. Quando lidos numa ótica inidividualista e
moralista perdem seu sabor e alcance.
5a – O bem de todos é defendido pela união de todos. Instituiu-se o compromisso de
solidariedade e de ajuda mútua. Em épocas de crise externas todas as pessoas, de todas as tribos,
capazes de manejar armas, se organizavam para a defesa. Veja-se o livro dos Juízes.
6a – Socialização do saber. O saber é um poder. Logo democracia da informação, dos segredos das
artes, das ciências e da religião.
7a – Fé no Deus único. Ao dizer que Deus é um só não se afirma número, mas no sentido se
exclusividade: Deus é só este que se apresentou como libertador, oposto à opressão e à exploração.
Por isso que amar esse Deus é o mesmo que amar o próximo como a si mesmo. A pergunta mais
séria que um seguidor de Jesus Cristo deve se fazer diariamente não é se crê em Deus, mas sim
“em que Deus crê”?
8a – Culto descentralizado que celebra a vida e a história. Agora os chefes de famílias presidem
o culto, não só os sacerdotes. Mais que ritos e normas eram celebrados fatos e realidades da vida.
9a – Sacerdotes sem terra. Um sacerdócio sem grandes bens é uma garantia de fidelidade a Deus
dos sacerdotes. O ter e o poder, quando ligados ao sagrado, são muito perigosos e tentadores!
4 A espiritualidade (do tempo) dos profetas
Os profetas não criam uma espiritualidade nova. Bebem da grande experiência
paradigmática de todo o povo bíblico e a atualizam. Denunciam tudo quanto contradiz a mística
que conferiu identidade e se concretizou na aliança de Deus com seu povo. Cada profeta segundo
8
Carlos MESTERS. O projeto de Deus. Petrópolis: Vozes, 1985, 22-35.
Espiritualidade Bíblica 10
seu contexto retoma a experiência bíblica fundante e confronta-a com a realidade em que a nação
está imersa. Cada profeta olha para a realidade que vive, compara-a com a experiência “canônica”
e depois fala em nome de Deus.
Segundo Milton Schwantes9 a espiritualidade profética se situa entre a lei e a sabedoria. A
lei enquanto ponto de chegada de um processo de libertação, expressão e memória da aliança para
manter a vida e a liberdade em abundância, e a sabedoria enquanto contemplação da vida presente,
a observação da vida com o olhar da fé.
É emblemático o fato do “retorno à experiência fundante” vivido pelo profeta Elias, o
profeta considerado como referência e modelo por toda a tradição bíblica, mesmo no tempo de
Jesus. Na transfiguração ele aparece ao lado de Moisés, testemunhando a favor de Jesus. Ele tinha,
então, “autoridade”, mas isso não o dispensou de “re-fazer” a experiência. Ele andava esquecido
deste modo epifânico de ser de Deus e confiava nas manifestações teofânicas. Tinha aparente
certeza de que Deus se revelava por fenômenos naturais, fazendo chover, cair fogo do céu, etc. No
entanto, como narra 1 Reis 19, 1-18, Elias, depois de batalhar violentamente a favor de Javé, foge e
nesta fuga é conduzido por Deus, meio sem o saber, em direção ao Horeb (Sinai) onde seus pais na
fé haviam vivido a grande experiência. Sobe a montanha, “enfia-se na gruta”. Segundo a
expectativa corrente da fé, Deus confirmaria seu procedimento com algum fenômeno natural,
hierofânico. Era assim que pensava a teologia do tempo. O texto mostra que Deus não se encontra
no furacão, no terremoto e nem no fogo. Ele precisou se desfazer destas seguranças teológicas,
voltar ao “cotidiano histórico”, à brisa, e então “ouve” claramente a voz de Javé que o “reenvia à
história”, reorganizando política e religiosamente o povo. É evidente que esta narrativa aponta para
a necessidade de sempre de novo retornar à experiência fundante original, inclusive para purificar
os olhos e perceber muita realidade positiva e muitas pessoas fiéis a Javé que à primeira vista
parece não haver.
A espiritualidade dos profetas tem, assim, dois quadros de referência: de um lado, uma
experiência profunda de Javé, o Deus comprometido com a libertação do povo. De outro, uma
escuta profunda da realidade do povo, chamado a ser o povo de Deus, partilhando quer o sonho
quer os bens (utopia coletiva)10.
4.l A experiência de Javé, o Deus do povo. O profeta experimenta a presença de Javé no
meio do seu povo e a ela se rende (Is 52,6). Quase todos descrevem sua vocação, para dizer que
não partem de uma iniciativa própria, mas se sentem convocados para esta missão por Javé. Deus
se torna a instância superior, sua referência máxima e a fonte da “liberdade” do profeta diante dos
poderosos. Sua palavra irrompe no profeta sob o grito "Oráculo de Javé". O profeta se sente
"seduzido" e vencido pela presença de Javé, como se um fogo o consumisse no interior, ficando
impossibilitado de barrar a ação de Deus, ainda que com risco de vida (Jr 20,7. 9). São Paulo
também lhe faz eco declarando: "Ai de mim se não evangelizar!" (Cor 9,16).
A experiência de Deus para os profetas é sempre uma experiência do Deus dos pais, isto é,
traz consigo tudo o que Deus fez no passado, assenta-se numa concreção histórica e dá olhos novos
para entender e atualizar o seu sentido. O profeta torna-se assim a memória da aliança do povo
9
SCHWANTES, Milton. Espiritualidade na Profecia. Em BEOZZO, J. O (org) Espiritualidade e Mística. São Paulo,
Paulus, 1997, 53-89. CESEP, ano IX.
10
K. Barth (teólogo suíço evangélico) diz que o teólogo deve ter um ouvido na Bíblia e outro na realidade do povo.
Semelhantemente, o mártir argentino D. Henrique Angelelli: um ouvido no jornal e outro na Bíblia. Também o
Vaticano II (PC 2) oferece aos religiosos o critério de “Volta às fontes evangélicas e do fundador e volta aos sinais dos
tempos”. Isso mostra que esse referencial se consolida como revelação.
Espiritualidade Bíblica 11
com Deus. Lembra a presença carinhosa, e ao mesmo tempo exigente (ciumenta), de Deus que
acompanhava e sustentava o povo (Dt 32, 10-11).
Por isso, o profeta exige fidelidade à aliança, em nome de Javé. O profeta torna-se o
defensor da aliança, a pessoa que vem cobrar do povo o compromisso assumido de ser o povo de
Deus: “Vós sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus”. Não aceita desculpas e camuflagens para
fazer média com os poderosos, sejam elas pessoas individuais ou nações.
4.2 A experiência da realidade do povo de Deus. A experiência de Deus e das suas
exigências é, ao mesmo tempo, a experiência do pecado, da quebra da aliança, das falhas que
existem no povo, experiência daquilo que o povo deveria ser e não é (Is 6,5). Neste sentido, a
existência de empobrecidos (descaso com as viúvas, estrangeiros, órfãos...) era sinal do
rompimento da aliança, assim como os cacos de vidro no chão denunciam a vidraça quebrada.
Então em nome de Javé, o Deus dos pobres, e em nome da origem do próprio povo, o
profeta grita "Entre vocês não pode haver pobre" (Dt 15,4). Esta é sua grande denúncia. C. Mesters
recorda a tríplice via apontada pelos profetas que encaminha na mesma direção:
a) O caminho da justiça: mudar estruturas injustas e transformar a sociedade. Pela denúncia
procuram criar novas leis que favorecem a vida do povo e o levem a uma melhor observância da
aliança, como a lei do Ano Jubilar (Lv 25; Dt 15);
b) O caminho da solidariedade: mudar o relacionamento e renovar a comunidade. Na comunidade
do povo de Deus não pode haver pobres! Todos devem viver na partilha (perfeita) dos bens,
entregues por Deus a todos. Nesta igualdade e fraternidade, a comunidade deve ser uma amostra
daquilo que Deus quer para todos os homens. Ela deve ser a aliança de Deus com os homens
contra tudo aquilo que estraga a vida e marginaliza as pessoas.
c) O caminho da mística: mudar o modo de pensar, recriar a consciência. É da certeza central da fé
em Javé (a presença libertadora de Deus no meio do povo) que nasce no pobre a consciência de ser
pessoa humana e filho de Deus, consciência de sua própria dignidade e missão.
Dentro desta dinâmica se movimentam todos os profetas, desde os mais antigos até o mais
recentes. Ao longo dos séculos foram ao mesmo tempo os "arquivos vivos", a memória perigosa e
subversiva que mantinha viva a identidade de um povo "fundado numa experiência única e exímia
de um Deus libertador, caminhando com seu povo”.
4.3 A tradução profética dos "dogmas" de credo.
Os cinco dogmas referidos acima estão presentes como pano de fundo de toda a atividade
profética. A experiência do Êxodo vivida pelo povo e traduzida em "dogmas" norteia toda a sua
missão. Talvez possa ser assim enfocada no ministério dos profetas:
a) "Éramos escravos... e clamamos a Javé". Os profetas sempre percebem o engodo da ideologia
dominante, captam o grito abafado do pobre, e o devolvem à nação em forma de denúncia. Deste
modo transformam o grito do pobre em apelo de Deus, revelam as exigências da Aliança e
despertam no povo a consciência da sua missão. "O que hoje chamamos 'opção pelos pobres' era o
que naquele tempo norteava a ação dos profetas"11. Os profetas entram no mundo concreto do
governo (Jr 21,11-14; 22,13-19; do comércio (Am 8,4-8), do tribunal e da justiça (Mq 3,9-12), do
11
CRB. A Leitura Profética da História. Coleção Tua Palavra é Vida, Vol 3. São Paulo: Loyola, 1992, 97.
Espiritualidade Bíblica 12
sacerdócio e do culto (Os 4,4-14), etc. e a todos lembram que "há um Deus que faz justiça sobre a
terra" ( Sl 58,12). Lembram que Javé “vê” o sofrimento do povo, a injustiça que explora e mata.
Esta denúncia constante nos profetas é o reconhecimento implícito da nova escravidão e opressão
como no antigo Egito. Exemplos concretos deste modo de proceder de Javé, os livros proféticos
oferecem abundantemente.
b) "Javé ouviu nossa voz...” Os profetas podem ser acusados de usar quase que exclusivamente o
livro do Êxodo12. Este livro se constitui como que na "memória subversiva" para os profetas. A
presença de pobres no meio do povo era a prova de que a Aliança havia sido quebrada. Como
naquele tempo, Deus também no presente escutaria o grito do empobrecido. O fato passado dava
certeza da atuação de Deus no presente, pois Ele é fiel. É assim que o profeta reza, no Salmo 77
(76): "Lembro-me das proezas de Javé, recordo tuas maravilhas de outrora, medito tuas obras
todas, e considero tuas façanhas... Tu és o Deus que operas maravilhas, mostrando às nações a tua
força"(Sl 77,12.13.15). As entranhas de Deus se comovem diante de seu povo (sua esposa) em
estado de depressão, como ovelhas sem pastor (Os 11,8; Ez 34, 11ss; Is 40, 11; 41,10-14...
c) "Javé nos tirou do Egito com mão forte...” Nada melhor para expressar esta fé no Deus que
liberta o povo do que o texto de Ezequiel. Assim como Deus tirou o povo da escravidão do Egito,
pode agora até fazer surgir seu povo da destruição e da morte: "Em seguida Javé me disse:
'Criatura humana, esses ossos são toda a casa de Israel. Os israelitas andavam dizendo: Nossos
ossos estão secos e nossa esperança se foi. Para nós tudo acabou... Pois bem, vou abrir seus
túmulos, tirar vocês de seus túmulos e levá-los para a terra de Israel..." (Ez 37,11-12)13. Assim
como o povo criou a instituição do Go’él (o padrinho) com obrigação de resgatar o afilhado e até
mesmo de vingá-lo em caso de morte, assim também Javé se porta em relação ao seu povo. O
povo vive esta certeza e esta esperança 14.
d) "Introduziu-nos na terra onde corre leite e mel". A promessa de terra, "vida abundante", animou
o processo de libertação do Egito. Esta promessa esteve presente na leitura das suas origens antes
de se constituir em povo (Gênesis). Depois da experiência do Êxodo, a promessa se transformou
em utopia. Isaías a descreve como sendo um reino organizado em função da justiça. "Ele julgará os
fracos com justiça e dará sentenças retas aos pobres da terra" (Is 11,4)15. No Trito-Isaías, a utopia
da terra prometida se converte na descrição do mundo novo, com uma abundância de vida para
todos, quer em longevidade, quer em harmonia. Então todos viverão a totalidade de seus dias, com
muita alegria e felicidade, sem exploração e espoliação no trabalho, com toda a forma de rivalidade
e violência superada... (Cf Is 65, 17-25).
e) "Então nos ordenou cumprir todos estes estatutos...". A Lei é a garantia da continuidade da
experiência fundante. É a tentativa de perpetuá-la. Este é o sentido dos 10 mandamentos. Por
isso, o povo israelita foi construindo uma legislação sempre mais abundante, mas infelizmente, no
período pós-exílico, chegou a se transformar em empecilho para a convivência humana e fator de
discriminação social e religiosa. No entanto, originariamente, a lei é o outro lado da gratuidade de
Deus. Deus oferece tudo generosamente; importa comprometer-se com seu projeto. A lei representa
nosso esforço em corresponder ao dom divino, a política decorrente da fé, a luta que leva à festa...
Os profetas sempre de novo retomam a necessidade de viver a Lei para corresponder ao projeto de
Deus.
12
Cf. CRB. A Leitura Profética da História. Coleção Tua Palavra é Vida, Vol 3, São Paulo: Loyola, 1992, 103.
Este tema está presente, sobretudo, no Deutero Isaías (4l, 14; 43, 1.3; 44, 6; 49, 4; 54,5); Mas é uma decorrência ou
releitura de Levítico 25, 25. 39-40.
14
Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo. O Deus da Vida. São Paulo: Loyola, 1990, 45-47.
15
Todo o capítulo 11 é uma descrição (utópica) da sociedade ideal e um mundo organizado a partir da centralidade de
Jerusalém, o lugar da presença de Javé.
13
Espiritualidade Bíblica 13
5 A espiritualidade Sapiencial
A literatura sapiencial da Bíblia surgiu, na sua maior parte, no período pós-exílico de
dominação persa e grega, quando o povo sofria um processo duro de roubo da identidade religiosa
e cultural. Uma das maneiras de conservar a identidade com o povo e sua experiência foi a de
alimentar a mesma mística dos antepassados. Isto se fez mediante o “retorno” à experiência
fundante. Cada livra a seu modo e segundo seu objetivo específico faz acontecer este reencontro
com a fonte originária da vida do povo. Serão recordados aqui os núcleos da mística de cada um,
depois desdobrada de modo pluriforme. É claro, nem todos os livros se reportam a todos os gonzos
da experiência. Uns se ligam mais a um aspecto, enquanto outros privilegiam outros, conforme sua
realidade e objetivo. Pensa-se que assim se poderá perceber melhor o dinamismo divino que
conduz a história do povo bíblico e da própria humanidade.
a) O Livro dos Salmos, começado no tempo de Davi, é reelaborado e concluído por volta de 170 a
160 aC. Sua própria apresentação em cinco partes imita o Pentateuco onde se encontra o coração
da experiência fundante. Cerca de 31 salmos fazem referência direta ao momento da libertação ou a
esta experiência a que estamos nos referindo 16 e mais da metade deles têm presente o global desta
experiência. Sendo os salmos17 o lado orante da caminhada do povo, esta memória constante
significa que a experiência vinha sendo retomada com muita freqüência nas orações ordinárias.
Nos salmos há também história e profecia, lei e sabedoria. Fazem assim acontecer a circularidade
entre a fé e a vida. Eles conservam a memória da fé, retomando os fatos mais significativos da
história. Eles educam o povo com os grandes apelos dos profetas e sábios. Eles reforçam a fé com
o convite a uma maior intimidade com Javé. Eles animam a caminhada com o aprofundamento do
compromisso com a Aliança. Por isso, se tornaram a referência canônica da oração, assumida e
aperfeiçoada pelo próprio Jesus.
b) O livro de Jó, ao contrário do que costumeiramente se entendia, mostra que Deus não endossa o
sofrimento causado pela exploração e opressão, mesmo se confirmado pela ideologia e pela
teologia oficial. Relendo a atuação de Deus na história e com o olhar fixo no "maravilhoso fato do
Êxodo”, Jó subverte a catequese oficial. Contesta o sofrimento injusto como fruto do pecado
pessoal, como ordinariamente pensavam os que liam os fatos com a ideologia dominante. Jó é uma
“teologia da rebeldia”. Os Capítulos 3 a 42 são uma refutação solene deste modo de pensar 18.
16
Por exemplo: Sl 3,5; 4, 2.4; 5,2-3; 6,9-10; 9, 13, etc Porém são salmos paradigmáticos neste sentido: 78 (77); 81
(80); 105 (104); 106 (106); 136 (135) etc.
17
Para uma breve introdução e chave de compreensão veja-se: CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. S. Paulo:
Loyola, 1993. Também: BALANCIN, E.M. STORNIOLO, I. e BORTOLINI, J. Salmos, a oração do povo que luta.
São Paulo: Paulinas, 1988.
18
Veja-se: DIETRICH, Luiz José. O grito de Jó. S. Paulo: Paulinas, l996 pp 36 ss. Ou ainda: GUTIÉRREZ, G.
Falar de Deus a partir do sofrimento inocente. Petrópolis: Vozes. 1987. Talvez o texto mais elucidativo do livro para
mostrar que Deus é diferente do que a teologia oficial apresentava pois se coloca do lado do injustiçado e oprimido
poderia ser Jó 24, 2- 14: “Os injustos mudam as fronteiras, roubam rebanhos e os levam a pastar. Apoderam-se do
jumento que pertence ao órfão, e penhoram o boi que é da viúva. Empurram os indigentes para fora do caminho, e os
pobres da terra têm que se esconder. Como asnos do deserto, saem para trabalhar: desde a madrugada vão em busca
de alimentos, e até a tarde procuram o pão para seus filhos. Fazem colheita em campo alheio, e catam os restos na
vinha do injusto. Passam a noite nus, sem roupa para se protegerem do frio. Ensopados com as chuvas das montanhas,
sem abrigo, eles se apertam entre as rochas. Os injustos arrancam o órfão do peito materno, e penhoram a roupa do
pobre. Estes andam nus por falta de roupa, e famintos carregam feixes. Expremem azeite no moinho e, sedentos,
pisam a uva nos tanques. Na cidade os moribundos gemem, e os feridos pedem socorro. Deus não faz caso da súplica
deles. Os outros são rebeldes à luz, não conhecem os caminhos de Deus, nem freqüentam suas estradas. De
Espiritualidade Bíblica 14
c) Os provérbios fazem o confronto da Aliança com a sabedoria do cotidiano. Referem-se mais ao
relacionamento com o próximo que com Deus. Jesus nos ensina que devemos buscar nos
provérbios de hoje e na sabedoria popular o que eles revelam de Deus e seu projeto. Ensina a
evangelizar o povo com a sabedoria do próprio povo.
d) O Cântico dos Cânticos descreve alegoricamente o amor entre o homem e a mulher para mostrar
o amor apaixonado entre Javé e seu povo, entre Cristo e sua Igreja, como vê a tradição cristã. Mas
é um amor comprometido, como mostrará o profeta Oséias. Ou mesmo, como o demonstrou
Isidoro Mazzarolo, uma ótica política do amor.
e) As novelas populares (Rute, Judite, Tobias, Ester, Jonas) são um apelo à resistência e um
chamado à reconstrução do povo que começa na família, na casa, na comunidade, segundo os
parâmetros da Aliança. Estas novelas 19 se preocupam pouco com a geografia e a cronologia. Antes
reordenam e colocam os fatos num único momento histórico para enfatizar a experiência
acumulada ao longo dos séculos e em lugares diferentes. Reavivam a proposta de povo livre,
fraterno, igualitário, núcleo central da Aliança, segundo Êxodo 19ss... Elas são a expressão da
saudade da experiência que marcou indelevelmente a memória da história do povo e ao mesmo
tempo um apelo a reviver no seu presente esta “abundância de vida’ experimentada no passado.
f) O Eclesiastes (Qohelet), fruto do trabalho de um sagaz observador, baseia-se em três valores
básicos: a vida humana, com suas limitações; o oprimido, fruto do sistema injusto; e a ação de
Deus que não pode ser mudada. Diante deles, tudo o mais pode ser relativizado. A felicidade,
direito de todos, consiste na possibilidade de cada um trabalhar para seu sustento e usufruir os
frutos. Faz eco assim a Isaías e aponta os mecanismos que contradizem a felicidade: o poder da
concentração econômica, as estruturas injustas, a competição cega, a exploração do trabalho, etc. O
pano de fundo do autor é a experiência paradigmática feita pelo poso no passado.
g) O Livro do Eclesiástico é uma obra ambígua, devido ao contexto em que foi escrito. Ben Sirac
defende a identidade do povo diante da imposição cultural grega. Manifesta a fé vivida pelos
antepassados. Contrapõe-se aos estrangeiros enquanto dominadores que fazem o povo perder a
identidade. Indica com clareza o aspecto nevrálgico da cultura grega: o empobrecimento
econômico, cultural e religioso do povo. O maior escândalo é a injustiça que contradiz
frontalmente o projeto da Aliança.
h) O Livro da Sabedoria. A sabedoria na sua origem é o esforço de organização da vida do clã.
Depois do exílio é, sobretudo, através da observância da Lei que a vida do povo se organiza e
mantém sua identidade como povo da Aliança. Se ela não se fechar no passado e no imediato, nem
virar ideologia, ela cria sempre novas formas de luta em defesa da vida, produz um alargamento de
horizontes, aprofunda os problemas humanos, atinge a raiz do sistema e aponta para a presença de
Javé no coração da própria sabedoria.
Tereza Cavalcanti20 situa a espiritualidade sapiencial como sendo eminentemente uma
reflexão sobre a vida, sobre o quotidiano. É a vida conscientemente vivida, observada, curtida,
sofrida... É daí que nasce a espiritualidade sapiencial, geralmente em forma de pequenas
madrugada o assassino se levanta para matar o pobre e o indigente. Durante a noite o ladrão ronda, cobrindo o rosto
com uma máscara...”
19
Veja-se como exemplo MESTERS, Carlos. Rute, uma história da Bíblia. S. Paulo: Paulinas, l985.
20
CAVALCANTI, Tereza. Espiritualidade Sapiencial. Em BEOZO, José Oscar (org). Espiritualidade e Mística. São Paulo,
Paulus, 1997, 69-90. (Curso de Verão, ano IX).
Espiritualidade Bíblica 15
afirmações. Não nasce como um bebê trazido do alto pela cegonha, mas como um feto gestado
longamente no útero da vida, alimentado pela fé em Deus. Por isso leva a característica de ser
principalmente contemplativa. Esta sabedoria, porém, diz ela21 é inseparável da mística profética.
Mística (profética) e contemplação (sapiencial) fazem parte de um mesmo todo com profecia e
libertação. Nossa oração pode passar de um tema a outro, de um modelo a outro, mas será sempre
um colocar-se diante do mesmo Deus: o Deus Criador e o Deus Libertador.
6 A Espiritualidade de Jesus
Chega-se aqui ao ponto culminante e central de toda a espiritualidade bíblica. Jesus não
somente crê no "credo bíblico", mas o encarna, transformando-o e purificando-o. Ele vive e age
como o "Emanuel" presente entre os homens e mulheres. Ele mesmo confessou que "quem o vê, vê
o Pai" (Jo 14,9). Sente-se em comunhão profunda com Ele. Em Jo 8, 24 a comunidade de João
coloca na sua boca a afirmação: “Se vocês não acreditam que Eu Sou, vocês vão morrer nos seus
pecados”. E, logo depois, acrescenta que Jesus se referia ao Pai. Este “Eu Sou” parece ser um eco
do “Eu Sou Aquele que Sou” (Ex 3,14) onde Deus revela sua identidade. Jesus se sente Filho,
continuador da missão e da obra do Pai. Nada de estranhar que no início do mesmo evangelho,
Jesus seja apresentado como a “Palavra” do Pai, isto é, o seu rosto, o retrato tocável, palpável do
Pai, porque se “encarnou e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Assim sendo, na vida e na prática de
Jesus, o Credo bíblico foi vivido e apresentado da seguinte forma:
6.l Jesus, relê e encarna o credo bíblico
a) "Éramos escravos e clamamos a Javé"
Jesus assume a condição humana com todas as suas limitações e possibilidades, "igual a nós
em tudo exceto no pecado"(Hb 4,15). Jesus assumiu forma humana num tempo e lugar, numa
cultura e religião, num sexo e numa raça, numa família e numa classe específicos. São João escreve
que Ele "armou tenda entre nós (Jo 1,14). Jesus assumiu todos estes condicionamentos desde o
lugar onde pesam mais: estando no meio dos pobres. "Sendo de condição divina, não se apegou à
sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo (escravo) e
tornando-se semelhante aos homens. Apresentou-se como simples homem"(Fl 2,6-7). Se há algo
que resplandece em Jesus de Nazaré é sua consciência de dependência do Pai, logo de sua
pequenez.
Jesus é, antes de tudo, alguém do povo, que vivia um duplo cativeiro. O primeiro cativeiro
era originado pela opressão da Lei e da Pureza da Raça. Devido à interpretação destas, a grande
maioria do povo ficava alijada como “ignorante e maldita” (Jo 7,49). Esta opressão mantida tanto
pelos doutores da Lei como pelos funcionários do templo (levitas) era o que mais atormentava o
povo no seu dia-a-dia.
O segundo cativeiro era imposto pelo Império Romano e seus colaboradores (saduceus).
Desde o ano de 63 aC incidiam sobre o povo simples pesados impostos, originando fome, doenças,
muito desemprego e endividamentos. Havia classes altas e poderosas, como os saduceus e
sacerdotes, comprometidas com os romanos que não se importavam com a pobreza dos pequenos e
havia grupos de oposição aos romanos, como os fariseus e essênios, que se identificavam com as
aspirações do povo. Havia a religião oficial, ambígua, organizada em torno da sinagoga e do
21
Ibidem pg 90.
Espiritualidade Bíblica 16
templo. E havia a piedade popular, igualmente ambígua, mas resistente, com suas devoções e
práticas. Por causa desta situação sem saída, o Movimento Popular da época estava num processo
de radicalização, isto é, de busca de raízes e motivações mais profundas. Jesus se insere neste
processo de radicalização do movimento popular.
b) "Javé ouviu nossa voz"
Neste contexto em que o povo era qual “rebanho sem pastor” (Mc 6,34), Jesus assume sua
missão como expressão da “compaixão de Deus”. Jesus se apresenta e passa a agir como o fez Javé
no tempo do Êxodo: Vai ao encontro dos marginalizados (os imorais, os impuros, os hereges, os
cobradores de impostos, as mulheres, os pobres, os doentes, os endemoninhados...)22. Faz-se Ele
mesmo um marginalizado: filho de pobres vive na Galiléia (povo mal visto), não pertence quer à
classe sacerdotal quer aos eruditos da religião. Convive com os excluídos e declara que não veio
para os justos, mas sim para os doentes e pecadores (Mt 9,12). Por isso pôde confessar que “Ele
faz o que vê o Pai fazer” (Jo 5,19; 6,38; 8,29; 10,37...). Inserindo-se dentro do processo mais amplo
do movimento popular que buscava defender a vida, Jesus o ajuda a dar mais um passo, o passo
que faltava. Ele traz a luz de Deus para aquele momento crítico da história do seu povo. Atento aos
sinais dos tempos, descobre o apelo de Deus e anuncia a chegada do Reino.
c) "Javé nos tirou com mão forte e braço estendido".
Jesus confessa inúmeras vezes que age na força do Espírito Santo e em consonância com o
Pai. É Deus agindo nele e por Ele. Se Ele expulsa demônios não é pelo poder de belzebu... Toda a
casa dividida contra si mesma vai ruir... Já no início de sua vida pública declara-se movido pelo
Espírito Santo (Lc 4, 18). Deus é sua força e sua razão de ser.
Jesus não apenas era movido de compaixão para com o povo que se assemelhava a ovelhas
sem pastor, mas tomou a defesa dele com muita coragem. Podem ilustrar esta fé concreta de Jesus
alguns fatos como: A defesa da vida da mulher considerada adúltera onde Jesus pede que quem não
tiver pecado atire a primeira pedra (Jo 8,1-11); Cura a mulher hemorroíssa que há doze anos era
explorada pelos médicos e estava proibida de freqüentar o templo devido à sua doença. E lhe
devolve a saúde, confirmando sua fé (Mt 9, 20-22; Lc 8, 43-48). Jesus acaba com as falsas
divisões injustas criadas pela elite social e religiosa que segregava tanta gente. Divisões como:
entre próximo e não próximo (Lc 10,29-37), judeu e estrangeiro (Jc 7,6-10), santo e pecador (Lc
19,1-10), puro e impuro (Mt 23,23-24), tempo sagrado e profano (Mc 2,27; Jo 7,23), rico e pobre
(Lc 16,13) etc23.
Não apenas isto, mas combate também os males que estragam a vida como a fome (Mc
6,35-44), a doença (Mc 1, 32-34), a ignorância (Mc 6,2), a letra que mata ( Mc 3,4), as leis
opressoras (Mt 23, 13-15), o pecado ( Mc 2,5), o demônio (Mc 1,25.34: Lc 4, 13)... Esta postura
libertadora de Jesus lhe causou a ira da classe dominante que Ele desmascarou (Mt 23, 1-36: Mc
10,25) e de cujo fermento é necessário manter distância (Mc 8,15; Mt 16,6). Vê-se assim que
Jesus, de um modo evidente, encarna a imagem, o rosto, o NOME de Javé na sua prática, tirando
de todo o tipo de escravidão e de morte.
A maior prova, porém, da fé (credo) de Jesus na ação libertadora de Javé na história se
manifesta na certeza de que Deus venceria as forças da morte que o queriam ver eliminado da terra.
Por três vezes Jesus declara que será preso, maltratado, morto, mas ressuscitará ao terceiro dia (Mt
20,19). Ele tinha certeza de que uma vida vivida na obediência ao Pai e a serviço da vida do povo
22
Cfr CRB. Seguir Jesus: os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1994, 25-27. MESTERS, Carlos. Com Jesus na
contramão. S. Paulo: Paulinas, 1995, 86-91.
23
MESTERS, Carlos. Com Jesus na contramão, 88-89.
Espiritualidade Bíblica 17
seria uma vida vitoriosa. Esta certeza na força de Deus, Jesus a tinha em alto grau, mesmo se na
hora da morte, em meio aos atrozes tormentos, rezasse: "Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?" (Mt 27,46). "Fé na ressurreição é crer que Deus é capaz de tirar a vida da própria
morte"24, como mostra a Carta aos Hebreus (Hb 11,19).
d) "Introduziu-nos na terra em que corre leite e mel"
O programa de vida e missão de Jesus já mostra com clareza que sua missão é conduzir à
vida em plenitude: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção,
para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos
cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e proclamar o ano da graça do Senhor"
(Lc 4,18-19).
Este programa revela que Jesus se identifica com a missão de dar vida, assim como faz o
verdadeiro pastor de ovelhas: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância"(Jo
10, 10). Jesus não pensa em conduzir o povo a outra terra, mas sim em organizá-lo de tal forma
que todos tenham as condições de vida plena. Para isto Ele busca eliminar todos os empecilhos
criados pelas estruturas sociais, políticas ou mesmo religiosas que atravancam tal possibilidade.
Talvez o que se constituía em maior impedimento naquele momento era a própria estrutura
religiosa, montada em função da conservação do privilégio de uma pequena minoria. Daí se
entende seu combate vigoroso aos líderes da religião de Israel que, para Ele, são hipócritas, falsos,
orgulhosos, exploradores e mercenários, curtos de inteligência, etc (Mt 23, 1- 39; especialmente o
verso 16 onde Jesus os acusa de impedir o acesso ao Reino).
e) "Então nos ordenou cumprir todos estes estatutos"
Jesus é o profeta da lei por excelência. Mateus, que gosta de vê-lo como um novo Moisés,
já no início de seu Evangelho o apresenta radicalizando a Lei: "Não pensem que eu vim abolir a
Lei e os Profetas. Mas dar-lhes pleno cumprimento" (Mt 5, 17). Ele amplia a lei da justiça, do
perdão, da fidelidade matrimonial, do juramento à verdade, da violência e resistência (Mt 5,18-48).
À primeira vista dá a impressão de que Jesus vá acrescentar novas leis às já existentes, somando-se
à corrente farisaica que se formou no pós-exílio babilônico. No entanto o que faz é exatamente o
contrário. Ele começa a libertar o povo de uma porção de leis a respeito da pureza de raça e pureza
de objetos, da observância do sábado etc. E quando interrogado sobre "qual o maior dos
mandamentos" não titubeia em responder que é "amar a Deus com todo o coração, com toda a
alma e com todo o entendimento e amar o próximo como a si mesmo" (Mt 22,37-40). Esta única
lei é a síntese de toda a Lei (Pentateuco) e dos profetas. Assim sendo, Jesus mostra que a finalidade
da lei não é a fidelidade a si mesma como se ela pudesse trazer de per si a vida. Toda a lei precisa
estar em função do favorecimento da vida. E por isso toda a Lei que se constitui em impedimento
de vida deve ser supressa. Intuiu muito bem Santo Agostinho quando disse: "Ama e faze o que
quiseres".
Provavelmente a expressão REINO DE DEUS que foi tão cara a Jesus e que ocupa a
centralidade de sua prática e de sua pregação tenha sido forjada olhando e saboreando a experiência
fundante que o povo fizera no passado e que lhe dera verdadeira identidade religiosa e cultural. De
fato, se observarmos os vários elementos que esta palavra conota na boca de Jesus e as
características da experiência vivida pelo povo no Êxodo, perceberemos grandes semilitudes, senão
profunda identidade. E foi essa experiência que Ele traduziu em forma de oração, a oração que
deveria identificar seus seguidores (assim como Ele era seguidor da fé do povo).
24
MESTERS, Carlos. Com Jesus na contramão, 126.
Espiritualidade Bíblica 18
6.2 O credo bíblico na oração de Jesus
O Pai Nosso25, a única oração que deixou como oração típica dos seus discípulos, não faz
outra coisa que expressar a mesma fé-compreensão. Apresenta-se como uma verdadeira síntese de
todo o Antigo Testamento, naquilo que tem de essencial. Eis alguns aspectos.
a) A invocação de Pai. Jesus chama a Deus de "ABBÁ" (Pai, paizinho, painho). É o modo familiarafetivo de denominar a Deus, assim como uma criança chama a seu pai. Este é o modo de Jesus se
relacionar com Javé. Revela toda a sua comunhão e intimidade. Inspirou-se em Isaías (63,16; 64,7)
e em Jeremias (3,4; 31,9), (as duas vezes em que Deus é mencionado como Pai no AT), em Os 11,
1-11), etc.
b) Para restaurar o relacionamento com Deus, Jesus pede a santificação do NOME, revelado no
Êxodo, por ocasião da libertação do Egito .
Ex 3, 1 a 15: "Eu sou o Deus dos antepassados, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Eu vi
muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra os opressores... Por
isso desci para libertá-lo... e fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, onde corre
leite e mel... (...) Quando eu me dirigir aos filhos de Israel eu direi: o Deus dos antepassados de
vocês me enviou até vocês e eles me perguntarem "Qual é o nome dele?", o que é que eu vou
responder ? Deus disse a Moisés: "Eu sou aquele que sou". "Eu sou me enviou a vocês". Javé, o
Deus dos antepassados de vocês, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, foi quem me
enviou até vocês". Este é o meu nome para sempre". O Deus Javé tem uma identidade própria: é o
Deus-compaixão, o Deus que caminha com o povo, rumo à liberdade!
c) Jesus pede a vinda do Reino Messiânico, esperado pelo povo depois do fracasso da monarquia.
Isaías 11,1-9; Sociedade conduzida pelo espírito de Javé. Sua inspiração estará no temor de Javé.
Ela não julgará pelas aparências... Ela julgará os fracos com justiça... Ela ferirá o violento com o
cetro. A justiça é a correia de sua cintura; é a fidelidade que lhe aperta os rins. O lobo será
hóspede do cordeiro... o bezerro e o leãozinho pastarão juntos... O bebê brincará com a cobra
venenosa. Ninguém agirá mal nem provocará destruição em meu monte santo...
Isaías 65, 17-25:" Vou criar novo céu e nova terra... Em Jerusalém nunca mais se ouvirá
choro... Aí não haverá mais crianças que vivam apenas alguns dias, nem velho que não chegue a
completar seus dias... Construirão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão seu frutos. ..
Em todo o meu monte santo, ninguém causará danos ou estragos, diz Javé". O Reino Messiânico
segue a dinâmica da justiça, está organizado em função da fraternidade, no respeito mútuo e na paz.
d) Jesus pede o cumprimento da vontade de Deus, revelada na Lei que estava no centro da
Aliança.
Ex 20, 1-17: "Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da
escravidão. Não tenha outros deuses diante de mim... Não pronuncie o Nome de Javé, seu Deus
em vão... Lembre-se do dia do sábado... Honre seu pai e sua mãe... Não mate... Deus propõe uma
organização social em favor da vida, pois que todos tenham vida em abundância é sua vontade.
Assim, o NOME, o REINO e a LEI são os três eixos tirados do Antigo Testamento que
expressam como deve ser o relacionamento com Deus.
25
Texto elaborado por Frei Carlos Mesters para a Assembléia Mundial da Federação Luterana a ser realizada entre
29/01 a 08/02 de 1990, em Curitiba, sobre exegese latino-americana e publicada em fascículo pelo CEBI-Sul em 1989,
10-11, sob o título “Estudo bíblico Mt 5-9”, acompanhado de algumas gravuras para reflexão, assim como se costuma
fazer com as iniciativas populares.
Espiritualidade Bíblica 19
Todavia, este relacionamento renovado com Deus só se torna visível no relacionamento
renovado entre nós que, por sua vez, é objeto de mais três pedidos: o pão de cada dia, o perdão das
dívidas e o não cair em tentação.
e) O pedido do "pão de cada dia" lembra o maná de cada dia do deserto.
O Maná era a "prova" para ver se o povo era capaz de andar na Lei do Senhor, isto é, se era
capaz de partilhar e viver sem acumular bens.
Ex 16, 19-30: "E estas são as ordens de Javé: cada um recolha o quanto lhe basta para
comer, conforme o número de pessoas que se acharem em sua tenda. (...) Quando mediram as
quantias não sobrava para quem havia recolhido mais, nem faltava para quem havia recolhido
menos.... Moisés então disse: Ninguém guarde para o dia seguinte. Mas eles não deram ouvidos a
Moisés e alguns guardaram para o dia seguinte. Porém criou vermes e apodreceu... No sexto dia,
porém, recolhiam o dobro; e desta vez não apodreceu nem criou vermes... No sétimo dia alguns
saíram de novo para recolher e não encontraram nada. É o ensaio para viver a partir de outra
dinâmica, a da partilha fraterna, conforme Deus quer.
f) O pedido do "perdão das dívidas"26 lembra o ano sabático que obrigava os credores a perdoar
todas as dívidas aos irmãos.
Dt 15,1-2: "A cada sete anos, você celebrará o ano da remissão das dívidas. Isso quer dizer
o seguinte: Todo o credor que tenha emprestado alguma coisa ao seu próximo, perdoará o que tiver
emprestado. Não explorará seu próximo nem seu irmão, porque terá sido proclamada a remissão
em honra de Javé" (Ano Sabático).
Lv 25, 1-22: "Declarem santo o qüinquagésimo ano e proclamem a libertação para todos os
moradores do país. Será para vocês um ano de júbilo: cada um de vocês recuperará sua
propriedade e voltará para sua família..." (Ano Jubilar).
O objetivo do ano sabático e do ano jubilar era desfazer as desigualdades e recomeçar tudo
de novo. Como rezar hoje: "Perdoa as nossas dívidas 27 assim como nós perdoamos aos nossos
devedores"? É pela dívida externa dos países pobres que os países ricos, todos cristãos, se
enriquecem!
g) O pedido de "não cair em tentação" é para não repetir o erro cometido no deserto, onde o
povo caiu na tentação. Jesus foi tentado com o objetivo de desviá-lo da orientação global da vida.
Mas venceu valendo-se da palavra e da fé bíblicas (Mt 4, l-17).
Ex 17,1-7: "...Moisés respondeu: por que vocês discutem comigo e colocam Javé à prova ?
Mas o povo tinha sede e murmurou contra Moisés: Por que você nos tirou do Egito? Foi para
matar de sede a nós, nossos filhos e nossos animais? ... Eu vou esperar você junto à rocha de
Horeb. Você baterá na rocha e dela sairá água para o povo beber. Moisés assim fez na presença dos
anciãos de Israel, e deu a este lugar o nome de Massa e Meriba 28, por causa da discussão dos filhos
de Israel, e porque puseram Javé a prova, dizendo: Javé está no meio de nós, ou não ?"
O Satanás, o Maligno (que pode aparecer até aos amigos, cf Mt 16,23), sempre tenta o povo
para seguir por outros caminhos. No deserto tentou o povo para voltar para trás, não assumir a
caminhada de libertação e reclamar de Moisés que o conduzia. Tentou Jesus para abandonar o
projeto do Reino e ser Messias conforme as idéias dos fariseus, escribas ou de outros grupos.
26
O evangelho de Mateus, escrito para judeus conhecedores do AT, fala em dívidas. Lucas, porém, dirigindo-se a
gentios não podia usar a mesma linguagem. A Igreja nos últimos 50 anos optou pela versão lucana como termo de um
processo de distanciamento da mensagem do AT que vinha de séculos. Assim “se complica menos” pois separa a fé das
realidades econômicas e políticas.
27
No Pai Nosso em latim se rezava: “Et demite nobis debita nostra” = Perdoa as nossas dívidas... Havia um
movimento de alguns bispos de com a entrada no novo milênio retornar à fórmula, mas infelizmente...
28
Massa significa tentação, provocação. E Meriba, significa discussão. Bíblia Pastoral, nota de rodapé em Ex 17,1-7.
Espiritualidade Bíblica 20
h) "Livrai-nos do Mal" ( é o último pedido). O mal é o Maligno, é o poder maligno que tenta e
que, de muitas maneiras, procura levar as pessoas a não seguir o rumo do Reino, indicado por
Jesus: o fermento dos fariseus, a ideologia dominante, a estrutura de dominação planejada.
A vida de Jesus e sua oração mostram que Ele viveu a mesma fé do povo ao qual pertencia.
Mostram que Ele ajudou a purificar a fé das falsas aderências que foi ajuntando através dos
séculos. Jesus foi a verdadeira encarnação da fé, a expressão fiel do rosto e do nome do Deus em
quem o povo acreditava.
6.3 O credo bíblico no “Magníficat” de Maria
A comunidade em que vive o evangelista Lucas coloca na boca de Maria o Magnificat (Lc
1, 46-55) como uma oração cristã por excelência, assim como o faz em relação a Jesus. Nesta
prece, os dogmas do credo histórico bíblico transparecem muito claramente, mostrando que ela
pertence ao “movimento de Jesus”. Apenas acenando a eles:
a) Éramos escravos e clamamos a Javé. Maria proclama que “Javé viu (olhou) a humilhação de
sua serva”. Algumas traduções falam apenas em humildade. Esta é uma atitude interior. Na
realidade trata-se de humilhação, sempre imposta de fora. Maria é símbolo do povo, alguém que
encarna a situação dos “pobres de Javé”. E estes viviam na autêntica humilhação, isto é, num novo
tipo de escravidão religiosa e política, racial e sexual.
b) Javé ouviu nosso clamor... Diz Maria: “O Todo-Poderoso fez grandes obras em meu favor”.
Maria é também aqui o símbolo dos pobres de Javé. Ela faz aqui o reconhecimento explícito da
ação libertadora de Javé junto ao seu povo e nela mesma. Mais que ninguém Maria vivia a
esperança da intervenção messiânica de Javé junto ao seu povo. Ela canta sua intervenção na
história. A ternura e o carinho de Deus são a razão do louvor.
c) Tirou com mão forte e braço estendido... Maria canta: “Dispersa os soberbos de coração,
derruba do trono os poderosos, despede os ricos de mãos vazias, eleva os humildes...” É a
proclamação da ação revolucionária e subversiva de Javé na história, exatamente como ocorrera
com os hebreus (hapirus) em luta pela libertação contra o poderoso faraó. O que era da essência da
fé bíblica (Deus do lado dos pobres e fracos e não dos poderosos como sempre era apresentado)
Maria proclama em canção de alegria e louvação.
d) Deu-nos uma terra onde corre leite e mel. Esta garantia - e mesmo abundância - de condições
de vida, Maria proclama nesta forma: “Javé sacia de bens os famintos”. Deus, por seu amor
misericordioso, por seu compromisso com a vida do povo, luta para que todos tenham vida em
abundância.
e) Ordena observar estes estatutos. Por estar em ambiente de oração, o estatuto vem substituído
pela ação de graças, outra forma de reconhecer a atuação de Javé: “Sua misericórdia chega aos que
o temem, de geração em geração. Seu nome é santo. Diante deste maravilhoso agir de Deus, só
resta maravilhar-se e tornar-se um “contemplativus in liberatione”. Isto é, um apóstolo de Deus,
encantado com seu agir. A abundância desejada por Deus alcança também a dimensão
transcendental da pessoa e do povo. Outro apóstolo, Paulo, também confessará extasiado: “Eu vivo,
mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. E esta vida que agora vivo, eu a vivo
pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”(Gl 2,20).
Espiritualidade Bíblica 21
7 Os dogmas da fé bíblica no "Creio" da Igreja
Com a ressurreição de Jesus Cristo a fé do povo bíblico recebeu uma luz nova e um novo
sentido. Pode-se notar uma continuidade em relação à fé (e, portanto, ao creio) vivida no Antigo
Testamento. É o mesmo Deus, é a mesma Bíblia, é a mesma religião. Mas não é uma identidade
estática. Houve um salto qualitativo 29. Para os que viveram nos primeiros séculos do cristianismo
foi relativamente fácil dar-se conta de tudo isto, pela proximidade dos fatos. Eles viviam uma certa
compreensão da fé sobre a qual inseriam uma nova visão. Mas, à medida que iam se distanciando
no tempo, ficam apenas com esta visão sem a base daquela provinda do Êxodo.
Nos primeiros tempos do cristianismo as comunidades apostólicas e dos padres apostólicas
viviam e transmitiam a sua experiência da libertação (do Êxodo) realizada por Jesus Cristo, cume e
ápice da história. São Paulo de certa forma tenta recolher estas "profissões de fé" nos hinos
cristológicos nas Cartas aos Colossenses (l, 13 -20), aos Efésios (1, 3 -14) e Filipenses (2, 6 -11),
sobretudo. Somando as três versões nós encontraremos os mesmos dogmas presentes nos credos
do Deuteronômio. Mais rica de nuanças ainda se torna se acrescermos os hinos cristológicos das
outras cartas do Novo Testamento e do Apocalipse. Mas com o tempo, parece que a profissão de fé
foi se distanciando daquela vertente que durante séculos dessedentara e fizera frutificar
comunidades e profetas, senão a caminhada de todo um povo. Os novos contextos políticos e da
cultura grego-helênica urgem também, além do relato das experiências, a “tradução” das
experiências para outra linguagem, a linguagem científico-racional, filosófica. Isto foi feito ao cabo
de vários séculos de muita luta ideológica e, para divulgá-lo, foi elaborado em foram de oração.
O credo dos cristãos agora é muito diverso do credo do povo bíblico, herdeiro da
experiência fundante. Nossa profissão de fé obedece a uma sistematização de verdades, surgida
em tempos quando vicejavam heresias. Sua preocupação principal não parece tanto oferecer a
memória de uma experiência rica e essencial, mediante a qual a pessoa fosse se identificando com
um projeto de vida futuro e com uma herança existencial do passado. O credo dos antigos pais na
fé consistia fundamentalmente numa narrativa da presença libertadora de Deus. Ao rezá-lo, toda a
pessoa se sentia co-envolvida, parte integrante da caminhada da fé. O creio rezado atualmente
pelos cristãos e definido no Concílio de Nicéia, no século V não permite captar essa experiência tão
facilmente. Parece querer levar a pessoa a evitar erros de compreensão da verdade a respeito de
Deus, de Jesus Cristo e da Igreja. Apresenta-se muito mais como "síntese de doutrina" que como
tradução de uma experiência que sempre tem o efeito de motivar e desencadear as energias
interiores.
Sua formulação, apenas para poder confrontar com o outro, é rezada nestes termos:
"Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra em Jesus Cristo seu
único Filho, nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da
Virgem Maria; padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Desceu à
mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está sentado à direita de
Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito
Santo; na santa Igreja católica; na comunhão dos santos; na remissão dos pecados; na
ressurreição da carne; na vida eterna. Amém".
Em forma narrativa está somente a vida de Jesus Cristo. Fala de sua concepção por obra do
Espírito Santo, de seu nascimento, paixão e morte, de sua ressurreição, de seu retorno glorioso. E o
apresenta de modo muito desvinculado da história da salvação. Mas o modo como o faz pouco
29
Cf CRB. Viver e anunciar a Palavra. Coleção "Tua Palavra é vida". Vol 6. São Paulo: Loyola. l995 pp 15 - 54.
Espiritualidade Bíblica 22
deixa a perceber que Ele fosse a versão humana da presença libertadora de Deus. Pablo Richard diz
que este credo apresenta um Jesus “sem rosto”30. Também para ele estas formulações de Nicéia e
Constantinopla, de caráter magisterial e dogmático, são necessárias como regra de fé e como tais
devem ser mantidos e confessados. Mas para a evangelização (e a espiritualidade) são insuficientes,
necessitamos de outro Credo onde Jesus esteja vivo e tenha rosto. É difícil perceber indícios de sua
postura e de sua ação entre os homens. É difícil até mesmo perceber porque teria sido morto. Não
é, pois, um creio energizador e revitalizador da fé. Deixa muito a desejar neste sentido. Como
perceber nele o reconhecimento da situação de "escravidão" e o clamor a Javé? Como perceber
através dele que Deus atende o clamor? Como re-experienciar a intervenção salvífica na história?
E a dimensão da promessa de vida plena se manifestaria aqui pelas verdades da "comunhão dos
santos, da remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna"? É preciso reconhecer
que é possível sim, mas com grande ginástica mental que a poucos é dado obter. A teologia
narrativa é muito mais eloqüente e próxima do povo.
Apenas no sentido de apontar perspectivas um pouco alternativas, recordo aqui uma
"espécie de Creio" que nos oferecem Pedro Casaldáliga e José María Vigil quando, no seu livro
sobre espiritualidade, falam de Deus 31:
- Cremos no Deus de Jesus, o que ele nos revela concretamente em sua carne, em suas obras e
também em sua palavra, em sua história viva.
- Cremos no Deus do Reino, O Deus de Jesus, que nos revelou o seu projeto sobre a história e nos
encomenda a tarefa de acolher e construir o Reino.
- Cremos no Deus encarnado, universal mas concreto, em quénosis, que tomou carne, cultura, sexo
dialeto, regionalismo...
- Cremos no Deus da história, que se manifesta na história, se faz história e a acompanha e no-la
entrega como responsabilidade aos humanos.
- Cremos no Deus da vida, que gera a vida e se gloria da vida, que quer que todos os homens se
salvem, que tenham a vida e a tenham em abundância (Jo 10,10).
- Cremos no Deus dos pobres, universal, mas parcial.
- Cremos no Deus libertador, que se manifesta com poder libertando o povo, levantando do pó os
humildes e destronando os poderosos.
- Cremos no Deus de todos os nomes, que age e está presente em todos os povos e religiões, que
escuta a todos os que o invocam sinceramente mesmo sob qualquer outro nome, que não
exige deixar a própria cultura para ser reconhecido.
- Cremos no Deus, pai e mãe, que criou o homem e a mulher à sua imagem, iguais em dignidade,
complementares em sua realização.
- Cremos no Deus Trindade, comunhão original, comunidade finalizante.
- Cremos no Deus que luta com os ídolos, que se debate com os principados e potestades deste
século, contra os deuses da morte.
Uma formulação assim permite captar mais facilmente a força de Deus presente na história.
Não se apresenta sob a forma narrativa, mas a seu modo contém os mesmos "dogmas" do credo do
Deuteronômio, acrescido da dimensão cristológica, essencial para nós cristãos. Esta espiritualidade
permite refontalizar-se na experiência fundante de Deus feita no Êxodo, "canônica" para todos os
homens de todos os tempos.
30
RICHARD, PABLO. Os diferentes rostos de Jesus nos Evangelhos Sinóticos. Em Concilium 294(2002)43-50, aqui
página 43. Também para ele é mister recuparar um credo em que se celebre a vida de Jesus, sua postura existencial,
sua fé, sua inserção na história para resgatá-la da força do mal, assim como nos apresentam as seis tradições dos
Evangelhos (Mc, Q, Lc, Mt, M e L).
31
CASALDÁLIGA, P. e VIGIL J.M. Espiritualidade da Libertação. Petrópolis: Vozes, l993,102.
Espiritualidade Bíblica 23
Conclusão
Tendo percorrido este caminho, resta recordar o procedimento do profeta Elias quando, no
auge de seu zelo pela causa do Senhor, perseguido de morte pela rainha Jezabel, foi fugindo deserto
adentro em direção ao monte Horeb (segundo muitos estudiosos é o mesmo monte Sinai onde Deus
revelara seu nome a Moisés bem como os mandamentos). Confortado pelo próprio Deus, Elias
caminha para refazer sua experiência de fé. Deus o surpreende na revelação da brisa (quer dizer no
cotidiano da vida, dos fatos da vida, na história) e o reenvia a reorganizar a sociedade, com o
intuito de fazer acontecer novamente o Êxodo, isto é, a experiência de um povo sistematizado em
função da vida de todos (Cf 1 Reis 19, 1 - 18).
A Bíblia nos mostra que cada momento histórico fez memória e releu a experiência
fundante do Êxodo que deu origem (identidade religioso-cultural) ao povo de Deus e o fez, por
cerca de dois séculos, experimentar a alegria de ser um povo irmão, organizado em função da vida.
Assim fizeram os profetas no período em que a organização tribal decaiu para a monarquia. Assim
fizeram os profetas e os sábios quando da dominação persa e grega. Assim fez o profeta dos
profetas, Jesus de Nazaré quando da dominação romana e da legislação religiosa criada pela
corrente farisaica. Assim continuou a fazer a Igreja ao longo de séculos de cristianismo, com maior
ou menor fidelidade. Atualmente, cá e lá, esta memória subversiva da ação de Deus em favor da
vida dos menos favorecidos irrompe vigorosa. É a ação vitoriosa de Javé, o mesmo Javé, eterno e
onipresente nas culturas, povos e religiões.
O cerne da fé e da espiritualidade bíblica sempre será este:
DEUS ESTÁ DO LADO DOS POBRES E FRACOS, DOS OPRIMIDOS E ESPOLIADOS.
CAMINHA COM ELES PARA CONCEDER-LHES VIDA ABUNDANTE,
TIRANDO TODA A FORMA DE OPRESSÃO
INSPIRA-LHES UMA LEGISLAÇÃO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL QUE
FAVOREÇA E SUSTENTE ESTA VIDA, PARA A FELICIDADE DE TODOS.
Esta fé, essencialmente dinâmica, aberta e progressiva, se constitui numa instância crítica
da religião que sempre tende a se estruturar solidamente por ser também um produto humano. O
seguidor de Jesus Cristo precisa entrar neste rio de vida que Jesus anuncia para quem o aceita (Jo
7,38). Esta mística percorrerá suas veias qual sangue a irrigar todas as dimensões do viver. Tornarse-á uma testemunha do Senhor.
E como proposta para nossa práxis, deixo aqui uma sugestão/lembrete a respeito da
espiritualidade bíblica, sobretudo, na sua dimensão de mística, em forma de dogmas como os do
credo histórico:
Éramos escravos no Egito.
A fé no Deus bíblico nasce da consciência da realidade histórica. A alienação social não só
não conduz à fé como a impede. A pessoa de fé bíblica não aposta num Deus estratosférico. Crê
num Deus universal, mas parcial, militante pela causa dos espoliados. Nossa fé é uma hermenêutica
histórica. À medida que alguém capta as relações de força com seus respectivos interesses
presentes no jogo da história, mais condições terá de identificar aí a presença de Javé.
a)
b)
Clamamos a Javé... Ele ouviu nosso grito.
Espiritualidade Bíblica 24
Urge demonstrar que Javé ouviu mediante fatos comunitários, sociais, políticos. Fatos
individuais é mais fácil perceber. Não basta dizer que Deus enviou seu Filho porque nos amava. A
prova da compaixão de Deus precisa ser experimentada no hoje da vida. Importa, pois, apontar
para as pequenas vitórias do povo miúdo frente aos monstros da opressão. Nunca esquecer que
nosso Deus é epifânico, isto é, manifesta-se na história e não além dela.
c)
Javé nos tirou com mão forte e braço estendido...
Seguindo a perspectiva do item anterior os fatos é que conduzem à convicção de que Deus
está lutando em favor do povo pequeno. Com a força de Deus o pequeno Davi, sem armas e
treinamento bélico, vence o gigante Golias todo encouraçado. O pobre tem mais facilidade do que
nós para viver esta dimensão.
d)
Deu-nos esta terra onde corre leite e mel...
A terra, aqui, será sinônimo de espaço existencial de vida: resgate da cultural, dos direitos
fundamentais como a terra, casa, legislação em favor dos desprotegidos ou também uma
comunidade semelhante à descrita nos Atos dos Apóstolos em 2 e 4. O projeto/utopia de Deus é a
abundância de vida para todos (Jo 10,10). Se isto ainda não for realidade deve funcionar como
utopia possível, como sonho sonhado conjuntamente. Esse sonho coletivo deve ser alimentado na
espiritualidade.
e)
Javé deu-nos esses estatutos para observar...
É a corresponsabilidade humana. É a contrapartida das pessoas e das comunidades. Sem
nossa colaboração enquanto povo Deus permanece manietado. Somos feitos à imagem e
semelhança no sentido de que prolongamos a ação libertadora de Deus em nossa história,
emprestando-lhe mãos, pés, coração e cabeça. É a dimensão política de toda a espiritualidade.
Neste sentido, a legislação pode ser uma autêntica obra de sabedoria, como o salmista (Sl 119)
considera a lei de Deus.
Porto Alegre, junho de 2004.
Espiritualidade Bíblica 25
Em tempo: Vejo agora que este texto deveria ser reformulado para incluir outro movimento/dinâmica bíblico
de espiritualidade que lhe é intrínseco: o movimento de êxodo/conversão. Este movimento por sua vez se desdobra
em duas dimensões ou momentos: o movimento ou situação de exílio, de quem se sente ou está afastado, fora de sua
realidade, de sua pátria, de sua identidade, privado dos direitos mais elementares e vitais, sofrendo o peso da opressão
ou escravidão; e o movimento de retorno ao próprio país, de reestruturação de sua casa, de sua vida, de sua
comunidade/pátria. E estes movimentos são sempre possíveis, mesmo que não haja deportações. (Sobre estes aspectos
veja-se o livro de Camilo Maccise Deus presente na história. Espiritualidade bíblica. S. Paulo, Paulinas, 1986).
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