A UTILIZAÇÃO DE DADOS SECUNDÁRIOS DISPONÍVEIS NA INTERNET NA PRODUÇÃO DE PROCEDIMENTOS DE APOIO ÀS AULAS DE GEOGRAFIA DA POPULAÇÃO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Raoni de Lucena Souza (autor principal)1/UFF [email protected] José Carlos Milléo (co-autor)2/UFF [email protected] INTRODUÇÃO O presente trabalho consiste em um relato da experiência desenvolvida durante o ano de 2008 (de abril a novembro) no Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense pelos seus autores como projeto de monitoria em Geografia da População. O objetivo, aqui, é expor a proposta do projeto, sua metodologia, aplicação, bem como um balanço de seus resultados. Não obstante, no intuito de contextualizar o projeto em si com as idéias a partir das quais ele se fundamentou, faz-se necessário inserir, mesmo que brevemente, algumas reflexões a respeito da Geografia da População. O intuito do presente artigo não é fazer um estudo aprofundado sobre as bases epistemológicas e ontológicas da Geografia da População. No entanto, uma vez que este consiste no relato de um trabalho de monitoria da disciplina, pode ser válido tecermos, mesmo que brevemente, alguns comentários acerca deste ramo da ciência geográfica e sobre como são conduzidas as reflexões no decurso da disciplina. 1 Estudante de Geografia da Universidade Federal Fluminense (7º período) – Monitor de Geografia da População durante o primeiro e segundo período letivo de 2008 2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense e professor do Departamento de Geografia da UFF – Professor de Geografia da População e orientador do Projeto de Monitoria da disciplina no primeiro e segundo período letivo de 2008 Procuramos, aqui, fugir de uma definição mais restrita do campo da Geografia da População, tal como o faz Damiani (2008): “Não é a geografia da distribuição diferencial da população no globo terrestre que aspiramos. A da primeira aproximação com o fenômeno humano, através das quantidades de população diversas. A que se vale da visualização de cores diferentes manchando cada país, ou cada lugar, para retratar, num mapa, seu ‘lugar’ no universo das ‘diferentes’ quantidades de população. Observamos que este quantitativismo leva à imagem superficial deste fenômeno social, para quem quer lhe captar, exatamente, a essência qualitativa, as relações escondidas.” (DAMIANI, 2008: p.7) Desta forma, abordamos a população e os fenômenos a ela concernentes como um objeto de estudo complexo e de difícil manuseio; e que assim devem ser encarados. Não há, a priori, um fenômeno populacional ou demográfico que deva ser estudado pela Geografia, outro pela História, outro pela Sociologia, e assim sucessivamente. Ao contrário, a população deve ser estudada como algo complexo, onde cada ciência deve, então, contribuir para este estudo a partir de suas categorias e prismas analíticos específicos. Sendo assim, cabe à Geografia estudar a população sob o ponto de vista geográfico, ou seja, tendo o espaço como prisma analítico. Falando do objeto da Geografia, Corrêa (1983) parece nos fornecer um bom caminho para assumir este posicionamento: “(...) A objetivação do estudo da sociedade pela geografia faz-se através de sua organização espacial [espaço geográfico], enquanto as outras ciências sociais concretas estudam-na através de outras objetivações.” (CORRÊA, 1983: p.52) A partir desta concepção, a disciplina é dividida em três momentos3: 1. O primeiro momento é caracterizado por reflexões teóricas sobre a população e os fenômenos a ela concernentes com base nas interpretações da Economia Política Clássica; 2. O que chamamos aqui de um segundo momento consiste nos estudos de caso, ou seja, a análise espacial de grupos populacionais específicos, abordada a partir de trabalhos em grupo; 3. O terceiro momento consiste na leitura geográfica dos elementos da ‘dinâmica da população’ (natalidade, mortalidade e migração) a partir de indicadores demográficos. É sob este terceiro momento, que nos debruçamos em nosso trabalho específico de monitoria, cuja experiência será relatada adiante neste artigo. Na disciplina, o tema ‘dinâmica da população’ é trabalhado a partir dos seguintes indicadores demográficos: • Mortalidade Taxa de mortalidade Taxa de mortalidade infantil • Natalidade Taxa de natalidade Taxa de fecundidade • Migração Taxa de migração anual A abordagem ao tema nas aulas da disciplina era tradicionalmente feita de modo expositivo/descritivo tradicional; lançando mão da utilização do quadro negro e da exposição oral no intuito de levar os estudantes a refletir sobre a construção e o conteúdo dos indicadores demográficos, seus usos e limitações, bem como sua expressão geográfica. 2. Buscando um novo tratamento da dinâmica espacial da população 3 O que chamamos aqui de ‘três momentos’ na prática consiste em três capítulos da disciplina – três linhas de abordagem sobre a Geografia da População. Não quer dizer que são três momentos sucessivos no sentido cronológico do termo. O “feedback” ou a resposta dos alunos para com esta parte específica da matéria revela uma certa dificuldade em compreender e atingir os objetivos que com ela se pretendiam alcançar. Através de críticas de alguns estudantes e da própria observação cotidiana do professor da disciplina, foram identificadas algumas inadequações no processo de ensino-aprendizagem quando a disciplina atravessava este momento. Quais sejam: • Dificuldade de abstração → Trabalhar com indicadores demográficos e pensá-los espacialmente é algo que exige uma certa capacidade de abstração, muitas vezes ainda não tão profundamente desenvolvida nestes estudantes (lembrando que a disciplina é oferecida no segundo período da graduação). Esta dificuldade se manifesta de maneira notória quando se objetiva uma reflexão multiescalar destes elementos. A dificuldade de pensá-los em diferentes escalas é visível. • Dificuldade de fixação → Havia uma preocupação muito grande dos estudantes em decorar as fórmulas dos indicadores abordados, e não de seus conteúdos (há uma diferença sutil, mas fundamental, entre as duas coisas). Isto, associado a uma carência em noções básicas de matemática, acaba por dificultar o processo de fixação referente aos indicadores demográficos trabalhados. • Esvaziamento das aulas → As dificuldades acima descritas e, acima de tudo, a não compreensão dos objetivos de tal abordagem, acabavam repercutindo um menor interesse por esta parte da matéria. Este aspecto foi revelado através do esvaziamento relativo da turma – tanto em um sentido mais concreto (menos alunos assistindo às aulas), quanto em um sentido simbólico (menos entusiasmo e participação nas aulas). 2.1. O projeto e os objetivos pretendidos Uma vez diagnosticado o problema, e com o intuito de avançar na superação destas dificuldades colocadas, elaboramos um novo método na abordagem da dinâmica demográfica e espacial da população. Este consiste na elaboração de exercícios de cunho eminentemente prático, realizados pelos graduandos durante o tempo de aula, utilizando o Laboratório de Informática da Graduação em Geografia. A idéia é promover o contato dos estudantes com algumas importantes fontes de dados sobre população, bem como propiciar uma atmosfera de maior intimidade destes com o manuseio de dados demográficos. Deste modo, ao invés de apenas serem apresentados a indicadores clássicos no estudo da população (fecundidade, mortalidade geral, mortalidade infantil, etc.) os estudantes são orientados a construí-los a partir de dados compilados diretamente de sítios virtuais de grande credibilidade como: DATASUS, SIDRA-IBGE, PAHO (Pan American Healph Organization), WHO (World Healph Organization), entre outros. Pretende-se, por fim, a partir da adoção de tal procedimento, a fixação mais eficiente dos conteúdos de cada um dos indicadores que fazem parte da dinâmica demográfica, além do favorecimento da reflexão sobre seu próprio processo de construção. Da mesma forma, os recursos contidos nestes sítios contribuem, também, para se pensar espacialmente os elementos da dinâmica da população nas mais diversas escalas. Assim, optou-se pela redução do tempo destinado à exposição tradicional destes conteúdos, embora ela continue existindo como importante reflexão introdutória, privilegiando as práticas dos procedimentos no laboratório, onde são aprofundadas as reflexões sobre os mesmos, e destacando o debate sobre as possibilidades ou problemas na obtenção e manuseio dos dados disponíveis. 2.2. Cronograma de atividades do monitor Embora consista em algo aparentemente simples, a elaboração de tais exercícios demanda uma certa quantidade de esforço e de tempo. A tabela 1 mostra, de maneira esquemática, as atividades referentes ao projeto realizadas pelo monitor ao longo do ano de 2008. TABELA 1: CRONOGRAMA DE ATIVIDADES DO MONITOR ATIVIDADES / MESES Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Levantamento bibliográfico e eleição, em conjunto com o orientador, dos principais eixos a serem abordados na produção do procedimento didático Levantamento dos principais órgãos de pesquisa especializados em informações demográficas bem como dos dados disponibilizados por estes órgãos Rediscussão sobre os marcos do trabalho juntamente com o professor orientador: objetivos, andamento do trabalho, principais eixos a serem abordados, etc; além de um aprimoramento do levantamento bibliográfico inicial Elaboração dos exercícios e demais procedimentos didáticos a serem realizados nas aulas práticas de Geografia da População Realização dos aulas práticas e ajustamento - a partir da dinâmica das aulas - dos próprios procedimentos Reflexão acerca do trabalho realizado e dos resultados obtidos / preparação de material para apresentação na Semana de Monitoria da UFF 2.3. Os sites utilizados O projeto desenvolvido foi aplicado à turma de Geografia da População do segundo semestre de 2008. Não foi possível aplicá-lo à turma do primeiro semestre devido ao tempo necessário para desenvolvê-lo de maneira adequada. Os principais sítios utilizados foram: • DATASUS (www.datasus.gov.br) • IBGE (www.ibge.gov.br) • SIDRA-IBGE (www.sidra.ibge.gov.br) • WHO (www.who.int) • PAHO (www.paho.org) A bibliografia utilizada nos forneceu uma quantidade enorme de sites virtuais com estatísticas e indicadores sociais (JANUZZI, 2001) úteis ao propósito do trabalho. No entanto, optamos por escolher apenas alguns para aplicação das aulas práticas, devido à necessidade de adequação destas aulas práticas a um tempo limitado destinado a elas. Neste sentido, a eleição dos sites acima listados foi feita baseada nos seguintes critérios: • Qualidade e variedade de dados; • Possibilidade de gerar produtos diversos (tabelas, gráficos, cartogramas, etc.) • Navegabilidade; • Possibilidade de manuseio dos dados; • Abrangência cronológica; • Adequação aos objetivos específicos da disciplina. Evidentemente, as qualidades acima elencadas não estão presentes todas em cada um dos sites listados. Um site tem uma qualidade mais destacada, mas peca em uma outra; outro site se destaca em uma característica diferente; e assim por diante. A seguir, apresentamos um esquema destacando as qualidades e limitações de cada um dos principais sites utilizados. TABELA 2: POSSIBILIDADES E LIMITAÇÕES DOS PRINCIPAIS SITES UTILIZADOS SITES DATASUS IBGE SIDRAIBGE POSSIBILIDADES LIMITAÇÕES >Grande variedade de informações sobre demografia; > Boa possibilidade de manuseio dos dados; > Boa navegabilidade. > Dados pouco desagregados (escala estadual); > Possibilidade de gerar apenas um tipo de produto (tabela). > Grande volume e diversidade de dados; > Grande abrangência cronológica. > Difícil navegabilidade. > Diversas possibilidades de produtos (quadro, ranking, gráfico, cartograma); > Liberdade para o manuseio dos dados; > Alto grau de desagregabilidade. > Dificuldade para se encontrar os dados desejados. WHO > Dados de grande qualidade sobre saúde (ótimo para abordar o tema ‘mortalidade’); > Fornece um panorama geral bastante ilustrativo sobre os principais indicadores relacionados à mortalidade dos países. > Pouca possibilidade de interatividade e manuseio dos dados. PAHO > Grande variedade de dados sobre saúde; > Geração de cartogramas. > Produto de baixa qualidade; > Pouca possibilidade de manuseio dos dados. 3. Balanço dos resultados obtidos e conclusão Esta nova metodologia aplicada às aulas de Geografia da População na turma do segundo semestre de 2008 aumentou qualitativamente o interesse dos estudantes da disciplina por esta parte específica da matéria, alvo do projeto. A realização dos exercícios e o contato direto com importantes fontes virtuais de dados secundários sobre população nas escalas nacional, continental e mundial propiciaram um ambiente de maior intimidade com os indicadores demográficos e com as estatísticas públicas. Houve uma melhor apreensão dos conteúdos dos indicadores sociais clássicos abordados na disciplina. A construção dos indicadores a partir dos exercícios propostos gerou um avanço na consciência dos alunos no sentido de uma desnaturalização dos mesmos, levando-os a refletir sobre seu valor contextual, teoria social e finalidade programática (JANUZZI, 2001). O estabelecimento de comparações a partir dos produtos gerados em alguns destes sites, como, por exemplo, gráficos, cartogramas e tabelas fez avançar, também, a habilidade em transportar os elementos demográficos estudados para o espaço geográfico concreto aperfeiçoando a capacidade de abstração dos alunos. Como nos ensina Paulo Freire (1996), ensinar exige que reflitamos sobre nossa prática com humildade, cientes de que não somos nem nunca seremos professores ou homens acabados. A humildade de identificar as falhas ou os pontos nos quais se pode melhorar é algo não somente importante mas necessário à prática docente. O principio da humildade e do inacabamento de nossa prática docente foi o que embasou toda nossa forma de trabalho, desde a sua proposta inicial. Deste modo, apesar de ter apresentado um resultado globalmente positivo, esta iniciativa apresentou algumas debilidades que dificultaram um desenvolvimento ainda mais qualitativo do projeto. Destacadamente problemas concernentes à superlotação da sala. Como nunca havia sido feito nenhum trabalho com a estrutura da sala dos computadores, superestimamos sua capacidade. Acreditamos que a sua estrutura seria o suficiente para comportar adequadamente a turma da disciplina. No entanto, a quantidade de computadores era menor do que imaginamos a princípio. Tivemos que fazer um arranjo de três ou quatro alunos por computador, o que, certamente, dificultou um pouco a dinâmica programada. A elaboração deste projeto foi produto da reflexão crítica do professor da disciplina sobre a sua prática docente. A partir desta reflexão, identificou-se pontos falhos, ou passíveis de melhoramento. Elaborou-se então, um projeto, juntamente com o monitor da disciplina no intuito de avançar nestes pontos e melhorar a prática docente-dicente da mesma. Particularidades à parte, o que pretendemos transmitir a partir do relato contido neste artigo é a importância de se pensar a própria prática docente de uma maneira crítica, e com humildade o suficiente para reformulá-la sempre que isso se faça necessário. “É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática” (FREIRE, 1996: p.43-44). Em que pese as dificuldades já ressaltadas, os resultados obtidos com este projeto apontam para uma utilização futura mais freqüente dos recursos da informática e da computação na prática docente da disciplina, tanto na sua utilização durante as aulas em si como na produção de materiais e procedimentos de apoio a elas. Dentro desta perspectiva, identificou-se, por exemplo, a possibilidade da confecção de um site especialmente dedicado à disciplina como um projeto futuro. Este constituiria um interessante meio de diálogo da turma (e demais estudantes interessados) para com a disciplina, além de converter-se num espaço privilegiado para a exposição dos trabalhos realizados por alunos e ex-alunos. 4. Bibliografia • BEAUJEU-GARNIER, Jaqueline. Geografia de população. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1974 • CARVALHO, José Roberto Magno de. Introdução a alguns conceitos básicos e medidas em demografia. São Paulo. ABEP, 1998 • CAVALCANTI, Lana de Souza. Geografia, escola e construção do conhecimento. Campinas. Papirus, 1998 • CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. São Paulo. Ática, 1983 • DAMIANI, Amélia Luisa. População e Geografia. São Paulo. Contexto, 2008 • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paula. Paz e Terra, 1996 • JANNUZZI, Paulo Roberto Martino. 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