Ambientes
estudos de Geografia
Organizadora:Lucia Helena de Oliveira Gerardi
Edição:
Programa de Pós-graduação em Geografia - UNESP - Rio Claro-SP
Associação de Geografia Teorética - AGETEO
Apoio:
Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da UNESP
Rio Claro-SP - 2003
Programa de Pós-graduação em Geografia
Instituto de Geociências e Ciências Exatas - IGCE
Universidade Estadual Paulista-UNESP
Campus de Rio Claro-SP
Caixa Postal 178
Rio Claro-SP - CEP: 13.506-900
e-mail: [email protected]
http://www.igce.unesp.br/
Associação de Geografia Teorética - AGETEO
Av. 24-A, 1515 - Bela Vista
Rio Claro-SP - CEP: 13.506-900
e-mail: [email protected]
www.ageteo.org.br
910
A492
Ambientes : estudos de Geografia – Lucia Helena de
Oliveira Gerardi – organizadora. – Rio Claro : Programa
de Pós-graduação em Geografia – UNESP ; Associação
de Geografia Teorética – AGETEO, 2003, 252 p. : il.
Apoio: Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da
UNESP.
1. Geografia. 2. Geografia econômica. 3. Geografia física.
4. Geografia – Filosofia. 5. Geografia humana. 6. Geografia
regional. I. Gerardi, Lucia Helena de Oliveira. II. Título.
Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP
Campus de Rio Claro/SP
SUMÁRIO
5
Apresentação
7
Safras-pico e transferência de capital e iniciativas entre campo e cidade: análise
em cinco municípios paulistas
COSTA, Regina Helena Moreira Riani; LANGENBUCH, Juergen Richard
23
Possibilidades de aproveitamento turístico da área rural de Cruz Alta - RS
WEISSBACH, Paulo Ricardo Machado; BERRIOS Godoy, Manuel Baldomero
Rolando
37
Lixo: fato ambiental da modernidade
VIEIRA, Elias Antônio; BERRÍOS, Manuel R.
53
Agricultura familiar no Rio Grande do Sul: perfil socioeconômico dos produtores
de São Francisco de Assis - RS
BALSAN, Rosane; GERARDI, Lucia Helena de Oliveira
75
A aplicação dos perfis geo-ambientais em setores da cidade de Rio Claro (SP)
LEVIGHIN , Susimara Cristina; VIADANA, Adler Guilherme
89
População e qualidade de vida urbana em Santa Maria (RS): estudo de caso bairro
Urlândia
FIGUEIREDO, Vilma Dominga Monfardini; GUIDUGLI, Odeibler Santo
105
Desconstrução do lugar - o aterro da praia da frente do centro histórico de São
Sebastião (SP)
FRANCISCO, José; CARVALHO, Pompeu Figueiredo de
121
Modelagem de parâmetros morfométricos de bacias hidrográficas em sistemas de
informação geográfica
FERREIRA, Francisco Roberto Brandão; FERREIRA, Marcos César
135
Condições climáticas e incidência de pragas e doenças na cultura de citros nas
principais regiões produtoras do Estado de São Paulo
BIERAS, Adriana Rosa; SANTOS, Maria Juraci Zani dos
151
Revalorização do centro de São Paulo: a preservação da memória dos vencedores
VIEIRA, Sidney Gonçalves
171
A cidade: o espaço, o tempo e o lazer
PADOVANI, Eliane Guerreiro Rossetti
185
Considerações sobre o espaço urbano no Brasil
GODOY, Paulo Roberto Teixeira de; BRAY, Silvio Carlos
201
A Agricultura e organização do espaço - o caso do Chapadão, no município de
Jaguari, RS, nos últimos 40 anos
VALENTE, Valdemar; BERRIOS Godoy, Manuel Baldomero Rolando
215
A aprendizagem escolar do conceito de uso do território por meio de croquis e
fotografias aéreas verticais
CAZETTA, Valéria; ALMEIDA, Rosângela Doin de
223
Neopositivismo na Geografia brasileira: parafraseando o pensamento de Speridião
Faissol (1923-1995)
REIS JÚNIOR, Dante Flávio da Costa; CAMARGO, José Carlos Godoy
235
A transposição didática do conceito de território no ensino de Geografia
BOLIGIAN, Levon; ALMEIDA, Rosângela Doin de
251
Sobre os Autores
5
APRESENTAÇÃO
A produção geográfica brasileira tem sido largamente alimentada pelos estudos
realizados no âmbito dos programas de pós-graduação, que têm incentivado seus alunos
e docentes a expor à comunidade suas reflexões e achados.
O Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de Rio Claro, no
espírito de dar contas à sociedade de sua produção, no intuito de apresentar à opinião
dos pares os trabalhos aqui desenvolvidos, no interesse de levar seus alunos a registrar
suas idéias, publica, pelo terceiro ano consecutivo, um conjunto de textos extraídos, por
seus autores, das teses e dissertações defendidas no Programa durante o ano de 2002.
A diversidade temática percorre ambientes vários: rurais, urbanos, naturais,
antropizados, tratando de questões relativas a climas, agricultura, turismo, qualidade
de vida, bacias hidrográficas, centro de cidades, geomorfologia, lixo, aprendizagem etc
sob enfoque teórico, metodológico ou factual.
O resultado desta miríade constitui Ambientes – estudos de Geografia – que
organizamos e apresentamos aos estudiosos de Geografia e ciências tangentes.
A publicação deste livro deve, muito, à Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa
da UNESP, cujo aporte financeiro deu materialidade às nossas idéias, mostrando que
sensibilidade pode ser compatível com administração competente. Deve muito, também,
aos autores que aceitaram nosso convite e entenderam que pesquisa sem divulgação se
esteriliza e esteriliza a ciência.
Que esta obra, fruto do esforço de muitos, seja seminal para os muitos que vierem a utilizá-la.
Lucia Helena de Oliveira Gerardi
SAFRAS-PICO E TRANSFERÊNCIA DE CAPITAL E INICIATIVAS ENTRE CAMPO E CIDADE: ANÁLISE EM
CINCO MUNICÍPIOS PAULISTAS
Regina Helena Moreira Riani COSTA
Juergen Richard LANGENBUCH
Introdução
O estudo das relações cidade-campo torna-se hoje de extrema importância, pois
nos permite verificar as dimensões econômicas e sociais de intensas e complexas redes de
interdependência, que podem inclusive atingir níveis internacionais. Atualmente, quando
prevalece uma sociedade mundial ou globalizada, devemos observar nas relações estabelecidas entre o rural e o urbano uma intrínseca dependência que, ao longo dos anos, vem
gerando o desenvolvimento econômico das principais cidades brasileiras, inserindo-as num
contexto global.
Através da análise das relações cidade-campo deparamos com numerosos aspectos,
cada qual com suas especificidades e importância dentro de um contexto geral. Porém, nossa
pesquisa irá se ater à transferência de capital e iniciativas entre dois setores econômicos do
município – rural e urbano – o que nos permitirá visualizar a existência e o grau de importância
desses fluxos, além de sua direção (origem e destino) numa avaliação positiva ou negativa
que, direta ou indiretamente, contribui para o desenvolvimento econômico local ou regional.
As relações cidade-campo
Ao longo da história econômica brasileira, podemos destacar o período cafeeiro como
o mais expressivo exemplo da transferência de capital e/ou iniciativas entre o campo e a
cidade, que sem dúvida proporcionou o desenvolvimento urbano e industrial de numerosos
municípios, modificando a estrutura social política e econômica do estado e do país.
Percebemos através de uma vasta bibliografia a grande importância da agricultura
cafeeira para o desenvolvimento econômico, urbano-industrial brasileiro, sem esquecer
que ela estava intimamente vinculada a interesses externos. O capital gerado pela lavoura
cafeeira foi o elemento essencial para a formação e manutenção de uma classe hegemônica
que determinava, em todos os níveis, os rumos do país.
O desenvolvimento urbano-industrial, desencadeado pela agricultura do café, também
amplamente estudado, se apresenta como a comprovação dos intensos fluxos de recursos
de origem rural, que, com destino urbano, proporcionou o crescimento e o surgimento de
importantes setores econômicos na época. Dessa maneira, não podemos desvincular industrialização de café, principalmente no caso paulista, no qual a agricultura foi responsável
8
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
pela geração dos recursos financeiros necessários ao desenvolvimento da indústria, além
de estimular diretamente novas atividades industriais ligadas ao café.
A expansão econômica e financeira da cafeicultura resultou no surgimento de atividades tipicamente urbanas - indústrias, bancos, escritórios, armazéns, oficinas de estrada de
ferro, comércio, etc., que passaram a ser desenvolvidas nos centros urbanos “envolvidos” pela
produção cafeeira. Além dessas atividades, desenvolviam-se também outras, relacionadas ao
crescente processo de urbanização - comércio varejista, transportes urbanos, comunicações,
energia elétrica, construção civil, equipamentos urbanos, etc. “Quanto mais avançava esse
processo, mais interdependentes se tornavam todas essas atividades, gerando uma intrincada
rede de conexões econômicas, financeiras e de serviços” (CANO, 1990, p. 69).
A abordagem da economia cafeeira serviu como um preâmbulo para a análise das
relações cidade-campo, principalmente no aspecto referente à transferência de capital e
iniciativas, e a partir daí, procuramos verificar sua evolução ao longo dos anos. As funções,
bem como as características, atribuídas aos espaços urbano e rural, vêm sofrendo transformações de acordo com os modelos de desenvolvimento adotados, assumindo atividades e
serviços específicos, que ampliam ou diminuem o grau de dependência entre ambos; no
entanto, essas transformações podem ser constantemente vinculadas ao contexto econômico
no qual o país está inserido.
Não é possível analisarmos a situação do meio rural, em seus variados aspectos, sem o
relacionarmos ao meio urbano, ou seja, não há campo sem cidade e nem cidade sem campo.
Em muitos casos, a caracterização do espaço rural se faz por condições determinadas pelo
urbano, numa relação de complementaridade e funcionalidade, que interliga e, ao mesmo
tempo, distingue, resultando em duas realidades paralelas, mas dependentes.
Assim,
... o meio rural não pode nunca ser estudado em si mesmo, mas deve ser
encarado como parte de um conjunto social mais amplo, do qual faz parte
juntamente com a cidade”. E, ainda: “... a cidade está sempre implantada
no campo, tendo para com este relações de variada forma, desempenhando
funções diferentes em relação a ele. (QUEIROZ, 1979, p. 163-164).
Tanto o campo quanto a cidade adquirem funções específicas e regionais, conforme
o nível de dependência existente entre ambos, o que também define o grau de urbanização
da sociedade em questão:
...já que não é apenas o fato da população habitar em concentrações urbanas
que dá ao país o caráter de urbanização. Esse depende da amplitude das
funções desempenhadas pelas cidades, por um lado, e mais ainda, pela
independência destas em relação ao meio rural, que decorre da importância de suas atividades produtivas – isto é, de seu grau de industrialização.
(QUEIROZ, 1979, p. 165).
Algumas cidades – e podemos encontrar exemplos brasileiros – acabam se tornando
um prolongamento da zona rural, pois assumem atividades e serviços diretamente relacionados com a produção agrícola regional (beneficiamentos, usinagem, etc). Nesses casos,
fica difícil se estabelecer uma separação entre a cidade e o campo. O processo de industrialização e urbanização do território envolve a concentração de outro tipo de produção, em
Ambientes
estudos de Geografia
9
que as relações ganham maior amplitude e independem do seu meio rural direto para seu
abastecimento e sobrevivência, ou seja, sua economia está vinculada a espaços cada vez
mais distantes, incluindo-a em relações cada vez mais globalizadas.
As antigas relações entre o campo e a cidade, baseadas na produção de alimentos para
o abastecimento local, vêm sofrendo alterações com o passar dos anos. O processo de desenvolvimento econômico-industrial, desencadeado no país, trouxe inúmeras conseqüências
e profundas transformações na dinâmica rural-urbana. “Na medida em que a economia se
altera profundamente, a sociedade e os tipos de relações econômicas de toda ordem mudam
de maneira substancial”. (SILVA, 1998, p. 36).
As relações estabelecidas entre as áreas urbanas e rurais, no processo de desenvolvimento nacional, são percebidas ao longo de toda a evolução econômica brasileira e paulista.
A interdependência entre os setores é verificada em sua forma mais elementar: os setores
urbano-industriais necessitam, de maneira imprescindível, da produção, no meio rural, de
alimentos e matérias-primas para o desenvolvimento de suas principais funções e manutenção de sua mão-de-obra. Em contrapartida, o campo não consegue permanecer autônomo e
isolado; apesar de produzir bens essenciais à sobrevivência humana, necessita também de
serviços e produtos industrializados oferecidos pela área urbana.
A função de consumidor, adquirida pelo setor rural, pode representar para a área
urbana um grande desenvolvimento tanto comercial quanto industrial. Ao desenvolver suas
atividades agrícolas e criatórias, o trabalhador rural necessita de equipamentos diversos, que
podem ser altamente modernos ou as tradicionais ferramentas manuais (enxadas, foices, etc.).
Para atender a essa “demanda”, as cidades podem desenvolver núcleos comerciais específicos,
que, de acordo com as culturas agrícolas existentes, ofereçam os equipamentos e insumos
adequados e essenciais ao aumento da produtividade e ao desempenho das funções agrárias.
Dessa maneira, podemos concluir que uma área rural devidamente ocupada e produtiva, além de absorver mão-de-obra nas atividades agrícolas, criará um aumento pelos
serviços urbanos, tanto no que se refere ao consumo de equipamentos e insumos agrícolas,
como por outros bens de consumo duráveis e não-duráveis – alimentos industrializados,
roupas, calçados, equipamentos eletro-eletrônicos, etc.
Assim, verificamos que, apesar de desempenharem funções diferentes dentro do
contexto, as áreas rurais e urbanas têm grande importância na dinâmica do desenvolvimento
econômico. Ou seja, a deficiência de uma das partes, ou a subordinação de uma pela outra,
poderá provocar conflitos e conseqüências sócio-econômicas e políticas de nível internacional, embora essa harmonia seja difícil de se encontrar.
Mesmo na forma clássica de relação rural-urbana: o fornecimento de alimentos ou
matéria-prima para a sociedade urbana industrial, podemos levantar uma questão de extrema
importância – a transferência de capital ocorrida entre os setores. Se o campo é produtor de
alimentos para o abastecimento ou de matéria-prima para a indústria, essa atividade não é
espontaneamente desempenhada pela natureza, ou seja, há a organização e, muitas vezes, a
transformação do espaço natural em espaço produtivo, através das mais variadas técnicas e
instrumentos de pesquisa. Assim, o proprietário das terras acaba adequando-se a essa situação de diversas maneiras: ele próprio faz os investimentos necessários, ou, na ausência de
10
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
recursos, “cede” o território para outros investidores mais capacitados e dispostos a aderir
ao possível desenvolvimento econômico exposto.
Dessa maneira, recursos financeiros são disponibilizados para o investimento nas
áreas rurais, desencadeando profundas transformações de ordem econômica, social e
mesmo cultural. Cabe salientarmos aqui que a origem do capital pode ser variada, indo
desde financiamentos promovidos pelo Estado como os créditos agrícolas, como o capital
urbano originado em outros centros maiores, capital originado no próprio campo, ou ainda
proveniente de herança familiar. De qualquer forma, a introdução de tais recursos no meio
rural é suficientemente capaz de causar repercussões, tanto no meio rural quanto no meio
urbano, provocando uma especialização das cidades em termos de serviços e produtos, e
intensificando as relações entre ambos.
Silva (1998, p. 36), afirma: a intensificação das relações cidade-campo não é senão a
forma aparente que assume o próprio desenvolvimento capitalista na agricultura. E, ainda,
“a separação cidade-campo só se dá por inteiro quando a indústria se muda para a cidade;
a reunificação, quando o próprio campo se converte numa fábrica”. (SILVA, 1998, p. 37).
A transferência de capital entre campo e a cidade
A transferência de capital entre o campo e a cidade pode ser claramente exemplificada na economia cafeeira, em que o fluxo de investimentos na área urbana foi intenso,
propiciando a manutenção da hegemonia cafeeira, resultando num significativo desenvolvimento urbano-industrial. Além de aplicações em áreas urbanas, o capital gerado pelo café
também permanecia no campo, à medida que os produtores ampliavam suas propriedades,
suas plantações, a mão-de-obra, etc.
No entanto, após a consolidação da indústria em áreas urbanas, com o arrefecimento
do mercado internacional do café, a cidade urbanizada e industrializada assume o poder
econômico, subordinando as atividades rurais às necessidades urbanas – abastecimento da
população, comércio e indústria. Nesse sentido: “a grande cidade, cabeça da rede urbana,
extrai do campo e das cidades menores, via migrações e força de trabalho, assim como deles
retira a renda fundiária”. (SILVA, 1998, p. 39).
Cria-se um ciclo de exploração da cidade sobre o campo ou região, através de diversos
fatores e serviços centralizados na área urbana. A comercialização, distribuição da produção,
movimentação, aplicações financeiras, e vários outros serviços que são desenvolvidos na
cidade fazem com que o setor rural permaneça numa “subordinação” dinâmica. A cidade,
por sua vez, se alimenta dessas atividades, e com elas atrai a renda produzida no campo
além da clássica atração migratória de mão-de-obra.
Ao mesmo tempo em que a cidade é alimentada pelo campo, ela exporta “capitais,
bens e serviços, idéias e valores”, formando uma área de influência em torno dela. (SILVA,
1998, p. 39).
Entretanto, especificamente, para a nossa pesquisa, a transferência da renda fundiária,
ou dos capitais gerados na agricultura, direcionados para a cidade, e o inverso – capitais
urbanos aplicados na área rural, são o nosso ponto de interesse. Sabemos teoricamente que
Ambientes
estudos de Geografia
11
essa troca, esse fluxo existe, porém também sabemos a extrema dificuldade de se mensurar, pois se trata de aplicações financeiras, conduzidas em sua maior parte por interesses
particulares, dizendo respeito apenas ao próprio investidor. A dificuldade de obtenção de
informações, com certeza, é o principal motivo de uma bibliografia escassa sobre o assunto,
tornando a pesquisa ainda mais interessante e desafiadora.
A ampliação das relações, sejam elas entre o rural e o urbano, entre cidades, econômicas, sociais, políticas, ou outras, torna-se um outro fator interferente. A evolução dos meios
de comunicação, a rápida transmissão e difusão das informações e a necessidade de uma
economia mundializada trouxeram uma redistribuição nas antigas relações anteriormente
estabelecidas em regiões determinadas espacialmente. Hoje, não é mais possível delimitar
a área de influência ou interferência, apenas pela proximidade ou dimensão. As relações
tornaram-se mais complexas, intensas e amplas, definidas por uma ordem maior, que envolve
fatores econômicos, políticos e sociais, organizados numa lógica global.
Assim, podemos afirmar que as relações cidade-campo dependem ou refletem as
articulações econômicas e políticas promovidas pelo Estado ou pelo setor privado, provocando um inter-relacionamento complexo e abrangente.
A transferência da renda produzida no campo para a cidade, ou sua aplicação no próprio campo, é citada por Silva (1998, p. 40): “a renda fundiária pode ser aplicada, ao menos
em parte, na zona rural, visando o aperfeiçoamento técnico das atividades de produção, mas
pode ser aplicada também nas cidades da região ou extra-regionais”, e, também, nos coloca
os lucros, resultantes dos sucessivos acréscimos sobre o valor da produção, como uma forma
de drenagem da cidade sobre o campo.
Diante da complexidade do tema, selecionamos as safras-pico (safras que se destacam das demais pelo aumento da produção) como ponto de partida para nossa análise. A
partir dos lucros – excedentes financeiros – proveniente de uma bem sucedida produção e
comercialização, existe a possibilidade potencializada dos produtores rurais realizarem investimentos de capitais em outros setores da economia local, muitas vezes tomando a iniciativa
de novos empreendimentos. É claro que, antes de investirem em atividades econômicas
não-agrícolas, deve haver uma preocupação com a manutenção, conservação e melhoria da
atividade geradora de tais recursos: nesse caso, a atividade agrícola. Isso quer dizer que,
dos lucros resultantes da produção e comercialização de produtos agrícolas, subtraem-se os
investimentos a serem realizados na própria lavoura, sendo que apenas a diferença poderá
ou não ser destinada a outras atividades econômicas, ou servir para investimentos em bens
duráveis.
Sabemos ainda que as conseqüências de uma bem sucedida produção, não se restringem apenas ao investimento desses excedentes em outras atividades econômicas urbanas ou
rurais, num fluxo direto de transferência de capital. Indiretamente outros fluxos são constituídos, e tomamos como exemplo a própria mão-de-obra utilizada na produção gerando
um aumento do consumo no comércio local ou regional. Por sua vez, com o aumento do
consumo, os comerciantes e prestadores de serviços urbanos também têm um aumento de
seus lucros, que poderão ser aplicados de múltiplas maneiras. Dentre elas, poderão ocorrer
investimentos na área rural, em atividades agrícolas, ou em atividades na própria área urbana,
12
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
diferentes ou não das já praticadas.
Cria-se, assim, um ciclo de investimentos, aplicações e capitais, que são de extrema
importância para o entendimento das relações que ora se estabelecem (figura 1). E, ainda,
determinam o grau de desenvolvimento de cada região, permitindo-nos verificar o nível de
dependência da cidade em relação ao campo, do campo em relação à cidade, e também a
inserção ou não do município na economia mundializada.
A nova realidade rural
Figura 1 - Ciclo de investimentos, aplicações e capitais
Como em várias outras regiões, no Estado de São Paulo vem ocorrendo a proliferação das atividades não-agrícolas no meio rural. Os sítios destinados a recreação são os
principais exemplos dessas atividades. Localizados nas áreas de entorno das cidades, são
considerados refúgios de lazer nos finais de semana, de propriedade da classe média urbana,
e podem inserir pequenas e intensivas atividades produtivas – agropecuárias ou não. Além
dessas novas atividades, verifica-se o crescimento da população economicamente ativa,
com residência rural, que exerce atividades não-agrícolas: nas indústrias de transformação
e agroindústrias, prestação de serviços pessoais, construção civil, comércio e prestação de
serviços sociais. Em contrapartida, cresce, também, o “contingente de pessoas ocupadas em
atividades agrícolas com domicílio urbano (os trabalhadores rurais volantes)” (GRAZIANO
DA SILVA et al, 1996).
Em meio a essas novas formas do meio rural paulista, surgem novas funções e novos tipos de ocupação, consubstanciados em: implantar locais de lazer nos feriados e finais
de semana (pesque-pague, hotéis-fazenda, chácaras de recreio); oferecer moradia à classe
média alta (proliferação dos condomínios fechados); estimular atividades de conservação e
preservação ambiental, com a criação de parques e estações ecológicas, além do eco-turismo
e turismo rural; proliferação no meio rural de atividades tipicamente urbanas (mecânicos,
contadores, secretárias, digitadores, trabalhadores domésticos, motoristas – atividades necessárias na manutenção de hotéis, parques, pesqueiros, restaurantes, etc.) Não podemos deixar
de mencionar também os postos de gasolinas, restaurantes e motéis, que desenvolvem suas
atividades ao longo das rodovias, que apesar de não serem atividades novas, têm crescido
em ritmo cada vez mais significativo.
Ambientes
estudos de Geografia
13
Muitas dessas atividades, desenvolvidas mediante a demanda urbana, transformam
a natureza em mais um bem de consumo, transformando também a vida da população
rural. Ampliam-se os hotéis-fazenda, por exemplo. E para que sejam próprios ao turismo,
demandam construções, utilização de mão-de-obra e infra-estrutura necessárias para atender seus usuários, criando um novo mercado de trabalho e substituindo parte da atividade
agrícola desenvolvida anteriormente. Devemos salientar ainda que há hotéis-fazenda que
derivaram de verdadeiras fazendas e outros que o são apenas no nome, não passando de
“resorts”, ocupando terrenos relativamente pequenos, que podem estar inseridos no campo
ou nas periferias urbanas.
Como ampliação do mercado de trabalho, essa tendência pode ser uma solução para
os problemas da falta de empregos urbanos e rurais. As cidades, durante muito tempo, foram
escolhidas pelos trabalhadores rurais, que acreditavam em melhores condições de moradia,
serviços, saúde, salários, etc. Diante dos problemas de carência de infra-estrutura que as
cidades apresentam, da atual crise econômica por que passa o país, reduzindo a oferta de
trabalho, uma nova fonte de empregos parece ser fundamental para se evitar um verdadeiro
colapso.
Diante do exposto, é compreensível que parte dos excedentes financeiros gerados
por atividades tipicamente urbanas ou por atividades agrícolas e pecuárias sejam investidas
nesses novos tipos de empreendimentos, muitas vezes a partir de iniciativas tomadas por
agricultores, comerciantes, industriais ou profissionais liberais do próprio município.
Técnicas de pesquisa
Quanto à escolha dos produtos, tanto nas lavouras permanentes, quanto nas temporárias, selecionamos aqueles que apresentaram os números mais significativos, seja em
área plantada e/ou quantidade produzida. Foram definidos 04 produtos: cana-de-açúcar, nas
lavouras temporárias; e café (em coco), laranja e uva, nas lavouras permanentes. Dentro dessa
definição, necessitávamos, agora, selecionar os municípios, relativamente especializados
nessas culturas, para a realização da pesquisa de campo.
Para a escolha dos municípios, foi efetuado um levantamento junto ao IBGE, utilizando as publicações denominadas PAM – Produção Agrícola Municipal, nas décadas de
80 e 90, num total de 19 anos. Nas PAMs, encontramos as informações disponíveis sobre
a produção agrícola, como: área plantada, área colhida, quantidade, valor, etc., em cada
município paulista, classificadas conforme a caracterização das culturas – permanentes e
temporárias. Com base nos produtos selecionados, efetuamos a análise dos municípios produtores, resultando no levantamento dos principais municípios responsáveis por cada uma
das culturas determinadas Como esse trabalho foi feito ano a ano, ao final, tínhamos traçado
uma evolução da produção, salientando os anos de pico e queda, revelando municípios em
que o contraste entre altos e baixos era mais pronunciado e bem definido (Figura 2). Dentre
esses escolhemos cinco para os estudos de caso, pesando na seleção também o interesse em
envolver diferentes cultivos e diferentes dimensões do respectivo núcleo urbano, além de
situados em áreas relativamente distanciadas entre si. Os municípios e respectivas produções
14
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
consideradas são: Araraquara – laranja, Jaboticabal – cana-de-açúcar, Luiz Antonio – canade-açúcar, Louveira – uva, e Santo Antonio do Jardim – café.
Figura 2 - Produção Municipal de Café 1980-1998
Santo Antônio do Jardim
Fonte: PAM, IBGE, 1980-1998.
Procuramos junto a órgãos públicos (Secretaria Estadual da Fazenda, Departamento
Estadual de Trânsito, Ministério do Trabalho e Emprego e Prefeituras Municipais) informações e dados disponíveis para efetuarmos uma análise comparativa a ser realizada. Dentre
esses, tivemos acesso à arrecadação municipal de ICMS – Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços, ao levantamento do número de veículos licenciados no Estado
de São Paulo e ao estoque de empregos formais no setor industrial, também em nível de
município. Junto às Prefeituras, recorremos ao setor de Registro e Aberturas de Firmas,
para o levantamento de aberturas e fechamentos de empresas nos anos determinados pelas
safras-pico. Esses dados nos possibilitaram inferências e associações sobre a efetiva transferência de capital e/ou investimentos entre campo-cidade, que seriam complementadas,
posteriormente com a pesquisa de campo.
A elaboração do roteiro para a pesquisa direta em campo foi outra etapa percorrida na
realização desse trabalho. Nesse momento, definimos os pontos a serem abordados durante
a entrevista, e como se tratava de assunto de interesse particular – aplicação de capitais – resolvemos propor uma “entrevista suave”, como uma “conversa dirigida”, onde o entrevistado
pudesse colocar todos os motivos que o levaram a efetuar ou não tais investimentos, suas
expectativas quanto ao negócio, à atividade rural e ao desenvolvimento econômico no qual
ele próprio está inserido.
Como se trata da realização de uma entrevista direta com os produtores rurais e
comerciantes urbanos, resolvemos não definir o número de entrevistados, apenas as instituições públicas e privadas que seriam contatadas durante as visitas a cada um dos municípios
selecionados. Assim, tínhamos nas Associações Comerciais e Industriais, Casas da Agricultura, Prefeituras Municipais, Sindicatos Rurais Patronais e de Trabalhadores, Associações e
Ambientes
estudos de Geografia
15
Cooperativas específicas aos produtos cultivados pelos municípios as principais e primeiras
referências, ao chegarmos a cada uma das cidades.
Após esses primeiros contatos, surgiam outras informações e referências, que eram
também incluídas nos roteiros de visitas, ampliando o número de entrevistados e, conseqüentemente, o número de informações e depoimentos.
Durante essas entrevistas, pudemos verificar a real dimensão das aplicações e investimentos de capitais e das iniciativas, em ambas as direções, sua área de influência e
grau de importância para a economia local e regional. Além disso, procuramos esclarecer
as questões referentes às condições, causas, repercussões, expectativas, dificuldades e os
elementos (econômicos, sociais, pessoais, políticos, climáticos, etc.) que levaram as pessoas
a realizar tal investimento e/ou tomar tal iniciativa. Outro ponto que merece destaque é o
nível de conscientização dos entrevistados quanto à importância da atividade agrícola para
o desenvolvimento interno da região. Muitos deles, preocupados com a atual situação econômica por que passa o país, já buscam alternativas para melhorar e ampliar suas atividades.
Análise dos resultados
As relações estabelecidas entre o rural e o urbano, ou, ainda, entre a atividade agrícola e o desenvolvimento das atividades econômicas na área urbana, num determinado
município, são intensas e constantes, de acordo com as condições que as envolvem. Direta
ou indiretamente, verificam-se fluxos multi e bidirecionais, em que o capital e as iniciativas
circulam entre ambos os setores citados – rural e urbano – promovendo condições favoráveis
ao desenvolvimento econômico e urbano ou, em outros casos, provocando crises nas quais
os municípios permanecem, aguardando novas safras.
Essa situação, porém, não é nova, pois, conforme pudemos verificar, a própria formação dos municípios analisados, assim como a grande maioria dos municípios paulistas
e brasileiros, estava atrelada à função agrícola desenvolvida no campo, que por sua vez era
conduzida por um contexto mais amplo, em níveis nacional e internacional (períodos como
os do café, da cana-de-açúcar, etc). Dessa maneira, podemos perceber as inúmeras interfaces
do problema e constatar que existem elementos externos que podem interferir na dinâmica
local, alterando significativamente a estrutura econômica e social de um município ou região.
Nossa tarefa, a de analisar e constatar essa dinâmica relação entre a agricultura e o
urbano, principalmente o setor comercial, nos revelou fatores condicionantes e características
específicas, que tornaram o trabalho ainda mais interessante, fazendo com que cada município
estudado apresentasse uma realidade singular, e por conseguinte, as relações entre rural e
urbano também assumissem detalhes particulares dentro do contexto no qual estava inserido.
A transferência de capital e iniciativas entre rural e urbano, numa situação em que
as mais bem sucedidas safras agrícolas tornariam esses fluxos monetários mais intensos e
constantes, realmente foi verificada em todos os municípios selecionados. Entretanto, cada
município apresentou características próprias, que interferiam de modo diferente nessa
relação entre campo e cidade.
16
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Santo Antonio do Jardim, município de pequeno porte, apresenta-nos uma situação
bastante peculiar. O conjunto de agricultores locais é, em sua maioria, composta por pessoas
naturais do próprio município, pertencentes a tradicionais famílias de cafeicultores responsáveis pela cultura do café na região. Essa comunidade caracteriza-se pelo forte vínculo dos
produtores com a atividade cafeicultora, tornando-as alheia a formas alternativas de cultura
e produtos. Amparados por essa estrutura tradicional, que passa de geração em geração, eles
se negam a novas discussões, organizar cooperativas e associações, dificultando, inclusive, as atividades do engenheiro agrônomo local. No entanto, verificamos a quase maciça
aplicação de recursos na área comercial da cidade, o que nos mostrou a tentativa de novas
formas de atividades e investimentos que não sejam agrícolas, porém sem deixar de lado a
atividade rural. Essas atividades secundárias, exercidas pelos agricultores ou familiares, são,
na verdade, geradoras de recursos para manter ou, ao menos, auxiliar a atividade econômica
principal: a cafeeira.
Em Santo Antonio do Jardim pudemos verificar também um comércio controlado
pelos produtores rurais, ou seja, a grande maioria dos proprietários de estabelecimentos comerciais urbanos era formada primeiramente por agricultores, que efetuaram investimentos
nesse setor com recursos provenientes da atividade agrícola. Outro fator que evidencia esse
controle é a múltipla atividade desempenhada pelos produtores agrícolas no município: um
único cafeicultor, além de suas lavouras, mantém um supermercado (único no município),
é vereador e presidente da Associação Comercial da cidade, mostrando-nos o grau de influência do rural sobre o urbano.
Assim como em outros municípios, os principais cargos públicos e/ou atividades
comunitárias e associativas são ocupados e desenvolvidos pelos agricultores, e em Santo
Antônio do Jardim, isso ficou bastante nítido. Prefeito, vice, diretores, presidente da Associação Comercial e outros são cafeicultores, reforçando a hegemonia do café sobre as
demais atividades econômicas desenvolvidas no local.
Luiz Antonio, também um município de pequeno porte, apresenta características
opostas a Santo Antonio do Jardim. O município, produtor de cana-de-açúcar, uma das
mais importantes atividades agrícolas do estado de São Paulo, caracteriza-se por grandes
extensões de terras ocupadas com as lavouras, e, ainda, pela existência de grupos de usineiros que dominam a atividade econômica, desde o cultivo da planta até a comercialização e
industrialização de seus derivados.
Percebemos em nossa pesquisa que a estrutura econômica de Luiz Antônio está
centrada nas duas grandes empresas instaladas no município – Central Energética Moreno
de Açúcar e Álcool e a Companhia Votorantim de Celulose e Papel –, apesar de ambas
extraírem suas matérias-primas da agricultura, esta, pouco influencia o desenvolvimento
econômico e urbano, pelo menos diretamente. Além das áreas ocupadas com a cultura canavieira – maior porcentagem das áreas cultiváveis do município – existem as culturas de
eucaliptos para a fabricação de celulose e uma área destinada à cultura da laranja, adquirida
recentemente pela Cutrale, todas apoiadas em mão-de-obra migrante, originária das mais
variadas regiões paulistas.
Jaboticabal, município produtor de cana-de-açúcar, porém de porte médio, nos apre-
Ambientes
estudos de Geografia
17
senta características diferentes.
No setor agrícola, a cultura da cana aparece soberana em termos de área ocupada
e valor da produção em relação as outras lavouras permanentes ou atividades criatórias.
Quanto ao setor industrial, apesar de bastante variado a indústria de açúcar e álcool mantém
sua hegemonia tanto em termos de arrecadação para o município quanto em número de
empregos oferecidos.
A estrutura fundiária do município apresenta-se com cerca de 80% dos estabelecimentos agrícolas de propriedade de pessoas residentes em Jaboticabal; são de pequeno e
médio porte, e desenvolvem outras culturas associadas à cana (amendoim, soja, algodão).
No que se refere ao consumo de bens de produção e de necessidades gerais como
alimentação, vestuário, etc, encontramos duas realidades distintas: o consumo realizado pela
mão-de-obra e aquele realizado pelos produtores agrícolas. A primeira situação favorece o
comércio local, provocando um significativo aumento da arrecadação municipal de ICMS.
Já os produtores agrícolas satisfazem suas necessidades consumindo em outros centros
comerciais da região.
Araraquara, município de maior dimensão, foi analisado segundo sua produção de
laranja, que divide com a cana-de-açúcar o espaço físico e econômico regional. Sua estrutura fundiária está dominada pelos médios e grandes estabelecimentos, em sua maioria de
propriedade de pessoas procedentes de outros municípios. Os naturais concentram-se no
grupo das pequenas propriedades agrícolas.
A mão-de-obra utilizada nas lavouras é procedente de município da região e também
local. Como Araraquara é um grande centro comercial, tanto a população trabalhadora, quanto
os produtores rurais, utilizam-se do comércio local para a satisfação de suas necessidades
de consumo. Assim, podemos perceber que a repercussão da agricultura no comércio é
bastante direta.
Nosso último município analisado Louveira, com uma produção significativa de uva,
apresenta algumas particuliaridades. Localizado próximo às áreas metropolitanas de São
Paulo e Campinas, sofre grande pressão imobiliária, causada pela ampliação dos condomínios
de alto luxo destinados à população dessas grandes áreas urbanas.
A estrutura fundiária do município está assentada em pequenas e médias propriedades,
em sua maioria de base familiar.
Apresentando diversas dificuldades, no que se refere ao escoamento da produção de
uva, os produtores locais vêem buscando alternativas (cultivo de outras frutas e produção
de doces) para manter suas atividades agrícolas produtivas. Para isso contam com o apoio
do poder público local que desenvolve e estimula projetos visando ampliar o agroturismo
e a agroindústria caseira.
De qualquer forma verificamos que, nos cinco casos analisados, a consciência da
importância da agricultura para o desenvolvimento urbano, econômico e social dos municípios é constante e perceptível, principalmente no que se refere ao setor comercial e de
serviços. Independentemente do tamanho dos municípios, das condições financeiras ou
atividades desenvolvidas pelos entrevistados, as afirmações da importância exercida pelas
18
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
áreas agrícolas sobre os outros setores econômicos das cidades eram freqüentes e claras:
“a cidade depende do café”; “a cana e a laranja controlam a economia do município”, etc.
Essa conscientização torna-se importante, à medida que as atitudes tomadas por esses
cidadãos, investidores ou potenciais investidores, nos principais setores da economia local,
serão com certeza norteadas ou influenciadas por essa tomada de posição.
A relação positiva entre o comércio local e as safras agrícolas também foi verificada e determina um importante fluxo de capital de origem rural – principalmente através
da mão-de-obra ocupada nas lavouras – que tem como direção os setores comerciais e
de serviços no urbano. No entanto, esse fluxo pode não ser direto, ou seja, com origem e
destino num mesmo município; às vezes ele é desviado para outros centros comerciais, em
municípios próximos. É o que acontece com a mão-de-obra volante, utilizada nas lavouras,
que vem para as áreas agrícolas apenas para trabalhar, regressando, diariamente ou no final
do período de colheita, com alguma reserva financeira acumulada, que será utilizada em
seus municípios de origem.
A mão-de-obra empregada nas lavouras é, sem dúvida, o principal elo entre as
atividades agrícolas e o comércio urbano, pois é ela que absorve uma significativa parcela
do capital rural e transfere para o comércio urbano através da necessidade de consumo.
De forma mais ou menos intensa, essa população faz com que a circulação monetária, em
épocas específicas do ano (períodos de safra) seja intensificada e, com isso, percebida pelos
comerciantes locais e externos.
Além da mão-de-obra, os agricultores também representam uma classe consumidora
muito importante, no que se refere a essa circulação de capital. No entanto, freqüentemente,
o fluxo monetário, nesse caso, tem destino em grandes centros comerciais, que oferecem
uma maior variedade de artigos, conforto e qualidade, para uma população mais exigente. A
necessidade do consumo de equipamentos, máquinas agrícolas, insumos, veículos e outros
bens faz com que essa migração de capital seja justificada, embora tenhamos constatado que
os bens adquiridos nesses centros comerciais maiores não se restringem apenas aos citados.
No que se refere ao consumo urbano, tanto da mão-de-obra agrícola, quanto dos próprios proprietários rurais, duas realidades foram constatadas. Municípios como Luiz Antonio,
Jaboticabal e Louveira apresentam uma forte corrente migratória de recursos financeiros,
com destino aos centros comerciais vizinhos, enquanto que em Araraquara e Santo Antonio
do Jardim, por razões diferentes, esse fluxo permanece dentro dos limites municipais. O
primeiro grupo de municípios sente-se atraído por localidades economicamente mais desenvolvidas, que oferecem um amplo conjunto de bens e serviços, que pouco se parecem
com os existentes em suas cidades. Já Santo Antonio do Jardim, apesar de sofrer a mesma
atração, em relação aos centros comerciais maiores dos municípios vizinhos, procura manter
um vínculo mais forte com seu próprio núcleo comercial. Araraquara difere totalmente dos
demais, pois é um município que atrai os demais municípios menores da região, pela gama
de bens e serviços disponíveis em seu setor urbano.
A transferência de parte dos proventos financeiros gerados na agricultura, realizada
através do comércio de bens de consumo, é constante e permanente ao longo dos anos, pois,
enquanto houver mão-de-obra assalariada na agricultura, haverá consumo por parte dessa
população, e, por isso, o comércio local ou regional será o destino de significativa parcela
Ambientes
estudos de Geografia
19
dos salários dessa massa trabalhadora. É importante salientar que esse fluxo – vinculado
diretamente à economia agrícola da região – será intensificado ou reduzido, conforme a
situação econômica das safras, e tem como característica marcante o seu caráter unilateral
– rural com destino urbano.
Verificamos, porém, outro tipo de transferência de recursos financeiros e/ou iniciativas, que se caracteriza pelo seu caráter específico quanto ao seu destino e finalidade. Trata-se
dos investimentos realizados pelos produtores agrícolas nas áreas urbanas dos municípios,
investimentos estes que podem ser considerados como conseqüência das atividades econômicas rurais bem sucedidas.
São investimentos realizados pelos agricultores, principalmente nos setores comercial
e de serviços dos municípios, utilizando-se dos recursos procedentes da agricultura, quando
esta atinge condições satisfatórias, e permitem a geração de lucros que são disponibilizados
para aplicações extra-rurais. Essa situação foi constatada em todos os municípios analisados,
de forma mais intensa em uns e menor em outros, porém, o setor comercial é o principal
foco dos investidores agrícolas.
Esse fluxo de capital, entretanto, torna-se constantemente bidirecional, ou seja, após
a consolidação da atividade urbana, os recursos por ela gerados retornam à atividade rural
numa troca efetiva entre ambos os setores. No entanto, isso só é possível porque as duas
atividades (rural e urbana) são gerenciadas pelo mesmo grupo de interesse: produtores
rurais/comerciantes.
Em municípios como Santo Antonio do Jardim, Araraquara, Louveira e Jaboticabal, a aplicação no comércio urbano, realizada por produtores rurais, é bastante intensa,
determinando em alguns casos uma hegemonia rural, onde os setores urbano e agrícola são
controlados pelo mesmo grupo de pessoas.
Geralmente, são grupos familiares que ao longo dos anos foram ampliando seus
investimentos, formando importantes “domínios” dentro do contexto local. A exemplo
disso, podemos citar Araraquara, onde três importantes famílias detêm ramos de atividades
distintas dentro do município – são usineiros, donos de concessionárias de veículos e distribuidoras de combustível.
Já em Luiz Antonio, essa situação não é verificada. Com uma economia baseada
na atividade industrial (celulose e papel, e usina de açúcar e álcool) o setor terciário do
município é ignorado pelos potenciais investidores agrícolas. No entanto, essa situação
tende a se modificar, já que investidores externos têm se instalado no local, com resultados
satisfatórios, fazendo com que o poder público e a população municipal atentem para essa
questão, tomando medidas que estimulem a aplicação de recursos locais no comércio urbano
do município.
Cabe a nós destacar que, em alguns casos, a dominação ou o controle exercido pelos
produtores rurais sobre o setor urbano é tão forte e claro que eles estão presentes – ocupando
cargos de destaque – em órgãos e entidades com grande importância econômica, social e
política, chegando inclusive ao poder máximo no município – a administração municipal.
Essa situação foi verificada em todos aos municípios – Santo Antonio do Jardim, Luiz Antonio, Jaboticabal, Araraquara e Louveira – onde cargos com grande importância política
20
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
e econômica são ocupados por produtores rurais ou pessoas pertencentes a tradicionais
famílias de agricultores. Prefeitos, vereadores, diretores e outros cargos públicos, assim
como presidências de associações comerciais e entidades eram exercidas pelos produtores
agrícolas, num evidente controle sobre a situação política do local.
Procuramos ainda, em nosso trabalho, constatar o aumento da circulação monetária
nos municípios após uma safra bem sucedida, utilizando para isso os registros dos veículos
realizados anualmente, junto ao DETRAN, em cada um dos locais analisados. A utilização
desses dados nos possibilitou acompanhar a evolução da frota municipal e sua vinculação
com a produção agrícola específica.
Nos cinco municípios analisados, cada qual com suas especificidades, foi verificado
o aumento expressivo das frotas de veículos motorizados (2 e 4 rodas) nos anos imediatamente posteriores às safras-pico, o que de alguma forma representa a aquisição de veículos
utilizando-se os recursos provenientes dos setores rurais. Sabemos que outros fatores podem
interferir no aumento do número de veículos dos municípios, como a migração populacional,
que tende a transferir o veículo para o município atual de residência; ou ainda o aumento
do poder aquisitivo da população, provocado por outros setores econômicos locais como a
indústria e o comércio, porém, devemos reforçar que a coincidência é clara – crescimento
das frotas de veículos nos anos posteriores às safras-pico –, apesar desses outros elementos
interferentes.
Com os dados colhidos junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, pudemos constatar que, de maneira geral, há uma tendência de redução da oferta de empregos no setor
industrial, seja por transferência de atividades para outros setores ou por redução no número
de indústrias nos municípios. A análise e comparação com esses dados nos possibilitaram
verificar a influência de apenas um dos vários setores da economia local no aumento do
consumo urbano, exemplificada nessa pesquisa pelo número de veículos licenciados em cada
um dos municípios. Entretanto, fica difícil afirmar as causas do crescimento do número de
veículos, quando analisamos apenas a agricultura e a oferta de empregos diretos na indústria de cada município, ou seja, somente dois setores da economia formal, restando outros
elementos interferentes, aos quais não temos acesso. No entanto, nossos estudos deixam
clara a maior ou menor importância da agricultura na geração de recursos monetários, que
conforme vimos, são destinados a investimentos urbanos, rurais e pessoais, proporcionando
o crescimento econômico dos municípios.
A constatação da relação entre a agricultura local e o desenvolvimento urbano,
principalmente do setor comercial e de serviços, foi amplamente verificada e nos mostrou a
importância dos recursos gerados pela agricultura para a manutenção econômica de muitos
dos municípios estudados. A tradicional relação entre a produção rural, transferindo capital
para a área urbana, ainda é verificada atualmente, num constante fluxo monetário, intensificado nos anos em que as safras são mais rentáveis.
A mão-de-obra assalariada, seja ela volante ou fixa, é outro importante meio de
circulação do capital gerado pela agricultura, que, no entanto, tem destino incerto, já que
muitos regressam aos locais de origem após cumprirem a jornada de trabalho e investem
seus recursos nesses locais.
Ambientes
estudos de Geografia
21
O reconhecimento dessa realidade, bem como a sua conscientização pela população
e poder público, pode auxiliar o entendimento e direcionar o desenvolvimento econômico
local, pois trata-se de importantes fluxos multidirecionais de capitais, que poderão ser conduzidos pelo poder público a permanecer no município, evitando a migração, proporcionando
o crescimento de determinados setores da economia municipal.
A análise das atuais relações estabelecidas entre o rural e o urbano, ou entre a agricultura e as atividades comerciais urbanas, nos permitiu verificar a grande integração entre
os setores, numa interdependência e complementaridade forte e constante, tomando formas
concretas de dominação, verificadas nos cargos ocupados pelos agricultores/comerciantes,
em níveis econômico, social e político.
Esse trabalho procurou visualizar as atuais relações entre o campo e a cidade, no
sentido de constatar a existência da transferência de capitais e iniciativas entre os setores,
e qual a importância disso para o desenvolvimento municipal. Tal realidade, verificada
intensamente no período cafeeiro, poderia ter se modificado com a crescente urbanização
e industrialização dos municípios paulistas; no entanto, vimos que essa relação é forte e
primordial para a sustentação econômica, social e, muitas vezes, política do local. O estudo
de tais realidades, apesar de complexo, pode servir para o entendimento de tais dinâmicas,
possibilitando interferências, ou, ainda, como ponto de partida para outras pesquisas, numa
tentativa de compreender o complicado universo das relações rural-urbano.
Referências
CANO, W. Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. São Paulo: HUCITEC, 1990.
QUEIROZ, M. I. P. Do rural e do urbano no Brasil. In: SZMRECSÁNYI; QUEDA (Organizadores). Vida Rural e Mudança Social: leituras básicas de sociologia rural. São Paulo:
Editora Nacional, 1979, pp. 160-176.
SILVA, A. F. da. A relação cidade-campo: como analisá-la? Natal: Imagem Gráfica e
Editora, 1998.
GRAZIANO DA SILVA, J. et al. O Rural Paulista Muito Além do Agrícola e do Agrário,
1996 [on line]. Disponível em: <eco.unicamp.br/projetos/rurseade 1 html > Acesso em 14
abr. 1998.
POSSIBILIDADES DE APROVEITAMENTO TURÍSTICO
DA ÁREA RURAL DE CRUZ ALTA - RS
Paulo Ricardo Machado WEISSBACH
Manoel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy
Introdução
Devido ao seu intenso crescimento no final do século passado e início deste, o turismo
apresenta-se como um vetor de desenvolvimento econômico e social. Além disso, o intenso
processo de urbanização pelo qual passa a humanidade, faz com que os habitantes das cidades
rumem para locais ermos, com muita natureza, distante da atribulação do dia-a-dia. Uma
opção que se apresenta em termos de lazer é o turismo rural. Forma alternativa de turismo
e de contato direto com o verde, o turismo rural (TR) cresce como atividade econômica
em todo o mundo, representando uma possibilidade de desenvolvimento em áreas com
potencialidades específicas. O município de Cruz Alta, por apresentar tais peculiaridades,
mostra uma configuração natural e humana apta para desenvolver essa modalidade turística.
Turismo em espaço rural
Retornar à vida bucólica. Esta, com certeza, faz-se a razão primeira do turismo em
espaço rural. A urbanização massiva, associada ao estímulo dos meios de comunicação,
conduziram para uma fuga dos ambientes urbanizados. Dessa forma, ao empreender no
turismo rural, o turista busca serviços para recreação em espaço aberto, junto à natureza.
(TROPIA, 2000, p. 9). Várias são as sub-modalidades de turismo rural surgidas da imprecisão
da definição (PORTUGUEZ, 1999, p. 82), entre elas: turismo verde, turismo naturalista, de
habitação, de retorno, de estância, de montanha, agroturismo, responsável, leve, da terra.
Ou em função das práticas, pode o turismo realizado em espaço rural ser chamado de turismo ambiental, de eventos, de saúde, esportivo, náutico, eqüestre, gastronômico, histórico,
cultural, de pesca, científico, educativo e de aventura (onde se encontram atividades como
o caiaque, rafting, off road, mountain bike e caminhada, entre tantas).
Em razão disso, fica mais prudente assumir a expressão “turismo em espaço rural”,
justamente por sua amplitude, do que “turismo rural”, menos abrangente e por vezes ambígua. Distingue-se o turismo em espaço rural e o turismo rural, conforme o conjunto da
população usufrua dos rendimentos da atividade, ou seja, no primeiro, os empreendedores não
necessitam ser pessoas que vivam exclusivamente do e no campo, ao passo que o segundo
compreende àqueles que além de tirar seu sustento da área rural, vivem nela e reinvestem
em melhoria na propriedade localizada no meio rural Almeida; Blós (1997, p. 41), prefere
empregar a expressão turismo em espaço rural (TER) para a totalidade dos movimentos
turísticos efetuados no espaço rural, reservando ao TR (turismo rural) as atividades que
24
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
mais se identificam com a especificidade da vida rural, a economia e sua cultura. Assim o
TR estaria correlacionado às atividades agrárias, que emprestam à paisagem sua fisionomia
rural, diferente das áreas onde a natureza é predominante. (RODRIGUES, 2000, p. 54).
Na atualidade, a EMBRATUR (Instituto Brasileiro de Turismo), com uma preocupação maior sob o ponto de vista dos empreendedores, tem trabalhado com a seguinte definição
para o Turismo Rural, segundo Graziano da Silva et al (1998, p. 14):
Atividade multidisciplinar que se realiza no meio ambiente, fora das áreas
intensamente urbanizadas. Caracteriza-se por empresas turísticas de pequeno porte, que tem no uso da terra a atividade econômica predominante,
voltada para práticas agrícolas e pecuárias.
O turismo rural, conforme Groulleau citado por Almeida; Blós (1997, p. 43), tem
por característica marcante o fato de ser um turismo local, de território restrito, gerido pelos
próprios residentes em cinco níveis: “a) de iniciativa local; b) de gestão local; c) de impacto
local; d) marcado pelas paisagens locais e e) valorizador da cultura local.”
Há de se considerar que o TR apresenta duas marcas importantes: a primeira diz
respeito a que o seu desenvolvimento pode dar-se em zonas que não disponham de recursos
turísticos extraordinários de grande significado, e a segunda, de que a criação de postos de
trabalho não necessita de grande volume de investimento.
Desde o ponto de vista da atividade econômica, o TR apresenta-se como viabilidade
para o desenvolvimento em zonas rurais desfavorecidas. A conciliação entre a atividade
produtiva e a possibilidade de complementar a renda com a recepção de turistas, traz novo
alento aos produtores rurais. O comércio diversifica-se e dinamiza-se, a infra-estrutura
ajusta-se e melhora-se, a cultura local valoriza-se, sendo respeitadas suas bases tradicionais.
A produção caseira e artesanal, além de valorizada, traz retorno financeiro. Almeida; Blós
(1997, p. 43) complementam:
Como fator de desenvolvimento econômico-social, esta atividade promove
a geração de novos empregos, a construção de instalações receptivas apropriadas, o incentivo a pequenas e médias empresas direta ou indiretamente
relacionadas com o setor.
Assim, cabe relembrar que a crise urbana voltou os olhares para o ambiente rural, não
só como pólo antagônico à vida na cidade, mas como possibilidade de uma vida saudável.
Nesse sentido, vê-se uma re-valorização do rural. Seja pela visão idílica que o meio rural
proporciona ou pela necessidade de manter e conservar os recursos naturais, o meio rural
apresenta-se, hoje, como o locus que não se restringe à produção econômica voltada para
a geração de gêneros alimentícios e matéria-prima, mas, de mesma sorte, como o espaço
de moradia (segunda residência) e de lazer. Dessa maneira, o turismo rural traduz-se, além
da vertente econômica, sob a vertente social, em que a diversificação das atividades, no
meio rural, propicia benefícios às comunidades locais, preservando a cultura e integrando a
economia, tudo isso dentro de uma perspectiva de desenvolvimento endógeno e sustentável.
Ambientes
estudos de Geografia
25
O Município de Cruz Alta e sua inserção no contexto regional
No século XVII os bandeirantes que objetivavam expulsar os jesuítas das terras a
leste do rio Uruguai, encontraram, próximo as nascentes do rio Jacuí, uma redução próspera,
Santa Teresa, que chegou a abrigar 8.000 indígenas. Destruída a aldeia em 1637, localizada
aproximadamente a duas léguas da atual cidade de Cruz Alta, um pequeno grupo se instala
no alto de uma coxilha próximo de uma capela na frente da qual havia uma enorme cruz
de madeira. A localização e a cruz forneceram os elementos para a denominação do lugar.
Cruz Alta localiza-se aproximadamente a 341 Km de Porto Alegre, na Região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul. Com superfície de 2.432,6 Km2, sendo 79,2 Km2 na
área urbana, goza de uma relativa centralidade em relação a área estadual. A cidade situa-se
a 28° 36' 20” S e 53° 36' 34” W, assentando-se sobre a unidade geomorfológica do Planalto
arenito-basáltico. Em Cruz Alta as altitudes variam de 300 a 600 metros (média de 452 m),
sendo seu relevo composto, basicamente, por uma topografia suave, com ondulações, sob
a forma de coxilhas. (MOREIRA; COSTA,1995, p. 27).
Com clima mesotérmico super-úmido temperado, a cidade insere-se em uma faixa
com temperaturas médias de 18° a 20º C, sendo que as precipitações situam-se entre 1.500
e 1.600 mm ao ano. A localidade apresenta a alternância entre campos e mata subtropical,
onde é freqüente a presença de matas galerias (capões de mato) que estão ligadas à maior
presença de umidade. (VIEIRA,1984, p. 94; MOREIRA; COSTA, 1995 , p. 38-39).
O sítio urbano situa-se no divisor de água das bacias hidrográficas dos rios Jacuí (a
leste) e Uruguai (a oeste), entretanto o município não apresenta rios de importância, com
exceção do rio Jacuí na fronteira leste, que possui elevado potencial hidroelétrico que já
vem sendo devidamente explorado.
Cidade com vocação agrícola, Cruz Alta tem no comércio e na agro-indústria a base
de sustentação econômica, com destaque na produção de soja, milho, trigo, bovinos de corte
e de leite e de suínos. Acompanhando a modernização agrícola do país, o município incorporou novas técnicas que possibilitaram o cultivo da soja. Antes disso, o trigo já figurava
como destaque agrícola, chegando a emprestar à cidade o título de “Capital Nacional do
Trigo”. Mais recentemente, o milho vem ganhando espaço em virtude da retração do preço
da soja no mercado mundial.
Segundo levantamento estatístico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 1996, a população do município encontrava-se em 71.135 habitantes. No censo
de 2.000 o contingente populacional apresenta 71.236 habitantes, sendo a sua densidade
demográfica de 29,28 hab/ km2. Na área urbana, que representa 3,5% da área do município,
vivem 91,73% da população total.
Cruz Alta foi fundada oficialmente em 18 de agosto de 1821 (originalmente denominada de Espírito Santo de Cruz Alta). Durante muito tempo foi um local de passagem de
tropeiros. De 1821 até 1940, já completara a ligação ferroviária com os principais pontos
do estado. Na atualidade, o município de Cruz Alta ainda representa um dos maiores entrocamentos rodo-ferroviários do sul do país, com acesso pelas BR 158, BR 377 e RS 342,
todas pavimentadas.
26
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
A SETUR (Secretaria de Turismo do Estado do Rio Grande do Sul) propõe o zoneamento turístico do estado, onde o município de Cruz Alta vem compor a região central.
Esta área aparece marcada pelas influências alemãs, italianas e pela tradição gaúcha,
evidenciando uma cultura potencialmente aproveitável em termos turísticos. Adotando-se
uma outra regionalização, pode-se afirmar que o município enquadra-se dentro da unidade
regional do Planalto Médio.
Cruz Alta, como centro urbano de expressão regional, detém uma boa infra-estrutura
para o turismo receptivo, o que não impede que as demais cidades com seus potenciais
venham a dotar seus atrativos com um aparato mais compatível ao desenvolvimento da
atividade. Além disso, o desenvolvimento regional, como fruto do desenvolvimento endógeno, surge como uma possibilidade para a região em que Cruz Alta está localizada, pois
conforme Wanderley (1998, p. 34):
O turismo é a opção que mais se aproxima do paradigma do desenvolvimento endógeno sustentado, na medida em que consegue conjugar vários
elementos importantes para o desenvolvimento local e regional, como
forças sócio-econômica, institucionais e culturas locais, grande número de
pequenas e médias empresas locais ramificadas por diversos setores e subsetores, flexibilização, alto grau de multiplicação de renda local, indústria
limpa e globalização da economia local através do fluxo de valores [...].
Atingir uma situação desejável de progresso econômico e justiça social para todos
não é tarefa fácil ou de resposta imediata no município de Cruz Alta como em todo o mundo.
Sobretudo se levarmos em consideração a estrutura sócio-econômica desequilibrada em que
se encontra o Estado, como parte de um contexto maior de um mundo subdesenvolvido, onde
as atividades agropecuárias como suporte econômico mantiveram-se alheias às inovações
da revolução científica e técnica e o processo de industrialização com tecnologia avançada
foi tardio e lento. Entrementes, em caminho oposto à falta de dinamismo, as potencialidades naturais abrem-se como possibilidades se inseridas em um processo planejado de
desenvolvimento.
De certo modo, Cruz Alta ressente-se no cenário estadual da falta de uma representatividade política. Há muito tempo o município não vem sendo atendido por verbas estaduais
que fomentem o desenvolvimento em função de sua fraca participação no cenário político
do estado, seja no parlamento quanto no poder executivo. Em razão disso o município sofre
de um relativo “isolamento” que priva a população de usufruir de benefícios sociais alcançáveis a outros municípios. Há de se reconhecer, também, que falta planejamento municipal
que reforce a sua autonomia, permitindo a sua livre associação com outros municípios no
sentido de, baseados em suas peculiaridades, fazer crescer sua economia.
O turismo em Cruz Alta
Embora possua uma razoável infra-estrutura, o turismo não apresenta uma boa
demanda em Cruz Alta. Inúmeros fatores são apontados para a retração dessa atividade.
Zamberlan et al (1989, p. 157) apontam:
[...] falta em Cruz Alta um organismo que conjugue esforços no sentido
Ambientes
estudos de Geografia
27
de dinamizar as atuais fontes de turismo que são inúmeras, pois Cruz Alta
possui tradição muito grande, desde tempos remotos, que a destaca dentro
do contexto regional.
Historicamente, a cultura e o lazer do município sempre foram destaque no cenário
estadual. Sua condição de liderança político-religiosa na região do Alto-Jacuí facilitaram
este desempenho. A instalação precoce de sedes administrativas da religião católica, criação
de unidades militares, jornais e escolas, fizeram de Cruz Alta, comparativamente a outros
municípios, uma célula emanadora de poder político e prestígio. Entrementes, na atualidade,
aquela posição outrora ocupada, perde espaço e cede lugar a uma reflexão que tenha por
meta a retomada do status perdido.
Entre as iniciativas que visam a estimular a atividade turística no município, o poder
executivo, através de lei n° 428/97, sancionou medidas para a participação no Consórcio de
Desenvolvimento Sustentável da Região Planalto/Rota das Terras.
O poder municipal, através da Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo (SETUR),
procura fazer o chamamento aos turistas e visitantes através do rótulo de “Terra de Érico
Veríssimo”, pelo fato do escritor ser natural do município. Aproveita, também, uma lenda
local – Lenda da Panelinha –para apregoar que “quem bebe da água da panelinha, retorna sempre a Cruz Alta,” em referência à possibilidade de volta do visitante. Nota-se, no
entanto, que a demanda – entendida como o total de pessoas que visitam uma região e os
recursos financeiros que geram – tanto para os atrativos quanto para os eventos do município,
apresentam-se em baixa.
O município está desenvolvendo plenamente o Plano Nacional de Municipalização
do Turismo (PNMT), que em linhas gerais, descentraliza a gestão do turismo, fomentando
a atividade com base na sustentabilidade econômica, social, cultural, ambiental e política.
No sentido de integrar a comunidade em prol da implementação, verifica-se que a
Comissão Municipal de Turismo, sugerida pelo PNMT, ficou estabelecida através de lei
municipal de 12 de janeiro de 2000 (0692/00), tomando a denominação de CONTUR.
Através desta lei, o CONTUR constitui-se em um órgão consultivo no auxílio da administração pública municipal para a promoção do turismo. Por meio do CONTUR, será criado
o FMTCA (Fundo Municipal de Turismo de Cruz Alta) que captará recursos para as ações
do próprio órgão.
Possibilidades para um turismo rural em Cruz Alta
Infra-estrutura de acesso
Em qualquer economia, principalmente a de mercado, os sistemas viários são fatores
importantes para a circulação de pessoas, mercadorias e informação, refletindo, inclusive,
o grau de desenvolvimento econômico em determinados casos. O sistema viário de Cruz
Alta passou, conforme o momento histórico-econômico, por ciclos, que se iniciaram com
os caminhos das tropas de gado – estradas rústicas de chão – passaram pelas ferrovias – que
transportavam pessoas e um grande volume de carga -, até chegar nas ágeis rodovias que
28
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
interligam vários pontos. Devido à ausência de corpos d’água consideráveis, os transportes
lacustre e fluvial nunca foram possíveis.
Através das rodovias dá-se a ligação do município com o restante do estado e do
país. Dessa maneira considera-se que Cruz Alta está bem servida de rodovias, permitindo
que o seu acesso seja fácil em todas as direções. Entretanto, considerando os fluxos mais
freqüentes de mercadorias e de pessoas, há um certo isolamento.
Quanto à malha viária urbana, nota-se que é deficiente. São poucas as ruas e avenidas
asfaltadas em relação a área urbana. Além disso, o capeamento existente apresenta problemas
de durabilidade, já que foi realizado tendo por base o calçamento pré-existente, o que exige
periódicos reparos. No entanto, de modo geral, a circulação é boa, não havendo dificuldades
na locomoção. As estradas vicinais, porém, que levam às áreas rurais, são todas de chão
batido, e, agravado pelo clima úmido e chuvoso, obrigam a freqüentes obras de reparação
durante o inverno, período em que a pluviosidade se intensifica
Com respeito ao transporte aéreo, a cidade dispõe de um aeroporto com pista de
1.300 metros e de um aeroclube com três pistas de 800, 600 e 500 metros, todas de grama.
O aeroporto está desativado, enquanto o aeroclube opera somente com aviões agrícolas. O
acesso aéreo mais próximo localiza-se em Santo Ângelo a 92 Km.
Equipamentos turísticos
Como parte do atual equipamento turístico, o município apresenta os seguintes hotéis
e pousadas: Hotel Santa Helena, Pousada Santa Helena, Hotel Fazenda, Hotel Steibrenner,
Hotel Califórnia, Hotel Linassi, Hotel dos Viajantes, Hotel Cerezer, Rosmer Palace e Pousada
do Estudante os quais perfazem um total de 437 leitos.
Quanto as agências de turismo, vê-se que o município é bem servido por essas empresas no que tange a quantidade. No aspecto qualitativo deixam muito a desejar, pois na
maioria dos casos, limitam-se a ofertar excursões. As agências de turismo do município são
as seguintes: Luciane turismo, Viagens Dantour, Águia Sul Turismo, Beto Turismo, Cruz
Alta Turismo, Guia de Luz, Porto Brasil, Ruwer e Cia Ltda, Mano Tour, Merlo Bus, Pampa
Turismo, Neto Turismo, Varig-Rio Sul, Discovery Tour, Salvaturi.
Verifica-se que em sua maioria as agências turísticas desconhecem ou ressentem-se de
uma maior divulgação do consórcio Rota das Terras, revelando que o projeto necessita angariar uma maior participação dos agentes turísticos do município (poder público, comunidade
e empresas turísticas) mesmo porque são as agências que “vendem” os atrativos turísticos.
Equipamentos de apoio
O município possui 08 agências bancárias, um bom número de restaurantes, em
geral acolhedores, confortáveis e limpos. Destaque para o fornecimento de massas (cozinha
italiana) e o tradicional churrasco. A noite de Cruz Alta carece de ambientes de qualidade
e diversificados em termos de bares e boates, o que provoca a fuga de muitas pessoas para
Ambientes
estudos de Geografia
29
cidades vizinhas como Ijuí e Panambi, relativamente próximas (em torno de quarenta quilômetros).
Recursos turísticos
A seguir relacionam-se alguns recursos turísticos do ambiente rural de Cruz Alta,
não sem antes enfatizar que embora os elementos naturais sejam marcantes, estes não são
os únicos levados em consideração na avaliação de um recurso turístico, visto que a ação
antrópica dota as áreas rurais de várias manifestações culturais que, via de regra, atraem
visitantes em razão de sua singularidade.
- Lageado da Cruz, Balneário Novo Horizonte, Propriedade do Sr Joceli Jappe,
Complexo turístico Fazenda do Pilão, Parque holístico São Francisco, Propriedade
do Sr Francisco Knipoff, Propriedade do Sr Sadi Santana e o Hotel-fazenda.
Estes recursos não esgotam o sem-número de estabelecimentos onde o turismo rural
pode ser realizado.
Avaliação das potencialidades turísticas
Após as considerações sobre a infra-estrutura turística existente, os recursos e os
equipamentos, e tomando-se por referência as orientações de Ferreira Mendes (1994,p.37),
propomos a seguinte avaliação das potencialidades de Cruz Alta, em termos de Turismo
Rural, conforme tabela 1.
O turismo, na atualidade, não pode ser visto como algo isolado territorialmente. Assim
a sua regionalização através de rotas integradas, fazem com que o turista tenha diversificação
nos atrativos. Neste sentido a Rota das Terras torna-se um exemplo positivo, pois mais de
vinte municípios, enfrentando as adversidades em conjunto, potencializam possibilidades.
Sendo a instância executiva mais próxima do povo, a prefeitura torna-se mais sensível aos anseios imediatos populares, de forma que as ações do poder público responderão
diretamente à parte interessada, tornando clara a relevância do município na tarefa executiva.
Coelho (1997, p. 47), expõe:
O município é, hoje, uma subdivisão territorial com funções políticoadministrativas para fins de desempenhar funções próprias de governo e
da gestão pública local. Com sua capacidade de autogoverno (como entidade administrativa que se orienta por si mesma respeitando os preceitos
constitucionais), o município traz, no contexto geral, uma nova visão que
está se inserindo radicalmente no debate municipal, isto é, uma vertente
municipalista (movimento que visa ampliar a autonomia municipal através
do fortalecimento do poder político da comuna e da revitalização da vida financeira local) que prega necessariamente um novo perfil para o município.
Esse fortalecimento do poder decisório, em termos turísticos, encontra respaldo
através do PNMT. Com o PNMT todo o município que desejar ter atividade turística como
um vetor de desenvolvimento deverá municipalizá-la, criar um órgão específico para tal –
Conselho Municipal de Turismo – com o apoio técnico dos governos estadual e federal.
30
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Tabela 1 - Avaliação das potencialidades turísticas de Cruz Alta
Organizada por Paulo Ricardo Weissbach
Turismo, desenvolvimento e integração regional
O turismo pode ter papel positivo no desenvolvimento e na diversificação da economia em áreas rurais, onde as atividades tradicionais como a agricultura estão em declínio, a
população está diminuindo e os salários são baixos. Sendo considerado um criador de renda
Ambientes
estudos de Geografia
31
e de ocupações, um promotor de infra-estrutura e um meio de intercâmbio entre o rural e o
urbano, o turismo mostra-se como a chave do desenvolvimento local. O desenvolvimento
via turismo, com a finalidade de que não seja restrito ou circunscrito a uma pequena parcela
do espaço, deve procurar a integração regional. A região, atuando complementarmente e em
conjunto, ganha força para enfrentar seus desafios. Através do oferecimento de produtos
diferenciados, próprios do local, caminha-se em direção contrária à homogeneização – prática usual no turismo de massa em tempos de globalização. Enquanto o turismo em termos
globais procurar homogeinizar formas de consumo, o turismo com base local afirma-se por
sua singularidade e unicidade. Isto quer dizer que a relação turismo rural e desenvolvimento
local pressupõe a utilização plena dos recursos endógenos da localidade e de acordo com
a realidade regional.
Atrativos no turismo rural
Nada mais peculiar no TR do que oferecer refeições compostas de pratos típicos.
Um churrasco de carne bovina ou ovina, lingüiça caseira, queijo colonial, salame, arroz de
carreteiro com polenta frita ou mandioca frita, são algumas das variedades gastronômicas
que podem ser ofertadas. A variedade e a qualidade, o esmero no preparo e a apresentação
são pontos a considerar. A refeição será mais apreciada se em sua elaboração forem utilizados
produtos da região e se, preferencialmente, forem originários do próprio local de visitação.
Então é de se prever a existência de hortas, pomares e criação de animais que servirão de
matéria-prima às refeições. O turista, em geral oriundo do meio urbano, valoriza os produtos
naturais e feitos em pequena escala, que fogem da produção em massa tão característica dos
meios altamente urbanizados. Uma comida caseira feita em um fogão a lenha utilizandose panela de barro ou de ferro terá a sua singularidade e sabor apreciados pelos visitantes.
A venda de produtos fabricados artesanalmente são outro atrativo. Durante a visitação, ou mesmo antes de ir embora, o turista poderá querer levar uma lembrança para casa.
Além de se constituir em outra fonte de renda para o empreendedor, o ‘souvenir’ cumpre
o papel de realizar um marketing velado da propriedade ou atrativo. Desta maneira, alguns
cuidados são necessários, como a oferta de produtos comestíveis naturais e saudáveis (no
caso de alimentos – mel, charque, rapaduras, queijos, salames, leite e derivados, carnes,
frutas, compotas, cucas, sucos, melado, etc.) e lembranças elaboradas de forma caseira e
artesanal. Preferência deve ser dada para objetos de uso local (tais como arreios ou selaria,
cuias, bombas de chimarrão, ponchos, etc), confeccionados com matéria-prima da região e
por pessoas da comunidade. Cobertores de lã, utensílios de barro ou de couro, artefatos de
pedra ou madeira, utensílios usados na vida diária, podem servir para uso próprio do turista
ou usados como objetos de decoração.
Outra viabilidade no tocante a atrativos no ambiente rural remete à instalação de
museus ao ar livre. A reunião de objetos e a sua disposição de maneira a dar um aspecto de
realidade chama a atenção dos visitantes. O importante é que os museus sejam compostos
por peças que não sejam fruto dos avanços tecnológicos recentes, ou seja, devem guardar
um aspecto “retrô”. Na implementação de museus ao ar livre são necessários guias bem
32
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
informados e/ou placas esclarecedoras quanto à utilidade e destinação das peças, podendo
fazer referência a sua capacidade produtiva em relação aos instrumentos atuais. No entanto,
os museus tradicionais, com a exposição de peças em ambientes fechados, também são possíveis. Nesse caso a ordenação e identificação das peças deve ser mais rigorosa, com maiores
detalhes e expostas em locais adaptados como antigos galpões, estábulos ou casarões. Em
Cruz Alta esses tipos de atrativos apresentam uma boa possibilidade pois existe farto acervo
em fazendas, sítios ou estabelecimentos rurais do município.
Um outro atrativo a explorar pode constituir-se no local de hospedagem do turista.
Desde os tradicionais hotéis-fazenda (semelhantes aos hotéis tradicionais com a diferença
de estarem localizados na zona rural), aos fazenda-hotéis (estabelecimentos localizados em
uma propriedade que continua as suas atividades produtivas), passando pela hospedagem
domiciliar (onde o visitante pernoita e faz as refeições na casa da família rural), camping,
pousadas rurais (a habitação é alugada nos finais de semana ou pelo período desejado pelo
turista).
Alguns atrativos podem ser agrupados em determinadas propriedades onde a variedade seja um fator de atenção para o turista, ou oferecidos, isoladamente, conforme seja
a demanda. Cita-se, por exemplo: Trato de animais (dar de comer, banho, tosa, tosquia,
vacinação, marcação); ordenha; coleta de ovos; colheita, plantio, adubação (que pode ser
caracterizado por uma modalidade turística desenvolvida em espaço rural, o agroturismo);
manejo de horta; fabricação de queijos, salame, lingüiça, vinho colonial, manteiga; confecção de comidas e doces; pescaria (seja aquela feita em riachos ou córregos, quanto aquela
realizada em criatórios, e que habitualmente são denominados de pesque-pague e tem
demonstrado significativa agregação de renda ao proprietário) ; passeio a cavalo, charrete,
carroça, carro de boi; passeio de caiaque, pedalinho ou barco; trilhas a pé, a cavalo, de
bicicleta (guardam o conveniente de se realizarem ao ar livre, em contato com a natureza,
porém requerem utilização racional); banho em riachos, açudes, piscinas naturais (o turista
tem predileção por locais que disponham de massas líquidas para banho ou atividades de
lazer); soltar pipa; brincadeiras e jogos infantis (da cultura local); curso de artesanato e de
culinária; apresentação de grupos folclóricos (danças regionais como a chula, o pezinho, a
cana-verde, o balaio, o tatu, etc).
Destaca-se, ainda, a importância de valorizar e estimular os talentos locais, tais
como músicos, dançarinos, trovadores, pintores, escultores, etc. Artistas nativos poderão
ser utilizados como atração e enriquecimento do negócio turístico, além de empregar a
mão-de-obra local.
Vale apontar que a rentabilidade de um empreendimento turístico rural está na razão direta do grau de satisfação que o turista terá ao visitar um local. Satisfeito, o visitante
representará um agente multiplicador na divulgação do local, de maneira que, qualidade,
variedade e originalidade são objetivos a serem perseguidos obstinadamente.
Então o planejamento turístico para o aproveitamento da área rural de Cruz Alta
deve prever várias etapas, como o diagnóstico (exame dos componentes do turismo, tanto
dos existentes quando dos possíveis); estabelecimento de objetivos e metas (determinação
do que se quer atingir e os meios para atingi-lo); implantação do plano; acompanhamento
dos resultados.
Ambientes
estudos de Geografia
33
Nesse planejamento há de se prever a participação ativa do poder público, principalmente da secretaria de turismo do município.
Turismo rural em Cruz Alta
Se a crescente valorização do ambiente, da paisagem, do rústico, da
história, da tradição e do sossego sustenta oportunidades de turismo e de
lazer no espaço rural, da montanha à planície, do interior ao litoral, a sua
concretização está condicionada pela presença de população permanente,
garantia da tradição e da preservação do meio e prestadora dos serviços
requeridos. (CAVACO, 2000, p. 89).
A promoção do turismo rural está sendo considerada pelos planos de desenvolvimento rural como uma das oportunidades mais destacadas entre as diversas alternativas de
diversificação produtiva. Entretanto, apesar do interesse que tem despertado, o turismo rural
não pode ser considerado como a solução geral para todos os espaços rurais, não devendo
ser tratado como as zonas litorâneas, onde a massificação tem sido a chave do modelo de
exploração. No TR a oferta não deve limitar-se à mera restauração dos ambientes e alojamento dos visitantes, mas aproveitar os recursos naturais e paisagísticos existentes e a
riqueza do patrimônio rural/cultural, que constituem-se em seu fator de diferenciação, pois
as pessoas que procuram pelo TR buscam originalidade e genuinidade, serviços diversos
que propiciem repouso e produção local de vários gêneros.
Para que esta atividade logre sucesso em Cruz Alta , julga-se importante atentar para
que as características a seguir sejam adotadas ou preservadas:
- Atenção personalizada;
- Convívio com a população local;
- Empreendimento delimitado em um entorno natural e/ou produtivo;
- Participação nas tarefas rurais;
- Passeios com guias;
- Reconhecimento da flora, fauna, e demais particularidades do estabelecimento;
- Gastronomia típica;
- Atividades ligadas ao meio rural (cavalgada, caça, pesca, etc).
Os empreendedores, público e privado, do TR em Cruz Alta poderão verificar que
através do estabelecimento deste, embora aumente a oferta de destinos turísticos, a rede
de serviço não necessita de muitos investimentos, mesmo porque a rede de infra-estrutura
turística já serve a outros atrativos existentes.
A geração de emprego torna-se um dos fatores de atratividade para as comunidades
rurais. Considerando-se que os empregos diretos normalmente não exigem mão-de-obra com
grande qualificação e a remuneração não é alta, as populações rurais podem ser amplamente
empregadas, evitando-se, assim, a saída de pessoas do meio rural.
A população rural pode se beneficiar de sua tradicional hospitalidade para melhor
34
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
acolher o turista, considerando-se que o tratamento é um dos quesitos mais considerados
no serviço turístico. O aspecto do contato direto com o proprietário e o meio físico faz
com que o TR seja viável, especialmente, para pequenas empresas, nas quais se percebem
nitidamente os valores culturais rurais, em contraposição aos urbanos e às expectativas dos
rurícolas em relação ao constante processo de modernização. Um dos aspectos do TR que
tem encontrado boa receptividade por parte dos turistas diz respeito ao atendimento familiar
no atrativo. Esse quesito pode ser viabilizado em pequenos estabelecimentos e gozar de
amplo prestígio como fruto da costumeira hospitalidade do homem rural.
Considerações conclusivas
O turismo está sendo apontado por muitos especialistas como a grande solução para o
desemprego que vinga em dias atuais. Exagero a parte, a atividade tem significado uma fonte
alternativa de emprego de mão-de-obra, na medida que induz a criação de novos postos de
trabalho diretos na área de lazer e, indiretos, em outras atividades subsidiárias ao turismo,
como o transporte, o comércio, etc. Afora isso, os meios de comunicação, aproximando
mais as pessoas e os lugares, têm oportunizado a criação de novas necessidades em razão
do contato com povos de hábitos diferentes. Viajar, dessa forma, tem sido encarado como
uma necessidade. Eis porque, dentro do rol das motivações turísticas, ao desejo de evasão
acresceu-se a necessidade de evasão, associada ao espírito de aventura do ser humano,
aquisição de status, aquisição de cultura e motivos comerciais.
Como um segmento do turismo, o turismo rural apresenta inúmeras vantagens e que
o colocam como uma boa perspectiva em municípios com áreas rurais que disponham de
algum atrativo (mesmo porque o TR não exige atrativos significativos).
Verificou-se que o município de Cruz Alta tem amplas chances de empreender no
TR. Sua diversidade paisagística e cultural remetem a atividade para um quadro de possibilidades verificáveis a médio e longo prazos. Autores que estudaram o Rio Grande do Sul
e a região noroeste do Estado também são unânimes em apontar o potencial do município.
A situação da atividade turística no município é razoável, pois prevalece o turismo
emissivo e os atrativos existentes carecem de uma maior divulgação. No entanto, vários
passos já foram dados para a implementação turística, entre eles o cadastramento junto a
EMBRATUR, a criação do Conselho Municipal de Turismo e a própria municipalização
do turismo.
Cruz Alta, não obstante as várias propriedades aptas a desenvolver o TR, já manifesta
uma incipiente incursão pela modalidade turística.
Convém enfatizar que, com a finalidade de ser implantado em Cruz Alta, o TR deve
reafirmar certos aspectos que permeiam a existência da atividade como:
- O TR não é destinado ao turismo de massa, sendo o atendimento personalizado em
um ambiente tranqüilo uma de suas marcas;
- O TR sofre com a questão da alta e baixa temporadas, o que faz nascer uma preocupação adicional com a demanda;
O turismo rural apresenta-se como uma maneira inteligente de divulgar e preservar
Ambientes
estudos de Geografia
35
as belezas e riquezas locais. Se bem estruturado pode ser decisivo para o desenvolvimento
econômico e social, bastando uma ação planejada e com objetivos bem definidos. Sabe-se
que o turismo, precedido de um planejamento, proporciona receitas fiscais, redistribuição de
renda, geração de empregos, incremento industrial e de serviços, além de fixar o homem ao
seu meio, isso sem contar a integração e divulgação cultural, o acréscimo de atividades de
lazer, a valorização do patrimônio histórico e a proteção ambiental. A observância da infraestrutura necessária, os impactos positivos e negativos e o futuro da atividade são pontos de
passagem obrigatória dos planejadores. Significa pensar o espaço segundo Milton Santos,
onde a psicosfera antecipa-se à tecnosfera, ou seja, raciocinar primeiramente em termos de
valorização simbólica dos lugares. Em outras palavras é administrar os ambientes, recursos
e a comunidade receptora com a finalidade de atender às necessidades econômicas e sociais,
preservando a cultura e o meio ambiente.
Finalmente, podemos afirmar que a criação de estratégias de atração de investimentos turísticos fortalecerá e dinamizará o setor no município. Com este fim, campanhas de
divulgação de imagem e medidas de incentivo podem ser adotadas. Para que vingue tal
propósito, urge que a imagem de desenvolvimento integrado seja aceita pelos investidores,
no que um plano regional de turismo, seria um excelente motivador para os empresários
do setor turístico.
Referências
ALMEIDA, Joaquim A.; BLÓS, Wladimir. Turismo e desenvolvimento em espaço rural.
Revista Ciência e Ambiente, Santa Maria, n. 15, p.31-49,1997.
CAVACO, Carminda. Turismo, comércio e desenvolvimento rural. In ALMEIDA, Joaquim
A. e RIEDL, Mário (Orgs). Turismo rural: Ecologia, lazer e desenvolvimento. Bauru:
EDUCS, 2000, p. 69-94.
COELHO, João É. L. Processos sócio-políticos no contexto municipal na perspectiva do
desenvolvimento regional. (1988-1996). Revista Perspectiva: Erechim, v. 21, n. 74, p.
43-49, 1997.
FERREIRA MENDES, J. L. Ordenamento turístico do território nacional. Contributo para
uma dinâmica de actuação. Revista Científica do Instituto Nacional de Formação Turística, Estoril, n. 0, 1º Sem 95, p. 32-40, 1994.
GRAZIANO DA SILVA, José; VILARINHO, Carlyle; DALE, Paul J. Turismo em áreas
rurais: suas possibilidades e limitações no Brasil. In: ALMEIDA, Joaquim A. et al. (orgs).
Turismo rural e desenvolvimento sustentável. UFSM: Santa Maria, 1998, p.12-18.
MOREIRA, Igor; COSTA, Rogério H. Espaço & sociedade no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1995. 109p.
PORTUGUEZ, Anderson Pereira. Agroturismo e desenvolvimento regional. São Paulo:
Hucitec, 1999. 127p.
RODRIGUES, Adyr B.Turismo rural no Brasil – Ensaio de uma tipologia. In: ALMEIDA,
36
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Joaquim A. e RIEDL, Mário (orgs). Turismo Rural: Ecologia, lazer e desenvolvimento.
Bauru: EDUSC, 2000, p. 51-68.
TROPIA, Fátima. Turismo no meio rural. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 75p.
VIEIRA, Eurípedes F. Rio Grande do Sul. Geografia física e vegetação. Porto Alegre:
Sagra, 1984. 183p.
WANDERLEY, Lilian de L. Litoral sul de Sergipe: Uma proposta de proteção ambiental
e desenvolvimento sustentável. 1998. 234f. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de
Geociências e Ciências Exatas, UNESP, Rio Claro, 1998.
ZAMBERLAN, Jurandir; BAIOCCHI, Mário; FLORÃO, Santo R. S. Cruz Alta: As perspectivas do desenvolvimento. Cruz Alta: APROCRUZ, 1989. 284p.
LIXO: FATO AMBIENTAL DA MODERNIDADE
Elias Antônio VIEIRA
Manuel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy
Introdução
O presente artigo tem por objetivo contribuir para a reflexão sobre a questão ambiental
do resíduo/lixo enquanto produto residual da Era Moderna, em particular, do modelo de
produção e consumo de cunho capitalista que passou a predominar.
O advento desse período histórico-econômico-social, que também poder-se-ia denominar Modernidade, é considerado nos diversos estudos teóricos analisados como uma
marca importante da intensificação da problemática dos resíduos e do lixo. Dessa época em
diante, as quantidades e os volumes dos detritos gerados viram-se contínuas, crescentes e,
em muitos casos, gigantescas. A composição e as características tornaram-se diversificadas
e difíceis de serem tratadas pela incorporação de novos resíduos cada vez mais estáveis
ante a decomposição. Os impactos ambientais que eles originam passaram a constantes.
Cumpre salientar que não há um só conceito e nem sempre existe concordância na
literatura, para caracterizar os materiais que resultam do uso e consumo de bens e serviços
que as pessoas denominam simplesmente como lixo. Assim, o uso do vocábulo composto
resíduo/lixo justifica-se porque, apenas, o termo lixo, não é adequado para nomear a quantidade e diversidade, em peso, tamanho, forma, composição etc. dos objetos que, nas últimas
décadas, diária e crescentemente, são gerados no cotidiano da população, seja no lar, no
trabalho ou no usufruto do lazer.
Pode-se constatar termo lixo foi evoluindo através do tempo; inicialmente surgiu
para denominar as cinzas que resultavam do processo pelo qual o fogo era utilizado pelas
antigas civilizações, com a finalidade de destruição dos resíduos que sobravam das atividades humanas. Desse modo, percebe-se que não se justifica chamar de cinza a materiais
ou objetos que não foram incinerados e jogados fora, tais como: utensílios domésticos,
roupas, jornais, revistas, listas telefônicas e outro objetos que, por diversas razões, não mais
interessam aos usuários. A listagem de bens transformados em resíduo/lixo inclui, também,
volantes de propaganda, papéis e correspondências, embalagens (papel, papelão, plástico,
metal, vidro etc.), papel de embrulho, fraldas descartáveis, remédios vencidos, lâmpadas,
pilhas, cascas de frutas, legumes, restos de alimentos entre outros objetos. Ás vezes estes
materiais são indevidamente incinerados em terreno baldio, lixão etc. e aí sim suas cinzas
poderiam ser denominadas de lixo.
Podemos concluir, que o termo resíduo foi o mais apropriado para identificar a situação
em que esses objetos se encontram, enquanto a palavra lixo, por sua vez, ser mais adequada
para designar a sujeira miúda, resultante do asseio dos locais, onde são desenvolvidas as
atividades humanas.
38
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Modernidade e modelo de produção e consumo capitalistas
Reportando-nos à Sociedade Moderna, também conhecida como Sociedade Industrial,
percebemos que as relações sociais estão inseridas num processo histórico, alicerçado em
um conjunto de valores técnico-científicos, econômicos, financeiros, culturais e políticos.
Na maior parte do mundo seu eixo central é o modelo de produção e consumo capitalista MPCC, que vigora a quase duzentos anos, de forma dinâmica.
O embrião deste modelo evoluiu da Idade Moderna, para a Idade Contemporânea e
parece continuar para depois do ano 2002.
O estilo de vida e os costumes então adotados, estabeleceram a espacialização da
produção, propiciaram novas modalidades de intercâmbio comercial e de relações entre as
pessoas, instituições, empresas e nações; enfim desenhou caminhos e etapas, marcadas pela
transformação da natureza e a geração de problemas ambientais conseqëntes, em um ritmo
constante e crescente. A evolução do modelo antes citado e o seu exercício de modo hegemônico, forneceram condições para que, apenas um reduzido número de pessoas pudesse
usufruir as vantagens propiciadas pelo avanço técnico-produtivo, privilégio nascido junto
com o capitalismo o industrial, reproduzido e ampliado até a atualidade.
Cumpre destacar que, a maneira pela qual o MPCC está estruturado impõe relações
socioeconômicas e políticas desiguais, bem como desencadeia impactos ambientais de
diferentes proporções e em diversas situações e escalas geográficas.
No assunto da desigualdade, por exemplo, o MPCC oferece amplas condições de
multiplicar a riqueza e o poder às elites dominantes e impõe situação de pobreza, dependência
financeira, tecnológica e poluição às massas pobres. O termo elite para as finalidades desse
trabalho refere-se a grupos e indivíduos que se encontram no ápice das diversas instituições
e atividades humanas sociais, políticas, econômicas e culturais. O vocábulo massa designa
a maioria da população que não ocupa posições de alto prestígio ou poder, ou educação, ou
situação econômica (GERMANI,1974).
Na questão ambiental, a voracidade na produção de mercadorias e o ritmo veloz que
se imprime ao consumo, contrastam com o desinteresse e a lentidão com os quais age para
solucionar os problemas ambientais que acarretam em diversas partes do planeta os processos de produção e consumo desenvolvidos em desacordo e/ou oposição com os interesses
e necessidades do ambiente.
A constatação do caráter de mudança, no tempo e no espaço, das propriedades do
MPCC não foi suficiente para que chegássemos a uma visão exata, deste sistema técnicoprodutivo, nem menos, ainda, para ajustar seu funcionamento às novas exigências ambientais.
Para atingir sua especificidade, também, não bastou associar sua capacidade de consumir
matérias primas e energia, produzir mercadorias, estimular o crescimento das cidades, criar
infra-estruturas e, em especial, de gerar resíduo/lixo em grandes quantidades. Foi preciso
conhecer as funções, a finalidade do MPCC, pois, segundo o princípio dialético, as propriedades mudam, mas as qualidades dos objetos não desaparecem.
A substituição das atividades exercidas pelos operários, agora pela máquina, por
exemplo, depois, da máquina pela máquina, foram propriedades que deixaram de existir
Ambientes
estudos de Geografia
39
ou sofreram modificações, mas o MPCC em si, não. Ao contrário, sua função essencial, a
de produzir cada vez mais aos menores custos para obter lucros crescentes, tornou-se ainda
numa premissa vigente.
Para Triviños (1987, p. 67)
a quantidade e a qualidade estão unidas e são interdependentes. “[...] a
mudança da qualidade depende, em determinado momento, da mudança
da quantidade”. Diante disso verificou-se que, enquanto a quantidade
de mudanças estiver dentro dos limites da qualidade, do padrão de propriedade, o MPCC continuará sendo o que é. O exemplo do autor antes
citado ilustra bem esta situação: “a água entre 0°C e 100°C conserva sua
qualidade. [...] Mas rompendo-se, à medida da temperatura da água, o
padrão ferve e transforma-se em vapor, que é outra substância com propriedades diferentes.
Percebe-se, então, que o MPCC só mudará quando sua propriedade fundamental,
a de produzir mercadorias em grande escala e obter lucros em quantidades crescentes, aumentar quantitativamente, a ponto de romperem seus próprios limites. Porém, a realidade
tem demonstrado, entretanto, que não é possível chegar a um grau tão intenso no uso dessa
propriedade, uma vez que a exploração, até a exaustão ou anterior a isso, dos elementos da
Natureza compromete não só a continuidade do MPCC, mas o próprio equilíbrio da Terra.
Logo, pode-se concluir que, apesar de sua característica estratégica, a capacidade do ambiente para suportar impactos, ainda não foi compreendida nem incorporada, como parte
do interesse econômico do MPCC.
Por esse motivo, verifica-se que a adoção, assimilação e implementação dos conceitos educação e consciência ambiental, desenvolvimento sustentável, produção limpa e
princípio poluidor pagador, entre outros, reafirmados por intermédio de diversas Conferências da Organização das Nações Unidas que deliberam sobre as regras da ordem ambiental
internacional, nos moldes em que se apresentam, são providências que estão dentro dos
limites do MPCC e, portanto, são insuficientes para promover a ruptura necessária as suas
mudanças qualitativas.
Quanto ao ambiente, o equilíbrio estabelecido entre a Sociedade e a Natureza deixou
de existir quando o homem passou a fabricar, por meios técnicos, um número cada vez maior
e mais diversificado de produtos. A mais-valia tornou-se um objetivo cada vez mais a ser
perseguido. O aparecimento do modo de produção industrial significou o divórcio definitivo
das relações do Homem com a Natureza. A magnitude da separação foi tão grande que as
gerações das últimas décadas do século XX e dos primeiros anos do século XXI encontram-se
em meio a problemas ambientais, originados em suas amplas e complexas atividades laborais.
Estes argumentos podem ser validados, não só pela observação das implicações da
destruição da camada de ozônio, o efeito estufa, a chuva ácida, a contaminação da água, a
poluição sonora e visual e suas perversas conseqüências, entre outras, mas, em particular,
pelos problemas ambientais ocasionados pelo resíduo / lixo.
Como já foi acentuado, o cotidiano da humanidade foi transformado e organizado
com base em objetivos da indústria e de suas tecnologias, que mediante o bom emprego de
estratégias de persuasão criam necessidades, incutem gostos e induzem ao consumo, para
40
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
atender aos interesses da produção de mercadorias e serviços e da acumulação do lucro.
Todavia, ao lado de usufruir benefícios a sociedade, vive, de maneira acentuada, o dilema
das alterações negativas na qualidade do ambiente, cujas soluções, do ponto de vista corretivo, dependem de grandes somas financeiras em curto prazo e do ponto de vista preventivo,
constitui-se em uma discussão que envolve condutas motivadas por necessidades e interesses,
muitas vezes contraditórios.
Efetivamente, não podemos refutar a idéia, também aludida, de que estamos sacrificando a maioria dos indivíduos, para satisfazer um pequeno grupo de privilegiados e
suas extravagâncias, tais como os donos das grandes corporações industriais, comerciais,
financeiras e agropecuárias. Ainda que tais circunstâncias estejam presentes, pressupõe-se
que as formas de produção, organização e uso do espaço geográfico de maneira a atender
o interesse de todos, têm chances de acontecer, quando houver, não só o conhecimento de
regras e preceitos éticos ambientais, mas, sobretudo quando se desenvolver uma efetiva
percepção da necessidade espontânea de praticá-los.
Como se isso não bastasse, observa-se que a tentativa de minimizar os problemas
ambientais é estabelecida por meio de consensos em torno da ordem ambiental internacional.
Tais consensos são deliberados em conferências e acordos, geralmente entre os países mais
industrializados, cujas propostas são de difícil viabilização prática, nas economias pobres,
e nem sempre atingem o âmago da questão e o interesse das maiorias.
Verifica-se, também, pelo menos na realidade brasileira, que as políticas públicas
ambientais seguem, mais ou menos, de cima para baixo, o caminhar das iniciativas que
ocorrem em nível federal, estadual e, depois, municipal. Estas, por sua vez, freqüentemente
obedecem a ditames internacionais que embutem valores da sociedade moderna, em especial,
quanto ao manejo e gerenciamento do resíduo/lixo e ao monitoramento ou mitigação dos
problemas por ele acarretados.
Resíduo/lixo
A problemática do resíduo / lixo é compartilhada por profissionais de diferentes áreas
e, portanto, sua abordagem e fundamentação comportam múltiplos ângulos e dizem respeito
a realidades espaciais e socioeconômicas que abrangem diversas escalas geográficas.
Existem idéias que tentam conciliar desenvolvimento com proteção ambiental. Outras buscam encontrar alternativas sobre a continuidade do aumento do uso de energia ou
a tolerância dos problemas ambientais. Há, também, as que se preocupam em interromper
o dano ao ambiente pela mudança do comportamento humano. Esta, a nosso ver, é a que
melhor resultado poderá proporcionar para elevar as condições sócio-ambientais no planeta.
Constatamos, entretanto que os interesses de produzir mercadorias, acumular bens, lucro e
riqueza material prosseguem acima de qualquer dilema ambiental.
Porém, o procedimento que acabamos de mencionar, em nossa opinião, poderá sofrer
mudanças se considerarmos que os dados relativos à classificação, a geração, a composição,
a destinação e os impactos do resíduo/lixo sinalizaram que tais objetos e rejeitos podem ser
Ambientes
estudos de Geografia
41
avaliados, como um dos maiores problemas urbanos deste século.
O acréscimo da produção, para atender as demandas provocadas pelo aumento da
população e do consumo, considera-se como o principal motivo da degradação ambiental
nas cidades. Mas não é só isso. A tecnologia tem contribuído para que se introduza algo
mais que a sim0ples adaptação do homem ao meio: a “inovação pela inovação”, as “sofisticações” encontradas em muitos ambientes, mormente, nos de luxo (BRANCO, 1987, p. 2).
A questão do resíduo/lixo também está relacionada à cultura do consumo que atende às
metas e os interesses de crescimento constante do MPCC. Desse modo, modificação técnica
e tecnológica, assim como a simples maquiagem dos produtos, são concebidas com vistas
a chamar a atenção, proporcionar conforto e praticidade. Mas, ao mesmo tempo, aumenta
o consumo, a quantidade de produtos descartáveis e não degradáveis e, por conseguinte, o
volume de resíduo/lixo.
O advento das embalagens do tipo one way, longa vida, PET, entre outras, ofereceu
novas alternativas de produto e consumo que ajudados pelos recursos de marketing contribuem para manter a cultura do consumo.
Isso significa que a produção de resíduo/lixo da maneira como se apresenta, não é
resultante somente do atendimento das necessidades básicas de consumo de bens e serviços,
mas, ao contrário, de um processo complexo e gigantesco que a induz a consumir cotidiana
e permanentemente, abarcando pessoas de diferenciadas condições socioeconômicas, faixas
etárias e grau educacional. O desafio é perceber e depois compreender a roda viva, o círculo
vicioso e o mundo da fantasia que vive (FIALCOFF, 2001 p. 1).
Cumpre salientar que, apesar de existir um grande potencial de reciclagem no
resíduo/lixo, assim como vantagens técnicas, econômicas e ambientais (KIEHL, 1985;
D’ALMEIDA; VILHENA, 2000), os agentes públicos e privados, infelizmente, não têm
manifestado interesse efetivo nesse assunto, o que, sem dúvida, constitui um agravante para
a questão ambiental. A questão dos resíduos sólidos permanece como um setor dos serviços
públicos esquecido, que somente ganha destaque em momentos críticos.
Referente aos dados quantitativos do resíduo/lixo, constata-se em nível nacional que,
enquanto a população aumentou em 18% entre 1970 e 1990, a geração desses detritos cresceu em 25%, um crescimento real de 7% (LIXO, 2001). Pelo que se observa, a quantidade
desses restos continuou crescendo nos anos de 1990 e prossegue de forma semelhante no
decorrer desta década de 2000, salvo pequenas quedas derivadas da crise econômica atual que
restringiu o consumo. “Entre abril e julho, a geração diária de lixo doméstico na cidade de
São Paulo caiu de 12.000 toneladas para 10.000 [...] É mais um sinal da crise” (ATÉ, 2003).
Quanto à destinação final há uma nítida diferença em relação aos critérios que prevalecem entre os países ricos. Uns priorizam a alternativa do aterro sanitário, (o caso dos
EUA) outros a incineração e reaproveitamento de energia (o caso da Europa Ocidental). As
percentagens de reciclagem e compostagem, ainda que em níveis diferenciados, também
são bastante razoáveis entre eles. Nos países pobres, a maior parte do resíduo/lixo tem o
lixão, e outras formas precárias como alternativa de destinação. As atividades de reciclagem
e compostagem (aproveitamento da matéria orgânica), apesar de apresentarem inúmeras
vantagens, ainda são ineficientes; limitam-se a um número muito reduzido de municípios
42
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
que, na melhor das hipóteses só executam a triagem de alguns materiais inorgânicos.
Ainda com relação aos impactos ambientais, o resíduo/lixo, manuseado ou disposto
incorretamente, torna-se um agente poluidor, capaz de atingir regiões fisicamente distintas
da biosfera como a litosfera, a hidrosfera, a atmosfera e os seres vivos que a habitam. Este
problema não é diferente no caso do Brasil e, em particular, na unidade de maior riqueza
econômica, o Estado de São Paulo, em que, grande parte do resíduo/lixo de natureza doméstica tem destinação incorreta (BERRÍOS, 1991 e 1997).
O caso de Ribeirão Preto: áreas receptoras de resíduo /lixo
O levantamento dos dados e outras informações efetuadas para a elaboração da nossa dissertação permitiu a identificação e qualificação os locais para a disposição final dos
resíduos e seu comportamento diante do processo de urbanização, bem como dos impactos
ambientais. Mostrou que as áreas utilizadas para acomodar o resíduo/lixo municipal, até o
início da década de 1970, que se encontravam dentro do perímetro urbano, não apresentam
indícios que possam confirmar a existência de impactos considerados adversos ou negativos
à qualidade de vida da população nos dias de hoje. Vale ressalvar que, provavelmente, durante a implantação, operação e até a desativação final desses depósitos, ocorreram impactos
tanto sobre o meio biótico (flora, fauna) como sobre o antrópico (moradores) de magnitude
e importância em diferentes escalas.
As informações recolhidas, a partir de depoimentos de ex-funcionários do serviço
de limpeza, confirmados por antigos moradores, possibilitaram localizar espacialmente,
com o uso do mapa, os depósitos da década de 1920 em diante. Os locais onde despejou
resíduo/lixo, entre 1920 e 1978, transformaram-se em setores residenciais e comerciais, sob
considerável densidade populacional.
O espaço físico, onde funcionou um lixão durante a década de 1920, também era
conhecido, na época, por ‘botafogo’ em razão de atearem fogo nos montes de detritos que
iam se formando; nas últimas décadas, passou a ser chamado de ‘centro velho’ ou ‘baixada’.
Seus limites situam-se praticamente na várzea do córrego Ribeirão Preto, que corresponde,
hoje, à áreas compreendida entre a pista que margeia o Mercado Municipal até a rua Saldanha Marinho, a partir da rua Mariana Junqueira até a rua São Sebastião, mais ou menos.
Presumivelmente, a quantidade de resíduo/lixo que se depositava nesta área não era
considerável, pois, diversas casas e salões comerciais já ocupavam as suas imediações, conforme ainda hoje pode ser constatado, por meio de inscrições feitas nas fachadas de alguns
prédios erguidos na época. Além disso, até bem pouco tempo, o consumo limitava-se aos
artigos básicos, na maioria das vezes produzidos em casa; os restos orgânicos eram destinados
para alimentar animais e aves domésticas e, praticamente não existiam materiais inorgânicos
ou embalagens, uma vez que, quase tudo era vendido a granel ou as pessoas utilizavam
vasilhas, vasilhames ou sacolas ‘tipo feira’, para fazer compras de itens complementares.
O lixão da década de 1940 funcionou na área, hoje formada pela rotatória Amim
Calil, que liga importantes artérias do sistema viário como a avenida Francisco Junqueira, a
Ambientes
estudos de Geografia
43
avenida Costa e Silva e a Via Norte. Permite o acesso indireto a todos os cantos da cidade e
acesso direto ao centro e a bairros tradicionais como a Vila Tibério, o Ipiranga e os Campos
Elíseos, que, em virtude do aumento populacional e predial, quase não têm espaços vazios.
Nos anos de 1950 e 1960 funcionaram vários depósitos de lixo ao mesmo tempo:
nas glebas onde situam o bosque e Zoológico Municipal Fábio Barreto e em terrenos dos
bairros, Monte Alegre, Alto do Ipiranga e Jardim Marchesi. Estes locais foram urbanizados
seguindo mais ou menos o modelo empregado nos bairros citados anteriormente. Ressaltese que, nessa época, de acordo com os depoentes, no Zoológico também funcionavam as
cocheiras, ou seja, locais onde se guardavam as carroças coletoras de resíduo/lixo e alojavam
os animais que as puxavam.
Cumpre salientar que, a década de 1960 é considerada por antigos funcionários da
Prefeitura como a fase de transição no sistema de coleta e transporte dos detritos. Aos poucos,
as carroças foram substituídas pelos caminhões. Falam que as carroças passaram a atender as
ruas mais afastadas da área central. No que se refere ao acondicionamento e a apresentação
desses materiais para coleta, os moradores valiam-se de latas com capacidade para dezoito
litros, mais ou menos, que originalmente serviram para envasar produtos de consumo (óleo
vegetal, gordura animal etc.). Os trabalhadores que faziam a coleta despejavam o conteúdo
do recipiente no compartimento de recebimento de resíduo/lixo do veículo utilizado para a
coleta e devolviam a lata ao morador.
Em meados de 1984, a lata deixou de ser usada em virtude de acidentes com os funcionários do serviço de coleta (rebarbas perfuro cortantes na abertura do recebimento dos
recipientes), mau cheiro resultante da higienização precária das latas e outros inconvenientes
de ordem operacional. O acondicionamento passou a ser feito por meio de saco e sacola
plástica e dura até hoje (2002).
Na década de 1960, destinava-se parte da fração orgânica ao Zoológico para a alimentação das aves e dos bichos e aos chacareiros que utilizavam-na como esterco nas plantações. Pode-se deduzir que, a pouca variedade dos materiais componentes do resíduo/ lixo,
há quase 42 anos, era um fator que contribuía para diminuir as chances de contaminação da
fração orgânica possibilitando então, maior amplitude e diversificação de uso do composto.
O Lixão da ex-Fepasa, operado na década de 1970, está sob um trecho de terra, cujo
entorno foi urbanizado no início da década de 1990 e integra uma macro zona, a zona de
urbanização restrita que é composta por áreas frágeis e vulneráveis à ocupação intensa,
segundo o Plano Diretor do município.
Já o Lixão de Serrana e o aterro que passaram a existir nos finais das décadas de
1970 e 1980, respectivamente, localizam-se na chamada zona de expansão urbana, situada
entre a zona urbana e a zona rural, porém muito próximos da linha que delimita o perímetro
urbano. Nas imediações do Lixão de Serrana, foram construídos novos bairros residenciais
e construções particulares destinadas ao uso para lazer (Parque dos Servidores e Recreio
Internacional) e quatro empresas, uma do setor industrial e três do setor de serviços, funcionam nas suas vizinhanças.
O aterro em operação, desde 1990, está localizado na altura do km 0 + 500 metros da
SP 322 –Rodovia Mário Donegá (Ribeirão Preto-Pradópolis), zona sudoeste do município
44
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
de Ribeirão Preto, medindo 216.000 m2 com área edificada de 170 m². Situa-se na direção
de um dos eixos de expansão urbana e no entorno existem diversas chácaras que pertencem
ao cinturão verde do município. A área original foi encerrada em meados de novembro de
2000. Estima-se que, a vida útil da área de expansão, em operação atinja até o final de 2006.
No começo das atividades, esse aterro não era classificado como sanitário, mas ‘aterro
controlado’, levando cinco anos mais ou menos, para receber as obras finais de adequação
sanitária. Mesmo assim, conforme será relatado mais adiante, sua operação carece de maior
rigor, no que diz respeito aos aspectos normativos e, principalmente, aos cuidados em relação
ao ambiente. Por essa razão neste trabalho deixamos de enquadrá-lo como aterro sanitário,
mas simplesmente aterro ou aterro controlado. Vale lembrar que, a partir de 1970, tem sido
cada vez menor o prazo para esgotamento dos depósitos de resíduo/lixo. A vida útil dos
terrenos, em condições de uso normais, não passa de dez anos, mais ou menos.
Sistema de limpeza urbana - SLU
Este sistema é parte integrante do Plano Diretor do município e prevê os serviços
básicos de coleta e transporte de resíduo / lixo domiciliar, público, especial, como também
a destinação final, o tratamento e a comercialização dos produtos e subprodutos, compostos
ou recicláveis. Também se constatou que o gerenciamento desses serviços obedece a um
modelo de característica convencional. O tratamento do resíduo/lixo que também é entendido como processamento (segregação, reciclagem e compostagem) de materiais, limita-se
à triagem e revenda da fração inorgânica separada para a reciclagem, cujo resultado (cerca
de 2% do total), pode ser considerado pouco, sob o ponto de vista ideal.
Vale considerar que o SLU não conta com um banco de dados centralizado e integrado que contemple aspectos quantitativos, qualitativos, socioeconômicos e ambientais,
com abrangência temporal e espacial, relativos à geração, fontes geradoras, composição,
transporte e destinação final, porém, considerando que a atenção devotada à questão do resíduos/lixo é recente, tal omissão é compreensível. Isso propiciaria e facilitaria, entre outras
providências, a elaboração de diagnósticos e prognósticos periódicos de desempenho e a
atualização dos programas e metas que lhe dão sustentação. Parte dos dados quantitativos
da geração está na Secretaria de Infra-estrutura e parte está no Departamento de Água e
Esgotos de Ribeirão Preto (autarquia gerenciadora do SLU), o que pode ser indicativo da
existência de falta de sintonia entre os órgãos.
Quanto aos catadores autônomos de rua, sua atividade não foi disciplinada no SLU
e, por esta razão, deixou de ser aqui analisada. Mas, cabe ressaltar o extraordinário papel
que essas pessoas desempenham em favor da limpeza urbana e do ambiente por meio da
recolha de materiais potencialmente recicláveis diretamente nas ruas e fontes geradoras.
Sua participação no processo de reciclagem do resíduo/lixo, isto é, como agentes da cadeia
produtiva de objetos reciclados deve ser oficialmente reconhecida, apoiada e desenvolvida.
Também deve ser destacado que o sistema não possui normas, nem antevê campanhas
ou novos programas sistemáticos de parcerias, voltados à sensibilização e conscientização
da população, no sentido de manter a cidade limpa e de diminuir a geração dos detritos,
Ambientes
estudos de Geografia
45
conforme sugerem D’Almeida e Vilhena (2000), entre outros. Aliás, a eficiência do sistema
tem relação direta com o grau de adesão da população a ele, pois o contrário propicia atitudes de descarte para fora do sistema (ruas, praças, terrenos vazios, caçambas de entulho,
mananciais etc.).
O mesmo pode ser observado em relação à falta de controle de algumas atividades
que também manipulam resíduo/lixo, como as pequenas oficinas de consertos e reparos
automotivos e as firmas ou agentes autônomos que prestam serviço de coleta de entulhos
e outros detritos. No primeiro caso, tudo indica que o resíduo/lixo gerado, muitas vezes
perigoso, é apresentado para a coleta domiciliar regular; na segunda hipótese, existe a possibilidade de que parte dos detritos, de composição nem sempre conhecida, seja depositada
inadequadamente em áreas impróprias e causar problemas sanitários e ambientais diversos.
Outra questão ainda não reconhecida e integrada no SLU refere-se ao lixo tóxico e
ao lixo radiativo, sendo que ambos requerem coleta especial: trata-se, no primeiro caso, de
lâmpadas fluorescentes, remédios, venenos, tintas, solventes, herbicidas e embalagens de
agrotóxicos etc., gerados por fontes diversas; o segundo compreende resíduos e utensílios,
utilizados em laboratórios, serviços clínicos e hospitais para tratamento de algumas doenças.
O sistema de limpeza também não exige a padronização visual da frota de veículos,
tampouco o uso de uniformes pelos funcionários. Esta decisão, pelo que observamos, fica
a critério da empresa contratada que usa as cores de sua conveniência. Cabe ainda ressaltar
que a taxa de limpeza citada no artigo 80 do Plano Diretor, não é cobrada da forma prevista
neste dispositivo legal.
Aterro de resíduo/lixo
O método empregado para a destinação final dos detritos é o do aterro que, apesar de
se constituir em um equipamento construído sob critérios de engenharia e normas próprias,
apresenta diversas deficiências. Nesse particular, foram constatados problemas de ordem
sanitária como presença de vetores de doenças (urubus e gaivotas) ou ambiental, como a
emanação de gases e odores, de ordem econômica, como a depreciação de imóveis lindeiros
-prejuízos à estética e à paisagem local. questão que faz parte do impacto de vizinhança.
Do ponto de vista operacional, entre as falhas apontadas estão as seguintes: a) carência de métodos seguros para minimizar a influência das águas de chuvas que aceleram
a geração de percolado, na parte concluída do aterro; b) falta de cobertura impermeável
no topo do aterro, por exemplo, que contribuiria para agilizar as condições de estabilidade
geotécnica dos maciços de resíduo/lixo; c) ausência de diques de proteção visual e acústica;
d) incapacidade técnica do sistema de drenagem de águas pluviais (canaletes ‘meia cana’)
e de captação de chorume (tanque de acumulação), para atender à demanda nos períodos
de chuva intensa; e) cortina vegetal insuficiente (feita de eucaliptos adultos, faltam árvores
e arbustos de pequeno e médio porte), para cumprir as finalidades a que se propõem; f)
empreendimento inadequado para tratar e aproveitar o biogás resultante do processo.
Os dados também demonstraram que os resíduos não são inspecionados na entrada
46
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
do aterro, o que pressupõe a ausência de controle de resíduos perigosos ou inertes e da
composição física do material recebido.
Verificou-se ainda que a disposição de objetos de outras fontes (cemitério, indústria
de alimentos, sucatas, pneus, lodo de estação de tratamento de esgotos etc.) é feita na forma
de co-disposição, o que leva supor que não há sistema de zoneamento na disposição dos
diferentes tipos de resíduos. Comparando as condições de funcionamento do aterro com o
check- list, proposto pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental para apurar
o Índice de Qualidade de Aterros de Resíduos -IQR (D’ALMEIDA; VILHENA, 2000),
chegou-se ao índice 7,0 que expressa condições controladas para o aterro, ou seja, um IQR
intermediário entre inadequada (até o índice 6,0) e adequada (índice entre 8,0 e 10,0).
Impactos ambientais
Os impactos de maior significação foram provocados pela disposição imprópria de
resíduo/lixo nas áreas pertencentes ao Lixão da ex-Fepasa e ao Lixão de Serrana. Neste
particular, a elaboração de um diagnóstico de natureza técnico-ambiental ampla e detalhada, não fez parte dos objetivos da nossa investigação. Porém, algumas práticas de caráter
técnico e sanitário, utilizadas por outros pesquisadores, foram observadas, como referência
para avaliar os problemas que se apresentam.
No lixão do leito ferroviário da ex-Fepasa, onde se encontram parcialmente instalados
os conjuntos habitacionais Jardim das Palmeiras 2 e Jardim Juliana, -construções que nunca
deveram ser implantadas sobre esses locais-, mas, ante os fatos consumados, era mister e
obrigação métodos e técnicas de gestão e gerenciamento do resíduo/lixo deveriam ter sido
implementadas previamente, de maneira a minimizar eventuais impactos ambientais instalados ou potenciais, conforme recomendação de D’Almeida e Vilhena (2000).
Os autores antes mencionados alertam que o processo de estabilização física, química
e biológica de um lixão leva, entre dez a quinze anos (pode chegar a trinta anos) para que,
posteriormente, seja destinado a um uso compatível com tais terrenos.
Entre as providências que devem ser adotadas em relação à área, por sugestão da
mesma fonte, levantaram-se as seguintes: a) drenagem de biogás e percolado da massa de
resíduo / lixo; b) coleta e tratamento de biogás e percolado; c) monitorização geotécnica
e ambiental e projeto paisagístico e de uso futuro da área (atender a requisitos de isolar o
resíduo/lixo do ambiente; impedir a infiltração de água de chuva, para evitar o aumento do
volume de percolado e a saída não controlada do biogás).
A partir das considerações já relatadas, podemos inferir que os procedimentos de
implantação, operação e encerramento do Lixão da ex-Fepasa não foram precedidos dos
cuidados técnico-ambientais recomendados ou por normas técnicas e leis.
Em relação a tais problemas, os dados levantados confirmaram que o Lixão da exFepasa, depois de desativado, provocou a exalação de gases, odores, poluição do solo, depreciação de imóveis vizinhos, comprometimento de moradias (recalque no solo, rachaduras
nas paredes), construídas indevidamente sobre o maciço de resíduo/lixo.
Ambientes
estudos de Geografia
47
A lista dos impactos é grande, a Prefeitura ainda não se propôs a avaliá-los detalhadamente, visando eliminá-los ou circunscrevê-los a limites seguros e aceitáveis. Até o
momento, o governo municipal limitou-se a instalar drenos para captação de gases, cuja
eficiência parece duvidosa; demolir algumas casas, transferir moradores que tiveram suas
casas afetadas e plantar eucaliptos nas laterais do antigo lixão, no trecho entre o Jardim
Juliana e o Parque dos Servidores.
É importante acrescentar que o topo da área está encerrado com material aparentemente inerte, coberto por vegetação rasteira e contém depressões no solo que indicam
processo de estabilização da massa de detritos (situação em julho de 2002).
No que diz respeito ao Lixão de Serrana, a pluma de poluição resultante do chorume atingiu a água subterrânea, mas o acatamento e a implementação das recomendações
técnicas sugeridas no relatório elaborado por Costa e Ferreira (1997) e pelos técnicos do
Ministério Público do Estado de São Paulo, para resolução do problema, dependem da
Prefeitura. Vale registrar que, além de contaminar esse importante recurso hídrico, o lixão
em referência, em condições análogas ao Lixão da ex-Fepasa, também provocou impactos
ambientais negativos no seu entorno, ou seja, a depreciação de imóveis lindeiros e prejuízos
à estética e à paisagem local.
Entretanto, se considerarmos o tempo entre o encerramento das operações de despejo
de resíduo/lixo (1990), a contratação dos estudos (1995) e as recomendações formuladas no
relatório (1997), pode-se deduzir que a falta de ênfase ou agilidade na implementação das
providências, talvez motivada pelos altos custos da regularização, não só retardarão a solução,
mas poderão ocasionar a necessidade de reavaliar a eficácia dos estudos apresentados em
face da dinâmica do impacto. Com este argumento, contudo, não estamos confirmando os
resultados da investigação, até porque, como foi mencionado antes, a análise técnica desse
assunto afasta-se do objetivo deste trabalho.
Compete, ainda, observar que os problemas pontuais acarretados pelo Lixão da exFepasa incentivaram o exercício da cidadania por uma parcela dos moradores; no entanto,
a poluição da água subterrânea pelo Lixão de Serrana não ocasionou idêntica mobilização,
embora seja um fenômeno que afetasse um recurso natural de interesse da população.
Os dados levantados, todavia, assinalam que a mitigação dos impactos já citados
depara-se com obstáculos técnicos e burocráticos que parecem vir de encontro com a
lentidão e, provavelmente, o desinteresse do poder público em equacionar, em definitivo,
o problema; enquanto, a poluição continua a provocar seus efeitos negativos ao ambiente
(situação em dezembro de 2002).
Desse modo, pensamos que não só as deficiências operacionais observadas no gerenciamento do aterro, mas, especificamente, os impactos ambientais, provocados pelos lixões
(ex-Fepasa e Serrana), são exemplos que poderão servir de conteúdo ao embasamento e
à preparação de um programa que fixe ou aumente os conhecimentos dos atores sociais e
políticos e estabeleça novos procedimentos para essa realidade. E, com apoio em fundamentos ecológicos e de planejamento, ter a capacidade de colaborar com a consignação de um
novo modelo de relações da sociedade com a natureza, a partir da qual passe a existir uma
nova consciência sobre o ambiente. Para atingir este escopo, entendemos que o programa
48
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
citado, não pode ser concretizado isoladamente, mas, a partir de uma agenda formulada pela
sociedade, sem tendências ou condicionamentos, respeitando-se as dificuldades, limitações,
potencialidades e conflitos que essa tarefa implica.
Trata-se, a nosso ver, de um trabalho árduo, multidisciplinar, permeado de muita
articulação, discussão e, sobretudo, respeito aos pontos de vista eventualmente contrários
dos participantes.
A propósito, relacionamos alguns assuntos que poderiam ser considerados como pauta
inicial da agenda, ou seja: a finitude dos elementos naturais; a dependência da sociedade à
Natureza e o custo benefício do modelo de produção de consumo em vigor.
Legislação municipal
A Lei Complementar n° 501/95, de 31.10.1995 instituiu o primeiro Plano Diretor do
município (RIBEIRÃO PRETO, 1995). As leis que integram este plano tais como o Código
do Meio Ambiente, Plano Viário, Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, Plano de
Saneamento Básico, Código de Obras e a Lei do Mobiliário Urbano foram encaminhadas
em dezembro de 2001 a Câmara Municipal e somente em junho de 2002, é que essa casa
legislativa começou a divulgar o chamamento das audiências públicas para discutir e, depois,
votar, esses expedientes legais.
Em Ribeirão Preto, os assuntos relativos ao resíduo/lixo foram abordados na legislação ordinária, a partir da década de 1960 e somente na década de 1990 passaram a constar
da Lei Orgânica, promulgada no dia cinco de abril de 1990 e no primeiro Plano Diretor de
31 de outubro de 1995 (artigo 84 da Lei Complementar n.º 501). A análise das leis mostra
que através de um prisma legal muitos procedimentos operacionais e administrativos foram
estabelecidos, mas, na prática poucos são executados e a maioria não está contemplada no
Plano Diretor.
Esses documentos jurídicos definem a abrangência, as responsabilidades e fixam
parâmetros para o Sistema de Limpeza Urbana, que se constitui de serviços meramente
sanitários e de limpeza em si que abrangem, varrição, capina e manutenção de vias e logradouros públicos, a coleta, a remoção, o tratamento e a destinação final do resíduo / lixo, por
meio de técnicas convencionais, conforme foi visto anteriormente.
Vale destacar que no artigo 78, do Plano Diretor, talvez como reflexo do problema
ambiental, ocasionado pelo Lixão de Serrana, o legislador incluiu um tópico que solicita
atenção especial para os possíveis riscos de contaminação a que o lençol d’água subterrâneo está sujeito. Também cumpre ressaltar que, embora reconheça “os agravos à saúde
individual e coletiva, ao bem-estar público e ao meio ambiente”, o Plano Diretor apenas
cita, genericamente, a necessidade do aproveitamento de objetos inorgânicos, como matéria
prima reciclável e os de matéria orgânica, como fertilizante a ser aplicado nas lavouras.
No que se refere às questões relativas à organização espacial e ambiental da parcela
do espaço geográfico ocupado pelo município, também, estão previstas na Carta Ambiental
de Ribeirão Preto, editada em 1996 e reeditada em 2002 (RIBEIRÃO PRETO, 1996 e 2002),
ilustrações dos projetos executados, em execução ou a executar. Pode-se dizer que o docu-
Ambientes
estudos de Geografia
49
mento retrata a visão que a administração municipal tem sobre questões ambientais como
um todo. A Carta também admite que os problemas do ambiente têm relação direta com a
industrialização, as atividades agrícolas e a urbanização. Fatores estes que, conforme vimos
em outra parte deste trabalho, dão sustentação ao modelo de produção e consumo capitalista.
Considerações finais
Concluindo, podemos constatar que emergem como evidentes as diversas formas e
graus com que o MPCC articula e organiza o espaço geográfico em nível mundial. Entre as
modalidades citamos: concentração demográfica e financeira; intensificação de fluxos de
pessoas e mercadorias; ampliação das infra-estruturas de geração de energia, de comunicação
de dados e transportes; relações socioeconômicas e tecnológicas desiguais. A velocidade
que imprime à produção e ao consumo ocasiona e intensifica a produção de resíduo/lixo.
Constatamos, também, que o empenho exagerado das pessoas e organizações que
controlam o MPCC em obter lucro e acumular riqueza material, contrasta com as dificuldades que demonstram em estabelecer consensos, executar propostas e medidas, colocadas
nas leis e normas e nas Conferências ou rodadas de organizações supranacionais, como a
Organização das Nações Unidas.
Verifica-se ainda que, os dados sobre a problemática do resíduo / lixo, serviram para
alertar a sociedade, seus agentes públicos e privados, bem como os meios acadêmicos para a
necessidade de reconhecer o MPCC, os conceitos e as categorias que definem as expressões
educação ambiental, desenvolvimento sustentável, produção limpa e princípio poluidor
pagador para além dos interesses econômico-financeiros.
Quanto às áreas receptoras de resíduo/lixo no município de Ribeirão Preto, todas
elas podem ser caracterizadas por incluir a modalidade do aterramento dos resíduos, nem
sempre constituindo aterros sanitários. Em geral essas áreas são incorporadas mais cedo
que tarde pela expansão urbana.
O programa de triagem de materiais inorgânicos potencialmente recicláveis (papel,
papelão, vidro, lata etc.), por sua vez, é insuficiente. Também não há providências a fim de
aproveitar os altos percentuais de matéria orgânica (restos vegetais, animais e minerais) que
são descartados (mais de 50%).
Já, o Sistema de Limpeza Urbana executa serviços básicos, apoiados em modelos
de característica convencional, não possuindo programas ou parcerias que sensibilizem e
conscientizem a população, no sentido de manter a cidade limpa e diminuir a geração de
resíduo/lixo. Além disso, o banco de dados do SLU encontra-se diluído entre órgãos da
administração direta e as informações são insuficientes para facilitar aos gerenciadores do
sistema a elaboração de diagnósticos e prognósticos periódicos de desempenho. Isso prejudica
a atualização de programas que não só dêem sustentação, mas também que se destinem a
eliminar deficiências operacionais das atividades que lhe são competentes.
A não inserção dos catadores autônomos no sistema, em nossa opinião, não só impede
o reconhecimento e a ampliação desta importante e estratégica atividade para a economia e
50
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
o ambiente, mas também, evita uma alternativa de inclusão social das pessoas simples que
estão fora do mercado de trabalho formal.
Agora, em relação à disposição incorreta de resíduo/lixo, tanto no caso do Lixão da
ex-Fepasa, quanto no Lixão de Serrana, conclui-se que a administração municipal, ao implantar e fazer funcionar esses depósitos, contrariou normas e orientações técnico-ambientais,
como também, ao tolerar ou retardar a solução dos impactos ambientais pertinentes a eles,
agiu em desacordo com os interesses coletivos, condutas não condizentes com as funções
dos cargos dos seus agentes públicos e, portanto, passíveis de responsabilização legal.
Com relação à legislação municipal promulgada no período de 1961 a 2001, verificouse que muitas normas, caso fossem acatadas pelo Poder Executivo, ou fiscalizadas quanto
a sua efetivação preveniriam, em muito, o descarte e a disposição indevida do resíduo/ lixo
e seus impactos ambientais.
A Carta Ambiental, por sua vez, constitui-se, em nossa opinião, num importante documento de gestão urbana cuja implementação, encontra respaldo nos instrumentos legais
existentes. Esses diplomas jurídicos poderão fornecer valiosa contribuição na implementação
da agenda do programa sugerido anteriormente a fim de sensibilizar os moradores, agentes
sociais e políticos, assim como impor providências ante a questão ambiental do resíduo/lixo.
Referências
ATÉ o lixo. Veja, São Paulo, 06 ago. 2003
BERRÍOS, Manuel Rolando. Resíduos sólidos urbanos e impacto ambiental na sua disposição final. In: SIMPÓSIO DE GEOGRAFIA FÍSICA APLICADA, 5., 1991. Porto Alegre.
Anais... Porto Alegre: UFRGS, 1991.
______. Técnicas de amostragem de resíduos sólidos. In: MAIA, N. ; MARTOS, H. (Coord.)
Indicadores ambientais. Sorocaba: os autores, 1997.
BRANCO, Samuel M. Elementos de ciência do ambiente. 2. ed. São Paulo: CETESB/
ASCETESB,1987.
COSTA, João A.; FERREIRA, Justo C. Lixão de Serrana: caracterização do problema
ambiental e proposição de soluções. Ribeirão Preto: UNAERP, 1997.
D’ALMEIDA, Maria Luíza; VILHENA, André. Lixo municipal: manual de gerenciamento
integrado. 2.ed. São Paulo: IPT/CEMPRE, 2000.
FIALCOFF, Dóris. É lixo demais. Porto Alegre, agosto de 1998 (?). On-line. Disponível
em: <http://www.sinpro-rs.org.br/extra/ago98>. Acesso em: 03 nov.2001.
GERMANI, Gino. Sociologia da modernização. São Paulo: Mestre Jou, 1974.
KIEHL, Edmar José. Fertilizantes orgânicos. São Paulo: Ceres, 1985.
LIXO, pequeno histórico. Ouro Preto, Minas Gerais, 03 nov. 2001. On-line. Disponível em:
http://www.lavrasnovas.con.br/lixo.htm Acesso em: 03 nov. 2001.
Ambientes
estudos de Geografia
51
RIBEIRÃO PRETO (Município). Câmara Municipal. Lei Complementar nº 501, de 31 de
outubro de 1995. Dispõe sobre a instituição do Plano Diretor do Município de Ribeirão Preto
e dá outras providências. Diário Oficial, Ribeirão Preto (Município), 1995.
______. Secretaria de Planejamento e Gestão Ambiental. Carta Ambiental. Monitoramento
de aterros sanitários e despoluição de lixões. Ribeirão Preto (Município): SMMA/RP, 1996.
______. Carta Ambiental. Zonas ambientais, recursos naturais e fatores impactantes ou
de risco ambiental. Ribeirão Preto (Município): SMPGA, 2002.
TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas,
1987.
AGRICULTURA FAMILIAR NO RIO GRANDE DO SUL:
PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS PRODUTORES
DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS-RS
Rosane BALSAN
Lucia Helena de Oliveira GERARDI
Introdução
As transformações que têm ocorrido na estrutura agrária brasileira de modo geral
e em particular no Rio Grande do Sul, desencadeiam processos agrícolas diferenciados e
acentuaram, muitas vezes, formas diversas de produção e de condições de vida dos agricultores familiares.
Identificar alternativas para as Unidades de Produção Familiar, que desejam manter
o equilíbrio racional do ambiente de produção e da renda justa, capaz de permitir, além da
sobrevivência, a realização social e econômica, caracterizou-se como uma possibilidade
deste trabalho. Para isto, o estudo foi centrado no sistema produtivo e suas inter-relações,
chegando a sugerir a oportunidade da reorientação das atividades agropecuárias e nãoagrícolas geradoras de ações de mudança com equilíbrio como, por exemplo, o suprimento
das necessidades de determinados nichos de mercados.
O trabalho de investigação objetivou traçar um perfil das Unidades de Produção Familiar do 20 Distrito do município de São Francisco de Assis/RS (Vila Toroquá), tendo em
vista sugerir alternativas e práticas que levassem a sustentabilidade, mudando os processos
produtivos e alcançando o desenvolvimento socioeconômico.
Os processos de exclusão, cada vez mais intensos, forçam as Unidades de Produção
Familiar a buscarem alternativas para seu desenvolvimento. Contudo, o desafio de um desenvolvimento sustentável exige o apoio de políticas públicas principalmente por que, no
caso dos produtores familiares, suas condições de investimento são geralmente precárias.
Na tentativa de oferecer uma contribuição aos estudos sobre agricultura familiar,
buscou-se detalhar a situação de uma área onde “ilhas de agricultores familiares” coexistem
com diferenças tanto físicas e naturais, quanto culturais, constituindo-se em uma excelente
área-laboratório para questões rurais brasileiras.
Para lograr êxito, o trabalho é estruturado a partir de uma prévia seleção de indicadores
do perfil socioeconômico das Unidades de Produção Familiar, que submetidos à técnica de
análise estatística básica, buscam identificar o seu comportamento.
Por fim, o trabalho destaca, em suas considerações finais, alguns aspectos referentes
às questões envolvendo mudanças e o estabelecimento do equilíbrio socioambiental na área
investigada.
A pesquisa teve como preocupação conhecer a realidade, observá-la e analisar suas
múltiplas facetas de forma clara e objetiva, para entender os aspectos sociais, econômicos e
54
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
culturais da agricultura familiar. Reconhecer seus mecanismos e suas inter-relações, mais do
que ser gratificante ao pesquisador, constitui-se na contribuição da ciência para a sociedade
em defesa de sua promoção social.
O convívio estabelecido, por algum tempo, com os produtores foi frutífero, pois
muitas informações, entendimentos e análises só se tornaram possíveis por meio dele.
Deseja-se que este estudo possa ser útil ao planejamento municipal local, que apresenta dados escassos sobre a área em estudo até o presente momento.
A área e as bases metodológicas do estudo
O desenvolvimento rural apresenta-se heterogêneo no espaço agrícola do Estado do
Rio Grande do Sul, concentrando-se em poucas regiões. Sabe-se que neste Estado existem
regiões concentradoras de desenvolvimento com municípios que se destacam. Mas este
não é o caso de São Francisco de Assis, um município com áreas frágeis, degradadas e
que poderia retomar parte de seu crescimento econômico com a adoção de uma série de
medidas, principalmente no âmbito da agricultura familiar. Tal situação justificou a escolha
deste município para objeto de estudo.
Dentro do município, procurou-se delimitar uma área que concentrasse tanto a agricultura familiar, quanto problemas econômicos e ambientais, cujo estudo poderia indicar novos
direcionamentos em benefício da população local. O 20 Distrito-Vila Toroquá, mostrou-se
o laboratório ideal para esta pesquisa, tendo, por isso sido escolhido. O município de São
Francisco de Assis/RS1, localiza-se na região Oeste do Rio Grande do Sul e sua divisão
interna está constituída por cinco distritos assim denominados: 10 distrito: Sede; 20 distrito:
Toroquá; 30 distrito: Boa Vista; 40 distrito: Beluno e 50 distrito: Vila Kraemer. (Figura 1).
A área de estudo deste trabalho, é composta pelas localidades de Bom Retiro, Buricaci,
Mocambo, Passo do Banhado, Passo do Leão, Perseverança, Pitangueira, Rincão dos Dornelles, Rincão dos Salbegos, São Tomé, e Vila Toroquá. A origem predominante da população
do 20 Distrito, é a italiana, como se constata em redações escritas por filhos de agricultores:
[...] Meus antepassados moram aqui à (sic) décadas, pois os tataravós da
minha mãe vieram da Itália junto com os imigrantes para trabalhar (colonizar) e morar neste lugar que nem nome tinha. [...]2
[...] Contam algumas pessoas mais idosas que aqui vivem, que o nome
“Toroquá” foi dado a esta localidade pelo seguinte fato: Dizem que um
velho italiano havia perdido um touro neste cerro que aqui há, e um dia
de tanto procurá-lo, encontrou-o e gritou bem alto “Toro Quá”, que queria
dizer: “O Touro está aqui” [...]3
Entretanto, se a origem dos habitantes é predominantemente italiana, a do nome da
O município de São Francisco de Assis foi fundado em 4 de janeiro de 1884, e a divisão distrital se iniciou em 7 de julho
de 1885, com três distritos, Em 1890 foi criado o 40 Distrito e em 1912 o 50 Distrito.
2
Denize. Trabalho de português. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 8a série da Escola João Octávio Nogueira Leiria
3
Marcieli. Redação. São Francisco de Assis, 2001
1
Ambientes
estudos de Geografia
55
Figura 1
localidade – Toroquá - gera controvérsias: enquanto uns dizem ser de origem italiana, outros
afirmam ser um vocábulo de origem indígena, significando toca dos tatus.
Profundas reflexões têm sido elaboradas em torno das alternativas da agricultura,
tendo como base o desenvolvimento rural, no qual alguns autores salientam o “desenvolvimento rural sustentável”. Entretanto, inúmeros questionamentos surgem, indagando até
que ponto se pode falar em sustentabilidade se a renda agrícola é cada vez menos suficiente
para manter a família rural no campo, além de termos, no cenário rural, disparidades de
desenvolvimento e crescimento econômico.
O desenvolvimento sustentável é uma noção política e geográfica, sendo que os
principais empecilhos à agricultura são de natureza político-social: de um lado, se coloca
a maioria da população com pouco acesso aos recursos políticos e econômicos, (principalmente os agricultores familiares) e do outro, estão os grandes proprietários, que determinam
56
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
as regras do sistema.
A agricultura brasileira vem, progressivamente, sendo realizada do ponto de vista
empresarial, o que implica alteração dos processos produtivos que, entretanto, não atinge
igualmente todos os produtores, produtos ou regiões geográficas, como ensina Silva (1982).
Por outro lado, esta modernização não deve ser de modo algum confundida com o desenvolvimento rural, que teria, como complemento, proporcionar melhoria de condição de vida
da população rural (GERARDI, 1980).
Este processo desigual acaba por excluir número cada vez mais expressivo de
produtores rurais que não conseguem se manter produtivos e economicamente viáveis,
principalmente em áreas marginalizadas.
Os agricultores familiares demonstram atitudes de coragem em frente a situações
políticas e econômicas que geram a reprodução da miséria. Percorrendo alguns municípios do
sudoeste do Rio Grande do Sul, verifica-se o nível de decadência em que vivem os agricultores familiares, cujas atividades não suprem nem mesmo suas necessidades, permitindo-lhes
apenas a subsistência, conseqüência e reflexo do modelo agrícola adotado.
Com condições topográficas e pedológicas desfavoráveis, a concentração de unidades
de produção familiar de baixa renda coloca a questão da sustentabilidade agrícola associada
às alternativas de desenvolvimento com preservação do meio em que vivem. Nesta região,
encontra-se o município de São Francisco de Assis e, neste, o 20 Distrito – Vila Toroquá - no
qual foi localizada a pesquisa aqui relatada. Assim, procurou-se, com base no diagnóstico
das condições locais (ambientais e socioeconômicas) construir cenários que possam apontar
direções à melhoria da agricultura. São apresentadas alternativas, práticas de organização
do trabalho e da produção que extrapolam os limites individuais e familiares, alcançando
o nível coletivo e comunitário.
As idéias que vêm ganhando espaço social, influência e novos adeptos parecem
caminhar na direção de que é preciso devolver ao mundo rural uma outra dimensão, que o
caracterizou durante séculos, antes da vigência do capitalismo industrial, qual seja, um locus
de múltiplas atividades onde, ao lado da convivência produtiva com a natureza desenvolvemse novas atividades não agrícolas (SCHNEIDER; NAVARRO, 1999).
Nessa perspectiva, observa-se um “novo” mundo rural, onde novas alternativas vêm
sendo valorizadas, tais como: produtos agrícolas diferenciados: frutos silvestres, fruticultura
de mesa; fabricação de produtos na unidade produtiva para venda direta; agroturismo; cultivos emergentes como flores exóticas; plantas medicinais; enfim, atividades voltadas para
o melhoramento do emprego e da renda das propriedades familiares.
Para realização desta pesquisa, inicialmente, partiu-se de uma ampla revisão bibliográfica sobre a temática em tela, revisitando-se as matrizes teóricas que, formam as bases
das questões conceituais deste trabalho.
No presente estudo, entendemos, produção familiar em oposição à produção patronal,
ou seja, aquela que apresenta as seguintes características: a) trabalho e gestão intimamente
relacionados; (b) direção do processo produtivo assegurada diretamente pelos proprietários;
(c) ênfase na diversificação; (d) trabalho assalariado complementar; (e) decisões imediatas,
adequadas ao alto grau de imprevisibilidade no processo produtivo; (f) tomada de decisões
Ambientes
estudos de Geografia
57
“in loco”, condicionada pelas especificidades do processo produtivo e (g) ênfase no uso de
insumos internos (FAO INCRA, 1994).4
Considerando que um levantamento total das unidades de produção familiar seria
difícil, pela sua complexidade, optou-se por estabelecer um perfil do distrito por meio da
escolha de 51 agricultores. Como unidade básica de informação, tomou-se a Unidade de
Produção Familiar, entendendo-a como estabelecimento que apresenta como base social o
trabalho familiar.
Para a conclusão do trabalho de campo foram realizadas sete visitas ao Distrito. O
pequeno número de entrevistas realizadas é justificado pela homogeneidade das informações, considerando-se desnecessário um número maior para traçar o perfil. Paralelamente,
realizou-se a complementação de dados na sede do município para uma melhor compreensão
da realidade em estudo. A sétima saída de campo teve como objetivo resgatar algumas informações na EMATER, na Secretaria de Agricultura e Secretaria do Turismo do Município.
Além das visitas para realização das entrevistas, foram feitas três visitas de retorno para
coleta de dados na sede do município ou em alguma propriedade cuja entrevista tivesse
deixado alguma dúvida.
A agricultura familiar do município foi caracterizada, com informações socioeconômicas da área, obtidas das entrevistas, dos Censos do IBGE (1990), do relatório anual
da EMATER5 (1999) e de informações diretas Secretaria municipal da agricultura e Secretaria municipal de turismo. Consolidadas essas informações, analisaram-se os dados,
representando-os por meio de gráficos, quadros e tabelas.
Perfil socioeconômico das unidades de produção familiar do 2º Distrito, Vila
Toroquá – São Francisco de Assis - RS
Organização das unidades de produção
As propriedades entrevistadas, num total de cinqüenta e uma, todas de base familiar, localizam-se em diversas localidades do 2º Distrito, Vila Toroquá. As distâncias das
propriedades em relação à sede do município de São Francisco de Assis são variáveis, indo
de 6 a 30 Km.
A amostra, embora não probabilística, procurou abranger e mapear unidades de
produção familiar com distâncias variáveis em relação à sede do Município no intuito de
verificar até que ponto fatores como a localização e a distância interferem nas diferentes
atividades agrícolas e não-agrícolas das unidades de produção familiar, numa área e para
A discussão teórico-semântica sobre produção familiar, campesinato, pequena produção, produção de subsistência, tem
consumido centenas de páginas e não será tratada no escopo do presente trabalho.
5
A EMATER/RS vem atuando desde março de 1977 e assumiu a prestação de serviços de assistência técnica e extensão
rural oficial no Estado do Rio Grande do Sul vinculada ao Governo do Estado pela Secretaria da Agricultura e Abastecimento, atua em 352 municípios e mantém 52 postos de classificação de produtos vegetais (EMATER/RS, 1997).
Salienta-se que um dos postos localiza-se no município de São Francisco de Assis, RS. Ela procura agir por meio de
ações desenvolvidas dentro da proposta de desenvolvimento sustentável e perspectivas de inovações, entretanto, de
forma pouco abrangente, por envolver uma quantidade pequena de agricultores.
4
58
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
produtos ainda pouco afetados pelo processo de globalização.
Os agricultores das Unidades de Produção Familiar, entrevistados na área de estudo,
eram proprietários da terra. Na sua maioria receberam parte da sua propriedade por herança
e, outros, como no caso dos proprietários da localidade de Perseverança, a conseguiram por
meio de ocupação.
Deve-se destacar que o fato de serem proprietários das suas terras é importante para
eles, ou melhor, é o “seu orgulho”. Até mesmo aqueles que legalizaram as terras, há pouco
tempo, se expressavam com convicção, de que agora são “donos de suas terras”.
No entanto, observou-se que, mesmo sendo proprietários de suas áreas, algumas
Unidades de Produção Familiar (29,41%) procura aumentar a renda através de parcerias, a
maioria para desenvolvimento da agricultura. Quanto às formas de pagamento, nas parcerias,
verificamos que 60% são feitas em percentagem do produto ou da venda. A área utilizada em
parceria para atividade de cultivo oscila entre dois a 48 hectares, enquanto para a pecuária,
mesmo sendo pouco freqüente varia de 30 a 200 hectares.Quanto ao número de pessoas que
integram o núcleo familiar, verificou-se que, em 39 das 51 propriedades entrevistadas, o
total de membros da família não ultrapassa a 4 pessoas, valor surpreendente na zona rural,
cujas famílias costumam ser muito numerosas, mas que pode ser explicado pela saída de
muitos membros adultos que não encontram, pela exigüidade da área, espaço de trabalho
na propriedade.
A noção de unidade de produção familiar, durante muito tempo, esteve relacionada
à dimensão física, permanecendo a idéia de uma área pequena, com baixa produção. Atualmente, sabe-se que a questão da dimensão das propriedades, tanto na agricultura, quanto
na pecuária, não é tão relevante. A representação econômica das unidades produtivas de
pequeno porte na agricultura está muito mais ligada à possibilidade de adoção de inovações
tecnológicas, à localização e à qualidade do solo, do que a área inicial do estabelecimento
(VEIGA, 1995).
Assim, quanto ao tamanho identificou-se que as propriedades com área entre 10 a
30 hectares representam 60,78% das amostradas. A estrutura fundiária sofreu algumas alterações nos últimos dez anos: 15,69% dos entrevistados declararam a diminuição da área de
suas propriedades, 27,45% informaram que suas propriedades tiveram acréscimos de área,
e 56,86% das propriedades visitadas mantiveram inalterada sua área; quanto aos motivos
da fragmentação, prevalecem as divisões por herança e por motivos econômicos.
Quanto à utilização das terras, observou-se o predomínio da pecuária, uma vez que
ela ocupa 57,08% do total da área. A agricultura é também expressiva, ocupando 33.77%.
O restante da área é ocupada por mata nativa (6,44%) e implantada (0,22%) e áreas inaproveitáveis (2,50%).
Percebe-se que os agricultores familiares entrevistados direcionam suas atividades
a uma dualidade - agricultura e pecuária. Tal fato pode ser explicado por diversos fatores: o
clima, o tipo de solo, a topografia, o preço de oferta e demanda dos produtos. Assim, a prática
da agricultura e da pecuária, simultaneamente, busca a otimização do processo produtivo,
racionalizando, cada vez mais, o consumo de produtos e reduzindo os gastos.
Ambientes
estudos de Geografia
59
Infra-estrutura
De maneira geral, predominam as benfeitorias de madeira, fato que está relacionado
ao custo e, muitas vezes, à disponibilidade de matéria-prima no local que além do uso próprio, muitas vezes propicia ao proprietário a exploração comercial. Destaca-se a presença
de uma serraria na área em estudo.
O padrão das benfeitorias, na maioria das propriedades, demonstra o poder aquisitivo
de cada família, pois, quando o agricultor apresenta melhores condições econômicas, procura
constituir uma casa de alvenaria.
Apesar da área em estudo ser bastante bem servida por rios6, a água destes não é
utilizada para o consumo humano, pois além da contaminação por agrotóxicos e fertilizantes,
recebem também os resíduos, animais, humanos e domésticos. A água dos rios é utilizada
na irrigação de hortaliças, na maioria consumidas cruas, na psicultura, na dessendetação de
animais, e na irrigação do arroz. Entretanto, o problema da água não está na disponibilidade
e sim na infra-estrutura, que necessitaria de investimentos para a construção de mais poços
artesianos e instalação de tabulações para distribuição.
Quanto à qualidade da água, notou-se que os agricultores são conscientes de que
mesmo classificando a água como “satisfatória”, em geral, nunca realizaram sua análise
química. Apesar de descreverem a água de consumo como boa, essa afirmação vem acrescida de observações como: “boa, mas nunca foi realizada análise”, ‘boa, meio salobra” o
que demonstra que ela não possui, realmente, o padrão adequado. Pode-se afirmar que a
qualidade da água, citada pelos entrevistados, tem um valor relativo, uma vez que a sua
caracterização como boa não se prende a nenhum dado cientificamente comprovado. A água
para consumo humano vem, na maior parte, de poços rasos (cacimba) ou de fontes naturais
consumida sem prévia ou com simples desinfecção.
Constatou-se que 36,84% dos entrevistados não possuem fossa cloacal, e mesmo os
esgotos domésticos (restos de comida, sabão, detergentes, águas de lavagem) apresentam,
em alguns casos, destino a céu aberto.
Pode-se concluir, pois, quanto ao padrão de vida, a maioria dos produtores familiares
do 20 Distrito, moram em casas de madeiras, mas sem esgoto e com abastecimento de água
para consumo, precário quanto à qualidade. O padrão de vida reflete a renda, ou seja, o poder
de barganha de cada Unidade de Produção Familiar.
Ainda em termos de infra-estrutura, a situação de certa forma, caracteriza-se pelo
abandono do poder público. Se houvesse uma maior participação do poder público, o problema da distribuição e uso dos recursos hídricos talvez pudesse ser resolvido a contento,
como no caso da localidade da Vila Toroquá, que dispõe de recursos naturais de grande
significado paisagístico, compondo cenários que poderiam propiciar o desenvolvimento de
atividades turísticas e de esportes aquáticos, constituindo-se em fonte de renda alternativa
6
A área em estudo é drenada pelos rios Toroquá, ao norte, arroio Piquiri a leste, arroio Jaguari-mirim a oeste e rio Jaguari,
ao sul. Na parte central, estão as drenagens: Lajeado Seco, Arroio Inhandiju, Sanga do Areião, Sanga do Buricaci ou
Salso, Sanga Buricaci, Sanga do Noé, Sanga Funda e Sanga do Paulo.
60
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
e desenvolvimento para a região. Algumas Unidades de Produção Familiar apesar de possuírem recursos paisagísticos, não os exploram devido a barreiras econômicas e culturais
(Gerardi, 1980) que se colocam como entrave ao desenvolvimento rural, incluindo, além
destas, a barreira política.
A manutenção das pessoas no meio rural ocorrerá se forem tomadas medidas voltadas
ao desenvolvimento do Distrito como um todo. Para isto são necessárias boas estradas, telefonia, infra-estrutura para água e esgoto, eletrificação, enfim, requisitos básicos essenciais
para ocorrer, o que se pode denominar apenas como uma condição digna de sobrevivência
no meio rural.
O uso do solo e a produção agropecuária
O 2o Distrito, Vila Toroquá, apresenta aspectos fisiográficos geomorfologicamente
associados ao rebordo ao topo do planalto. Com altitudes variando de 102 a 352 metros.
Os solos deste distrito diferenciam-se conforme as características do substrato geológico e do relevo na área de encosta. As vertentes apresentam declividade elevada, com
um substrato de rochas vulcânicas, gerando um solo pedregoso, que apresenta espessura
variável, textura argilo-arenosa, com horizonte orgânico de 60 cm de espessura7. A inclinação
das vertentes e a grande pedregosidade no solo dificultam a mecanização em algumas áreas,
como é o caso das localidades de Vila Toroquá, Rincão dos Salbegos e Rincão dos Dornelles.
Nas áreas onde o relevo é menos acidentado, com substrato predominante de rochas
sedimentares da Formação Rosário do Sul, representadas por arenitos finos com coesão
média a baixa e rochas sedimentares cenozóicas com baixa coesão (VEIGA; MEDEIROS;
SUERTEGARAY, 1987), forma-se um solo com textura silte-areia fina, com baixo teor de
material orgânico e muito suscetível aos processos de erosão, gerando sulcos e ravinas.
As atividades de rizicultura associam-se às áreas de várzeas dos rios Jaguari-Mirim,
arroio Piquiri e, principalmente, junto ao rio Jaguari. Nestas áreas, os solos caracterizam-se
por serem hidromórficos, desenvolvidos pelos sedimentos recentes depositados pelos rios.
Principalmente na encosta, mesmo em pequenas propriedades, o solo varia conforme
a inclinação da vertente, e também o material, produto de alteração.
Nas vertentes muito inclinadas, os processos erosivos impedem o desenvolvimento
de um perfil espesso de solo, resultando em solo pedregosos. Nas áreas onde a vertente é
menos inclinada, os processos de intemperismo têm o tempo necessário para o desenvolvimento do perfil.
De qualquer modo, são grandes as limitações ao aproveitamento agrícola dos solos
e grande, também, o risco de sua degradação o que recomendaria o uso de estratégias de
produção conservacionistas.
Mesmo sendo a agroecologia difundida como estratégia de desenvolvimento rural
7
Conforme a descrição feita por Prof. Dr. Luis Eduardo de Souza Robaina da Universidade Federal de Santa Maria na
visita de campo realizada em 26 de janeiro de 2001.
Ambientes
estudos de Geografia
61
sustentável, buscando a manutenção da produtividade agrícola com o mínimo possível de
impactos ambientais e com retornos econômicos e financeiros satisfatórios, a maioria dos
agricultores das Unidades de Produção Familiar não adota os sistemas alternativos; uns
porque não acreditam que seja possíveis produzir sem agrotóxicos, e outros pela falta de
mercado. A opinião dos entrevistados se divide entre aqueles que não consideram a agricultura ecológica como alternativa viável e aqueles que consideram a possibilidade de a
praticar mas não praticam.
Somadas as respostas dos que não consideram a produção orgânica economicamente
viável (9) aos que não a vêem como alternativa (12), teríamos que a maioria dos entrevistados
que tem uma opinião (41,18%) não está propensa a praticá-la.
Notou-se que a adoção de produzir agroecologicamente depende, primeiramente,
do interesse do agricultor familiar nos benefícios da agricultura sustentável. Outros fatores
também foram apontados como importantes para promover esse tipo de agricultura, tais
como a facilidade de linhas de crédito, mercados, tecnologias apropriadas, assim como a
facilidade no acesso a terra, à água e aos recursos naturais. Entretanto, constatou-se que a
proposição e a estratégia agroecológicas são ainda frágeis e se fundam em critérios fortemente
culturais e técnico-econômicos e muito pouco em critérios sociopolíticos (ALMEIDA, 1997).
A agricultura é base da economia da área pesquisada e responsável pelas relações
de produção e reprodução do espaço. Os principais produtos agrícolas, de acordo com a
importância econômica, distinguiam-se nas diferentes paisagens rurais da área: enquanto
para algumas Unidades de Produção Familiar, a cultura mais importante era a do fumo, para
outras, era o arroz, o milho, o aipim, a batata doce. Esta variedade devia-se, à topografia, e,
ao tipo do solo, bastante variado na área. Havia, no entanto, algumas exceções: para alguns,
os principais produtos rentáveis eram as hortaliças e as frutas. No primeiro caso, estão os
agricultores que produzem com o uso de estufas; no segundo, aqueles que produzem frutas
nos pomares.
De maneira geral, ocorria um predomínio das culturas temporárias, mas alguns cultivos permanentes e pastagens também são comuns na área. Uma cultura bastante difundida
é a do fumo, em geral o de estufa.
A produção primária é destinada para as empresas do complexo agroindustrial fumageiro de Santa Cruz do Sul/RS.8 da qual dependem os agricultores familiares.
Os sistemas de cultivo dividem-se entre convencional e direto, dependendo do tipo
de cultura, relevo e solo. O sistema convencional ainda é predominante (49,02% do total
de respostas), e o sistema de plantio direto é menos presente (11,76%). Alguns agricultores
já demonstram as vantagens do método de plantio direto como uma das formas de prevenir
a erosão.
O tipo de solo e relevo se refletem no uso de sistemas de cultivo e no uso de mecanização. O uso de tração mecânica ocorre em áreas de topografia suave e, geralmente, no
cultivo de arroz e pecuária. Entretanto a maioria dos equipamentos são antigos, que precisam
8
Destaca-se que um dos produtores (Clenio Bataglin) recebeu mérito de produção em qualidade da empresa Souza Cruz,
pela segunda vez consecutiva.
62
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ser reformados, principalmente os tratores e as colhetadeiras. Já os equipamentos para o
uso de agrotóxicos são recentes.
A criação de animais de pequeno porte é bastante comum na área, servindo tanto
para consumo na unidade de produção - carne e derivados (leite, queijos, manteiga, ovos,
banha, salame e outros) -, quanto para servir como força de trabalho, no caso do rebanho
bovino e eqüino, uma vez que a tração animal, em algumas áreas, é largamente utilizada nas
tarefas agrícolas e no transporte, dada a movimentação do relevo, com áreas de expressiva
declividade.
Todas as Unidades de Produção Familiar apresentaram produção pecuária, embora
enfrentassem problemas principalmente com a comercialização, correndo diversos riscos
ora com os atravessadores, ora com as “empresas fantasmas” e outras vezes com os cheques
sem fundo como relata SARTORI (1998), a partir da fala do agricultor José Olmiro Gindri.
Apesar de todos esses riscos, a produção mantém-se, seja para consumo, complementação
de renda ou como atividade econômica predominante.
Outro problema sério que estamos enfrentando na pecuária é a indústria do
estelionato. É uma coisa de louco o que tem de estelionatário na pecuária.
Você vende e não te pagam. Dão cheque sem fundo, ou de contas que
estão encerradas. É impressionante o que a gente tem tido de problema.
(SARTORI, 1998, p.349)
As propriedades entrevistadas criam aves, bovinos, peixes, suínos, ovinos, além de
praticarem apicultura. Esse conjunto diversificado de animais, além do abastecimento das
unidades de produção familiar, tem também finalidade comercial, ajudando na manutenção
das atividades na propriedade.
Destacam-se comercialmente os bovinos e os ovinos, porém, o excedente e os produtos derivados de outras espécies (ovos, mel, etc) também eram dirigidos ao comércio. É
importante destacar que os agricultores, muitas vezes, são obrigados a vender cabeças do
rebanho para cobrir outras despesas.
Em relação aos eqüinos, sua finalidade era apenas para a “lida” do campo, sendo
bastante rara sua venda. Os suínos destinavam-se mais para o consumo, geralmente abatidos na propriedade para suprir as necessidades do agricultor, com relação à carne, banha e
subprodutos produzidos artesanalmente como o salame e a morcilha.9
Os peixes apareciam nas Unidades de Produção Familiar, em especial para o consumo, já existindo, contudo, o interesse pela comercialização, ocorrendo o mesmo com
a apicultura. Embora a criação de ovinos fosse reduzida, era mantida para o consumo e
comércio. O destino do rebanho era principalmente para a alimentação. Já a lã era vendida
na cooperativa da cidade. Algumas pessoas também trabalhavam artesanalmente com a lã,
tecendo o fio para confecção de tapetes, blusões e casacos. A tosquia das ovelhas era feita,
em geral, pelo próprio agricultor em época adequada.
O acesso ao mercado para as unidades amostradas depende de alguns fatores como
9
Expressão utilizada regionalmente para produto comestível feito à base de carne suína e sangue.
Ambientes
estudos de Geografia
63
tipo de produto e localização espacial. Assim, por exemplo, a produção de fumo destina-se
parte à empresa Souza Cruz e parte à empresa Meridional de Tabacos Ltda, ambas de Santa
Cruz do Sul -RS. Estas mantêm uma relação com o agricultor, na qual o produtor, além da
compra de semente, faz todo o financiamento para a sua lavoura, comprando tudo de que
necessita desde fertilizantes, acessórios de plantio, etc. diretamente e exclusivamente na
indústria. É uma forma de controle e, ao mesmo tempo, de monopólio, ou seja, o agricultor
está subordinado à empresa, tanto para produzir, quanto para comercializar.
Os agricultores que produzem frutas, batata-doce, aipim e/ou feijão, entregam sua
produção aos intermediários que a levam, geralmente, para a cidade de Uruguaiana, para ser
comercializada em supermercados e feiras. Quem produz hortaliças e verduras, comercializaas diretamente na feira da cidade, nos mercados locais e, excepcionalmente, em sua própria
propriedade, devido à distância da sede do município. Os produtores familiares, feirantes de
hortifrutigranjeiros, vendem seu excedente em condições muito singulares. Sua capacidade
produtiva é dada de acordo com a disponibilidade de terra e de braços familiares. (raramente
com auxílio de mão-de-obra contratada e/ou temporária)
“Como” e “para quem” é produzido são questões-chave que precisam ser levantadas para uma agricultura socialmente justa. Os agricultores da área referiram-se à falta de
mercado no município, argumentando que o ideal para absorção de seus produtos seria a
existência de uma fábrica de farinha de mandioca e de suco de laranja.
Além de mudanças locais, apontam ainda as relativas às políticas agrárias, abrangendo
mercados e preços e investimentos governamentais. Um exemplo citado é a comercialização
do fumo, na qual o produtor recebe muito pouco pela matéria-prima que oferece ao setor
industrial, sendo os preços mínimos, geralmente, menores que o custo de produção.
Considerando a diversidade da produção, a possibilidade de desenvolvimento da
agroindústria é bastante significativa no município e no Distrito, no qual localiza-se, uma
das principais agroindústrias do município: a Agroindústria de Produtos “Nossa Casa”. Esta
iniciou suas atividades em 1999, produzindo bolachas e, atualmente, produz cerca de 15
produtos que vão desde licores, bolachas, salgadinhos, cucas, pães, merengues, geléias até
doces secos e em calda.
No momento, os produtos mais importantes para esta agroindústria são o merengue
e o salgadinho “QUERO MAIS”. Segundo relato de uma das sócias10, foram incansáveis na
promoção dos produtos no comércio, o que resultou na colocação de seus produtos em mais
de 40 pontos de comercialização, em São Francisco de Assis e em outros municípios como
Nova Esperança do Sul, Jaguari e Rosário do Sul. Atualmente, a agroindústria já emprega
mão-de-obra temporária e permanente e seus planos futuros são de expandir seu mercado
principalmente para outros municípios.
Outra agroindústria foi instalada recentemente nesse Distrito, na localidade de
Perseverança, e tem como principal produto docinhos. (“Doces de Luizinha”-Unidade de
beneficiamento de doce Luizinha). Os doces produzidos são diversos: figo em calda, laranja
10
Entrevista realizada em 06/07/00, com a proprietária da agroindústria.
64
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
azeda em calda, cocada silvestre, doce de cenoura, sequilho de laranja, geléia de amora,
doce de leite em pasta etc., utilizando frutas produzidas localmente.
Uma das agroindústrias optou pelo financiamento, ou seja, o Fundo Municipal da
Agricultura. Este financia produtores com juros menores em relação à rede bancária e também propicia um prazo para pagar com determinado tempo de carência.
Quanto ao PRONAF, uma das proprietárias argumentou sobre a burocracia, dizendo:
“Como pessoa física não conseguimos. Para a própria empresa existe uma dificuldade muito
grande porque o financiamento exige um projeto no qual tem que ter a certeza de colocação
do produto” (informação verbal).
Uma das proprietárias da agroindústria, também possui um atelier, visando o aumento
da renda familiar. Ela repassa os retalhos a outras mulheres da sua localidade para confecção de colchas, tapetes, almofadas, entre outros. Além de empregar direta e indiretamente
mão-de-obra.
Além das agroindústrias diversas outras atividades não-agrícolas encontram-se na
área em estudo entre elas, destacam-se os artesanatos de lã, plástico e retalhos de tecidos.
Com a crescente e constante descapitalização da agricultura, as Unidades de Produção Familiar, tentam buscar formas alternativas de sobrevivência, ou seja, para auxiliar na renda
familiar, tendo sido esta uma saída viável para muitas famílias. Também se encontram na
área em estudo alguns comércios locais, conhecidos por “bolichos”, onde se vendem produtos geralmente não – perecíveis.
Outro problema recente, enfrentado pelas proprietárias, referia-se à comercialização fora do município ou seja, era necessário o “selo sabor gaúcho”11. Apesar de todos os
problemas com a comercialização dos produtos, a sua venda é a única forma de acesso ao
mercado de bens e serviços, indispensáveis para os padrões atuais de vida. Desse modo, a
justificativa principal para a adoção de novas estratégias produtivas – o que, em alguns casos,
implica reconversão – está no aumento da competitividade. É preciso produzir não somente
aquilo que é mais adequado às condições físicas regionais, mas o que é possível vender em
condições mais vantajosas em termos de preço e lucro (BRUMER, 1999).
Entre os benefícios destaca-se a geração de postos de trabalho, agregação de valor
ä produção, geração de renda, desenvolvimento local e regional, diminuição do êxodo e
melhoria da qualidade de vida da população rural. Para isso o programa conta com diversas
ações e serviços: financiamento, formatação, nota do produtor, selo Sabor Gaúcho, legalização e comercialização.
Trabalho
O trabalho familiar, presença marcante no processo produtivo das unidades de produção, é representado, principalmente, pelos pais e filhos, todos em prol do objetivo comum,
11
O Programa da Agroindústria Familiar- Sabor Gaúcho visa melhorar as condições gerais de vida da população rural,
através da implantação ou adequação de pequenas unidades agroindustriais, gerando oportunidades de trabalho e renda
no interior do Estado.
Ambientes
estudos de Geografia
65
de satisfação das necessidades básicas da família, pois nenhum recebe salário. Observou-se,
também, que o trabalho infantil está presente, assim, como o trabalho feminino, que apareceu
tanto em atividades agrícolas como não-agrícolas.
De acordo com os agricultores familiares, o tempo gasto com as atividades agrícolas
na propriedade depende da estação do ano da atividade desenvolvida. Assim, na época da
colheita do fumo, por exemplo, o número de horas de trabalho aumenta.
Em termos de média, o tempo dispensado com as atividades agrícolas da propriedade,
no inverno, é de seis a oito horas diárias (60,78% das respostas) e no verão, varia, havendo
agricultores que trabalham de 6 a 8 horas (23,53%), outros de 9 a 11 horas (25,49%) e de
12 a 14 horas por dia (19,61%).
A produção de fumo demanda muita mão-de-obra, desde a produção da muda até o
plantio definitivo. As práticas utilizadas seguem as recomendações das indústrias fumageiras
que estabelecem o padrão tecnológico de produção empregado, cuja alteração é praticamente
impossível. Na área rural, no decorrer da internacionalização da economia local, as multinacionais passaram a ampliar o número de pequenos produtores integrados, impondo-lhes
o seu padrão tecnológico como é o caso da cultura de fumo.
A atividade agrícola é uma atividade que necessita de permanente atendimento,
porém, em algumas épocas, a demanda de mão-de-obra diminui e os agricultores procuram
serviços alternativos nesses períodos, entendendo por serviços alternativos, os trabalhos
de cortar lenha, roçar, arrumar e/ou fazer cerca, ajeitar o chiqueiro, fazer horta, limpar o
potreiro, fazer uma encerra12, ou uma mangueira13 etc.
Alguns dos agricultores dedicam-se mais à pecuária nessa época e outros trabalham,
temporariamente, em outras propriedades. No período de maior trabalho, ou seja, nos chamados “picos”, a maioria dos agricultores (cerca de 63%) aumentam as horas de trabalho
em suas atividades rurais, complementando ou não suas necessidades com a agregação
de outros membros da família, contratando mão-de-obra ou trocando dias de serviço com
vizinhos e parentes.
Porém, como destaca Neves (1995, p. 74),
O trabalho familiar pode estar inviabilizado e substituído por trabalhadores
assalariados temporários em virtude de determinações do ciclo de vida da
família, fato comum nas unidades de produção cujos proprietários têm
filhos pequenos ou são pessoas idosas ou mulheres solteiras ou viúvas.
O período de menos trabalho é compreendido entre os meses de junho e julho, podendo chegar até agosto, no qual fatores metereológicos como: baixas temperaturas, vento,
geadas, nevoeiro, dificultam o trabalho.
O tipo de força de trabalho auxiliar utilizado em geral é animal, sendo o boi predo-
12
13
Encerra- expressão utilizada para representar um chiqueiro para suínos.
Utilizada para a pecuária.
66
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
minante nos serviços de transporte e preparação da terra, principalmente nas culturas de
fumo, aipim, batata-doce e soja, nas quais também são presenças marcantes as trilhadeiras
e carroças. Entretanto, parte do distrito (Mocambo, Piquiri, Passo do Banhado), utiliza força
mecânica, representada pelos tratores.
A diferenciação de uso de força de tração animal e mecânica no 2º Distrito, Vila Toroquá, ocorrem por uma série de fatores, dentre os quais destacam-se o relevo tipo de solo
e poder aquisitivo da unidade de produção familiar. A topografia plana em partes do distrito
e as várzeas, onde se cultiva o arroz, permitem a mecanização intensiva.
As unidades de produção familiares exploradas por agricultores que utilizam tração
animal estão, em geral, em áreas que apresentam topografia acidentada, com predominância
de solos pedregosos. Trata-se de agricultores que, provavelmente, não se mecanizaram em
função do pequeno tamanho da, superfície agrícola disponível, das características topográficas
e pedológicas desfavoráveis e, por conseqüência, pelas dificuldades de acesso ao crédito rural.
Assistência técnica à unidade de produção familiar e o associativismo dos produtores
A assistência técnica pode ser considerada pouco eficaz na área pois muitas das unidades de produção familiar ainda não recebem nenhum tipo de assistência. Um dos fatores
que contribui para isso é grande extensão do Distrito, porém, não seria o principal, pois,
como relatou um agricultor: eles vêm no vizinho e, nunca chegaram à casa dele.
Às vezes, a assistência é direcionada às unidades de produção familiar que são
consideradas modelos ou aos amigos, familiares e ou conhecidos. Nas respostas, ficou
comprovado que, em algumas localidades, a assistência foi menos presente que em outras
em razão, talvez, da diferenciação das culturas desenvolvidas ou de questões políticas.
A assistência técnica é fornecida por diferentes órgãos, destacando-se nas entrevistas
realizadas a Empresa Souza Cruz, devido ao número de plantadores de fumo, em seguida a
EMATER e, por último, a Secretaria Municipal de Agricultura que eventualmente, trabalham
em parcerias em prol desenvolvimento do setor rural do distrito. (Programa Troca-Troca,
por exemplo).
A EMATER, na opinião dos agricultores, quando aparece no interior, dá assistência
a poucos produtores, mas continua distante da maioria. É possível que haja boa vontade
dos técnicos, mas parece que o número deles em atividade é pequeno, além da falta de
recursos financeiros.
Outras entidades, como a Agrotop (Empresa Particular de Assesoria), as EscolasPólos e a Cooperativa Assisense também prestam assistência técnica.
A visita de um agrônomo geralmente ocorre nas propriedades em que acontece
financiamento ou onde estão sendo desenvolvidos projetos. Observou-se que a visita e/ou
procura por um profissional agrônomo é reduzida, pois metade dos entrevistados nunca
procurou e/ou receberam a visita de um agrônomo, assim a falha também é dos próprios
agricultores. O restante, 23,53% receberam e/ou procuram há menos de um ano e 17,65%
(não têm contato com agrônomos há mais de 3 anos).
Ambientes
estudos de Geografia
67
Com relação às políticas públicas, 33 agricultores foram e são beneficiados por elas
e o programa que mais beneficiou esses agricultores foi o Troca-Troca, por ser menos burocratizado que os outros. Este consiste como uma oportunidade de subsídio de sementes à
agricultura familiar. Os agricultores adquirem o produto e, além de pagar mais barato, podem
produzir sua própria semente para o próximo ano. Para cada quilo de semente adquirido
existe a proporção de troca, dependendo do tipo de semente.
Outro programa é particular da Empresa Souza Cruz, no qual a relação é direta entre
produtor e empresa porque estas têm interesse em que o produtor alcance um produto de
qualidade para reverter em maiores lucros.
Quanto ao financiamento agrícola, alguns agricultores se manifestaram, com medo
de endividamento, porém evidenciou-se que 67,35% dos agricultores em estudo utilizaram
algum tipo de financiamento entre eles: o Troca-Troca (42,55%) o Pronaf e suas categorias
(Pronafinho, Pronaf/Custeio) 27,66% e das Empresas de fumo (Empresa Souza Cruz e
Empresa Universal Ltda.) 25,53%. Com menores proporções utilizaram o FEAPER (Fundo
Estadual de Desenvolvimento e Apoio aos Pequenos Estabelecimentos Rurais ) 4.26%.
O associativismo também é um traço marcante na produção familiar, seja aquele
voltado para a agregação de valor ou comercialização da produção, seja o associativismo
cultural/religioso. Estas formas de organização representam como o agricultor familiar está
integrado à sociedade.
• Cooperativas
Todos os entrevistados eram sócios da única cooperativa do município (Cooperativa Mista Assisense), instituição exercendo liderança entre produtores, cuja função é a
armazenagem e industrialização da produção. Além da cooperativa do município, alguns
proprietários eram sócios de cooperativas de municípios vizinhos, fato decorrente não só
da proximidade de onde residem, como também de elas, muitas vezes, apresentarem preços
mais satisfatórios.
A Cooperativa Agropecuária Mista Assissense associa 4.910 produtores de arroz,
soja, milho, trigo, sorgo, feijão, azevém e lã. A região serrana, a leste do município, onde
está a área de estudo, é ocupada por minifundiários, em geral de ascendência italiana, que
possuem em média 25 hectares. Apesar de somar 70 por cento dos associados, o que eles
produzem de milho, soja e feijão só garante a subsistência da família, ou seja, seu volume
de produção, é insignificante, quando comparado ao dos arrozeiros, cerca de 30 por cento
dos associados e que se concentram no sul do município, na planície irrigada, por onde se
estendem suas lavouras de mais de 500 hectares (SARTORI et al., 1988).
Assim, os agricultores da área estudada pouco representam para esta cooperativa,
quer pela quantidade de produto entregue, quer porque muitos dos sócios entregam seus
produtos em outras cooperativas de cidades vizinhas ou para empresas específicas, como
no caso do fumo e da laranja.
• Sindicato rural
68
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Todos os agricultores entrevistados eram sócios do sindicato dos trabalhadores
rurais, cuja importância está unicamente na assistência médica e odontológica dispensada
aos produtores e seus familiares.
• Associação de moradores
A maioria dos proprietários (80,39%) eram sócios das associações de moradores14.
Nestes grupos organizados são discutidos inúmeros problemas enfrentados pelos produtores,
tanto de ordem tecnológica, voltados à questão da produção agropecuária quanto relativos
ao desenvolvimento rural.
• Centro de tradição gaúcha (CTG)
Outra forma de organização dos agricultores familiares, na área em estudo, se dá
por meio dos CTGs. Estes representam um lugar de encontros, de entretenimento cultural,
social e político. Na maioria das localidades os agricultores entrevistados mantêm os hábitos
gaúchos tradicionalistas, cultuados como um símbolo do estado e representados nos CTGs,
desde 1948, quando foi fundado o primeiro núcleo (COSTA, 1998).
• Igreja/Clube15
A igreja, em geral católica, algumas evangélicas, assim como os clubes são marcos
em cada localidade e pontos de referência para os encontros nos domingos. Uma filha de
agricultor deu o seguinte depoimento sobre os encontros sociais da sua comunidade:
Nos fins de semana as pessoas se reúnem, principalmente os homens, no
clube, para jogar bocha, baralho, beberem e jogarem futebol. Nos domingos, escutam o terço na igreja. De três a quatro vezes por ano, sai festa
na Igreja, vem gente de todo lado para comerem e beberem. No clube às
vezes sai baile com músicas gaúchas.16
Nas palavras, de outra filha de agricultor pôde-se sentir a importância do lazer para
a comunidade.
Para as moças e rapazes se conhecerem e acharem uma pessoa com quem
possam se casar, a diretoria da comunidade contrata artistas e fazem bailes e
festas, assim todos da comunidade e de comunidades vizinhas se divertem.17
Associação Comunitária Perseverança; Associação Comunitária Passo do Leão; Associação Comunitária Rincão dos
Salbegos e Trombine; Associação Comunitária Rincão dos Dornelles; Associação Comunitária dos Moradores de Toroquá
e Encruzilhada; Associação dos Moradores de Vassoura; Associação Comunitária Nossa Sra. Fátima do Inhandiju; Associação dos Moradores de Timbaúva e Buricaci; Associação dos Moradores “Nossa Casa”, Grupo de Produtores Monte
Carlo. A associação “Nossa Casa” diferencia-se do conjunto, pois foi criada em função da agroindústria de origem familiar.
15
Clube é o nome dado pelos moradores ao salão anexo à igreja.
16
Caroline Brandolff Stivanin. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 7a série da Escola Estadual de de 10 Grau João
Octavio Leiria.
14
Ambientes
estudos de Geografia
69
As relações com o meio ambiente
Atualmente, a preocupação com o meio ambiente no meio rural é cada vez mais
notável e uma das questões mais candentes é a relativa ao destino do lixo. Com relação a
este assunto, o agricultor local pode até ter consciência, mas mostra atitudes inadequadas,
talvez pelo fato de não haver coleta no meio rural. Assim, joga-se todo e qualquer material
muitas vezes em lugar impróprio, como pode ser constato no flagrante obtido no trabalho
de campo. Os agricultores familiares geralmente utilizam a técnica de queimar o lixo ou
colocá-lo em um “peralzinho”18, como eles dizem, ou fica em qualquer lugar, sem destino.
Porém, percebeu-se nesses agricultores, o despontar de uma consciência com respeito ao
lixo orgânico que pode ser aproveitado.
Notou-se uma preocupação maior dos produtores fumicultores em relação às embalagens dos agrotóxicos, reflexo das exigências das empresas relacionadas ao ramo. A
Empresa Souza Cruz exige dos agricultores um lugar específico para armazenagem dos
produtos e das embalagens vazias. Entretanto, o acúmulo de embalagens está preocupando
os agricultores, pois a empresa havia se proposto recolhê-las e até o presente momento tal
coleta não aconteceu.
Fertilizantes, agrotóxicos, sementes geneticamente melhoradas fazem parte do rol
de agrotecnologias que complementam o padrão tecnológico atual.
A utilização de agrotóxicos é fator que interfere no meio ambiente. E, segundo a
pesquisa, constata-se que seu uso, por parte dos agricultores vem crescendo, pois quase 50
% deles informou que tem mantido o volume utilizado, enquanto outros 25% disseram que
tem aumentado a utilização.
A intensificação da agricultura brasileira, traduzida pelo emprego excessivo de insumos externos, sem uma utilização eficiente, tem levado a uma decadência ambiental dos
sistemas agrícolas e ao empobrecimento da base de recursos responsável pela sua renovabilidade no tempo e no espaço e, dentro do atual contexto ambiental global, ao empobrecimento
da base de recursos naturais não-renováveis (FRANCISCO, 1998).
Há relatos dos agricultores de envenenamento de si ou de membros familiares ou
vizinhos, por falta de cuidados. Embora a maioria dos agricultores esteja consciente de que
os agrotóxicos são nocivos à saúde, afirmam que quase não usam equipamentos de proteção
para a aplicação e, quando ocasionalmente os usam a utilização se dá de forma incompleta
ou inadequada.
Ocorre um maior cuidado entre os produtores de fumo, pois a própria empresa controla
a venda dos agrotóxicos e os equipamentos de uso e proteção, uma vez que a produção de
fumo exige uma quantidade considerável de agrotóxicos para garantir qualidade, compatível
com os padrões exigidos pelo mercado internacional.
Alguns dos agricultores da área em estudo utilizaram a técnica “float” que permite
Mirian Cristiane M. Parize. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 7a série da Escola Estadual de de 10 Grau João
Octavio Leiria.
18
Fundo de vale, baixada.
17
70
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
menor uso de agrotóxicos na fumicultura. Essa técnica consiste na produção de mudas de
fumo sob cobertura plástica, com substrato de bandejas flutuantes em uma lâmina de água.
São poucas as Unidades de Produção Familiar que não utilizaram agrotóxicos,
8,84% o que demonstra a dependência de insumos químicos como fertilizantes, adubos,
inseticidas, pesticidas, etc., todos de elevados preços, aplicados em produtos que valem
geralmente menos que eles.
A utilização de agrotóxicos ocorre em geral por conta própria, com a participação
da própria mão-de-obra familiar. Segundo os agricultores entrevistados 31,37% deles não
utilizaram nenhuma orientação técnica para a aplicação dos agrotóxicos, e apenas 9,80%
leram a bula e/ou o manual. Isso demonstra que o produtor, baseando-se na sua experiência ou
na dos mais idosos e vizinhos, não dá crédito à possibilidade de ser intoxicado ao manusear
inadequadamente o produto, ou incorrer em erros de dosagem do tipo que podem causar
conseqüências nefastas para o homem e desastrosas para o meio ambiente.
Diferente do que ocorre em outras áreas do município de São Francisco de Assis,
os problemas de erosão existentes no 2o Distrito são mínimos e os agricultores procuram
combatê-los por meio de pastagem, reflorestamento, atulhamento e até desvio do escoamento.
Um outro problema ambiental diagnosticado refere-se à prática, ainda comum na
região, de queimadas na preparação da área para plantio. Isso torna-se mais grave nas áreas
de encosta, junto às vertentes com alta declividade, pois facilita o desenvolvimento dos
processos de erosão física e biológica do solo.
O desmatamento da vegetação ciliar foi um outro problema verificado. Essa ação
compromete os cursos d’água, pois aumenta o assoreamento do canal e a erosão das margens.
A retirada da vegetação nas encostas, além de provocar uma maior instabilidade com relação aos processos erosivos, provoca o desaparecimento de fontes d’água que vão sustentar
os pequenos arroios, causando uma grande diminuição das reservas de água superficial e
subterrânea. Com relação às águas subterrâneas, altamente utilizadas para o abastecimento
domiciliar, correm sérios riscos de contaminação porque os poços observados não apresentam técnicas adequadas na sua construção e manutenção. Portanto, a poluição dos aqüíferos
é um risco sério a que está sujeito o 2o Distrito do município de São Francisco de Assis.
Levantadas estas questões, conclui-se, concordando com Altieri (2000) que a facilidade do acesso, pelo agricultor, à terra, à água, aos recursos naturais, bem como a linhas
de crédito, mercados e tecnologias apropriadas, é fundamental para assegurar o desenvolvimento sustentável.
A trajetória da unidade de produção familiar e os objetivos do agricultor
O tempo de moradia na localidade das entrevistas variou de um a 70 anos, mas, em
geral, as pessoas que ainda moravam nessa localidade, aí tinham nascido. Considerando os
dados da tabela 25, tem-se que as maiores parte dos amostrados, 56,86% dos proprietários,
residiam na localidade há mais de 24 anos e que, em muitos casos, era a segunda geração
no mesmo local, mostrando o processo de reprodução da produção familiar.
Ambientes
estudos de Geografia
71
Da percepção dos proprietários, quanto às mudanças ocorridas no distrito e nas
suas propriedades, destacam-se aquelas ligadas à infra-estrutura (51,56%), diminuição no
número de moradores (6,25%) crise econômica (6,25%), diminuição da fertilidade da terra
(4,69%). Os reflexos da crise econômica são sentidos no próprio êxodo rural e este se reflete
na produção; o esgotamento da terra é um dos fatores que também se destaca nas modificações que ocorreram nos últimos 30 anos, fruto de um processo de manejo inadequado,
em que o próprio agricultor não apresenta, na maioria dos casos, condições de recuperação
ou de prevenção.
Quanto ao êxodo rural Sartori et al. (1998, p.362), usando as palavras de um entrevistado, enfatizam:
Na verdade não tem ninguém mais morando nessas serras, isso aqui está
virando um asilo de velhos. Você chega e só vê aposentado, ganhando
esse salariozinho de miséria, plantando uma coisinha ou outra. Já faz um
tempinho que isso começou. Hoje não tem mais ninguém para trabalhar,
enquanto antes era fácil juntar uns dez ou doze homens para a triagem. Hoje
não se arruma mais peão, porque ninguém mais quer trabalhar no campo.
As mudanças na infra-estrutura são notáveis nas estradas, eletrificação rural, educação
e nas próprias benfeitorias das casas. Essas mudanças são sentidas e passadas de geração
em geração como é descrita por um filho de agricultor:
[...] as famílias que ali viviam tinham que ir para a lavoura ajudar os pais nas
plantações, a palavra “lavoura” não é a palavra certa para isto, na verdade
eles tinham que ir para o cerro, no caminho para o cerro eles cruzavam
sangas, matos fechados, corriam riscos de serem picados por cobras e
demais animais, mas eles tinham que ir pois era daquelas plantações como
aipim, batata, feijão que sua família se alimentava.
A educação é, talvez, o melhor exemplo de mudança no Distrito19. Em 1926, o 2o
Distrito recebia um único professor para “dar instrução a alunos pobres”, como reza o termo
de compromisso por ele assinado:
Aos dez dias do mês de fevereiro de mil novecentos e vinte e seis, compareceu no Gabinete Intendencial, o cidadão José Rodrigues Montanho,
professor particular, no lugar denominado Durasnal, 2o districto deste
município, para prestar compromisso de dar instrução a alunos pobres,
sujeitando a fiscalização do Inspetor Escolar e as Regulamentações
correspondentes, percebendo a subvenção municipal de oitenta mil réis
mensaes; prestou o compromisso. (Fonte: Termo de compromissos dos
funcionário-Pref. Munic. de S.Fco. de Assis).
Além disso, antigamente algumas coisas eram mais difíceis, como é o caso da acessibilidade às escolas conforme relatado por uma filha de agricultor:
Antigamente, no 2o Distrito, Passo do Leão eles tinham que ir a escola a
pé ou a cavalo muitos não podiam estudar, compravam livros e cadernos
19
Atualmente as escolas pólos do Distrito são duas: Escola Estadual de 1º Grau Incompleto São Conrado e a escola Estadual de 10 Grau João Octavio Leiria.
72
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
para estudar em casa, para ir à cidade eles tinham que andar quilômetros
e quilômetros para chegar onde o ônibus passava, não havia estradas para
passar um carro, nem mesmo às vezes carretas puxadas a boi era difícil.
Hoje já tem uma estrada boa, o ônibus para ir a cidade passa três vezes por
semana, veio mais verbas para a alimentação, limpeza e material escolar
para a escola onde moro. A luz de antigamente era de lampiões e velas,
agora é luz elétrica.20
Apesar dos esforços em oferecer instrução básica no próprio distrito, a população
diminuiu, sendo o principal motivo a saída dos filhos para estudar e/ou trabalhar.
Os “sonhos”, ou seja, os objetivos dos agricultores familiares são diversos, porém
percebeu-se que eles têm vontade de implantar, por meio de atividades agrícolas e nãoagrícolas, seus objetivos futuros na perspectiva de um desenvolvimento rural.
As atividades mais citadas foram: investimento na pecuária (aumentar o número
efetivo por cabeças), melhoria na moradia, investimentos na piscicultura, aumentar a área
de terras, aumentar a área de plantio com culturas, comprar equipamentos agrícolas e poço
artesiano. Notou-se, também, que alguns têm um objetivo específico como: reflorestamento,
turismo rural, fábrica de farinha de mandioca, difusão da olericultura. Esses objetivos parecem óbvios, no entanto, é por meio deles que se deve pensar em alternativas econômicas
e sustentáveis para essas Unidades de Produção Familiar.
Identificou-se, também, que, para as mulheres, os objetivos são diferentes, ou seja,
são metas mais simples de serem alcançadas como: adquirir uma televisão, máquina de lavar
roupa e melhoria no conforto e/ou bem-estar e na infra-estrutura da casa. Por mais que a
mulher rural venha participando cada vez mais da busca de um desenvolvimento rural, ela
apresenta um grande apego em relação ao lar.
Considerações finais
A respeito da agricultura familiar em uma área conhecida como de agricultura e
pecuária tradicional, tendo respaldo nos pressupostos teóricos, nas considerações a respeito
do perfil das Unidades de Produção Familiar da região de estudo e da metodologia utilizada,
conclui-se que alguns problemas emergem, tais como: fixação da mão-de-obra no campo;
ampliação e busca de novos mercados para a colocação do produto; gerência e administração
dos negócios da Unidade de Produção.
No momento este Distrito exibe sistemas de produção cujo aprendizado passa por
herança, gerando produtos como fumo, aipim, batata-doce, feijão, entre outros. Além destes,
ocorrem culturas típicas da região Oeste do Rio Grande do Sul, como arroz e bovinos de
corte, que dependem de vários fatores como, por exemplo, espaço físico apropriado.
A agroindústria rural coloca-se como alternativa para aproveitar as potencialidades
20
Tacieli Cristiane Contena Tolfo. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 7a série da Escola Estadual de de 10 Grau João
Octavio Leiria.
Ambientes
estudos de Geografia
73
existentes em cada realidade, promovendo o seu desenvolvimento. Constatou-se, na pesquisa
de campo, que algumas Unidades de Produção Familiar já enfrentam “novas” alternativa
em termos de cultivo como fruticultura e horticultura e a agroindústria de doces, biscoitos,
bolachas, apresenta como capacidade de adaptação e de diversificação produtiva dos produtores, com possibilidade de explorar economicamente determinados nichos de mercados.
Desta forma, observou-se uma certa diferenciação entre os produtores familiares.
Outra alternativa refere-se a atividades como turismo cultural e turismo ecológico.
Entretanto não bastam os recursos naturais; é necessária a capacitação das Unidades de
Produção Familiar para criação e gestão de produtos turísticos.
A partir desse trabalho, que traça o perfil socioeconômico e mostra as alternativas
de desenvolvimento, um estudo de mercado deveria avaliar a viabilidade para implantação
de um novo ciclo econômico a partir do aproveitamento industrial da produção agrícola
do Distrito como uma proposta para fortalecer as Unidades de Produção Familiar. Fumo,
laranja, aipim, batata são alguns dos produtos de maior potencial no momento, podendo ser
transformados nas unidades familiares agregando valor. Atividades não-agrícolas, como o
turismo, poderiam ser pensadas como alternativas de trabalho e renda.
A busca de um novo perfil socioeconômico para a 2o Distrito, trará um aumento de
renda local, gerará novos empregos, incrementará a circulação de mercadorias e fortalecerá
a ocupação da mão-de-obra ociosa, além do que acarretará aumento de produção. Entretanto
sua concretização depende essencialmente, de decisão política e de apoio financeiro.
É nesse contexto que as políticas para agricultura familiar devem se concentrar, tendo
como perspectiva promover o desenvolvimento rural, incrementando tecnologias adequadas
aos tipos de produtores familiares. Faz-se necessário propiciar o desenvolvimento sustentável
à agricultura familiar, considerando que ela é a base de sustentação das economias urbanas,
e de produtos para os mercados citadinos. Desta forma, abordar o termo “desenvolvimento
sustentável” é bastante complexo, mas pode se apresentar como uma meta para as atividades
agrícolas e não-agrícolas, ou seja, uma alternativa possível para a área em estudo.
Necessita-se, primeiramente fornecer “novos” rumos ao desenvolvimento rural para
posteriormente, com o decorrer do tempo, torna-lo economicamente sustentável.
Referências
ALMEIDA, J. A problemática do desenvolvimento sustentável. In: BECKER, D. F. (Org.).
Desenvolvimento sustentável: Necessidade e/ou possibilidade? Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997a, p. 17-26
74
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre:
UFRGS, 2000, 110p.
BRUMER, A. Qual a vocação produtiva da agricultura familiar? globalização, produção
familiar e trabalho na agricultura. In: TEDESCO, J.C. Agricultura familiar: realidades e
perspectivas. Passo Fundo :EDIUPF, 1999. p.219-309
COSTA, R.H. da. Latifúndio e identidade regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
104p.
EMATER. Relatório anual. 1999. Pré-print.
FAO/INCRA. Diretrizes de política agrária e desenvolvimento sustentável para a
pequena produção familiar. Brasília: FAO/INCRA, 1994. 988p. Projeto UTF/BRA/036
versão preliminar.
FRANCISCO. F. C. Ecossistema agrícola e agricultura sustentável: a busca de uma adequação
entre agricultura e meio ambiente. In: IV SIMPÓSIO DE ECOSSISTEMAS BRASILEIROS,
3., Águas de Lindóia, SP. 1998 Anais... Águas de Lindóia: [s.n.], p.374- 380
GERARDI, L. H. de. Algumas reflexões sobre modernização da agricultura. Geografia,
Rio Claro, v. 5, n. 9/10, p. 19-34, 1980.
IBGE. Censo demográfico 1990.
MENEZES, F. Sustentabilidade alimentar: uma nova bandeira? In: FERREIRA, A.D. D.;
BRANDENBURG, A. (Org.). Para pensar outra agricultura. Curitiba: UFPR, 1998. p.
249-270
NEVES, D. P. Agricultura Familiar: questões metodológicas Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária, Campinas, v.25, n.2/3, p. 21-36, 1995.
SARTORI, A. et al. Agricultura e modernidade: a crise brasileira vista do campo. São
Paulo, [s.n.],1998, 496p.
SCHENEIDER, S.; NAVARRO, Z. Agricultura e novas formas de ocupação no meio
rural: um estudo sobre as tendências recentes. Disponível em: <http:///www.unicamp.br/
agricultura familiar> Acesso em 24 ago. 1999.
SILVA .J. G. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores
rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 192p.
VEIGA, P.; MEDEIROS, E.R.; SUERTEGARAY, D. M.A A gênese dos campos de areia
no município de Quarai-RS. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
ESTUDOS DO QUATERNÁRIO. 1, 1987, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre, [s.n.],1987.
p. 367-371.
VEIGA, J. E. da. Delimitando a agricultura familiar. Revista da Associação Brasileira de
Reforma Agrária, Campinas, v.25, n. 3, p. 125-141, 1995.
A APLICAÇÃO DOS PERFIS GEO-AMBIENTAIS EM SETORES
DA CIDADE DE RIO CLARO (SP)
Susimara Cristina LEVIGHIN Adler Guilherme VIADANA
Introdução
A Geografia tem como objeto de investigação o espaço humanizado e se preocupa
com os elementos que nele interagem. O homem como elemento atuante nesse espaço, tem
contribuído para a degradação ambiental por entender o mundo como uma fonte de recursos,
gerando conseqüências negativas ao meio ambiente. Visto por esse ângulo e ao generalizar
afirmando que o homem destrói a natureza, deve-se lembrar da reflexão de Gonçalves (1990,
p.75), ao buscar no indígena um exemplo de harmonia na relação homem-natureza.
Esse autor afirma que:
[...] ‘o homem está destruindo a natureza’; ao mesmo tempo que se evoca o
exemplo das comunidades indígenas como modelo e paradigma da relação
homem-natureza. E aqui cabe a interrogação: não são os indígenas homens?
Se o são, e essa é verdade inquestionável pelo menos para biologia, de
que tipo de homem estamos falando quando se afirma que ‘o homem está
destruindo a natureza’ ? Claro que quando se trata dos indígenas está-se
falando de uma outra sociedade - de uma outra organização social, de
uma outra cultura. Ora, se isto é verdadeiro, não são os homens enquanto
categoria genérica que estão destruindo a natureza, mas sim o homem sob
determinadas formas de organização, no seio de uma cultura.
Diante da reflexão do referido autor, é necessário ressaltar que o homem dito “civilizado” e o indígena utilizam os recursos naturais, porém em escalas espaciais e intensidades
de deterioração distintas. Pois o primeiro reclama por recursos para a satisfação de suas
necessidades, sem levar em consideração as formas de apropriação dos bens naturais; já o
segundo utiliza práticas que garantam sua subsistência.
É pertinente lembrar que a ação do homem ocidental possui raízes históricas, já que
os europeus instituíram a cultura de exploração no “Velho Mundo” expandindo-a para as
colônias, para atingir apogeu econômico e subjugar os povos colonizados. Portanto, a idéia
de exploração e a busca de recursos perduram até os dias atuais, mas com novos objetivos,
como o de alcançar melhor qualidade de vida e maior comodidade.
Dessa forma ao se explorar esses recursos, são desencadeados alguns processos que
causam danos ao homem e como conseqüência a pobreza, o crescimento acelerado da população, que sempre conectados, deixam de ser um prejuízo local e passam a ser global. Haja
vista a atual tendência para uma economia cada vez mais globalizada, que causa mudanças
intensas e gera novos caminhos para humanidade percorrer trazendo problemas em vários
setores, sejam eles: econômicos, sociais, políticos e ambientais.
76
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
O que sugere analisar os problemas de ordem ambiental na forma integrada, já que
existem estudos diagnosticando que as queimadas locais afetam a camada de ozônio em
escala planetária (KIRCHHOFF, 1992). Portanto, ao se trabalhar a questão ambiental é
preciso envolver os diversos fatores que compõem a ocupação do espaço, pois só assim se
obterá uma análise síntese e uma real investigação de cunho geográfico.
Ressalta-se a postura do geógrafo quanto aos interesses ambientais. E para tanto,
recorre-se a Monteiro (1981, p. 3) ao refletir sobre esse papel:
[...] numa época de grandes preocupações ‘ecológicas’, de desperdícios
de recursos naturais básicos, de degradação da qualidade ambiental não
deixa de ser melancólico que nos venhamos preocupando em formar uma
nova categoria acadêmica de ‘profissionais’ especializados nos problemas
ambientais. Mesmo admitindo o caráter interdisciplinar do problema não
deixa de ser lamentável que o ‘geógrafo’, por negligência, troca ou abandono voluntário, se veja marginalizado, ou mesmo alijado, do tratamento
de um assunto que já foi uma das pedras de toque do seu campo de estudo.
Diante da questão levantada, nota-se que o geógrafo por omissão frente à problemática
ambiental vem sendo subtraído dessa temática, perdendo seu espaço de atuação. Vale ressaltar que a comunidade geográfica segue certas tendências temáticas e de atuação, as quais
enfocam o ambientalismo, o desenvolvimentismo e a justiça social. E para os geógrafos que
seguem a linha ambiental é necessário aliar os recursos naturais às atividades econômicas
intrínsecas ao processo de urbanização.
Portanto a ciência geográfica que tem como objeto de estudo a organização do espaço, se preocupa pela forma com que este vem se definindo e se integrando, apontando
como caminho o planejamento territorial dos municípios, para minimizar seus problemas
sócio-ambientais.
O enfoque para a cidade de Rio Claro é bastante pertinente quando se sabe que seus
recursos hídricos se encontram em condições de degradação, com alguns vestígios de mata
ciliar, assoreamento e despejo de esgotos doméstico e industrial em suas águas.
Compartilha-se com Viadana (1992, p.26) quando diz textualmente:
A urbanização e a industrialização sem planejamento especial e adequado
à região de Rio Claro, somadas às crescentes pressões demográficas e ao
predomínio da monocultura canavieira equipada, que progride por todas
as direções da área drenada pelo Corumbataí, podem ser responsáveis
pelos desequilíbrios ecológicos, neste setor da média Depressão Periférica
Paulista.
Com essa afirmação, o autor destaca que as atividades sócio-econômicas vinculadas
ao processo de urbanização refletem diretamente sobre a qualidade de vida da população e
consequente degradação ambiental. Como por exemplo, no processo de urbanização, a ocupação das várzeas dos rios para construção de núcleos habitacionais compromete a segurança
dos moradores, pois poderão ser alagadas na época das cheias. Nota-se assim que os planos
terão papel fundamental para a adequação dos usos antrópicos às condições naturais locais.
Assim o planejamento ambiental deve enfocar as relações humanas, econômicas
e ambientais para que seja eficaz e associe os princípios da recuperação, preservação e
Ambientes
estudos de Geografia
77
conservação no manejo das cidades às complexas relações com os ecossistemas “naturais”.
Considerando esses aspectos, o perfil geo-ambiental serve de subsídio ao planejamento territorial e conseqüente minimização desses impactos ambientais e também, como instrumento
preventivo aos usos futuros desse espaço.
Esse instrumento técnico de informação possibilita o entendimento da distribuição
desses elementos no espaço e como uns interferem sobre os outros e fornece alguns componentes necessários para planejar a ocupação racional do território.
Igualmente importantes são os interesses locais, regionais e globais estarem apoiados
em objetivos maiores e mais abrangentes que perpassem os interesses econômicos e a visão
utilitarista, alcançando um novo significado, na qual se considere a Terra a morada do homem.
Objetivos da pesquisa:
Objetivos principais:
O presente estudo teve como escopo a aplicação técnica dos perfis geo-ambientais
em setores da cidade de Rio Claro com enfoque para avaliação, diagnóstico e subsídio
para o planejamento territorial-ambiental desse ecossistema urbano. A utilização dos perfis
geo-ambientais possibilitou uma análise-síntese para estudos locais e regionais, através das
representações temática, sintética e integrada da topografia, pedologia, geologia, ocupação
do solo e precipitação pluvial como condicionantes ambientais, que permitiram descrever
as diferentes paisagens e sua correspondente qualidade no sítio urbano de Rio Claro.
Objetivos secundários:
Essa pesquisa teve interesse em investigar a conexão entre os geo-elementos para
compreensão dos problemas que afetam a área e as condições ecológicas atuais do ecossistema urbano. Permitiu identificar os fatores que produzem alterações ambientais na cidade
e reavaliar seus usos sociais.
Através da análise dos perfis refletiu-se sobre os atuais usos do solo em zonas urbanas e próximas da cidade e forneceu uma visão integrada dos componentes que constituem
esses ecossistemas, para contribuir nos planejamentos territoriais-ambientais que poderão
se apoiar no saber gerado por esta aplicação técnica. Pois essa linguagem gráfica traduz as
condições ambientais desse ecossistema.
Técnica da pesquisa e materiais
78
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Alguns trabalhos foram realizados utilizando a referida técnica, entre eles:
1 - Perfil Geológico e Fitogeográfico através do Estado do Paraná
Maack (1950) elaborou um perfil fitogeográfico do estado do Paraná, onde foi cartografado a geologia, a cobertura vegetal, dados pluviométricos e a geomorfologia, associados
à sua espacialização ao longo de um trajeto percorrido.
2 - Inter-relação fito-fisiográfica no centro-leste de Goiás
Neste estudo realizado por Braun (1971) foi elaborado um perfil de inter-relação fitofisiográfica no Centro-Leste de Goiás com o objetivo de representar unidades de cobertura
vegetal associadas à topografia, pedologia e geologia da área de estudo, sem preocupação
escalar.
3 - Perfil Fitoecológico do estado de Sergipe
O perfil fitoecológico elaborado por Troppmair (1971) é uma técnica aplicada em
geobiocenoses terrestres, a fim de cartografar os elementos fisiográficos e biológicos e a
distribuição espacial (solos, rios, precipitação pluvial, umidade e duração da seca).
4 - As regiões vegetais da encosta oriental dos Andes e de matas tucumano-bolivianas
Em trabalho de Hueck (1972) elaborou-se um perfil através de um corte transversal
dos Andes para apresentar a estratificação altitudinal das comunidades florestais da encosta
oriental dessa cordilheira e da região de matas tucumano-bolivianas, no noroeste da Argentina. O objetivo foi caracterizar a vegetação dividindo-a por unidades, estabelecidas a partir
das correlações entre os geo-elementos cartografados: topografia (altitude) e dados climáticos
(precipitação, período de estação seca, aumento de formações de nuvens).
5 - Perfis fito-topográficos do Município de Uberlândia – MG
Schneider (1982) elaborou quatro perfis fito-topográficos para caracterizar a vegetação
do município de Uberlândia, tomando como geo-elementos a vegetação e morfometria do
território, com as respectivas localidades (área urbana, córregos, ribeirões etc.). Este perfil
revelou a grande diferença nas condições naturais existente entre os setores norte e sul do
município, resultando em paisagens com formações vegetais naturais individualizadas.
6- Perfil Fitoecológico do Estado do Paraná
A proposta de Troppmair (1990) foi de caracterizar, através do perfil, as grandes unidades paisagísticas ou compartimentações geomorfológicas do Estado do Paraná, integrante
da Região Sul e do Planalto meridional. Foram levantados os componentes (topografia,
regiões geográficas, localidades, distância percorrida, vegetação original e uso atual do solo)
e a distribuição espacial aliada aos processos ecológicos, para uma interpretação conjunta
dos perfis traçados no norte, centro e sul do estado.
7- Perfil Ictiobiogeográfico de segmento do médio e baixo curso do Ribeirão Claro
(SP)
A proposta dos perfis aplicados para ecossistema aquático, (VIADANA; TROPPMAIR, 1989; VIADANA, 1992) foi a de cartografar alguns elementos como gradiente,
extensão, largura, profundidade, padronagem, soleira, fundo, temperatura, pH, transparência,
uso das margens, impactos e número de espécies de peixes da bacia hidrográfica do Corumbataí, localizada no estado de São Paulo, completados pela distribuição da ictiofauna local.
Ambientes
estudos de Geografia
79
Para se elaborar um perfil, Libault (1975) sugere algumas etapas para se obter representações combinadas. Primeiro se constrói um perfil altimétrico, marcando as altitudes
sobre a linha hipsométrica; em seguida, o outro perfil será elaborado utilizando-se o dado
topográfico, escolhendo uma escala onde os fenômenos possam ser representados de forma
expressiva.
Na proposta de Troppmair (1989), sobre perfis geo-ambientais, segue-se uma explicação detalhada da mesma que pode ser aplicada para estudos em ecossistemas aquáticos
e terrestres, com necessidade de se representar variáveis que permitem dar, de forma sintética, as condições da área de estudo. Isso requer a inclusão da representação do trecho do
mapa topográfico onde é feito o perfil altimétrico, posteriormente lançados os dados das
temperaturas média, máxima e mínima; precipitação pluvial média; tipos de solo; excesso
ou deficiência de água no solo (no caso de ecossistema terrestre); período favorável para a
flora e fauna e demais fatores de importância.
Na elaboração dos perfis geo-ambientais aplicados em Rio Claro foram escolhidos
três setores da cidade de Rio Claro que pudessem ser investigados a partir da correlação dos
subsistemas naturais (terra, água, ar) e os antrópicos. Com essa finalidade foram privilegiadas
as áreas setentrional, central e meridional da cidade, para observação da ação antrópica sobre
os seus componentes paisagísticos. Para efeito desta publicação optou-se por exemplificar
a aplicação da técnica apenas no setor setentrional da cidade de Rio Claro.
A distância percorrida, transversal ao curso do rio, foi de 9.000 metros, que possibilitou a partir da variação da paisagem a delimitação em zonas fisiográficas acompanhando
as coordenadas UTM. Representou-se também parte da bacia do rio Corumbataí, como
elemento integrante dessa paisagem.
A escolha pela escala local possibilitou uma descrição e análise geo-ambiental mais
detalhada da área estudada. Estabelecidas essas condições, foram levantados os materiais
cartográficos composto por carta topográfica e geológica na escala de 1: 20.000 (COTTAS,
1983); carta pedológica de 1:100.000 (Quadrícula São Carlos SF.23-Y-A-I); dados de precipitação pluvial coletados do Atlas Climático de Rio Claro elaborado no Departamento
de Geografia do IGCE da UNESP (Campus de Rio Claro). Em trabalho de campo foram
levantados os dados de uso e ocupação do solo e registro fotográfico. Convém lembrar que
foi necessária uma adequação da escala da carta pedológica de 1:100.000 para escala de
1:20.000, resultando na generalização das diferentes classes de solos. O uso e ocupação do
solo serviram como parâmetro para se estabelecer as unidades fisiográficas.
Posteriormente essas informações foram representadas em transectos para composição
dos perfis, nos quais foram tratados no Software AUTOCAD.
Interpretação de perfil geo-ambiental em setor município de Rio Claro
Para análise dos perfis geo-ambientais em setores do município de Rio Claro fez-se
necessário consultar alguns trabalhos realizados sobre essa localidade, entre eles: Cottas
(1983), Sanches (1967), Penteado (1981), Troppmair (1976), Viadana (1996), Grillo e Brino
80
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
(1994), Tavares (et al, 1995), Pinto (1993), Machado (et al, 1989) entre outros.
Este município, pertence ao estado de São Paulo, localiza-se na média Depressão
Periférica Paulista, uma das quatro grandes províncias geormorfológicas em que se subdivide o estado: a Planície Costeira, o Planalto Cristalino, a Depressão Periférica e o Planalto
Ocidental Paulista.
A Depressão Periférica possui paisagem monótona com relevo pouco movimentado
e interflúvios subtabulares, as vertentes são convexas no alto e côncavas no sopé atingindo
altitudes entre 550 e 650 metros. É drenado pela bacia hidrográfica “[...] do rio Corumbataí
e tem como tributários o Ribeirão Claro, Passa-Cinco e Rio da Cabeça, que constituem uma
bacia hidrográfica que alimenta o rio Piracicaba – o mais significativo afluente da margem
direita do Tietê - integrando-se este, ao sistema do rio Paraná” (VIADANA, 1985, p.2).
A região de Rio Claro, conforme a classificação de Koeppen, se insere no clima do
tipo Cwa, mesotérmico de inverno seco entre março e setembro sendo o verão chuvoso nos
meses de outubro a fevereiro.
O perfil traçado está localizado em setor norte da cidade, no sentido W-E com coordenadas UTM entre 233 a 241; 7.523 a 7.524. O trajeto percorrido, com extensão de 9.000
m, permitiu o registro de uma paisagem diversificada, que possibilitou delimitá-la em três
unidades distintas, são elas: rural/urbana, urbana e reflorestamento (Fig.1).
A unidade fisiográfica rural/urbana, topograficamente localizada entre 550 e 560 m
de altitude, é formada por terrenos suavemente ondulados e drenados pela bacia hidrográfica do rio Corumbataí. Esse recurso hídrico apresenta vales com fundo amplo e achatado,
entulhados por sedimentos aluviais que constituem os solos hidromorfos. Esses solos estão
assentados sobre a Formação Corumbataí juntamente com o podzólico vermelho/amarelo,
considerado argissolo pela EMBRAPA (1999).
Segundo Sanches (1967, p. 48) nesta área:
[...] predominam até meia encosta dos interflúvios do rio Corumbataí e
seus afluentes, terrenos da formação Corumbataí pertencente ao grupo
Estrada Nova, compostos de siltitos, argilitos, calcários dolomitos e sílex.
A espessura desses sedimentos, de idade permiana, é de várias dezenas de
metros. Pelo fato deste grupo geológico conter calcário, siltito e argilito,
possui grande significado econômico para o município.
A presença de argila nos solos das várzeas e nas baixadas da periferia urbana explica
o desenvolvimento da atividade de sua extração para a produção de telhas, tijolos e cerâmica.
A argila se constitui num dos recursos minerais de maior importância para economia da região, pois Rio Claro integra um importante pólo cerâmico juntamente com os municípios de
Santa Gertrudes, Limeira, Araras e Cordeirópolis. No entanto, essa atividade causa impactos
ambientais com ulcerações no tecido ecológico e transforma a paisagem. Esses impactos são:
a alteração da flora local, assoreamento dos cursos fluviais e desencadeamento de processos
erosivos que contribuem para o surgimento de voçorocas. Essas mudanças, ao longo dos
anos, poderão provocar o desaparecimento de pequenos cursos fluviais e a ocupação desses
espaços por espécies vegetais diferenciadas numa nova adaptação ao solo ali formado.
Alguns projetos vem sendo desenvolvidos a fim de buscar alternativas para uso
Figura 1- Perfil Geo-Ambiental em Setor Norte da Cidade de Rio Claro (SP)
Ambientes
estudos de Geografia
81
82
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
desse recurso de forma menos impactante e de meios de recuperar essas áreas. Assim os
pesquisadores poderão contribuir para alcançar soluções de integração sócio-econômica
com a natureza.
Ainda nesta unidade verifica-se a precipitação pluvial média anual de 1.420 a 1.460
mm. Ao ocorrer o transbordamento do leito fluvial no verão, as lagoas marginais (meandros
abandonados) e várzeas, são abastecidas servindo de habitat para reprodução e maturação
de determinadas espécies da comunidade íctia (VIADANA, 1996).
Existem áreas dessa unidade que sofreram o desmatamento ciliar para penetração de
cultivo, ocupação por pastos e eucaliptos. Observam-se também alguns indivíduos arbóreosarbustivos e a presença de pequenas propriedades rurais com predomínio de chácaras.
Como já foi visto, as áreas em que se verificam atividades antrópicas, como extração
de argila, cultivo agrícola, pastagem para gado, entre outras, tornam o ambiente suscetível
a intensos impactos. O mesmo ocorre com instalação de núcleos habitacionais em áreas de
média declividade, lixiviando os solos arenosos e argilosos que desencadeiam processos
erosivos, desestabilizando inclusive a estrutura das casas. Dentro desse mesmo processo as
planícies aluviais acabam por receber boa parte do escoamento superficial servindo de áreas
de deposição de sedimentos, alterando a dinâmica fluvial. Assim também, com a subida do
nível da água dos cursos fluviais em períodos anômalos de chuva, podem inundar áreas
cultivadas, reduzir a disponibilidade de água potável e acarretar destruição de construções
com prejuízo de vidas humanas e de animais domésticos.
Essas áreas consideradas de risco são frutos da segregação espacial, que segundo
Casseti (1995, p. 87):
[...] o processo de ocupação e transformação das vertentes no sistema de
produção capitalista, que é uma relação homem-meio, encontra-se subordinada às relações homem-homem, que tem na relação de propriedade das
forças produtivas a categoria principal. Se tal relação de propriedade do
capitalismo separa os homens em classes (proletariado e burguesia) e o
espaço é “mercadoria” torna-se evidente que as diferenciações espaciais
resultam do próprio poder de compra. Diante disso, enquanto se destinam
as melhores condições topográficas (de relevo) aqueles que detêm o capital,
sobram as áreas de risco aos desvalidos e marginais de elite econômica.
Compartilha-se com o citado autor, quando enfatiza que o poder aquisitivo somado
à especulação imobiliária determina a localização da moradia, pois a população de baixa
renda tende a se concentrar nas áreas periféricas, como é o caso da expansão urbana em
Rio Claro na vertente do rio Corumbataí. Essas áreas são caracterizadas por ruas sem capeamento asfáltico, com solo exposto pela ausência de cobertura vegetal, que em época de
chuvas intensas, sofrem movimentos de massa, desestabilizando a estrutura das casas de
auto-construção ocasionando seu desabamento. Igualmente impactante é a presença de esgoto
clandestino, lixo, entulho de construção civil que poluem os corpos de água superficial e os
aqüíferos e os processos erosivos das vertentes acabam provocando a sedimentação fluvial.
No que se refere ao tratamento de esgoto da cidade observa-se neste setor uma Estação
de Tratamento de Esgoto. Entretanto, Rio Claro ainda enfrenta grandes desafios para poder
solucionar a questão, já que o maior volume dos esgotos doméstico e industrial continua
Ambientes
estudos de Geografia
83
sendo lançado no rio Corumbataí.
Os impactos revelados nessa primeira análise justificam o fato das águas do rio
Corumbataí ficarem comprometidas para o abastecimento de ¼ da população urbana do
município, pois se tornam poluídas, barrentas, com caudal volumoso, afetando inclusive
o provimento de outras cidades, como Piracicaba que tem seu abastecimento urbano proveniente desse curso hídrico. Portanto a análise desta primeira unidade do perfil permitiu
a síntese estabelecendo um conhecimento integrado dos problemas geo-ambientais que
afetam a área. Propiciou ainda uma maior visibilidade dos problemas de abastecimento de
água enfrentados por Rio Claro e região.
A segunda unidade delimitada foi a zona urbana, com topografia entre 600 a 630 m de
altitude, com terrenos planos, ocupando o interflúvio dos rios Corumbataí e Ribeirão Claro.
Essa área, devido a sua planura e impermeabilização asfáltica do solo, dificulta
o escoamento superficial gerando bolsões de água nos vales existentes na cidade. Isso
revela que as alternativas de construção de galerias pluviais e canalização dos córregos
com o objetivo de aumentar a velocidade do fluxo d’água das chuvas para evitar riscos de
inundação, estão longe de ser uma solução eficaz para os problemas. Os grandes volumes
de chuvas comprometem a qualidade da água não só para uso da comunidade local, mas
também regional, pois acabam carreando para os cursos hídricos todo tipo de lixo, esgotos
clandestinos e agrotóxicos.
Diante desse embate o Consórcio Intermunicipal das bacias dos rios Piracicaba e
Capivari, constituído em 1989 com a participação de vários municípios tem o papel de somar
esforços numa mesma direção, ou seja, melhorar o uso das águas e propor ações visando
o saneamento para preservar esses mananciais. A criação do Comitê das bacias dos rios
Piracicaba, Capivari e Jundiaí em 1993 também teve o intuito de alcançar esses objetivos,
promovendo o gerenciamento descentralizado e participativo, integrado aos recursos hídricos, seguindo princípios como a cobrança e racionalização da utilização da água. Porém
cabe ressaltar que após mais de uma década poucas ações foram efetivamente realizadas no
que concerne à recuperação das áreas estudadas neste trabalho e que estão dentro da área
contemplada pelo Consórcio. Isso prova que os resultados ainda não ganharam a visibilidade
desejada e que muito ainda se tem a fazer para recuperar essas áreas.
No que tange a pedologia da área estudada, é constituída por latossolo vermelho/
amarelo sobre a Formação Rio Claro, na qual acima de 630 metros ocorrem arenitos eólicos
da formação Botucatu-Pirambóia, do grupo São Bento, de idade mesozóica que junto com
o arenito Bauru, forneceram os sedimentos para essa formação litológica. Devido a exposição do solo arenoso provocada pela remoção da cobertura vegetal para construção das
edificações ocorre a lixiviação e o intenso assoreamento dos mananciais hídricos. Soma-se
a isso a enorme quantidade de lixo que é depositada em locais irregulares contribuindo para
a contaminação de lençóis freáticos pelo chorume.
Portanto o uso do solo e o planejamento urbano devem estar necessariamente
atrelados ao conhecimento litológico e edáfico da área para que se respeite a estrutura e
compactação desses elementos.
Outro processo a ser observado é o clima em setor urbano, que no perfil indica uma
84
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
curva da precipitação pluvial média anual entre 1.480 a 1.540 mm sendo mais acentuada
que na periferia que é de 1.420 a 1.460 mm, podendo ser explicada pelo fenômeno de ilha
de calor. Em estudo sobre Rio Claro, Tavares (et al, 1995) constataram que essa alteração
do clima urbano é gerada pelos usos específicos do solo, das funções tipicamente urbanas
e fluxos de veículos automotores.
Lombardo (1985) relata que a formação da ilha de calor na metrópole paulistana se
dá pelas atividades antrópicas como pavimentação; alteração da cobertura vegetal aliada as
edificações e emissão de gases tóxicos pelas indústrias.
Portanto o clima urbano é caraterizado pelo aumento de 1o a 2oC comparado a periferia
e nas grandes metrópoles pode ultrapassar 3o C. (TROPPMAIR, 1989).
Dessa forma, verifica-se que as diferenças de temperatura e precipitação pluvial
entre as áreas centrais, periféricas e rurais adjacentes decorrem da variação do uso do solo
e das funções específicas que nelas se desenvolvem.
Uma das maneiras de minimizar a formação da ilha de calor é planejar o replantio de
vegetação adequada para as vias públicas e espaços livres, que interferirá de modo positivo na
qualidade de vida urbana. Em estudo sobre áreas verdes Troppmair (1976) constatou que Rio
Claro possui índice de 2,8 m2 de área verde/habitante, indicando ser este valor insuficiente.
Ainda na unidade urbana há a presença do Distrito Industrial, que outrora ocupava
área periférica e com o passar dos anos foi densamente povoada, devido à especulação
imobiliária, com a presença de residências de classe média e média baixa. Em direção a
periferia, observa-se a segregação sócio-espacial com a presença de casas mais modestas.
A deposição de lixo nos terrenos baldios juntamente com as indústrias pode contaminar os
lençol freático. Outro fator observado é a forte erosão do solo.
Revela-se, portanto que o meio físico e o social se entrelaçam numa relação contraditória, onde o homem apropria-se da natureza para organizar-se social e territorialmente.
A terceira unidade fisiográfica observada foi a do reflorestamento, nas adjacências
do Ribeirão Claro com topografia entre 580 e 630 m de altitude que se caracteriza por uma
inclinação da vertente mais abrupta que a do Corumbataí e que possui em seu vale solos
hidromorfos, assentados sobre a Formação Corumbataí. O latossolo vermelho/amarelo
aparece mais à leste da cidade sobre a Formação Rio Claro.
As Formações Rio Claro, Botucatu-Pirambóia e Bauru, através de processos pedogenéticos, originaram o latossolo vermelho/amarelo que possui uma estrutura com mais de três
metros, onde a textura arenosa predomina. É pobre em matéria orgânica, consequentemente
pouco adequado para a agricultura, traduzindo a sua utilização na forma de pastagens e de
reflorestamentos.
Essas condições afetam diretamente o microclima local, tendo temperatura e precipitação pluvial específicas, de acordo com o tipo de cobertura vegetal. Nessas áreas a curva
da precipitação pluvial está entre 1.460 a 1.520 mm, sendo maior que na periferia rural/
urbana e menor que no setor urbano do Distrito Industrial.
Ainda nessa unidade existem áreas de cultivo permanente, como eucalipto, e cultivo
temporário, como o milho e cana-de-açúcar. Apresenta matas ciliares degradadas e pastagem
Ambientes
estudos de Geografia
85
com gramíneas, utilizadas para a alimentação de gado, cuja sedentação é provida pelos seus
cursos d’água.
Essa área é inadequada para expansão urbana, porém verifica-se o avanço da construção de moradias em setores de reflorestamento, de várzeas e de matas ciliares, que se
dá com o próprio aval do poder público, como no caso do Projeto Pé-no-Chão do bairro
Mãe Preta. Essa ocupação da encosta do Ribeirão Claro representa uma ameaça para os
ecossistemas reflorestados, de mata ciliar e também para o aquático.
Embora em trabalho de campo observou-se a existência de peixes nos cursos d’água,
isto pode não se manter por muito tempo, pois são volumosos os esgotos doméstico e industrial que fluem para o mesmo, somado ao escoamento de agrotóxicos das áreas cultivadas,
refletirão na extinção de espécies íctias. Isso demonstra também grave problema de saúde
pública que vem sendo gerado, pois ¾ da população urbana consome essa água e também
utilizam-na para lazer. As tentativas de recomposição vegetal dessas áreas são ainda muito
incipientes frente à problemática.
Essa situação é alarmante e pode-se concluir que tem havido pouco interesse por parte
da população e dos poderes públicos em conservar ou promover melhor manutenção dos
recursos naturais. Pois através da análise do material cartográfico produzido e do trabalho de
campo, percebeu-se que há várias irregularidades no uso do solo urbano, como por exemplo,
expansão urbana com loteamento da várzea do Ribeirão Claro, promovendo o desmatamento
ciliar. A falta de fiscalização é também um fator agravante para atitudes como lançamento
de lixo em áreas impróprias e a realização de pesca predatória em época de piracema.
Diante desses fatos é urgente um melhor planejamento da área investigada, que
segundo Branski (apud FADINI, 1998) para se obter um eficaz planejamento ambiental de
uma bacia hidrográfica deve-se considerar os aspectos físicos, número da população local
e as atividades sócio-econômicas desenvolvidas. No caso de Rio Claro, deve-se enfatizar
a importância que representam os recursos naturais num planejamento integrado da bacia
hidrográfica do rio Corumbataí.
No presente estudo as dimensões físicas e sócio-econômicas analisadas, se restringiram a determinado setor da cidade, mas que de modo indireto atende aos princípios de um
melhor planejamento ambiental da bacia hidrográfica como um todo. Isso permite se fazer
alguns apontamentos de caminhos possíveis para minimizar os problemas que afetam essa
área de estudo. Para minimizar os impactos ambientais verificados, a primeira diretriz a se
seguir é a não ocupação das encostas e de planícies de inundação pela população local. Pois
esta ocupação provoca remoção da cobertura vegetal e os solos expostos sofrerão processos
erosivos, surgindo voçorocamento, sedimentação e conseqüente inundação das várzeas na
época das cheias.
O reflorestamento ciliar é o caminho de menor custo para recuperação dos recursos
hídricos onde se obtém os seguintes benefícios: garantia da vazão contínua da água ao longo do rio; serve de filtro para o escoamento de agrotóxicos; constitui uma barreira para o
carreamento dos sedimentos evitando seu assoreamento e protege a ictiofauna local.
No caso da área urbana é interessante que haja espaços sem pavimentação para que
se tenha maior absorção das águas pluviais, seja através das áreas verdes ou de vias públicas
86
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
arborizadas. A expansão de áreas verdes na cidade de Rio Claro também ajudaria a regular
a temperatura local para torná-la mais amena. Obras de engenharia como canalização de
córregos e galerias pluviais ainda não é o suficiente para amenizar os riscos de inundação
das várzeas, pois essas áreas já estão densamente ocupadas. A construção de Estação de
Tratamento de Esgoto também necessita do apoio de uma fiscalização maior, com aplicação
de multas para as indústrias que lançam efluentes nos rios. A mesma fiscalização deve ser
prevista no que se refere à deposição de lixo em áreas proibidas.
Dessa forma, as diretrizes apresentadas, é apenas o início de uma reflexão sobre as
várias medidas que devem ser tomadas sobre essa questão ampla e profunda.
Vale ressaltar que a síntese realizada pela interpretação desse perfil propiciou uma
integração dos diversos elementos geo-ambientais permitindo inclusive auxiliar no estabelecimento de um futuro planejamento territorial para a cidade de Rio Claro. Isto porque
acaba por resultar numa melhoria da qualidade de vida da população de um modo geral.
Referências
BRAUN, O. P. G. Contribuição à Geomorfologia do Brasil Central. Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, p. 03-35, 1971.
CASSETI, V. Ambiente e apropriação do relevo. São Paulo: Contexto. 1995. 147 p.
COTTAS, L. R. Estudos Geológico-Geotécnicos aplicados ao Planejamento Urbano
de Rio Claro – SP. 1983. 171f. Tese (Doutorado em Geociências) - Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1983.
EMBRAPA - EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA –Sistema
Brasileiro de Classificação dos Solos. Brasília: DF, 1999. 412 p.
FADINI, A. A. B. Impactos do Uso das Terras na bacia Hidrográfica do Rio Jundiaí
(SP). 1998. 141f. Dissertação (Mestrado em Geografia) Instituto de Geociências e Ciências
Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1998.
GRILLO, R. C.; BRINO, W. C. O impacto da precipitação pluvial na cidade de Rio Claro
(SP). Geografia, Rio Claro, v.19, n.1, p.39-60, 1994.
GONÇALVES, C. W. P. Os (des) caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto,
1990. 147 p.
HUECK, K. As Florestas da América do Sul. São Paulo: UNB; Polígono, 1972. 466 p.
KIRCHHOFF,V. W. J. H. Queimadas na Amazônia e o efeito estufa. São José dos Campos:
Contexto, 1992. 118 p.
LIBAULT, A. Geocartografia. São Paulo: Nacional/Edusp, 1975. 388 p.
LOMBARDO, M. A. Ilha de Calor nas Metrópoles - O Exemplo de São Paulo. São Paulo:
Hucitec, 1985. 244 p.
MAACK, R. Mapa Fitogeográfico do Estado do Paraná. Curitiba: Instituto Nacional do
Ambientes
estudos de Geografia
87
Pinho, 1950.
MACHADO, L. M.C. P. et al., Mapeamento de pontos sensíveis a impactos ambientais sobre
os recursos hídricos em Rio Claro (SP), Geografia, Rio Claro, v.14, n.28, p. 119-130, 1989.
MONTEIRO, C. A. de F. A Questão Ambiental no Brasil –1960 -1980. São Paulo: IGUSP, 1981. 133 p.
OLIVEIRA, J. B.; PRADO, H.; ALMEIDA, C. L. F de. Levantamento pedológico semidetalhado do Estado de São Paulo – Quadrícula de São Carlos (Escala 1: 100.000)
Campinas: Instituto Agronômico, 1981.
PENTEADO, M. M. Estudo Geomorfológico do sítio urbano de Rio Claro (SP). Notícia
Geomorfológica, Campinas, v. 21, n.42, p.23-56, 1981.
PINTO, A. L. Estudo da Potencialidade, Captação, Tratamento, Abastecimento e Potabilidade da Água da Bacia do Ribeirão Claro. 1993.
263 f. Dissertação (Mestrado
em Geografia) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista,
Rio Claro, 1993.
SANCHES, M. C. Comentário do Mapa Geológico do Município de Rio Claro. Notícia
Geomorfológica, Campinas, v. 7, n.13/14, p.43-54, 1967.
SCHNEIDER M. de O. Transformações na Organização Espacial da Cobertura Vegetal
do Município de Uberlândia-MG - 1964 a 1979. 1982.115 f. Dissertação (Mestrado em
Geografia) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista,
Rio Claro,1982.
TAVARES, A. C. et al. Interações entre ilhas de calor em cidades médias tropicais, tipos de
tempo no inverno e saúde dos citadinos. Geografia, Rio Claro, v. 20, n.2, p. 73-99, 1995.
TROPPMAIR, H. Estudo Biogeográfico das áreas verdes de duas cidades médias do interior
paulista: Piracicaba e Rio Claro. Geografia, Rio Claro, v.1, n. 1, p. 63-78, 1976.
______ Perfil Ecológico e Fitogeográfico do Estado de Sergipe. Biogeografia, São Paulo,
n. 2, p. 01-18, 1971.
______ Biogeografia e Meio Ambiente. Rio Claro: Edição do autor, 1989.
______ Perfil Fitoecológico do Estado do Paraná. Boletim de Geografia, Maringá, v. 8, n.
1, p. 67-82, 1990.
VIADANA, A. G. Análise da Qualidade Hídrica do Alto e Médio Corumbataí (SP) pela
Aplicação de bio-indicadores. 1985. 115 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto
de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1985.
______ Perfis Ictiobiogeográficos da Bacia do Rio Corumbataí – SP. 1992. 174 f. Tese
(Doutorado em Geografia Física) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.
______ Estudo Biogeográfico da Anacharis canadensis (pop. Elódea) na Avaliação da
Qualidade Ambiental do Ribeirão Claro em Área do Município de Rio Claro (SP). Rio
Claro: UNESP, 1996. 68 p.
______; TROPPMAIR H. Uma Metodologia Alternativa na Interpretação de Hidrobioceno-
88
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ses., In: ENCUENTRO DE GEÓGRAFOS DE AMÉRICA LATINA, 2., Montevideo, 1989.
Anais... Montevideo: Universidad de la Republica, 1989, p. 227-234.
POPULAÇÃO E QUALIDADE DE VIDA URBANA EM
SANTA MARIA (RS): ESTUDO DE CASO
BAIRRO URLÂNDIA
Vilma Dominga Monfardini FIGUEIREDO
Odeibler Santo GUIDUGLI
Introdução
Na atualidade, qualidade de vida tem se tornado um tema relevante, especialmente,
nas discussões acerca da vida nas cidades. Pensadas como espaço de uma vida ideal, hoje,
aglomerações humanas, que chamamos de cidades representam um desafio para todos. Existe
um desajuste muito grande entre as necessidades crescentes da população e os recursos
disponíveis para a satisfação destas necessidades o que é crescentemente perceptivel. Isto
pode ser verificado tanto nos países desenvolvidos quanto nos menos desenvolvidos. Porém,
nos últimos, os problemas são mais graves, uma vez que o modelo de desenvolvimento
econômico neles adotado não tem como principal preocupação a sociedade e a melhoria
da qualidade de vida da população, mas sim a obtenção de vantagens econômicas às custas
desta mesma população. Via de regra esta não é alvo de melhorias mas, converte-se apenas
em uma peça em meio às mudanças que a marginalizam.
Assim, nas últimas décadas, as áreas menos desenvolvidas do mundo e, em particular,
as nações latino-americanas têm experimentado um rápido crescimento de suas populações
urbanas sem a correspondente expansão da infra-estrutura e dos serviços essenciais à suas
vidas. O resultado disto é que na prática, em todos os centros urbanos, independente de seu
porte, têm surgido uma série de problemas caracterizados como indicadores de má qualidade
de vida para a maioria da população.
A realidade mostra que o crescimento rápido e desordenado das cidades não foi
acompanhado de uma infra-estrutura básica e de outros pré-requisitos que possibilitassem
uma melhoria da qualidade de vida em aspectos como: educação, saúde, alimentação, lazer,
habitação, emprego, etc. Esta situação impede que haja uma forte coesão social, como seria
o desejável. Juntando-se a isto, outros problemas relevantes e graves, como insegurança
pessoal, marginalização, não participação nas tomadas de decisões, carências culturais, etc.,
vêm também aumentando e assumindo importância.
E este grande número de problemas sociais vivenciados pelas populações citadinas
que torna o estudo da qualidade de vida urbana um tema cada vez mais relevante para vários
cientistas sociais. É este estudo que se realizou avaliando-se um bairro da cidade de Santa
Maria – o bairro Urlândia, como área caracterizada pela diversidade ( Figura 1).
90
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Figura 1 - Localização do bairro Urlândia na cidade de Santa Maria (RS)
Fonte: Prefeitura Municipal de Santa Maria. Secretaria de Planejamento. Adaptado – 1992
Mapa informativo e turístico de Santa Maria. Produção: Olinto J. Kuhn. Santa Maria – RS. 1996.
Org.: FIGUEIREDO, V. D. M.
Desenho: Silvana Fernandes Neto
Ambientes
estudos de Geografia
91
A qualidade de vida, devido à sua complexidade e às dimensões que envolve, tem
tido diferentes interpretações. Dominantemente, ela tem sido entendida como nível de
bem estar individual ou coletivo, determinado não apenas pela satisfação das necessidades
básicas, mas também pela percepção do espaço onde se vive. Constata-se que a satisfação
dos desejos e aspirações dos indivíduos está se tornando um aspecto em evidência no âmbito dos estudos de qualidade de vida. Também, cada vez mais, verifica-se que as pessoas
querem mais que alimentação e habitação. Elas aspiram a uma vida integralmente melhor.
Neste sentido, é necessário considerar não apenas aspectos materiais da vida. Assim, uma
análise mais abrangente sobre a qualidade de vida não deve estar restrita apenas à avaliação
de aspectos objetivos, devendo, portanto, incluir também aqueles denominados subjetivos.
O tema da qualidade de vida é considerado complexo, multidimensional e interdisciplinar. Por isto tem gerado uma ampla gama de discussões em função da falta de unidade
entre os pesquisadores quanto à sua definição e mensuração. A expressão “Qualidade de
Vida”, enquanto conceito e organização emerge, na década de 50, nos países desenvolvidos
e, somente na década de 70, nos menos desenvolvidas. Quanto às formas de sua mensuração, os primeiros estudos baseavam-se, dominantemente, em indicadores objetivos. Porém,
transformações profundas que vêm ocorrendo na sociedade urbana da atualidade estão
evidenciando, cada vez mais, a importância do uso concomitante de indicadores objetivos
e subjetivos nas metodologias adotadas.
Considerando-se estas questões, a pesquisa desenvolvida teve dois objetivos gerais. O
primeiro constituído pelo próprio envolvimento com a literatura sobre o tema: qualidade de
vida, que é ainda escassa na Geografia e, em sua maior parte, estrangeira. O segundo envolve
a questão da qualidade de vida da população residente num bairro periférico da cidade Santa
Maria – o bairro Urlândia –, localizado a sudoeste da área central e considerado um dos
bairros mais problemáticos da cidade. Como objetivos específicos, buscou-se, identificar
a realidade socioeconômica do bairro, considerado uma área deprimida, caracterizando,
objetiva e subjetivamente, as variáveis definidoras dos problemas detectados.
As variáveis identificadas para o bairro e consideradas relevantes foram: escolaridade,
renda, emprego, habitação, saúde, segurança, infra-estrutura e saneamento básico, questões
ambientais, nível de satisfação, participação e aspirações da população. Estas variáveis
foram consideradas segundo suas diferentes formas de mensuração, tendo sido utilizado
como critério de avaliação, os atributos bom ou ruim. Assim, este trabalho é o resultado da
observação e mensuração das precárias condições de vida a que está submetida uma população de 9.702 habitantes (1996), que habita uma área periférica da cidade de Santa Maria.
A problemática desta pesquisa foi analisada através das seguintes relações hipotéticas:
existem evidências de que há uma relação entre o nível de renda, a educação, a qualidade de
vida e a distribuição espacial das famílias que têm origem na própria localidade; há também
evidências de que estejam ocorrendo mudanças socioeconômicas na população, mudanças
estas resultantes da evolução da estrutura urbana e do processo histórico da ocupação espacial das diferentes vilas.
92
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Referencial teórico
Os estudos sobre qualidade de vida constituem-se numa preocupação mais antiga nos
países desenvolvidos porém, são mais recentes nos menos desenvolvidos. Qualquer teriam
sidos os termos utilizados para denominá-la “Qualidade de vida”, não como expressão,
mas como realidade, sempre acompanhou a história humana. Contudo, enquanto conceito
e sua organização, emerge apenas na década de 50, inicialmente nos países desenvolvidos,
enquanto nos menos desenvolvidos, as primeiras atenções voltadas para a temática datam
da década de 70.
Segundo Oliveira (1979), os primeiros estudos relativos à qualidade de vida
originaram-se na Europa, em meados do século XIX. Estes estudos foram realizados por
integrantes da chamada escola de economia política, que se interessavam pelas condições
de vida das classes trabalhadoras européias. Diáz (1985), destacou que os primeiros estudos
sobre qualidade de vida tiveram início no final do século XIX (1884) e inicio do século XX,
sendo que a maioria deles o associava ao nível de consumo em termos de bens e serviços
utilizados por uma dada população.
Em seus estudos Calderón e Jiménez (1996), indicaram a década de 50 como o marco
de introdução do tema no mundo político pelas Nações Unidas. e na opinião de Sandroni
(1989), foi com o avanço do movimento ecológico ocorrido na década de 60 que o questionamento acerca da qualidade de vida nos países industrializados ganhou força.
Nos países menos desenvolvidos, as primeiras preocupações surgiram somente na
década de 70 e, os estudos realizados demonstraram que, na América Latina, coube ao
Brasil o pioneirismo sobre o tema. Isto pode ser comprovado através do trabalho realizado
por Souza (1972) sobre o uso do tempo como medida da qualidade de vida. A partir deste
trabalho, outros surgiram no Brasil, na Venezuela, Argentina, México, Chile, etc.
Como foi referido anteriormente, é do conhecimento dos pesquisadores que se
dedicam aos estudos sobre qualidade de vida que o tema é complexo, multidimensional e
interdisciplinar, e que vem sendo interpretado de diferentes formas em função da formação
de cada pesquisador. Isto faz com que, ainda hoje, não exista uma definição precisa de seu
significado, daí as diferentes abordagens conceituais sobre o tema. Há pesquisadores que
estabelecem relações entre qualidade de vida e saúde, Cordeiro (1981), Gallopin (1982),
Abaleron (1996). Outros entre qualidade de vida e qualidade ambiental, como Guimarães
(1984), Troppmair (1992), Sanches e Borja (1993), Herculano (2000). Outros ainda, estabelecem relações entre qualidade de vida e desenvolvimento, como Crocker (1993). No
entanto, existe um ponto em comum entre os diferentes autores: a relação da qualidade de
vida com a questão das necessidades básicas da população. De modo geral, é esta visão a
considerada pela maioria dos pesquisadores.
Outra questão que se destaca nos estudos sobre qualidade de vida envolve a forma
de sua mensuração pois não existe ainda, um acordo sobre os tipos de indicadores a serem
usados, ou, sobre o critério a ser incorporado em escala particular de estudo. Até meados
da década de 70, os estudos sobre qualidade de vida baseavam-se, exclusivamente, na dimensão objetiva (quantitativa) que consequentemente se apoiavam em dados estatísticos.
Porém, diversos estudiosos começaram a questionar esta metodologia até então adotada
Ambientes
estudos de Geografia
93
para estudar o tema. Assim, a partir da década de 80, passaram a incorporar outra dimensão
em seus estudos – a subjetiva (qualitativa), que se baseia na percepção das pessoas sobre o
mundo que as envolve, o que implica uma escala de valores bastante diversa e expressa de
forma, as vezes, subjetiva.
Entretanto, a polêmica ainda continua pois nem todos os pesquisadores adotam a
mesma postura. Há os que se apoiam exclusivamente nas análises objetivas (dimensão material da qualidade de vida), como: Soares, Silva e Abdo (1984); Caiado (1997); Almeida
(1997); Azzoni (1999); etc. Há ainda aqueles que apoiam seus estudos nas análises subjetivas
(aspirações da população) como: Shin et al. (1992); Farias (1997); Mansilla (1997); etc.
Há ainda, aqueles que se apoiam em ambas as dimensões, o que é o mais indicado nestes
estudos, como: Abaleron (1986/87); Rogerson (1989), Sanches e Borja (1993); Borsdorf
(1999), Herculano (2000); etc.
Metodologia
A área estudada foi o bairro Urlândia, localizado a sudoeste da cidade de Santa Maria, limitando-se ao norte com o bairro Medianeira, ao sul com o Tomazzetti, a leste com o
Tomazzetti e o Medianeira e, a oeste com o Arroio Cadena e as áreas militares, cuja história
foi iniciada em 1953, continuando em aberto até hoje. O conjunto é constituído por uma
periferia da cidade, caracterizada por apresentar muitos problemas (ambientais e de topografia – terrenos sujeitos a inundações, muitos destes, localizados às margens de córregos
-, de infra-estrutura e saneamento básico -, violência, insegurança, marginalização, falta de
participação na tomada de decisões, etc. Tais problemas não afetam somente as pessoas que
residem no local, mas refletem-se sobre a cidade como um todo.
Como o referido bairro é uma unidade espacial micro para o qual os dados representavam um desafio, foi necessário a realização de pesquisa de campo, visando à geração
de dados primários. Isto porque os dados secundários existentes não permitiam efetuar
uma avaliação completa, considerando-se os objetivos da pesquisa, conforme o proposto .
A partir de um levantamento realizado junto ao IBGE de Santa Maria, verificou-se que
no bairro existiam 2.580 residências distribuídas através de 07 vilas, um parque residencial e
uma área sem denominação. O número de residências de cada vila foi identificado através da
contagem direta o que mostrou os seguintes totais: 63 na vila Alegria, 160 na vila Formosa,
128 na vila Goiânia, 415 na vila Santos, 80 na vila São Pedro, 328 na vila Tropical, 1.119
na vila Urlândia, 152 no Parque Residencial San Carlos e 135 na área “sem denominação”.
Assim, após o conhecimento direto da área de estudo, de sua delimitação e identificação das residências, foi organizado o instrumento a ser aplicado para avaliação – um
questionário ajustado à técnica survey. Cabe destacar que os aspectos que se desejava
pesquisar relacionavam-se às características da população e da habitação; condições de
infra-estrutura e de serviços e nível de satisfação com os mesmos; problemas ambientais;
grau de convivência e participação comunitária; imagem dos moradores sobre o centro da
cidade e percepção acerca dos diferentes problemas.
Como o tema da pesquisa envolvia questões objetivas e subjetivas, o questionário
94
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
foi elaborado com questões abertas e fechadas, portanto, misto. No conjunto o questionário constou de 34 questões, algumas subdivididas, o que resultou num número maior de
informações coletadas. A partir destes dados buscou-se identificar a qualidade de vida dos
moradores do bairro.
O trabalho de campo foi executado através da aplicação de questionário e, por
amostragem. O tamanho da amostra trabalhada foi baseada na tabela de Krejcie e Morgan
(1970, apud GERARDI; SILVA, 1981), de modo que, de um total de 2.580 domicílios, o
tamanho da amostra trabalhada foi de 335 unidades domiciliares, o equivalente a 13 % do
total dos domicílios. Entretanto, considerando-se que o bairro é composto por várias vilas,
a distribuição espacial destas vilas foi considerada. Assim, as unidades amostrais foram
distribuídas proporcionalmente ao número de domicílios de cada unidade territorial, ou
seja, de cada vila. Optou-se pela amostragem sistemática e, as entrevistas foram realizadas
obedecendo a um intervalo de 08 domicílios e, respondidas pelos chefes de domicílios.
Resultados da pesquisa de campo
A pesquisa realizada no bairro Urlândia teve como objetivo principal: obter mais e
melhor conhecimento sobre a vida dos moradores do bairro, bem como sobre a forma como
percebem os problemas nele existentes. Desta forma, tendo em vista a natureza dos aspectos
mensurados adotou-se os critérios de análise quantitativos e qualitativos.
De uma maneira geral, os dados evidenciaram grandes diferenciações socioeconômicas e espaciais como fruto da ação individual, privada e pública, que em conjunto, revelaram
aspectos negativos da qualidade de vida da população do bairro estudado, bem como aqueles
positivos. A seguir são apresentados os resultados da pesquisa.
Características dos chefes de domicílios e das habitações
Com relação a este aspecto, procurou-se conhecer as características demográficas,
sociais e econômicas dos moradores. Para tanto levantou-se informações sobre: sexo, idade,
escolaridade, ocupação, renda familiar, condição da moradia e nível de satisfação com a
mesma, procedência dos entrevistados e motivação para residir em Santa Maria.
De um total de 335 chefes de domicílios entrevistados, 273 eram homens (81,49%)
e, 62 eram mulheres (18,51%). Estes dados demonstraram que no bairro estudado o homem
ainda tem um papel bastante significativo na manutenção da família.
Com relação à estrutura etária , os resultados mostraram que a maioria estava situada
entre 20 e 59 anos de idade, totalizando 78,21%. Isto é um indicativo de que daqui a mais
ou menos duas décadas haverá, desde que não ocorram modificações significativas, um
número expressivo de idosos chefiando domicílios e vivendo neste bairro.
O nível de escolaridade que é considerado um importante indicador da qualidade de
vida da população, mostrou-se muito baixo entre os entrevistados . Dos 335 entrevistados,
60,0% não haviam completado o 1º grau, e 14,62% eram analfabetos, o que, conjuntamente,
Ambientes
estudos de Geografia
95
totaliza 74,62%. Esta situação traz conseqüências para as questões do trabalho, do rendimento
e, consequentemente, é fator determinante das precárias condições de vida. A ocupação dos
chefes de domicílios reflete o baixo nível de escolaridade, pois as ocupações dominantes
entre os entrevistados estão ligadas à construção civil, à função de motorista e a serviços
domésticos no caso das mulheres. Estas ocupações, por sua vez, repercutem na renda das
pessoas que se mostrou relativamente baixa entre os entrevistados. Assim, 46,26% deles
viviam com renda de até 2 ½ salários mínimos, e apenas 20,29% desfrutavam de renda
superior a 5 salários mínimos. Constatou-se, assim, que há uma estreita ligação, entre, nível
de renda, nível de escolaridade e tipo de ocupação dos entrevistados, o que repercute na
qualidade de vida.
Com relação a condição de moradia a pesquisa mostrou que a maioria é composta
de proprietários (83,88%) e, que estavam satisfeitos com as mesmas. Isto pelo fato de não
ter que pagar aluguel, justificativa considerada muito válida diante da situação econômica
de grande parcela deles.
Quanto a origem dos chefes de domicílios, observou-se que 55,52% eram naturais
de Santa Maria, e 42,08% de outros municípios. Apenas 2,38% eram originários de outros
estados. Desta forma, os migrantes no bairro correspondiam a 44,48% do total dos entrevistados sendo que a maioria deles vieram residir em Santa Maria por questões ligadas ao
trabalho. Ao se indagar se gostavam do lugar onde moravam, 89,25% responderam que sim,
no entanto, 59,98% mudariam para outro local se pudessem.
Grau de convivência no bairro
O grau de convivência no bairro foi analisado com base em questões como: Conhece as pessoas do quarteirão? Mora próximo à parentes? Como você classifica sua relação
com a vizinhança? Qual o lazer da família nos finais de semana? Considera que existe integração na comunidade? Participa de Associação de Moradores? Os resultados revelaram
que 70,74% dos entrevistados moravam próximos a parentes. Este era um dos motivos
que fazia com que as pessoas gostassem de morar no local onde viviam. Do total, 88,65%
responderam que conheciam as pessoas do quarteirão. Quanto à relação com os vizinhos,
93,73% responderam que era boa e/ou ótima. Quando indagados sobre a existência ou não
de integração na comunidade da qual faziam parte, 49,85% dos entrevistados responderam
que não havia destacando como motivos principais o individualismo das pessoas e a falta
de preocupação com os problemas que diziam respeito à comunidade
A participação em associação de moradores é uma forma da pessoa dispor-se a
trabalhar com e pelo conjunto. Os resultados mostraram que ela é muito pequena. Do total,
somente 64 (19,10%) afirmaram que participavam. Isto demonstrou a falta de espírito de
luta na busca por melhores condições de vida e, de certa forma justifica, a existência de
tantas carências no bairro. Uma coletividade mais integrada e ativa teria as condições de
alterar esta situação.
Quanto ao lazer praticado pela família nos finais de semana, os dados mostraram
que as modalidades que assumiram maior relevância foram: assistir TV (27,46%), visitar
96
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
parentes (16,11%) e, ficar em casa (13,43%). Na realidade o primeiro e o terceiro são similares. Ambos significam a imobilidade e a segregação. Acredita-se que, a situação de lazer,
esteja vinculada à renda das famílias o que não permite que usufruam daquelas formas que
demandam despesas extras. Como conseqüência, o lazer não extrapola o meio em que vivem.
Esta constatação representa um dado relevante, uma vez que esta dimensão é componente
importante da qualidade de vida
Apreciação sobre a Infra-estrutura e serviços existentes no bairro
A multiplicação de novos espaços ocupados nas periferias faz com que surjam vários
problemas ligados a infra-estrutura e aos serviços pois, a tendência geral é de que eles sejam
implantados a partir da área central para as periferias. A avaliação que se desenvolveu buscou
identificar as condições de infra-estrutura e dos serviços colocados ao alcance dos moradores.
Procurou-se também, conhecer a opinião dos entrevistados a respeito dos mesmos. Neste
aspecto foram avaliados os serviços de saúde, iluminação pública, energia elétrica, sistema
de telefonia, coleta de lixo e comércio.
A saúde é considerada um importante indicador da qualidade de vida de uma população. No entanto, nem sempre, todas as pessoas se beneficiam da mesma forma destes
serviços a ela vinculados, o que gera satisfação por parte de algumas e insatisfação para
outras. De uma maneira geral, a maior parte dos entrevistados (63,88%), buscavam atendimento junto aos postos de saúde municipal localizados em bairros próximos, como os
Medianeira, Tomazzetti; ou então, no Hospital Universitário de Santa Maria (6,86%) e no
Sus (6,26%). Os resultados mostraram o predomínio da assistência médica gratuita, com um
nível de satisfação bem elevado pois, 84,77% dos entrevistados consideravam-se satisfeitos
e ou muito satisfeitos com os serviços utilizados.
A questão da segurança foi também um aspecto avaliado. Os resultados mostraram
que, neste aspecto, a insatisfação é muito grande, pois, 69,05% consideravam-se insatisfeitos
e ou, muito insatisfeitos. As razões para esta insatisfação é que raramente passava uma viatura
da Brigada Militar para fazer o patrulhamento ou então, só apareciam quando solicitada a
sua presença face à uma ocorrência. Quando questionados sobre os problemas que mais
afetavam suas seguranças, 44,80 % dos moradores responderam: roubo em residências;
29,22% problemas de drogas; 5,19% afirmaram que não existiam problemas, 1,73% que
não sabiam e, os 9,10% restantes, destacaram a existência de outros problemas.
Quanto aos serviços de iluminação pública, grande parte dos entrevistados manifestaram-se bastante insatisfeitos, com um percentual de 45,06% de insatisfação. Entre as razões
para esta insatisfação estava: a inexistência de iluminação pública em algumas ruas, a grande
distância entre uma luminária e outra, a demora na reposição das lâmpadas queimadas ou
quebradas e o mau funcionamento das mesmas. Deve-se considerar que a iluminação pública
se constitui num elemento de grande relevância para a questão da segurança das pessoas. Um
lugar bem iluminado fica menos sujeito à violência do que um lugar carente de iluminação.
No que diz respeito aos serviços de energia elétrica e de telefonia existe entre os
entrevistados um nível de satisfação bastante elevado, visto que não apresentam grandes
Ambientes
estudos de Geografia
97
problemas. Relativo a energia elétrica, 73,70% dos entrevistados consideravam-se satisfeitos
e ou muito satisfeitos devido os bons serviços prestados pela Cia responsável, ou seja, rapidez
com que são executados quando ocorre algum problema e o fato de raramente faltar luz.
Com relação aos serviços de telefonia, constatou-se que, 60,50% dos moradores possuíam
telefone com predomínio do convencional (68,47 %) e, o nível de satisfação entre eles com
os serviços era de 78,31%, como resultado do bom atendimento proporcionado pelas empresas responsáveis. Ao considerar a distribuição espacial dos telefones públicos no bairro,
evidenciou-se que eles eram pouco numerosos, não ultrapassando a 20 aparelhos instalados.
As atividades comerciais existentes no bairro, são pouco expressivas. O maior destaque envolve os mercados, bares e armazéns. Registrou-se também, a presença de padarias,
fruteiras (mercado de frutas), açougues e uma farmácia. Constatou-se que o comércio se
restringe aos gêneros de primeira necessidade. Mesmo assim, o nível de satisfação dos entrevistados com este serviço mostrou-se satisfatório com um percentual de 71,32 de satisfeitos.
Quando se considerou a questão do saneamento básico no bairro (rede de água,
esgoto doméstico e pluvial e, coleta de lixo) constatou-se que o problema mais crítico era o
de esgoto. A prova disto é que ele se constituiu numa das principais queixas dos entrevistados. Grande parte do esgoto do bairro não é canalizado, sendo muito freqüente correr a céu
aberto, principalmente nas áreas mais pobres. Quando foram consideradas a rede de água e
a coleta de lixo, os entrevistados mostraram-se satisfeitos com os serviços.
A questão ambiental no bairro
Na pesquisa de campo buscou-se também avaliar os problemas ambientais mais relevantes no bairro, visto que, esta questão é um importante critério para se avaliar a qualidade
de vida de uma comunidade. Vários pesquisadores trataram deste tema, evidenciando sua
importância. Dentre eles, destacaram-se: Sanches e Borja (1993); Geisse e Arenas (1996);
Carvalho (1997); Herculano (2000); etc. Ao abordar esta questão, Sanches e Borja (1993)
afirmaram que se podia aceitar como premissa que uma boa qualidade ambiental favorece
uma melhor qualidade de vida. Para Geisse e Arenas (1996), a qualidade ambiental é importante elemento da qualidade de vida, uma vez que só se pode falar nela quando se convive
num ambiente saudável e livre de qualquer tipo de poluição. Neste sentido Carvalho (1997)
considerou que existe estreita ligação entre saúde, questão ambiental e qualidade de vida.
Herculano (2000), ao tratar do tema, destacou a importância da análise da questão ambiental
na avaliação da qualidade de vida, uma vez que a primeira está integrada à segunda. De uma
maneira geral, para estes autores, as condições apresentadas pelo meio estão vinculadas aos
níveis de saúde e, o conjunto serve como caracterizador da qualidade de vida.
Na análise desenvolvida indagou-se sobre os problemas ambientais mais comuns
no bairro, segundo a opinião dos entrevistados, bem como a percepção deles acerca destes
problemas. Pôde-se constatar que o maior ênfase recaiu sobre aqueles já conhecidos como
mais graves no ambiente urbano: presença de esgoto a céu aberto, proliferação de animais
e insetos nocivos à saúde, buracos nas ruas e mau cheiro. Quanto a percepção dos entrevistados acerca dos problemas ambientais, constatou-se que, as pessoas que apresentaram
98
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
percepção mais negativa foram aquelas que moravam nas vilas que apresentavam as piores
condições de infra-estrutura.
Serviços que o poder público tem oferecido à população do bairro
Com esta questão, pôde-se conhecer a opinião dos entrevistados sobre aquilo que o
governo municipal oferecia à população. A maioria deles, ou seja, 75,22%, respondeu que
o poder público não tem oferecido nada ou quase nada. Segundo eles, no bairro há sérios
problemas de esgoto, precária iluminação pública, a maioria das ruas não é calçada e aquelas
que o são, não são conservadas, e, havia falta de segurança, dentre outros. Também dentre os
entrevistados (24,78%), reconheceram que o poder público tem investido em canalização de
esgoto, iluminação pública, coleta de lixo, calçamento de ruas, limpeza de bueiros e escolas.
Quando se considerou a opinião dos entrevistados com relação aos serviços que
poderiam ser prestados pelo poder público, evidenciou-se que aqueles mais desejados eram:
implantação da rede de esgoto em todas as ruas, calçamento de todas as ruas, melhoria da
iluminação pública e implantação de um posto de saúde no bairro. Estas opiniões totalizaram 82,39%.
Relacionamento da população do bairro com o centro da cidade
Residir em um bairro não significa nele permanecer segregado. Também o centro de
cidades representam áreas de atração. Com esta questão buscou-se identificar as relações
que os entrevistados desenvolviam com o centro da cidade e qual era a imagem que eles
tinham dele. Constatou-se que 95,52% dos entrevistados freqüentavam o centro da cidade,
o que pode ser explicado pelas necessidades pessoais e pelo fato de o centro não estar excessivamente distante. Entre as razões pelo qual freqüentavam o centro da cidade, o maior
destaque recaiu nas razões: fazer compras e efetuar pagamentos (50,14%) e para trabalhar
(17,91%), sendo que as demais razões assumiram menor importância.
Ao se perguntar aos entrevistados o que o centro da cidade representava para eles,
foram obtidas respostas muito diversificadas. As que assumiram maior relevância foram:
lugar de comércio; opção para fazer compras e pagar contas; centro de prestação de serviços;
ideal para passear e, onde se encontrava aquilo que não tinham no bairro. A análise geral
das respostas evidenciou que a maioria dos entrevistados visualizava o centro da cidade,
dominantemente, como um local de comércio e de prestação de serviços. Na verdade esta
tem sido a função principal do centro da cidade de Santa Maria e, é desta forma que a população do bairro o percebe.
Considerações finais
Através desta pesquisa pôde-se concluir que o processo de ocupação acelerado do
Ambientes
estudos de Geografia
99
espaço urbano de Santa Maria deu origem a periferias, dentre as quais se encontra o bairro
Urlândia, que se caracteriza pela falta de infra-estrutura e de serviços essenciais à vida da
população. Esta dinâmica de urbanização tem como efeitos a produção de espaços segregados e degradados, com sérias conseqüências para a qualidade de vida de seus habitantes,
que passam a ocupar áreas impróprias para a habitação.
Assim, os resultados registrados reforçam os problemas já conhecidos que caracterizam este espaço periférico confirmando os níveis de exclusão e de precariedade a que está
submetida uma boa parcela da população, especialmente, quando se tratam das condições de
acesso ou não aos serviços públicos e da exposição aos riscos ambientais. De uma maneira
geral percebeu-se que, os moradores tinham consciência dos problemas que os afetavam,
não escondendo seu descontentamento com a situação. Mesmo assim, constatou-se que
um número significativo de entrevistados (89,25%) afirmou gostar do lugar onde viviam,
no entanto mais da metade (59,98%) mudaria para outro lugar se pudesse, o que demonstrou uma certa contradição. Convém destacar que, a escolha de um lugar para morar nem
sempre significa a vontade efetiva de nele morar. Na maioria das vezes, ela está ligada à
condição socioeconômica. Assim, uma vez morando em determinado lugar, gostar ou não
dele depende de uma série de fatores: a relação que é estabelecida com a vizinhança, a
proximidade dos familiares, o sentimento de segurança, a existência de infra-estrutura e de
serviços básicos, etc.
Outra questão marcante na análise dos resultados foi a pequena participação dos
entrevistados em associação de moradores, o que levou a dedução de que existia pouca
motivação e interesse num engajamento em formas de organização coletiva com a finalidade
de colaborar e de reivindicar melhorias para o bairro e para as pessoas. Os dados mostraram
também que havia falta de integração na comunidade. Isto levava a não participação dos
moradores em práticas comunitárias que poderiam beneficiá-los.
Assim, a situação de exclusão e precariedade que marca o bairro e que faz com que
a qualidade de vida da população não seja boa resulta não apenas das formas de atuação do
poder local mas, também, da falta de iniciativas da população. Se ela não se dispõe a participar de ações conjuntas que reforçariam reivindicações a fim de melhorar sua qualidade
de vida, torna-se devedora nos projetos de melhorias coletivas.
Afim de contemplar a espacialização da qualidade de vida no bairro, apresenta-se
como conclusão uma tabela resumo exibindo as vilas que apresentaram os melhores e os
piores indicadores de qualidade de vida. Convém salientar que as vilas consideradas como
possuidoras dos melhores indicadores foram aquelas que apresentaram percentuais mais
elevados nos diversos aspectos considerados, e, como possuidoras dos piores aquelas que
apresentaram os percentuais mais baixos.
Assim, através dos 22 indicadores apresentados na tabela 1, evidenciou-se que, quanto aos melhores níveis dos diferentes indicadores, as vilas que mais se destacaram foram.:
Residencial San Carlos e a área “sem denominação”, que registraram 9 vezes, e Alegria e
São Pedro, com 7 vezes. Porém, quando os piores indicadores foram considerados, as vilas
Urlândia e Santos é que se destacaram, registrando 8 vezes.
Tabela 1 – Vilas do bairro Urlândia que apresentaram os melhores
100
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
e os piores indicadores de qualidade de vida
Fonte: Pesquisa de campo
Org.: Autor
Quando foram considerados os indicadores objetivos, as melhores condições foram
encontradas nas vilas Formosa , “sem denominação”, Alegria e Goiânia, enquanto as piores
foram observadas nas vilas Urlândia e Santos. Com relação aos indicadores subjetivos, a
pesquisa mostrou que os melhores indicadores apareceram no Residencial San Carlos e nas
vilas Tropical e sem denominação. Os piores foram registrados nas vilas Alegria e São Pedro.
Do ponto de vista objetivo, a análise dos resultados da pesquisa permitiu comprovar
Ambientes
estudos de Geografia
101
a coerência com a realidade que se conhece do bairro. O mesmo não ocorreu com os indicadores subjetivos, dos quais não se tinha uma projeção prévia dos resultados finais, pelo
fato das pessoas perceberem as questões que as envolviam, de forma muito diferenciada.
Este procedimento caminhou de uma identificação específica de diferentes variáveis
para uma avaliação onde, de forma associada, foram caracterizadas as diferentes vilas.
Isto mostrou também os graus de associação entre diferentes variáveis caracterizadoras de
qualidade. Qualidade de vida não corresponde à privação ou ao benefício de um indicador,
mas, sim a uma conjugação de vários deles.
O resultado da pesquisa demonstrou que a qualidade de vida da população do bairro
é bastante heterogênea. De uma maneira geral ela pode ser caracterizada como má, principalmente quando são consideradas variáveis como: nível de escolaridade, renda, emprego,
condições de infra-estrutura e saneamento básico, problemas ambientais, integração com
a comunidade e participação em associações de moradores. Porém, quando as vilas foram
analisadas isoladamente, constatou-se que nem todas podiam ser assim caracterizadas, pois
existiam algumas que detinham melhores condições do que outras.
Para que ocorra melhoria da qualidade de vida das populações que habitam áreas
periféricas é necessário que as administrações locais reconheçam a existência delas e assumam suas responsabilidades pelas mesmas. É preciso igualmente que as políticas públicas,
sejam elas nacionais, estaduais ou locais, forneçam para estas áreas o mesmo tratamento
que é dado para as áreas mais centrais da cidade. Como um aspecto muito relevante, talvez
o mais relevante deles consista na tomada de consciência e na busca da real cidadania por
parte dos moradores, através do conhecimento adequado da situação no qual vivem e da
participação em associações comunitárias buscando aquilo que desejam.
Referências
ABALERON, C. A. Condicionantes objetivos y percepción subjetiva de calidad de vida en
areas centrales y barrios o vecindarios. Revista de Geografia, São Paulo, n. 5/6, p. 103142, 1986/1987.
______; ACEVEDO, S. E; PARONZINI, J. D. Calidad de vida y vivienda precaria em
clima frío: Triangulación Metodológica en Bariloche, Argentina. Revista de Geografia,
São Paulo, v. 13, p. 51-75, 1996.
ALMEIDA, C. A. A qualidade de vida no estado do Rio de Janeiro. Niterói, EDUFF,
1997. 127p.
AZZONI, C. A. Quão grande é exagerado? Dinâmica populacional, eficiência econômica e
qualidade de vida na cidade de São Paulo. Revista EURE, Santiago, v. 25, n. 76, dec. 1999.
BORSDORF, A. Quality of life in alpine towns – with examples from Innsbruck and Bregenz.
Revue de Gèographie Alpine, Grenoble, v. 87, n. 1, p. 163-169, 1999.
CAIADO, A. S. C. Metrópoles, cidades médias e pequenos municípios paulista: estudo
comparado da qualidade de vida e dinâmica socioespacial. In: PATARRA, N. et al. (Org.). Mi-
102
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
gração, condições de vida e dinâmica urbana. São Paulo: UNICAMP IE, 1997. p.115-138.
CALDERON, I. T. G.; JIMÉNEZ, C. I. B. De la pobreza a la calidad de vida. Revista Geográfica Venezuelana, Mérida, v. 37, n. 1, p. 27-44, 1996.
CARVALHO, A. P. A. de. Meio ambiente urbano e saúde no município de Salvador.
1997, 246 p. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-graduação em Geografia, UNESP, Rio Claro,
SP, 1997.
CORDEIRO, H. de A. Qualidade de vida urbana e as condições de saúde: o caso do Rio
de Janeiro. In: SOUZA, A. de. (org.). Qualidade de vida urbana. Rio de Janeiro: Zahar,
1984. p. 57-77.
CROCKER, D. Qualidade de vida e desenvolvimento: o enfoque normativo de Sen e
Nussbaum. Revista de Ciências Sociais (IUPERJ), Rio de Janeiro n. 36, p. 99-133, 1993.
DÍAZ, K. Los estudios geográficos sobre la calidad de vida en Venezuela. Revista Geográfica, México, n. 102, p. 56-72, jul./dic. 1985.
FARIAS, O. D. Percepción del habitante en la calidad de vida en ciudades intermedias de
Chile. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 6., 1997, Buenos
Aires – Argentina. Trabalhos apresentados... Buenos Aires, mar. 1997. 1 CD-ROM.
GALLOPIN, G. Calidad de vida y necessidades humanas. MARNS, Proyecto Sistemas
Ambientales Venezolanos. Doc.1-2, Caracas, 1982.
GEISSE, M. G.; ARENAS, H. S. Reflexiones en torno de los conceptos de “medio” y “calidad de vida” desde la perspectiva de la ciencia geográfica. Revista de Geografia Norte
Grande, Chile, n. 23, p. 47-53, 1996.
GERARDI, L.H. de O.; SILVA, C.N.S. Quantificação em Geografia. São Paulo: Difel, 1981.
GUIMARÃES, R. P. Ecopolítica em áreas urbanas: a dimensão política dos indicadores de
qualidade ambiental. In: SOUZA, A. de (org.). Qualidade de vida urbana. Rio de Janeiro:
Zahar, 1984. p. 21-33.
HERCULANO, S. C.; SOUZA PORTO, M. S. de; FREITAS, C. M. de. Qualidade de vida
e riscos ambientais. Niterói: EDUFF, 2000. 334 p.
MANSILLA, S. L. Diferenciación socio espacial en San Migel de Tucumán. El paisaje
urbano como indicador de calidad de vida. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 6., 1997, Buenos Aires – Argentina. Trabalhos apresentados... Buenos
Aires, mar. 1997. 1 CD-ROM.
OLIVEIRA, J. M. P. S. de. Condições de vida da população de baixa renda nas áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e Porto Alegre. Revista Brasileira de Geografia, Rio de
Janeiro, v. 41, n. 4, p. 3-58, out./dez. 1979.
ROGERSON, R. J. et al. Indicators of quality of life: some methodological issues. Environment and Planning A, Inglaterra, n. 21, p. 1655-1666, 1989.
SÁNCHES, M. M.; BORJA, J. F. C. Relaciones entre la calidad ambiental y la calidad
de vida, um método para su evaluación. Boletin del Instituto de Geografía. México. nº
especial, p. 49-65, 1993.
Ambientes
estudos de Geografia
103
SANDRONI, P. (org.) Dicionário de Economia. 2. Ed. ver. e ampl. São Paulo, SP: Best
Seler, 1989. 331p.
SHIN, et al. Environmental effects on perceptions of life quality in Korea. Social Indicators
Research, Boston, n. 12, p. 393-416, 1983.
SOARES, M. T.; SILVA, J. X. da; ABDO, O. I. Um indicador de qualidade de vida nas
favelas do Rio de Janeiro. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA, 4., 1984,
São Paulo. Anais... São Paulo, v. 1, p. 225-239, 1984.
SOUZA, A de (org.). Qualidade de vida urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
SOUZA, A. O uso do tempo como medida da qualidade de vida urbana. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 51-75, jan./mar. 1972.
TROPPMAIR, H. Atlas da qualidade ambiental e de vida de Rio Claro. Rio Claro:
UNESP/IGCE, 1992.
DESCONSTRUÇÃO DO LUGAR
O aterro da praia da frente do centro
histórico de São Sebastião (SP)
José FRANCISCO
Pompeu Figueiredo de CARVALHO
[...] o homem jamais pode prever a totalidade de uma ação técnica. A história mostra que toda aplicação técnica, em suas origens, apresenta efeitos
(imprevisíveis e secundários) muito mais desastrosos do que a situação
anterior ...(ELLUL, 1968, p. 108)
Introdução
Este trabalho apresenta para discussão o conceito de “desconstrução”, como um instrumento analítico que facilita desvelar formas de trabalhar o espaço. Essa palavra, com recorte
físico-espacial, carrega a afirmação de que o espaço está em constante transformação. Não
há construção sem destruição. Apresenta como estudo de caso o processo de desconstrução
da “praia de São Sebastião”, conhecida como a “praia da frente”, junto ao centro histórico
da cidade de São Sebastião, no litoral norte paulista.
O tema surge a partir de nossa participação no “Concurso Público Nacional de Idéias
para a Implantação de uma Marina e Revitalização Urbana do Centro Histórico da Cidade
de São Sebastião”.
Apesar da região ser conhecida por nós, foi só com olhar mais atento, e com função
precípua de conhecer esse espaço para poder trabalhá-lo, é que fomos a ela e começamos,
então, a efetivamente entendê-la. No desenrolar dos trabalhos identificou-se a área, objeto
do concurso, como sendo um acrescido de marinha da mesma forma que quase toda a área
do porto de São Sebastião.
Como o centro de São Sebastião e a área portuária da cidade puderam “ganhar terreno”
em tão pouco tempo? Em que condições isso se realizou, e por que o estado de abandono
atual desses espaços?
Da paisagem ao espaço ou da natureza a natureza segunda
O trabalho é, ao mesmo tempo, o elemento formador do homem e transformador
da natureza. Por ele, então, passamos do espaço natural para o espaço transformado ou,
simplesmente, da paisagem ao espaço. A formação do homem está ligada tanto ao espaço
natural quanto ao transformado.
106
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
O trabalho das mãos na paisagem-natureza inaugura a grande caminhada, cada vez
mais presente, da “construção”, ao mesmo tempo, do humano e do espaço. Pode-se indagar,
na medida em que o que se constrói, ao menos em termos espaciais, nada mais é do que a
modificação do espaço existente, se não se trata, então, do que chamamos desconstrução.
Somos talhados para a desconstrução espacial e, de tão imbricados estamos com ela, que
podemos afirmar não saber fazer nada que não seja desconstruir.
Nos parece que a história humana é “feita“ a partir do trabalho incessante do homem no meio ambiente. “Classicamente” o início da História é considerado como sendo a
partir de uma ação ou ato simbólico nesse meio, quando se deixa documentado, por ele, o
trabalho social. É incorporado ao meio através do papiro, na madeira, à argila, à pedra etc..
Pode-se perguntar porque só agora, pela sua destruição, dá-se conta da importância desse
meio ambiente? Com a desconstrução juntamos o meio ambiente ao homem, e vice-versa,
ambos na sua interdependência.
Na sociedade atual, onde o modo capitalista de produção é dominante, produz-se de
tudo e tudo o que se produz, direta ou indiretamente, é espaço. Lefèbvre assim se manifesta:
“Produzir, afinal de contas, hoje, não é produzir isto ou aquilo, coisas ou obras, é produzir
espaço [...]. A mercadoria (o mercado mundial) ocupará o espaço inteiro” (LEFÈBVRE,
1974, p. 253). Não paramos, então, de produzir espaço. Ele é a grande mercadoria. Nesse
sentido representa, sobretudo, um “contrato espacial”, pois está totalmente subjugado na
produção de mercadorias a ponto dele próprio tornar-se não só mais uma delas, mas a síntese
de toda mercadoria. Se o espaço é a grande mercadoria, a força-de-trabalho que o “esculpe”
não poderia deixar de ser a mercadoria por excelência!
O trabalho do homem, inicialmente na natureza primeira e em seguida, e por causa
dele próprio, num processo contínuo e ininterrupto, criando a natureza segunda, é sinônimo
de desconstrução.
Cabe assinalar ainda, na desconstrução espacial, o papel importante e fundamental
desempenhado pela técnica. As diversas técnicas aí aplicadas podem significar diferentes
estágios de complexidade na desconstrução espacial.
O conceito de desconstrução
A desconstrução espacial pode ser entendida de duas maneiras. Primeiramente como
sendo o processo de transformação constante a que o espaço existente está antropicamente
submetido - e não poderia ser de outra maneira - seja ele natural ou artificial, e, como outra
forma de entendimento, a tarefa ou o esforço de se entender o papel do espaço - ao que
chamaríamos de desconstrução espacial também - na análise da evolução e desenvolvimento
da humanidade.
As duas formas de entendimento da desconstrução se completam, e se somam para
formarem um todo maior de preocupação e de possibilidade do conhecimento dos espaços
social e natural-transformado. Pode-se dizer que a primeira forma se aproxima mais da
compreensão do quotidiano, do espaço físico a nível prático, operativo e instrumental. Já a
Ambientes
estudos de Geografia
107
outra forma significa um esforço teórico de investigação histórica. Assim, prática e teoria
somadas compondo referencial ao espaço e as suas transformações e evolução, ao que
podemos chamar de praxis espacial, ou, com a desconstrução, uma prática consciente da
intervenção do homem na natureza.
O conceito “desconstrução” possui uma grande potencialidade por possibilitar resgatar
a totalidade-essência da construção. Ao construir, se destrói uma natureza, natural ou artificial,
geralmente, várias vezes desconstruída. A instância da destruição é, no entanto, negligenciada, com pouco peso nas decisões, alienando-se de todas as implicações do processo de
construção. A evolução deste rico conceito vai de Marx e Engels à contemporaneidade do
filósofo Jacques Derrida, do arquiteto italiano Paolo Portoghesi, do arquiteto catalão Antoni
Gaudí e do brasileiro João Filgueiras Lima. Esses três arquitetos, de renome internacional,
propõem, claramente, a integração da edificação com o meio ambiente do entorno.
Para Marx e Engels (1972) o homem produz (novas) necessidades, como primeiro
fato histórico, que são supridas pelo trabalho aplicado na natureza, transformando-a e a ele
próprio. Podemos considerar essa “transformação” com o mesmo significado de desconstrução. A própria consciência humana estaria relacionada ao que estava próximo “à mão”,
para ser tocada, como já a lembrar o trabalho, quando diz: “Minha consciência é minha
relação com aquilo que me rodeia” (MARX; ENGELS, 1972, p. 63, grifado por Marx nos
manuscritos). Se toda transformação espacial é, em última análise, desconstrução, podese considerá-la como síntese do espaço em movimento, como evolução, capacitando sua
análise, pelas partes que a completam.
Entre sociedade e natureza, em desconstrução, as mediações mudam, dialeticamente, na medida que ambos se transformam, se condicionam e interagem. A alienação tende
a crescer porque os meios passam a fim e cria-se uma razão instrumental, que passa a ter
crescente autonomia relativa. Tende-se a esquecê-los tão logo se satisfaz ao utilizá-los. A
mão, ícone do trabalho e da técnica, estende-se com a ferramenta e também com a necessidade de maior conhecimento pela possibilidade de continuar transformando a natureza. Este
passa a ser o mais amplo dos meios de se relacionar com o espaço, num processo incessante
de desconstrução. O devir é aumentar a capacidade de desconstruir o espaço, pelo uso da
técnica, portanto, reduzindo a existência humana a um pragmatismo utilitário. A ferramenta
como extensão do corpo aliena-se do mesmo na medida que avança a divisão do trabalho.
Fabricam-se ferramentas para uso de outros e apropriação do seu trabalho e mais-trabalho.
A ferramenta, o corpo e o espaço passam a ser mediações de exploração entre os homens.
Construções e destruições, ou sejam a desconstrução do mundo, têm ônus e bônus distribuídos desigualmente entre os homens.
É necessário conscientizar-se da destruição dos espaços, não se omitindo de responsabilidades. Ao se falar de construção fala-se de desconstrução, resgatando a totalidade
destruição-construção da ação antrópica com todas as suas vicissitudes. O novo conhecimento
espacial que se deseja através do conceito de desconstrução impõe uma nova consciência
social. E essa nova consciência pode começar a vir através de uma nova prática espacial.
Na produção do espaço destrói-se primeiro para em seguida construir, completando
a desconstrução. A desconstrução é o processo completo da intervenção espacial, aí incluído
108
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
também o produto acabado. Dessa forma o conceito de desconstrução é mais amplo que
o de construção e devemos considerar, então, que não existe construção, mas sim a desconstrução espacial. Assim a desconstrução, além de abarcar as implicações decorrentes
das modificações no espaço previamente existente, contém também os “imperativos” da
nova construção e seus impactos atuais e futuros. Nela conseguimos apreender, então, toda
a dinâmica da produção espacial.
O escopo principal do nosso trabalho é colocar em evidência, pela sua importância
e singularidade, a “unidade do homem e da natureza” (MARX; ENGELS, 1972, p. 57), ou
a “natureza única” (MARX; ENGELS, 1972; GOMES, 1990), onde o homem se mescla
com a natureza e se desenvolve, nas suas necessidades, a partir da desconstrução que ele
pratica. O homem precisa ter como objetivo maior, inter-relacionar-se em harmonia com a
natureza única, cultural, devendo, portanto, ele próprio praticar, uma “desconstrução mínima”. A questão, então, é saber de que maneira podemos modificar o espaço de tal forma que
tenhamos o mínimo de alterações. Aprendemos com a natureza, ela é nosso modelo e guia
e temos a tarefa precípua de conservá-la, entendendo as suas leis, pois elas são imutáveis
diante da ação humana.
A questão da desconstrução espacial
O termo desconstrução ajuda a nos tornar conscientes e responsáveis pela “destruição”, pela perda do bem preterido, pelo impacto ambiental e pelo aumento do conhecimento
que temos do espaço. Tanto o espaço “natural” quanto o “transformado” vivem ambos em
desconstrução permanente. A preocupação com a desconstrução espacial deve existir, inicialmente, não só como postura dos agentes envolvidos, todos buscando a harmonia com
o espaço existente, mas como direito de fato da sociedade. Esse pressuposto de ação pode
levar a uma mudança qualitativa na projetação espacial, enquanto processo maior, obtido por
uma somatória de intervenções portadoras de preocupação com a desconstrução espacial.
No fundo o que se advoga é que o interesse nos projetos de intervenção espacial possa vir
a partir da própria prática projetual em si, e o que ela pode acarretar em termos de preservação da riqueza estética da paisagem, e não a partir da constatação de erros sucessivos
que cometemos ao destruir nossas paisagens. Como num processo dialético, uma sucessão
quantitativa de eventos levando a uma mudança qualitativa no ato de projetar.
Nós não projetamos a paisagem, até hoje, ou raramente fazemos isso. Ela é fruto de
“prolongamentos” pontuais, parciais e sucessivos dos “espaços” que a compõem. Nossa
consciência dela se dá em nível mais micro de que macro. A necessidade de uma consciência
coletiva da paisagem, e de sua continuidade como garantia de qualidade de vida, nos faz
desembocar na desconstrução. Cabe a nós saber aplicar convenientemente na paisagem,
uma desconstrução melhor adequada.
O novo espaço é ocupado, construído, destruído, transformado, habitado, “salpicado
de verde”, sempre trazendo algo de novo e de diferente como o motor das “construções”. O
acontecer contínuo entre o existente e o novo, chamamos de espaço desconstruído.
Não se trata de novo tipo de espaço, mas de começar a entender o espaço que nos
cerca a todos, de uma maneira mais abrangente. A desconstrução então pode ser entendida
Ambientes
estudos de Geografia
109
como uma forma plena e consciente de “trabalhar o espaço”, superando mesmo a divisão
rural-urbana preconizada por Marx e Engels (1972, p. 95).
Qualquer quinhão de espaço natural ou artificial a ser transformado deve ser trabalhado
a partir de projetos executivos detalhados, de tal sorte que nada, ou quase nada, escape à
análise e não se descaracterize o lugar. É fundamental que tenhamos consciência, sobretudo
das conseqüências quanto a não conservação do meio ambiente, dos atos que nele praticamos.
Sempre se desconstrói o existente. O novo é o espaço da pseudoconcreticidade se o
entendermos como o único alavancador do desenvolvimento urbano. Precisamos “destruílo”, enquanto tal, e inaugurarmos a concreticidade do espaço desconstruído. Portanto a
desconstrução precisa deixar de ser abstrata ou pseudoconcreta para passar a ser concreta.
Pela explicitação da desconstrução, do abstrato ao concreto, como ensejado por Kosik
(1995, p. 37).
Entre o antigo e o novo podemos ter três formas de intervenção no espaço: reabilitação (sem desconstrução alguma), renovação (com desconstrução mínima) e destruição (com
desconstrução máxima). Evitando-se a desconstrução máxima a reabilitação/renovação de
espaços estaria presente, mantendo-se parte da história viva do espaço-paisagem do homem.
A hipótese que levantamos é que, nas intervenções espaciais, há uma desconstrução muitas
vezes, freqüentemente mesmo, alienada, desnecessária e abusiva, normalmente atendendo
à rentabilidade econômica, num arranjo espacial duvidoso.
Os espaços para serem adaptados devem ser convenientemente planejados e projetados. Nos desenhos, os traços originais do espaço existente devem ser mantidos, como que
a marcar e garantir a documentação da evolução espacial, o que vale dizer, não só pouco
desconstruir, mas deixando assinalado o que deve permanecer. Os projetos arquitetônicos
devem “pousar no solo”, isto é, relacionar-se criativamente com as peculiaridades dos objetos
naturais existentes, por exemplo, o verde e a água devem fazer parte e penetrar os novos
espaços. Além disso, o ambiente construído resultante deve ter garantido sua organicidade e
integração com o entorno. Entendemos a desconstrução do espaço como possibilidade prática,
que se nos apresenta, de intervenção espacial com preocupações socialmente engajadas.
A cada intervenção cabe a “descoberta” consciente sobre o que mudar e de que
maneira fazê-lo, mas deve-se atentar, sobretudo, para o que conservar. O novo espaço deve
ser organizado a ponto de garantir uma continuidade sem rupturas absolutas. Assim a desconstrução mínima pode ser entendida como equilíbrio do movimento espacial?
Leonardo Boff (2001) num interessante artigo publicado na Folha de S. Paulo, intitulado “Paz como equilíbrio do movimento”, nos faz pensar na dinâmica e metamorfose
do espaço. Para ele equilíbrio
é a justa medida entre o mais e o menos, [...] é o ótimo relativo. [...] Possui equilíbrio o movimento que se realiza dentro da justa medida e não é
excessivo ou insuficiente. A paz é esse ponto de equilíbrio sutil e sempre
em construção. [...] A justa medida é a capacidade de usar potencialidades
naturais, sociais e pessoais de tal forma que elas possam durar o mais
possível e possam, sem perda, se reproduzir. (BOFF, 2001, p.3)
Termina seu artigo deixando antever que a crise atual é causada pelo pouco equilíbrio
110
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
e pelo excesso de movimento. As transformações, ou os movimentos incessantes a que o
espaço está submetido, a ponto de perder-se a história espacial, são fruto da velocidade de
acontecimentos a que nós nos submetemos. O que está mudando, além da velocidade da
mudança (LE CORBUSIER , 1972, p. 5 e VIRILIO; LOTRINGER, 1984, p. 49), é o espaço
que a acompanha.
Destruímos por destruir nossos espaços, mas, obviamente, para ganhar outro uso com
o “novo espaço” que se mostra. Muitas vezes deixa-se de discutir se mesmo uma “carcaça”
do anterior não merecia ficar de pé.
Se o movimento gera a vida a partir de seu equilíbrio, que papel tem o espaço para
sua constituição? O espaço, como a matéria e a energia, faz parte intrínseca da vida: sem
ele ela não ocorreria.
Acreditamos que a desconstrução mínima, isto é, aquela que preserva ao máximo o
espaço existente dando suporte à vida que aí se desenrola, numa perspectiva de animação
da história social, pode ser entendida como equilíbrio do movimento espacial. E que ela
possa “durar o mais possível”.
A desconstrução da orla Sebastianense a partir da construção do porto de São
Sebastião
O processo de urbanização brasileiro é marcado desde os primórdios pela utilização de
suas fronteiras-d’água marítimas. O litoral norte do estado de São Paulo não foge a esta regra.
O local escolhido para a fundação da cidade de São Sebastião – um pequeno “promontório”,
era um ponto estratégico numa fronteira-d’água. Da praia se avistava toda a ilha da frente
e a parte norte e boa parte do sul do canal de São Sebastião. Estava abrigada pelo morro
do Araçá do vento que sopra intensamente do sul e se defendia contra possíveis invasores.
Isso pode ser constatado no trabalho de Almeida (1959) onde se mostra o papel importante
do porto para a província, a tal ponto do vilarejo ser alvo de ataques por grupos de piratas.
Até a terceira década do século passado a cidade ainda tinha seus traços coloniais
preservados, numa imagem bucólica e bela que agradava bastante a todos os visitantes,
sobretudo a partir do cenário composto com a ilha da frente, não por acaso chamada de bela.
Chama-nos a atenção um fato bastante curioso levantado pelo Relatório da Comissão
Geográfica e Geológica (CGG, 1919 ): a rua da praia, em São Sebastião, só possui edificações de frente para o mar, talvez como forma de garantir que nenhum obstáculo dificulte a
vista da exuberante paisagem, além do que, era ali que paravam as embarcações. Por outro
lado na Ilhabela inúmeros trechos da rua da orla possuem edificações de ambos os lados.
O fato, talvez, mais significativo da importância da praia da frente, onde deverá
ser feito o dique de contenção do aterro, foi sua influência no traçado das ruas pioneiras,
sobretudo as ruas Expedicionários Brasileiros e Antonio Cândido (CGG, 1919, p. 7). As
ruas iniciais do povoado tinham seu traçado acompanhando a linha d´água, descrevendo
elas também, sinuosidade semelhante: como se elas fossem um prolongamento do movimento e do desenho da água do mar na praia. De um lado, internamente, a concavidade
Ambientes
estudos de Geografia
111
propiciava o juntamento do povo e do outro, externamente, a convexidade – como que os
desafiando pela amplitude e, talvez, pelo desconhecido - os impelia na direção das águas,
ao mar (TUAN,1980, p. 131). Ainda hoje, em São Sebastião, sente-se a importância desse
“desenho em curva” das ruas, tornando o simples caminhar por elas bastante agradável não
só pela expectativa do inesperado visualmente, mas pela ausência de longas perspectivas.
Mais adiante, naquele mesmo Relatório, o articulista qualifica a vista da orla da praia
“tudo enfeixando o mar, que no centro da paisagem causa a impressão de um grande lago
entre montanhas” (CGG, 1919, p. 7). “A praia era muito bonita e chegava até o prédio da
cadeia: o processo de assoreamento da praia da cidade começa com a construção que foi
feito lá atrás”, como nos disse um habitante local referindo-se as sucessivas obras do porto
comercial de São Sebastião.
O cenário natural que envolve a área central da cidade merece cuidados especiais
pois, pode-se constatar, foi e continua sendo objeto de transformações tanto no mar quanto
em terra. Não adianta afirmar que “São Sebastião é um dos lugares mais belos do mundo”
(PMSS, 1998), se não há ações que possam sustentar tal atributo e garantir só as transformações mínimas que se fizerem efetivamente necessárias. Desnecessário dizer da importância
de se desenvolver cientificamente os conhecimentos espaciais sobre esse lugar.
Embora ainda exuberante e bela a paisagem local, a população de São Sebastião
lastima hoje sua degradação, sobretudo, junto à área central da cidade.
Ainda o Relatório de 1919 mostra que, como não havia um local próprio para atracação de barcos regulares de passageiros, estes fundeavam ao largo do canal (há relato de
um muro, longe da costa, que servia de atracadouro) e os passageiros eram transportados
nos braços de “carregadores”. Isto demonstra uma relativa satisfação com relação à função
portuária, em se tratando de área de porto natural, mas sem cais interligado à terra firme.
A região é procurada, inicialmente, pelas suas características geográficas naturais:
sua paisagem é significativamente marcante. A aldeia e o porto, talvez para os indígenas,
eram entendidos de forma una, mas ampla: porção de terra em pequeno promontório que os
impelia ao mar, junto a águas calmas, proteção contra os ventos, proximidade com a ilha,
panorama agradável além de situar-se junto a dois cursos d’água.
Esse bucolismo o caiçara herda do indígena, ou, melhor dizendo, ele, o caiçara, se
forma junto a essa paisagem numa estreita relação com o ambiente. Pode-se afirmar que o
mar, a terra e o caiçara são uma só coisa. Ele tem um pé na terra e outro no barco.
O início da vila e até as primeiras décadas do século passado, está mais dentro do
que chamamos de “desconstrução engajada do espaço natural”. Esse espaço se vale de uma
“técnica” que convive perfeitamente com o meio natural. Mas, atualmente, sua zona costeira
está totalmente tecnicizada de tal sorte que se descola do espaço natural, atendendo mais
às influências externas da economia do que às necessidades locais. Assim, os interesses de
acúmulo de capital é que comandam o desenvolvimento local, desfigurando e descaracterizando o espaço do caiçara.
O bucolismo de outrora poderia ainda existir, sobretudo se o projeto de fronteirad’água - o porto, cais propriamente dito, pátios e acessos – tivesse seguido procedimentos da
desconstrução espacial. Nessa linha de raciocínio a “ponte” de acesso ao cais nunca poderia
112
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ter sido enrocada e, sim, deveria ter usado métodos construtivos que garantissem a livre
movimentação das águas e evitando ou minorando a sedimentação de partículas de areia
em suspensão. Acreditamos que dessa forma o assoreamento da praia da frente teria sido,
se não evitado, no mínimo reduzido a níveis de trabalhabilidade e de convívio satisfatórios.
Tal relação com o espaço poderia, assim, ensejar mudanças e transformações elaboradas
previamente e que, portanto, fosse do agrado da comunidade.
O porto de São Sebastião é antigo e se vale das características geográficas propícias
do canal onde está localizado. Com o crescimento e diversificação da demanda portuária
esse espaço sofre transformações que produzem maior envolvimento técnico. Diversas obras
pequenas são executadas e desaparecem com o tempo, em função de fatores sejam de falta
de interesse em consolidá-las ou de conservação das mesmas ou, a nosso ver sobretudo, pela
ausência de planejamento efetivo que pudesse garantir ampliações sucessivas, ensejadas não
só pelo avanço técnico das embarcações, mas também como resposta técnica e espacial de
ampliação de instalações portuárias.
Ainda no século XIX o porto de São Sebastião chega a ser mais importante que Santos, talvez pelas características naturais do sítio. A estrada de ferro interligando São Paulo e
Rio de Janeiro, e Santos a Jundiaí, vem marcar definitivamente até hoje a predominância do
porto de Santos em detrimento do de São Sebastião. A capital do estado e seu porto Santos
funcionam como irradiadores para o interland da província dos movimentos de importação/
exportação de mercadorias. Posteriormente inúmeras ligações rodoviárias a partir de São
Paulo selaram em definitivo o papel de principal porto do Estado.
Apesar dessa preponderância, uma crise do porto de Santos abre a possibilidade de
se ampliar o porto de São Sebastião a partir de 1925. Examinando-se um desenho, em perspectiva de vôo de pássaro, e fotos de execução do projeto original do porto de São Sebastião,
em 1940 (SVOP, 1941, p. 12 e 116), percebe-se que o que se tinha em mente, era a criação
de duas baías delimitadas pelo cais, pelo acesso a ele e pela praia da frente, funcionando
como um conjunto agradável a ser utilizado tanto por embarcações quanto por banhistas.
Agrega-se, então, ao espaço natural alguns objetos técnicos necessários ao aprimoramento da função portuária, sem, no entanto, propiciar uma desconstrução sensível do espaço
local. Tal intenção, acaba por se viabilizar às avessas: no lugar das baías temos uma ampliação portuária através de aterros ao mar. Alarga-se, sobremaneira, a faixa de acesso ao porto
através dos acrescidos de marinha, com o intuito não só de se apropriar de área assoreada,
cuja formação é causada pela própria obra, mas também de aumentar a área do retroporto.
A parte interna do cais passa a ser assoreada exatamente pelo impedimento da livre
movimentação das águas e a conseqüente diminuição da energia que é representada pelo
acesso enrocado. Apesar da não existência até hoje de estudos mais acurados, é Silva (1975,
p. 21) quem vai assinalar, nesse contexto de assoreamento local, a contra-corrente do rio
Juqueriquerê. Para evitar o assoreamento no porto São Sebastião, na parte interna do cais,
foi construído, então, ao norte, uma ponta enrocada, o que pode ter contribuído, ainda mais,
para o aumento do assoreamento da praia da frente. Trata-se, tal ponta, do enrocamento
Fonte: SVOP, 1941, p. 71, 12 e 116.
O projeto da Comissão dos Portos já previa a desconstrução total da baía do Araçá, com “projeto de desenvolvimento”. Ao sul da planta nota-se a
ponta do Araçá, na base do morro do Araçá
QUADRO 1 - Porto de São Sebastião: planta do projeto, perspectiva
em vôo de pássaro e cópia de foto da execução
Ambientes
estudos de Geografia
113
114
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
definidor da pequena baía do atracamento das balsas, junto à parte interna do cais original.
O projeto inicial do porto se desfigura e inaugura, na sua continuidade, uma política
de aterro da orla. Tal política deve ser ratificada e incrementada com a chegada da Petrobras.
A chegada da Petrobras
A Petrobras foi autorizada a instalar a partir de 1961, na margem oeste do canal de São
Sebastião, um terminal de carga e descarga de petróleo e derivados. Na realidade a Petrobras
já se encontrava em São Sebastião desde 1957, pelo menos, quando operava transbordo de
petróleo, na entrada do canal, de navios grandes para menores que pudessem atracar no
porto de Santos. Com o funcionamento do Tebar - Terminal Marítimo Almirante Barroso,
ela passa a ter ganho de economia por deixar de pagar duas taxas em portos diferentes, além
de se situar numa cidade de menor porte, onde seu mando político pode se desenvolver com
maior proeminência. A Petrobras entra, então, para ficar e para dar as cartas!
A preponderância da Petrobras pode ser justificada institucionalmente, pois a administração do porto é concessão outorgada pelo governo federal ao estadual, e ainda mais, num
período de ditadura militar. Portanto, como organismo federal, suas políticas com relação
ao destino do espaço do porto local são “predominantes”. Lembremos que o estado de São
Paulo, como poder concedido, deve submeter ao governo federal seus planos de expansão
portuária, conforme prescrição legal.
Após instalar-se no município passou a ser a mais importante “autoridade” local.
Tudo no município gira no seu entorno e nada acontece sem seu aval, pode-se admitir.
Alguns prefeitos e vereadores da cidade foram funcionários da Petrobras. O espaço local
passa, então, a ser “gerido” por quem mais detinha o poder.
O plano de expansão do porto vira refém da Petrobras, da sua areia argilosa do fundo
do canal e do produto dos desmanches de morros, para expandir a área física portuária através
dos acrescidos de marinha. Não sobra um quinhão sequer de área em terra. Tudo deve ser
conseguido ao mar, a um custo proibitivo. Os diversos projetos de expansão do porto, no
geral são em acrescidos de marinha.
A Petrobras chegou a começar a furar rocha da serra do Mar para a armazenagem de
petróleo em São Sebastião (YABIKU, 1994, p. 27), oferecendo as pedras das cavernas para
enrocamento de expansão do porto. Apesar desse plano de armazenamento de GLP – gás
liquefeito de petróleo não ter ido adiante, fruto de intensa movimentação popular na época,
ele encontra-se aprovado pelo Consema (antes da existência da legislação que institui a
obrigatoriedade dos Eia-Rima) e representa um “trunfo na manga do colete” da Petrobras.
Acredita-se que essa política não deva mudar, pois, até recentemente, no site da Petrobras
(2001) veiculado pela internet, há a informação que a companhia ainda pretende armazenar
GLP em cavernas na cidade de São Sebastião.
Quando a Petrobras anuncia seu desejo de aumento de calado do seu cais, surge o
momento que a autoridade portuária não podia “ignorar”.
Ambientes
estudos de Geografia
115
O aterro da Praia da Frente
Em 1973, a Petrobras já tinha dragado a entrada sul do canal. Agora ela necessitava
aumentar o calado de dois dos seus berços de atracação de navios no Tebar, PP2 no pier
norte e PP3 no pier sul, para, mantendo a profundidade adequada, poder receber petroleiros
de última geração. Os berços de atracação a terem seus calados aumentados estão situados
ambos no lado oeste da área do cais, local esse de menor profundidade por situar-se em
porção mais próxima da borda continental.
O Departamento Hidroviário - DH da Secretaria de Transportes do Estado de São
Paulo, como autoridade aortuária, há tempos pretendia expandir a área do Porto de São Sebastião, cais e área de retroporto, atendendo a possível aumento de demanda portuária por
indústrias do Vale do Paraíba. Para tanto se pensa em aterrar toda a baía do Araçá. Tal ato
foi evitado pela Secretaria de Meio Ambiente com base na recém legislação ambiental que
instituiu os Eia-Rima (ofício SMA. 581/87 de 17 ago. 1987 do secretário do Meio Ambiente
endereçado ao diretor do Departamento Hidroviário da Secretaria de Transportes do Estado).
Ao pedido de aterro total da baía, que foi negado pela Secretaria de Meio Ambiente
segue-se outro, menos ambicioso, que é aceito em parte, pois nele se deixava de aterrar toda
a baía. Parece-nos que, nesse sentido, há um acordo tático entre a Petrobras e o Governo do
Estado de São Paulo: a parte do aterro que não se viabiliza na baía do Araçá é compensado
com o aterro da praia da frente. Um convênio é assinado pactuando-se direitos e obrigações
(5 set. 1988).
Em entrevista com Alfredo Mariano Bricks (29 jun. 1999) ele nos informa que as
autoridades do porto Dersa – São Sebastião, nome atual do porto de São Sebastião, não
estão mais interessadas no crescimento físico da área portuária: “Temos área mais do que
o suficiente para o desenvolvimento portuário”. Tal afirmação é importante e faz-nos pensar que, face à magnitude das áreas de aterro, proposta pela autoridade portuária e negada
pela Secretaria do Meio Ambiente, sua efetiva utilização como área retroportuária seja um
pretexto. Essas afirmações deixam antever que apesar da “insistência” da parte do Governo
do Estado de São Paulo para que se concretizassem os aterros com o material da Petrobras,
essas novas áreas foram produzidas por interesse próprio da Petrobras.
Além disso, em documento recente da Dersa – Desenvolvimento Rodoviário S.A.,
atual autoridade portuária, há a afirmação de que os aterros em frente à cidade teriam sido
executados também por mando da Petrobras. Vejamos:
O diretor do DH entrou em contato com a Diretoria da Petrobras e, na
época, conseguiu parar o processo de licitação da dragagem, do transporte
e lançamento do material. Atrasou o início de serviço em mais de um ano,
até reiniciar o processo por parte do Estado, para fazer o aterro e refazer a
licitação. Para a Petrobras baixou o custo da dragagem e o porto ganhou
área praticamente pronta, sem despesa nenhuma, tendo custos somente
com o transporte e espalhamento do material do morro [...] praticamente
um terço do valor da obra. Primeiro foi feito o enrocamento e depois começou o lançamento, que foi na área sul do porto e em três áreas em frente
à cidade, mais para atender o volume mínimo que a Petrobras precisaria.
Teria que haver uma área para receber um mínimo de volume a ser dragado
116
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
QUADRO 2. O aterro da praia da frente: a construção
do dique de contenção.
A desconstrução máxima e total da praia da frente está quase completa! O episódio não pode ser evitado
pela sociedade organizada de São Sebastião, tal a arrogância dos dirigentes da Petrobras e da Dersa.
Mas o fato fica mais grave ainda quando sabemos que na área retroportuária havia espaço para absorver
todo o material dragado.
Fotografia: STÉFANO, R. L., 1999.
e, como houve problema com o meio ambiente, de se aterrar a baía toda,
a opção foi usar a parte da frente da cidade, mas não para funcionar como
área portuária (BRICKS, 1994, grifo nosso).
Chega-se a afirmar na época que teria havido uma invenção do retroporto única e
exclusivamente para servir como local de bota-fora do material de dragagem do canal, e que
o desmanche do morro do Tebar somente foi viabilizado para construir o dique de contenção
desse material (MRÓZ, 1987).
Considerações finais
Foi um choque. Onde há pouco ela estava, já não estava mais. Ou talvez
ainda estivesse, mas irreconhecível, lentamente mastigada pelas mandíbulas de um monstro deformante chamado tempo. [...] Tempo Presente
ou Tempo Moderno [...]. O choque foi tão terrível que a própria memória
do rosto amado parecia estar sendo corroída, a olhos vistos, por varíola,
lepra e cupim. Não suportei a visão por mais tempo e fugi daquele lugar,
como quem se arrancasse fisicamente de um pesadelo paralisante (PIGNATARI, 1987).
As transformações paisagísticas das duas comunidades, indígena e caiçara, sobre
o meio natural foram na direção da sua preservação, se comparadas às dos outros atores,
inseridas num contexto de reprodução, através da renovação e transformação do ambiente
paisagístico. Pode-se afirmar, portanto, que essas comunidades são desconstrutoras naturais
Ambientes
estudos de Geografia
117
tendo em vista que impactam, mas não degradam o meio ambiente.
As investidas na direção de projetos de ações antrópicas, seja para evitar o assoreamento da orla ou para se aprender a conviver com ele, após a consolidação das obras
portuárias, como por exemplo a definição de área de mangue com plantio de vegetação
junto a foz do córrego do Outeiro, não foram encontradas. Ao contrário, constata-se, além
do fraco assoreamento natural causado pela contra-corrente marítima que carrega detritos
do rio Juqueriquerê, o assoreamento causado pela ação antrópica das sucessivas obras do
porto de São Sebastião, este, sim, significativo.
A construção do porto favorece - e mesmo acelera - o assoreamento a partir do
“bloqueio” que a ponte de acesso significa para as correntes marítimas. Portanto, o porto
é duplamente negativo para a utilização da praia: seja pela existência do acesso a ele, seja
pelo assoreamento causado. Ambos causaram o desaparecimento da praia: como se o porto
roubasse, aos poucos, a praia da frente! A linha da costa, assim, passa a ter novo desenho,
um novo perfil, seja pela ação antrópica propriamente dita da construção do porto (desconstrução direta), seja pelo assoreamento provocado por estas ações (desconstrução indireta).
O desorganizado e autoritário processo decisório, liderado pelo Governo do Estado
de São Paulo e pela Petrobras, viabilizou o aterro da praia. A população sebastianense e os
visitantes da cidade perdem um patrimônio inestimável e insubstituível com a desconstrução
total da praia da frente do seu centro histórico.
Nas sessões de Audiência Pública (1998) para debate do projeto da Marina, a ser
talvez construída na área onde fora a praia da frente, foram trazidos para discussão diversos
assuntos, alguns com informações contraditórias, faltando ainda uma avaliação concreta da
desconstrução espacial que ocorreu. Na realidade o que prevaleceu foi o pseudo-concreto,
para usar a expressão do Kosik. A marina (ou o porto) significa o novo e é esse mesmo
novo como pseudo-concreticidade que comanda o processo. A cidade ganhou uma área
degradada, que ela não queria, e não sabe como fazer para que os responsáveis arquem com
as conseqüências de uma solução efetiva.
Referências
ALMEIDA, Antonio Paulino. Memória histórica sobre São Sebastião. Revista de História.
São Paulo, v.19, p. 1-232, 1959.
AUDIÊNCIA pública sobre a idéia da Marina e da revitalização do centro histórico de São
Sebastião. São Sebastião, Sindicato dos Petroleiros, 1998. 1 cassete sonoro (6h e meia).
BOFF, Leonardo. Paz como equilíbrio do movimento, Folha de S. Paulo, São Paulo, 26
118
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
QUADRO 3. Vista aérea do conjunto das áreas aterradas
na orla de São Sebastião
O que fora uma ponte de acesso ao porto, em 1940, hoje é um grande espaço conquistado ao mar sem utilização alguma e desfigurando a cidade. Neste quadro ainda se nota a antiga “linha da praia” como a separar
a mancha urbana, dos terrenos acrescidos de marinha.
Fonte: PMSS/IAB-SP, Concurso da Marina, 1998.
set. 2001. Opinião, Caderno A, p. 3.
BRICKS, Alfredo Mariano. Alfredo Mariano Bricks, fiscal das obras do aterro da Autoridade do Porto de São Sebastião: depoimentos [25 set. 1998 e 26 jul. 1999]. Entrevistador
José Francisco. São Sebastião, 1998-1999. 2 cassetes sonoros (120 min), estéreo.
BRICKS, Alfredo Mariano. Momento histórico: depoimentos, Documentos em Síntese,
São Paulo, ano 3, n. 11, p. 46, set. 1994.
COMMISSÃO GEOGRÁPHICA E GEOLÓGICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Exploração do Rio Juqueryquerê. 2. ed. São Paulo, 1919.
ELLUL, Jacques. A Técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1968.
GOMES, Horieste. A Produção do espaço geográfico no capitalismo. São Paulo: Contexto, 1990.
Ambientes
estudos de Geografia
119
KOSIK, Karel. A Dialética do Concreto. São Paulo, Paz e Terra, 1968.
LE CORBUSIER - Manière de penser l’urbanisme. Paris: Éditions Gonthier, 1972.
LEFÈBVRE, Henri. La Production de l’Espace, Paris: Éditions Anthropos, 1974.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’ Idéologie Allemande. Paris: Éditions Sociales, 1972.
MRÓZ, Marco Antonio. O xeque-mate da “rainha”, Folha de S. Paulo. São Paulo, 26 ago
1987. Caderno Cidades, p.2.
PETROBRAS - Petróleo Brasileiro S/A, Transporte e armazenamento [GLP]. Disponível
em: <http://www.petrobras.com.br/faq3.htm>; <http://www.petrobras.com.br/portugue/
oportuni/parceria/opopar08.htm> Acesso em: 28 nov. 2001.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado dos Negócios da Viação e Obras Públicas do
Estado de São Paulo. Obras de melhoramentos dos Portos de São Sebastião e Ubatuba.
São Paulo, 1941.
SÃO SEBASTIÃO. Prefeitura Municipal. Concurso público nacional de idéias para
a implantação de uma marina e revitalização do centro histórico da cidade de São
Sebastião: Regulamento, termo de referência, programa básico para a marina pública de
São Sebastião, fotos da Área, planta cadastral e de localização, adendos 1, 2 e 3 de esclarecimentos aos concorrentes e atas da Comissão Julgadora. São Sebastião, 1998. Convênio
com o Instituto de Arquitetos do Brasil. Fotocopiado.
SILVA, Armando Corrêa da. O Litoral Norte do Estado de São Paulo: formação de uma
região periférica, São Paulo: Instituto de Geografia da USP, 1975.
STÉFANO, Roberto Luiz. Roberto Luiz Stégfano, fiscal do serviço do desmonte do morro
e da dragagem, engenheiro da Petrobras: depoimento [30 jul. 1999]. Entrevistador José
Francisco. São Sebastião, Tebar, 1998. 1 cassete sonoro (60 min), estéreo.
TUAN, Yi-Fu. Topofilia, um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente.
São Paulo: Difel, 1980.
VIRILIO, Paul; LOTRINGER, Sylvere. Guerra Pura, a militarização do cotidiano, São
Paulo: Brasiliense, 1984.
YABIKU, Luiza. A Cidade e o Porto de São Sebastião. Documentos em Síntese, São Paulo,
ano 3, n. 11, p. 24-30, jun. 1994.
MODELAGEM DE PARÂMETROS MORFOMÉTRICOS DE
BACIAS HIDROGRÁFICAS EM SISTEMAS DE
INFORMAÇÃO GEOGRÁFICA
Francisco Roberto Brandão FERREIRA
Marcos César FERREIRA
Introdução
Novas tecnologias desenvolvidas e aperfeiçoadas principalmente após a II guerra
mundial, dentre elas, o sensoriamento remoto e o geoprocessamento, permitiram o mapeamento da superfície da terra, até então realizado através de mapas, utilizando imagens totais
ou parciais da superfície terrestre.
As imagens de satélites têm seu devido valor enquanto representação, pois mostram
informações sobre diferentes aspectos do planeta, e assumem papel importante enquanto
instrumental técnico na análise de formas e processos que dão a fisionomia da superfície da
Terra. Elas constituem tecnologia de fundamental importância para mapeamentos e análises
espaço-temporal de processos. Isto é possível, porque se obtêm imagens em tempo cada
vez mais curto e com resoluções espaciais que permitem também a análise de maior detalhe.
No entanto, a interpretação de imagens, necessita de um conhecimento aprofundado do
objeto de análise. Isto não significa dizer que as imagens substituem o trabalho de campo.
Associado à interpretação de imagens têm-se também outro instrumental de análise
articulado, ao que se denomina geoprocessamento. Dentro da composição da técnica do
geoprocessamento incluem-se outros sistemas, que permitem o armazenamento e a manipulação de dados georeferenciados, como os sistemas de informação geográfica (SIG). Estes
sistemas permitem o armazenamento de dados espacializados; a elaboração de planos de
informações, ou seja, os mapeamentos; a obtenção a partir do cruzamento desses planos
de informações em mapeamentos derivados, além da quantificação de área e volume e a
formulação de modelos tridimensionais do terreno.
Os SIG são concebidos para a coleta, armazenamento e análise de objetos e fenômenos, onde a localização geográfica é característica mais importante para a análise, conforme menciona Tomlin (1990) ao definir tipos de escalas de análises em SIG. Enquanto
o tratamento e a análise dos dados referenciados a uma localização geográfica são aptidões
relevantes dos SIG, o poder do sistema é mais aparente quando a quantidade de dados envolvida é muito grande para ser processada manualmente.
Com o exposto pretende-se atingir neste estudo, uma ampliação da teoria geográfica,
onde a técnica seja um instrumental articulado a um método de análise. Sendo assim, este
trabalho visa oferecer uma perspectiva de estudo dos aspectos da geomorfologia fluvial, desenvolvendo e testando procedimentos de parâmetros morfométricos de bacias hidrográficas,
tendo como principal agente executor, os meios e avanços tecnológicos por quais passam
122
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
as ciências de um modo geral, utilizando para isto, os sistemas de informação geográfica.
Revisão da literatura
A bacia hidrográfica é entendida como um sistema aberto e complexo, cujo fluxo
aparece com uma resposta aos fatores que a controlam e se faz constituir-se, portanto, em um
sistema aberto, por estar constantemente trocando matéria e energia com outros sistemas que
compõe o seu ambiente. Sendo assim, uma bacia hidrográfica é controlada principalmente
pelo fornecimento de matéria e energia dos sistemas externos de seu ambiente, quais sejam:
o abiótico, o biótico e o antrópico.
Alguns estudos geomorfológicos fluviais evidenciam a maneira determinística com
a qual a rede de drenagem desenvolve uma resposta a erodibilidade do material e à força de
erosão aplicada sobre a superfície da bacia fluvial.
Os padrões de canais fluviais são variados e complexos, ocasionando ao sistema
de drenagem uma subdivisão repetidamente a montante em canais cada vez menores. Os
tributários de um sistema fluvial que emergem diretamente do subsolo e fluem para conjunção com outros, sem receber antes qualquer tributário, são os chamados curso de primeira
ordem, anunciado por Strahler (1964).
Outras condições foram apresentadas também por Strahler (1952), como a que ocorresse escoamento suficiente para permitir a erosão do material de sub-superfície da bacia de
drenagem. Em conseqüência dessa situação, aflorou a questão das relações determinísticas,
até então encobertas pela ausência de critérios mais exigentes no tocante à comprovação de
esquemas teóricos. Na medida em que o baixo grau de certeza das relações determinísticas
era revelado mediante os resultados das investigações empíricas, chegava-se ao confronto
das posturas determinística e probabilística.
Por sua vez, os bancos de dados em SIG se preocupam com a modelagem de dados, o
qual passa pelas seguintes etapas: identificação dos dados relevantes; coleta de dados sobre
fenômenos identificados; correção dos erros introduzidos durante a coleta; espacialização e
armazenamento dos dados. A partir do armazenamento desenvolve-se a aplicação desejada,
bem como, pode-se alimentar o banco de dados à medida que seja necessário.
A realidade colocada em ambiente computacional pode ser um dado geográfico que
está contido no espaço, com coordenadas e características que localizam as entidades. Tais
entidades não podem ser subdivididas em unidades menores, pois a divisibilidade em componentes distintos se dá apenas em função da escala. Segundo Câmara; Medeiros (1998a),
o objeto é a representação física da entidade e, desta maneira, a realidade espacial pode ser
descrita por objetos estáticos, ou os geoobjetos e, por campos contínuos, ou os geocampos.
Essa descrição se torna primordial, pois dela deriva toda a complexidade de manipulação
dos dados espaciais.
Segundo Medeiros; Pires (1998), a fase de análise concentra-se principalmente
na modelagem de dados e de processos. Desta forma, como afirma Batty; Xie (1994), a
Ambientes
estudos de Geografia
123
modelagem de processos em SIG se preocupa com a construção de modelos matemáticos
que descrevem as operações que envolvem a representação dos dados armazenados e inclui
a simulação de fenômenos naturais. A modelagem de processos e a simulação numérica
variam de acordo com o domínio da aplicação, extensão e escala do fenômeno observado.
Com uma tendência mais hidrológica, Thieken et al (1999) obtiveram resoluções
apropriadas de MDT usados para resultados geomorfológicos com entrada de parâmetros
para modelos hidrológicos, aplicados para a questão de divisores de bacias hidrográficas
por uma rede de canais e pequenas sub-bacias. O estudo revela que, dados de elevação
com diferentes resoluções divergem enormemente da paisagem representada, incluindo os
parâmetros tais como: declividade, direção de fluxo e rede de canais. A contribuição da
terceira dimensão controla a extensão da bacia hidrográfica configurada e determina a densidade de drenagem. A topografia e a geomorfologia foram usadas para explicar diferenças
na simulação de escoamento superficial.
Moore et al. (1992) descreveram dados de elevações, estrutura de MDT e a análise
de dados de modelo digital para a hidrologia, geomorfologia e aplicações biológicas, haja
vista a topografia e a captação da bacia hidrográfica terem um maior impacto na hidrologia, na geomorfologia, bem como nos processos biológicos ativos na paisagem. Alguns
modelos hidrológicos que fazem uso da representação digital da topografia foram também
considerados.
Frankenberger et al. (1999) aplicaram um modelo de balanço da água que simula a
hidrologia da bacia hidrográfica com a declividade do solo. O modelo combina elevação,
solo e paisagem usando os dados em ambiente SIG e produz a distribuição espacial do solo,
evapotranspiração, saturação, escoamento superficial e delimitação da bacia hidrográfica.
Este modelo foi aplicado numa bacia hidrográfica no estado americano de Nova York, onde
fluxos hidrográficos e composição do solo foram comparados aos modelos tradicionalmente
aplicados.
Ferreira (1997) fez avaliação do uso de MDT na estimativa de parâmetros de enchentes para bacias hidrográficas sem dados hidrológicos disponíveis. Aplicou em 66 bacias
situadas no estado de São Paulo e coletou dados sobre vazão média específica anual e dados
provenientes do modelo digital de terreno, gerados para as respectivas bacias. Usou a análise
de correlação entre os parâmetros hidrológicos e os altimétricos e mostrou que é possível
utilizar amplitude altimétrica e o desvio padrão das altitudes do MDT como indicadores de
enchentes em bacias desprovidas de dados sobre vazão fluvial.
Características gerais da área de estudo
A área de estudo possui aproximadamente 200 km² e compreende um conjunto de
20 sub-bacias hidrográficas amostrais pertencente ao alto curso da bacia do rio Corumbataí,
a qual drena os municípios de Analândia, Corumbataí e Rio Claro no estado de São Paulo,
e está localizada entre os paralelos 22° 05’ e 22° 30’ de latitude sul e, entre os meridianos
47°30’ e 47°50’ de longitude oeste.
124
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Com a calha do rio principal da bacia do alto Corumbataí orientada no sentido geral
norte-sul, e com drenagem nas áreas urbanas de Analândia e Corumbataí, esta bacia ocupa
terras da chamada depressão periférica paulista, caracterizada pelo predomínio de topografia
ondulada e relativamente acidentada com altitude máxima de 1050 metros e mínima de 650
metros, com presenças de colinas amplas e médias, separadas por vales e com predomínio
de declividade entre 5% e 20% relacionadas com os relevos ondulados aos forte ondulados
(KOFFLER; DAROS, 1993).
A bacia do rio Corumbataí ocupa uma área de geologia complexa e está localizada
na bacia sedimentar do Paraná, sendo encontradas litologias provenientes do Cenozóico,
Mesozóico e do Paleozóico. Essa presença de substrato com diferentes litologias são conseqüências da diversidade de resistência em relação à erosão fluvial.
Oliveira; Prado (1984) descrevem os principais solos que ocorrem na região da
seguinte maneira: Predomina o tipo Latossolo, ácido e de baixa fertilidade e caracterizado
pelo desenvolvimento do perfil pedológico, no entanto, são solos consistentes, formando
massa pedológica constituída por sesquióxidos de ferro, argila e outros minerais primários
de pouca resistência ao intemperismo e, em geral deficientes em nutrientes devido à baixa
atividade das argilas silicatadas e dos óxidos de ferro.
Os mesmos autores confirmam que os Latossolos que surgem na bacia apresentam-se
sob área de relevo suave ondulado ou plano, com grande profundidade e com forte drenagem interna. Predomina principalmente o Latossolo vermelho-amarelo, vindo em seguida
o Latossolo roxo, o qual se apresenta com boa fertilidade.
Os solos Litólicos ocupam área em torno de 30% da bacia estudada. São solos
que tem como principal característica à pequena espessura de “solum”, inferior a 40 cm e
ausência do horizonte diagnóstico de sub-superfície. Esses solos se apresentam em relevo
acidentado, o que os tornam quase inviável para a sua utilização agrícola mecanizada, além
de serem também bastante limitado para atividade agrícola tradicional.
Penteado (1968) afirma que a cobertura vegetal primitiva das matas, que recobriu os
solos de terra roxa formados a partir das rochas básicas e os solos podzolizados de siltitos
do topo das colinas, foi quase que totalmente modificado e, que também, quase nada mais
resta do revestimento natural dos cerrados e campos das partes mais elevadas do relevo
tabular em latossolos formados de arenitos.
Atualmente se percebe que a paisagem é marcada pela transformação do uso do solo
de propriedades agropastoris em agrupamentos de campos de cultivo, pastagem e loteamento
de chácaras que se estendem ao longo das rodovias, onde predominam as pastagens, vindo
logo a seguir a plantação de cana-de-açúcar, e bem menos significativas, outras plantações
que ocupam espaças manchas na região como a silvicultura e a citricultura.
O clima da bacia do rio Corumbataí em seu alto curso é do tipo Cwa (conforme
classificação climática de Köppen), subtropical, com duas estações bem definidas, isto é,
seco no inverno e chuvoso no verão.
O período seco estende-se pelos meses de março a setembro com 20% das precipitações locais, correspondendo às médias de 250 mm. O mês de setembro apresenta os mais
Ambientes
estudos de Geografia
125
elevados valores de precipitação (cerca de 45mm) e os meses mais secos são julho e agosto
(com precipitações inferiores a 25mm). Por sua vez, o período chuvoso prolonga-se dos
meses de outubro a fevereiro e sofre influência da massa tropical, com 80% das precipitações
anuais, onde atingem valores de 1200 mm.
Do ponto de vista térmico, a área em estudo apresenta médias entre 18° e 21° C,
conforme dados fornecidos pelo DAEE (Departamento de Águas e Energia) nas estações
Analândia e Corumbataí.
Metodologia
Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizou-se aleatoriamente um conjunto de
20 sub-bacias amostrais1 localizadas no alto curso da bacia hidrográfica do rio Corumbataí,
nos municípios de Analândia, Corumbataí e Rio Claro no estado de São Paulo. Utilizou-se a
toponímia presente na carta topográfica, onde no caso da inexistência desta na carta, atribuiuse o nome da fazenda ou propriedade agrária mais significante inserida no contexto da bacia.
Material
Como produto de documentação cartográfica foram utilizadas as cartas: topográfica
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) na escala 1:50.000, referente à
folha SF-23-Y-A-I-2, quadrícula Corumbataí, ano 1969; geológica do estado de São Paulo
da SAA (Secretaria de Agricultura e Abastecimento) na escala 1:50.000, referente à folha
SF-23-Y-A-I-2, quadrícula de Corumbataí, ano 1984; pedológica semidetalhada do estado
de São Paulo do IAC (Instituto Agronômico de Campinas) na escala 1:100.000, referente à
folha SF-23-Y-A-I, quadrícula de São Carlos, ano 1981.
Os equipamentos utilizados foram: Sistema de entrada de dados: Software AutoCAD
R-14, desenvolvido pela Autodesk Incorporation, ano 1997; Sistema de integração de dados:
SIG Idrisi 32, desenvolvido pelo Laboratório da Clark University, ano 1999; Sistema de
integração de dados: Statistica for Windows R-6.0, desenvolvido pela StatSoft Incorporation,
ano 1996; Sistema de integração de dados Surfer 7.0, desenvolvido por Golden Software
Incorporation, ano 1999;
Método
1
Relação da toponímia das 20 Sub-bacias amostrais: 1-Pedra Vermelha; 2-Santo Urbano; 3-Do Soares; 4-Das taipas;
5-Ragaso; 6-Emboabas; 7-Monte Alegre; 8-Da Barra; 9-Do Retiro; 10-Da Ponte Funda; 11-Alto Corumbataí; 12-Santa
Terezinha; 13-São Francisco; 14-Nova América; 15-Capim Fino; 16-Serrinha de Baixo; 17-Santa Julieta; 18-Da Graminha; 19-Deescaroçador; 20-Cuscuzeiro.
126
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
O primeiro procedimento foi à definição dos parâmetros morfométricos a serem
trabalhados, para logo após digitalizar as curvas de nível com eqüidistâncias de 20 metros,
os divisores das bacias e a rede de drenagem hierarquizada segundo Strahler (1964) das 20
sub-bacias amostrais.
O passo seguinte foi exportar para o SIG Idrisi 32 e processar a metodologia para o
cálculo dos parâmetros morfométricos de acordo com as relações algébricas pertinentes a
cada parâmetro, conforme a Figura 1, obedecendo aos comandos de módulo, sub-módulo,
função e sub-função em ambiente SIG, de acordo com a Figura 2.
Figura 1 - Síntese das relações algébricas que definem
os parâmetros morfométricos
Outra questão que merece comentário, quanto a sua confecção, é o MDT (modelo
digital do terreno), que segundo Câmara; Medeiros (1998b) representa quantitativamente
as grandezas que variam continuamente no espaço e que descrevem a superfície real, de
maneira que todo o conjunto simule de modo ideal o comportamento da superfície original,
Ambientes
estudos de Geografia
127
e no caso específico deste trabalho está associado a altimetria.
Neste caso, foi utilizada como representação do MDT a grade regular, onde a mesma possui uma representação matricial e cada elemento da matriz se associa a um valor
numérico. A geração da grade foi realizada através do uso do interpolador de superfície
intracontorno do Idrisi 32.
Figura 2 - Resumo do procedimento metodológico dos parâmetros morfométricos para a operação de análise espacial no SIG
O momento seguinte se caracteriza pela espacialização das sub-bacias hidrográficas
na base cartográfica para cada índice morfométrico trabalhado, a partir do banco de dados
existente em formato dbf4, cujo mesmo foi processado no SIG Idrisi 32, onde se utilizou a
função básica do módulo denominada Database Workshop.
A partir de então, desenvolve-se o processo de classificação por agrupamento (cluster
128
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
analysis) no software Statistica for Windows R-6.0 das sub-bacias hidrográficas, processo
este que se baseia na identificação dos elementos que estão mais próximos entre si. Desta
forma, a partir do momento que se trabalha com distâncias ou valores de similaridade os
elementos mais próximos serão aqueles que apresentarem o menor valor, enquanto que na
condição de aplicar-se a correlação, os mais próximos serão identificados pelos maiores
valores.
Resultados
Disponibiliza-se aqui os resultados obtidos quanto à questão da produção de mapas
através do uso do SIG, onde se evidencia a forma digital para obtenção dos valores dos
parâmetros morfométricos trabalhados, exemplificados pela sub-bacia nº 8 denominada
“Da Barra”.
Antes de qualquer geração de mapas no formato matricial (o que caracteriza os SIG),
foi confeccionado o mapa topográfico em formato vetorial, sendo definido cotas altimétricas
eqüidistantes de 20 metros, com variação de 600 a 880 metros.
Após o processamento da conversão da linha correspondente ao canal principal, do
formato vetorial para o formato matricial, foi gerado o mapa do parâmetro morfométrico
comprimento do canal principal, onde o mesmo evidencia o trajeto do referido canal. Convém mencionar que para esta aplicação todos os mapas digitais possuem resolução definida
de 5 metros.
A Tabela 1 mostra os valores extraídos a partir do perímetro da linha do canal principal.
Observa-se que junto à categoria 1 tem-se o valor 4270, o que corresponde à quantidade de
lados existentes ao longo do perímetro. Aplicando-se a seguinte fórmula:
Onde “Npx” corresponde ao número de pixels e “S” a quantidade de lados (sides),
obtêm-se então resultado igual a 10665, ou seja, 10.66 km.
Convém informar que todas as categorias denominadas pelo número zero que constam
nas tabelas 1, 2, 3, 4 e 5 representam porções neutras do objeto de estudo do referido mapa.
Tabela 1: Módulo resultado do comprimento do canal
principal da sub-bacia n° 8 (da Barra).
CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOS VALOR CALCULADO
0
11170
27915
1
4270
10665
Para a determinação do cálculo do parâmetro morfométrico comprimento médio
dos canais de cada ordem é necessário que se tenha efetivamente os valores de todos os
comprimentos dos canais separados por cada ordem, para daí então, aplicarmos à fórmula
Ambientes
estudos de Geografia
129
demonstrada no parâmetro anterior. Para a sua definição, utilizou-se o mesmo raciocínio
quando do cálculo do comprimento do canal principal, o que originou os canais de 1ª, 2ª
e 3ª ordens, respectivamente com os valores calculados de 31240, 8255 e 6845, conforme
mostra a Tabela 2.
O divisor da bacia origina, além da área da bacia, também o seu perímetro, onde o
mesmo vai influenciar diretamente quando da definição dos parâmetros morfométricos índice
de circularidade e forma da bacia. Desta forma, o mapa matricial produzido do divisor da
sub-bacia n° 8 gerou duas tabelas: a primeira refere-se ao perímetro e, a segunda, a área.
Tabela 2: Módulo resultado do comprimento de canais de cada
ordem da sub-bacia n° 8 (da Barra).
CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOSVALOR CALCULADO
0
1
2
3
25354
12500
3306
2742
63375
31240
8255
6845
A Tabela 3 mostra a definição dos valores do perímetro da sub-bacia n° 8 (da Barra),
com sua leitura realizada diretamente por quantidade de lados e valor calculado.
Tabela 3: Módulo resultado do perímetro da
sub-bacia n° 8 (da Barra)
CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOS VALOR CALCULADO
0
1
13192
6292
32970
15720
Por sua vez, a Tabela 4 indica o valor da área da sub-bacia n° 8 (da Barra), extraído
diretamente do mapa divisor da bacia, o qual corresponde a 28.11 km².
Tabela 4: Módulo resultado da área da sub-bacia n° 8 (da Barra)
CATEGORIA
KM²
0
45.78
1
28.11
A leitura e o processamento realizado sobre a linha reta em ambiente SIG, orienta
para a obtenção do comprimento da sub-bacia a qual se evidencia junto a Tabela 5 com a
quantidade de 5368 lados computados, que após a transformação em km, a partir do enten-
130
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
dimento metodológico do referido parâmetro morfométrico, originou o valor calculado de
13410, isto é, 13.41 km.
Tabela 5: Módulo resultado do comprimento da
sub-bacia n° 8 (da Barra).
CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOS VALOR CALCULADO
0
1
12268
5368
30660
13410
A partir do armazenamento de dados de altimetria com produção do mapa topográfico
foi possível realizar a representação matricial e gerar o MDT da sub-bacia n° 8 (da Barra)
com sua respectiva rede de drenagem.
Análise de agrupamento
Na elaboração e construção de um mapa a partir de dados estatísticos torna-se necessário realizar a divisão de um conjunto de informações em classes ou grupos. A partir
da aplicação de técnicas estatísticas, realiza-se o agrupamento dos dados, para daí então,
realizar o mapeamento desses dados.
Segundo Gerardi; Silva (1981) a seleção de intervalos de classe é de fundamental
importância para a análise de dados em grande escala, porque podem ocorrer diversas
interpretações dos mesmos dados originais, se por ventura, diferentes intervalos de classe
são utilizados, isto é, o autor de um determinado mapa pode influenciar a interpretação de
um fenômeno cuja perspectiva espacial é mostrada no mapa.
Para este trabalho, realizou-se o agrupamento dos dados das 20 sub-bacias hidrográficas amostrais, levando-se em considerando os critérios de semelhança ou proximidade e
reciprocidade, e percebeu-se a seguinte situação: dois grandes blocos se constituíram a partir
da seqüência de agrupamento. O primeiro bloco, composto por 9 sub-bacias hidrográficas,
ficou assim definido: sub-bacias n°s 20 (Cuscuzeiro), 14 (Nova América), 10 (da Ponte
Funda), 18 (da Graminha), 15 (Capim Fino), 19 (Descaroçador), 11 (Alto Corumbataí), 9
(do Retiro) e 8 (da Barra).
Por sua vez, o segundo bloco integrado por 11 sub-bacias hidrográficas ficou assim
constituído: sub-bacias n°s 6 (Emboabas), 13 (São Francisco), 3 (do Soares), 16 (Serrinha
de Baixo), 17 (Santa Julieta), 5 (Ragaso), 7 (Monte Alegre), 2 (Santo Urbano), 12 (Santa
Terezinha), 4 (das taipas) e 1 (Pedra Vermelha). Esta distribuição em dois grandes blocos
distintos pode ser observada na Figura 3.
Figura 3 - Diagrama árvore de ligação das 20 sub-bacias amostrais
Ambientes
estudos de Geografia
131
Com base na Tabela 6 que mostra a relação da distribuição da perda de detalhes e
quantidade de classificação a partir do agrupamento das sub-bacias amostrais e levando-
se em consideração as ligações dos elementos feitas pelo corte dos degraus mostrados na
Figura 4, definiu-se por 60% de perda de detalhe para as sub-bacias hidrográficas, tendo
como conseqüência à formação de 7 classes assim constituídas:
Classe 1: Sub-bacia n° 20 (Cuscuzeiro).
Classe 2: Sub-bacias n°s 14 (Nova América) e 10 (da Ponte Funda).
Classe 3: Sub-bacias n°s 18 (da Graminha) e 15 (Capim Fino).
Classe 4: Sub-bacias n°s 19 (Descaroçador), 11 (Alto Corumbataí), 9 (do Retiro) e
8 (da Barra).
Classe 5: Sub-bacias n°s 6 (Emboabas), 13 (São Francisco) e 3 (do Soares).
Classe 6: Sub-bacias n°s 16 (Serrinha de Baixo), 17 (Santa Julieta), 5 (Ragaso), 7
(Monte Alegre) e 2 (Santo Urbano).
Classe 7: Sub-bacias n°s 12 (Santa Terezinha), 4 (das Taipas) e 1 (Pedra Vermelha).
Tabela 6: Distribuição da perda de detalhe e quantidade de classes
132
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
a partir do agrupamento das sub-bacias amostrais
PERDA DE DETALHE (%)
QUANTIDADE DE CLASSES
90
80
70
60
50
40
30
20
2
4
5
7
9
12
17
18
É importante ressaltar que ao se realizar o processo da técnica de classificação, automaticamente generaliza-se às informações, entretanto, quando se trabalha com um número
relativamente grande de amostra, essa generalização se torna importante para o processo de
agrupamento, tendo apenas a preocupação de se identificar claramente os objetivos, pois é
de fundamental importância a escolha do número de classes, que se torna uma função do
número de observações, para daí então se aplicar o percentual correto de perda de detalhe
para o que se pretende.
Figura 4. Diagrama de ligações através de degraus
das 20 sub-bacias amostrais
Ambientes
estudos de Geografia
133
Considerações finais
O desenvolvimento de técnicas de geoprocessamento é visto de grande importância
para o estudo da morfometria fluvial, pois tais estudos quantitativos fornecem situações
concretas de interpretação. De fato, o comportamento hidrológico das rochas, a dissecação do relevo, os grandes grupos de solos, podem ser descritos acirradamente através dos
inúmeros índices morfométricos existentes na literatura geomorfológica. É importante
também, dar precisão à descrição das redes hidrográficas a fim de que possam ser feitas
comparações entre uma rede e outra, e também, de que as variações entre redes possam ser
correlacionadas com outras variáveis geográficas.
Graças ao desenvolvimento de numerosas técnicas e teorias se consegue a simulação
e mesmo a previsão do comportamento das redes de drenagem, onde se incluem variáveis
como: comprimento dos canais, densidade de drenagem, freqüência de canais de 1ª ordem,
coeficiente de manutenção, amplitude altimétrica, índice de rugosidade e ordem da bacia
hidrográfica.
Algumas operações, aplicadas a determinadas variáveis, são tão versáteis quanto outras não mencionadas, porém todas oferecem bons resultados. Para isto, existe a percepção
do profissional que elabora o trabalho com objetividade e a participação efetiva da natureza.
A caracterização do meio físico das sub-bacias hidrográficas constitui importante
informação para o planejamento geográfico e geomorfológico da área de estudo. Sendo
assim, propicia ao planejador estabelecer critérios de agrupamento de classes, para em
seguida, estender e aplicar para toda a área da bacia do rio Corumbataí.
Referências
BATTY, M.; XIE, Y. Modeling inside GIS: part I. Model structures, exploratory spatial
data analysis and aggregation. International Journal of Geographical Information
Systems, v.8, n. 3, p. 291-308, 1994.
CÂMARA, G.; MEDEIROS, J. S. de Modelagem de dados em geoprocessamento. In:
ASSAD, E. D.; SANO, E. E. Sistemas de Informações Geográficas: aplicações na agricultura. Brasília: Embrapa, 1998a. Cap. 4, p.47-65.
______. Mapas e suas representações computacionais. In: ASSAD, E. D.; SANO, E. E.
Sistemas de Informações Geográficas: aplicações na agricultura. Brasília: Embrapa,
1998b. Cap. 2, p. 13-29.
FERREIRA, M. C. Utilização de modelos digitais de terreno na estimativa de enchentes
em bacias hidrográficas: uma avaliação preliminar em escala regional. Geociências, São
Paulo, v.16, n.1, p.243-55, 1997.
FRANKENBERGER, J. R.; BROOKS, E. S.; WALTER, M. T.; WALTER, M. F.,; STEENHUIS, T. S. A GIS based variable source area hydrology model. Hydrological Processes,
v.13, p.805-822, 1999.
GERARDI, L. H. O.; SILVA, B. C. N. Quantificação em geografia. São Paulo: DIFEL,
134
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
1981.
KOFFLER, N. F.; DAROS, E. Carta de declividade da bacia do rio Corumbataí-SP.
Rio Claro: UNESP/IGCE, 1993.
MEDEIROS, C. B.; PIRES, F. Banco de dados e sistemas de informações geográficas.
In: ASSAD, E. D.; SANO, E. E. Sistemas de Informações Geográficas: aplicações na
agricultura. Brasília: Embrapa, 1998. Cap. 3, p.31-43.
MOORE, I. D.; GRAYSON, R. B.; LADSON, A. R. Digital terrain modeling: A Review
of hydrological, geomorphological and biological application. In: BEVEN, K. J.; MOORE,
I. D. Advances in hydrological processes. Terrain analysis and distributed modeling in
hydrology. Chichester: John Wiley ; Sons, 1992.
OLIVEIRA, J. B., PRADO, H. Levantamento pedológico semidetalhado do estado de
São Paulo: Quadrícula de São Carlos - Memorial Descritivo. Campinas: Instituto Agronômico de Campinas, 1984, 188p.
PENTEADO, M. M. Geomorfología do setor centro-ocidental da depressão periférica
paulista. 1968. Tese (Doutorado em Ciências), Faculdade de Filisofia, Ciências e Letras
de Rio Claro, Rio Claro, 1968.
STRAHLER, A. N. Hypsometric analysis of erosional topography. Geological Society of
American Bulletin, v.63, 1952.
______. Quantitative geomorphology drainage basin and channel networks. In: CHOW, V.
T. Handbook of Applied Hydrology. New York: McGraw-Hill, 1964.
THIEKEN, A. H., LÜCKE, A., DIEKKRÜGER, B., RICHETR, O. Scaling input data by
GIS for hydrological modeling. Hydrological Processes, v.13, p.611-630, 1999.
TOMLIN, D. Geographical information systems and cartographic modeling. New
Jersey: Prentice Hall, Englewood Cliffs, 1990.
CONDIÇÕES CLIMÁTICAS E INCIDÊNCIA DE PRAGAS E
DOENÇAS NA CULTURA DE CITROS NAS PRINCIPAIS
REGIÕES PRODUTORAS DO ESTADO
DE SÃO PAULO
Adriana Rosa BIERAS
Maria Juraci Zani dos SANTOS
Introdução
O clima é considerado o elemento condicionador da dinâmica do meio ambiente, pois
como fornecedor de calor e umidade, tem influência direta tanto nos processos de ordem
física, como por exemplo os geomorfológicos e a formação dos solos, quanto nos de ordem
biológica como o crescimento, desenvolvimento e distribuição de plantas e animais, assim
como na sociedade e em suas diversas atividades, constituindo-se portanto em um recurso
essencial para a humanidade.
Para a agricultura ele é considerado a variável mais importante, sendo que seus elementos constituintes ( temperatura, precipitação, radiação solar, ventos, pressão atmosférica
) exercem influência sobre todos os estágios da produção agrícola, incluindo a preparação
da terra, semeadura, crescimento e desenvolvimento das plantas cultivadas, colheita, armazenagem, transporte e comercialização. Estas influências, quando saem da normalidade,
causam as chamadas adversidades climáticas, expressas pela geada, seca, granizo, ventos
de alta velocidade, veranicos, as quais provocam efeitos críticos para o desenvolvimento
das culturas.
Além de estarem sujeitas às variações do clima, que é muito dinâmico em todas as
escalas temporais, as plantas estão sujeitas ao ataque de pragas e doenças que são responsáveis por significativas quedas na produção, como afirma Nakano (1991, p.558) que “ uma
praga pode comprometer não somente a safra pendente como também as futuras, chegando
ao extremo de destruir totalmente uma cultura”.
Segundo Ayoade (1986), a natureza periódica ou sazonal das perdas de muitas lavouras sugerem que as condições climáticas desempenham importante papel em relação à
incidência de pragas e doenças, pois as epidemias são muitas vezes dependentes do clima,
tanto em termos de condições climáticas locais favoráveis ao seu crescimento e desenvolvimento, como em termos de ventos predominantes que ajudam a transportar os germes e
esporos para outras áreas. Também alguns vírus causadores de doenças são transmitidos
ou difundidos por insetos, de modo que as condições climáticas favoráveis à propagação
desses vetores são as que facilitam a transmissão de tais doenças.
Neste sentido, considerando a cultura de citros no Estado de São Paulo, procurou-se
analisar a influência dos elementos climáticos precipitação, temperatura e umidade relativa
na incidência do “ácaro de leprose” (Brevipalpus phoenicis), considerado como uma das
136
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
principais pragas da citricultura, e do “cancro cítrico”, que representa uma das doenças
cítricas mais graves na atualidade devido às perdas na produção causadas por ela.
De acordo com o Fundo de Defesa da Citricultura (2000a) o Estado de São Paulo é
responsável por 87,7% da produção nacional de citros, contando com um parque citrícola
composto par mais de 300 municípios, abrangendo uma área aproximada de 6 milhões de
hectares, representando o terceiro produto agrícola do Estado em relação à área plantada
(INSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA, 2000).
Dentro deste contexto os municípios de Bebedouro e Limeira representam dois dos
principias produtores cítricos do Estado. Assim, procurou-se estudar o comportamento climático de ambos os municípios, a fim de verificar em qual deles as características climáticas
são mais favoráveis à incidência do ácaro da leprose e do cancro cítrico, haja visto estarem
localizados em regiões do Estado com características climáticas locais distintas.
Para a análise do comportamento climático dos municípios estudados utilizou-se
médias mensais de temperatura, precipitação e umidade relativa para a série temporal de
1982 a 1999. Os dados climáticos referentes ao município de Limeira foram fornecidos pela
Seção de Climatologia Agrícola do Instituto Agronômico de Campinas, pertencentes à Estação Meteorológica localizada no município de Cordeirópolis sob as coordenadas geográficas
22°32’S e 47°27’W a 638m de altitude. Para Bebedouro, os dados foram fornecidos pela
Estação Experimental de Citricultura de Bebedouro ( 20°58’18”S e 48°28’11”W a 600m)
e pela Estação Agroclimatológica do Departamento de Ciências Exatas da FCAV / UNESP
/ Jaboticabal (21°15’22”S e 48°18’58”W a 595m de altitude).
Na caracterização climática dos municípios o programa Excel-97 possibilitou o
tratamento estatístico dos dados e sua representação gráfica. Para a complementação desta
caracterização, empregou-se o cálculo do balanço hídrico, cujo programa computacional foi
desenvolvido por Sentelhas et al. (1993), baseado em Thornthwaite; Mather (1955), o qual
possibilita conhecer, entre outras variáveis, a disponibilidade de água no solo, indicando os
períodos de excedente e deficiência hídrica ao longo do ano.
Tendo conhecimento das características climáticas favoráveis à incidência da praga
e da doença em questão, passou-se em seguida à comparação com o comportamento dos
elementos do clima durante a série temporal considerada, para ambos os municípios, com
a finalidade de verificar as condições climáticas mais favoráveis à tais incidências.
Caracterização climática dos municípios de Limeira e Bebedouro (SP)
Como bem salienta Nimer (1979), a caracterização e a compreensão climática de
uma região não depende apenas da circulação atmosférica reinante sobre ela, mas sim da
interação desta com os fatores geográficos como latitude, continentalidade/maritimidade e
formas de relevo, mostrando assim, a variabilidade espacial do clima regional.
Pela sua posição e combinação geral dos fatores geográficos, o Estado de São Paulo
é envolvido pelas principais correntes de circulação atmosféricas da América do Sul – as
massas de ar Tropical Atlântica, Tropical Continental e Polar Atlântica são complementadas
Ambientes
estudos de Geografia
137
pela Equatorial Continental oriunda da Amazônia Ocidental. Utilizando-se da classificação
climática de Monteiro (1973), representada na figura 1, a qual baseia-se no índice de participação das massas de ar e da articulação destas com as faixas zonais do clima, observa-se
que os dois municípios estudados encontram-se inseridos na unidade climática V- CentroNorte , porém, em sub-unidades diferentes que se distinguem pela relação do clima com a
morfologia regional. Esta unidade compreende um setor do espaço paulista individualizado
pelo ritmo da circulação atmosférica que se justapõe às diversificações de relevo, sendo
que sua característica climática fundamental é a existência de um período seco muito nítido
onde a freqüência da chuva diminui consideravelmente
no sentido dos paralelos,
culminado no setor norte, o qual constitui-se a área de inverno mais nitidamente seco do
Estado (SANTOS,1996).
Pertencendo à região central do Estado, o município de Limeira encontra-se localizado na borda inferior da sub-unidade “a” da classificação de Monteiro (1973), a qual é
marcada por reduzida nebulosidade e moderada umidade. O período de outono-inverno,
caracteristicamente frio e seco, é marcado pela maior atuação da massa Polar Atlântica
condicionando esta época do ano à um tempo estável com temperaturas relativamente baixas, sendo que a chuva e o grau de resfriamento dependem dos mecanismos de pulsação da
Frente Polar, que é a responsável por eventuais precipitações ocorridas nesta época. Já no
período da primavera-verão a atuação da massa Polar Atlântica é menor, estando deslocada
mais para o sul, proporcionando assim o domínio da massa Tropical Atlântica, de característica úmida e quente, caracterizando este período do ano como úmido e com temperatura
elevada (MONTEIRO, 1973).
Localizado na porção nordeste do Estado, o município de Bebedouro, assim como
toda esta região, está sob o domínio do sistema de circulação atmosférica regional marcado
pela atuação das massas Tropical Atlântica, Equatorial Continental e Polar Atlântica, caracterizando o tipo de clima da região, considerada a mais seca do Estado. Na classificação de
Monteiro (1973) este município encontra-se inserido na sub-unidade “c”, onde a característica principal é a existência de um período seco muito nítido durante o outono-inverno, onde
são registrados habitualmente cerca de 100 a 200mm de chuva, concentrados em apenas 10
a 15 dias, sendo que no trimestre de inverno os índices são inferiores à 50mm concentrados
em apenas 5 dias, em decorrência da atuação da Frente Polar ser mais fraca nesta região do
Estado. O período da primavera-verão é marcado pela atuação da massa Tropical Atlântica
oriunda do leste e nordeste do Estado, de característica quente e úmida, e da massa Equatorial
Continental oriunda de ondas de noroeste, proporcionando tempo quente e chuvas freqüentes durante sua atuação; assim, este período do ano é marcado por temperaturas elevadas
e por cerca de 70 a 80% das chuvas caídas na região, cujos índices são, inclusive, maiores
do que os registrados nas outras duas sub-unidades da unidade climática V – Centro-Norte.
138
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Figura 1 – Esquema representativo das feições climáticas individualizadas
no território paulista dentro das células climáticas e das articulações destas
nas faixas zonais (Seg. MONTEIRO, 1973)
Ambientes
estudos de Geografia
139
Cancro cítrico e ácaro da Leprose
O cancro cítrico foi detectado pela primeira vez no Brasil em 1957, no município
paulista de Presidente Prudente, trazido pela importação de material vegetal contaminado
vindo da Ásia. Constitui-se numa doença causada pela bactéria Xanthomonas axonopodis
pv. citri , que ataca ramos, folhas e frutos provocando lesões parecidas com verrugas, as
quais impedem o crescimento adequado da planta. A bactéria penetra na planta através de
aberturas naturais existentes em seu tecido e, principalmente, através de ferimentos provocados por materiais utilizados na colheita como escadas e caixas, o que faz do homem o
seu maior agente de disseminação.
Até o momento é uma doença ainda sem cura, sendo que a única forma de combatêla é através da erradicação das plantas contaminadas o que, evidentemente, afeta de forma
negativa o volume da produção citrícola. Neste sentido, a prevenção é a melhor forma de
impedir que a doença ataque um pomar, sendo esta baseada principalmente na inspeção constante e periódica das áreas cultivadas, no uso de manejos agrícolas que garantam a sanidade
destas áreas, e na desinfecção de todo material de colheita, a fim de evitar a transmissão da
doença de um pomar para outro.
As condições climáticas favoráveis à proliferação da bactéria causadora do cancro
cítrico são altas temperaturas associadas à presença de umidade. Por isso os cuidados com
a prevenção devem ser redobrados a partir da primavera, quando tais condições passam a
predominar.
Melo e Antunes (1979) apresentaram um zoneamento climático visando a exclusão do
cancro cítrico no Estado de São Paulo baseado nos parâmetros temperatura e precipitação,
como sendo os dois principais fatores que condicionam o desenvolvimento da doença. Assim, a umidade foi representada através da deficiência hídrica (Da), que indica se as chuvas
foram suficientes para atender à demanda hídrica da planta ou se houve falta ou excesso.
Quando Da =0mm as condições de umidade são consideradas ótimas para o desenvolvimento
da doença, pois não há falta de água; com Da entre 0 e 60mm as condições hídricas são
favoráveis ao desenvolvimento do cancro cítrico; com Da entre 60 e 200mm há restrições
para o desenvolvimento da doença, pois já começa a tornar-se uma deficiência elevada; e
com Da acima de 200mm as condições de umidade são desfavoráveis ao desenvolvimento
da doença e também à própria cultura de citros. Em relação à temperatura, duas variáveis
são consideradas pelo zoneamento: a temperatura média anual (Ta) e a temperatura média
do período chuvoso (T 10-3 ), correspondente aos meses de outubro à março. Adotou-se
Ta = 20°C como limite de temperatura abaixo da qual torna-se difícil o desenvolvimento
da bactéria causadora da doença. As temperaturas favoráveis à ela estão entre 25° e 30°C,
sendo indispensável a existência simultânea de umidade favorável, por isso foi adotado o
cálculo da temperatura média do período chuvoso.
A década de 90 foi marcada por uma intensificação no número de focos de cancro
cítrico no estado de São Paulo, principalmente na região noroeste, sendo o ano de 1999 o que
registrou a maior incidência da doença até então. De acordo com as estatísticas do Fundecitrus (2000a) foram registrados 4180 focos da doença em 132 municípios, sendo atingidas
e erradicadas cerca de 1milhão e 800 mil plantas, o que implicou em grande prejuízo para
140
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
os citricultores e, num âmbito geral, em queda no volume da produção, pois o replantio em
áreas erradicadas é proibido durante o período de dois anos a fim de se evitar a ressurgência
da doença; sem contar que um pomar começa a produzir frutos a partir do terceiro ano após
o plantio. Um novo levantamento realizado no ano seguinte mostrou a diminuição de mais
de 50% da incidência da doença apesar de novos focos terem sido encontrados. A região
noroeste do Estado, embora ainda sendo a região mais atingida pela doença, contou com
apenas 1,65% de talhões contaminados contra 4,30% em 1999. Os índices mais baixos foram
registrados nas regiões norte (0,12%) e sul onde nenhum caso foi registrado.
A importância em estudar o ácaro da leprose Brevipalpus phoenicis (Geijskes, 1939)
consiste no fato deste ser considerado uma praga-chave, ou seja, uma praga perene na citricultura, e por ser o transmissor do vírus causador da leprose, a qual consiste numa grave
doença cítrica que provoca queda prematura de folhas e frutos, além da perda de peso da
ordem de 5 a 8 gr/fruto, implicando em redução drástica da produção e prejuízos para a
comercialização da fruta, uma vez que esta é feita com base no peso. A única forma de se
evitar e combater a leprose é através da eliminação de seu vetor, por isso, de acordo com o
FUNDECITRUS (2000b), o ácaro da leprose é uma das pragas que mais tem contribuído
para o aumento no custo da produção citrícola, estimando-se que mais de US$ 70 milhões
são gastos todos os anos na compra de acaricidas.
De acordo com Oliveira (1986), o ácaro Brevipalpus phoenicis (Geijskes, 1939) foi
descrito pela primeira vez na Holanda em 1939, porém, acha-se distribuído por diversos
países, principalmente nos tropicais, sendo sua constatação mais extrema ao norte na Holanda,
e ao sul na Argentina. Pertencente à família Tenuipalpidae, ele apresenta uma morfologia
achatada, quatro pares de pernas e coloração avermelhada com manchas escuras no dorso,
com o adulto medindo em torno de 0,280mm de comprimento e 0,128mm de largura. Durante
o seu ciclo biológico passa pelas fases de ovo, larva, protoninfa, deutoninfa e adulto, sendo
que sua reprodução se dá principalmente de forma assexuada, por partenogênese, ou seja,
a fêmea realiza a postura dos ovos que dão origem à novas formas sem a necessidade do
macho. O ácaro Brevipalpus phoenicis (Geijskes, 1939) é polífago, quer dizer, alimentase, além dos citros, de diferentes espécies vegetais tanto cultivadas como florestais e em
ervas daninhas.
Nas plantas cítricas ele se abriga preferivelmente em frutos, principalmente nos
localizados no interior da planta, buscando pequenas reentrâncias onde tenta se proteger de
inimigos naturais e de pulverizações para seu controle.
Segundo Gillham (1968), Smith (1975) e Reis e Souza (1986) o elemento climático temperatura exerce influência principalmente em relação à duração do ciclo de vida
havendo, na grande maioria dos casos, uma relação direta entre o aumento da temperatura
e diminuição do período de duração do ciclo de vida de ácaros e insetos. No caso do ácaro
da leprose, um estudo realizado por Chiavegato (1986) sob temperatura de 20°C e 30°C
mostrou que a temperatura mais elevada favorece o desenvolvimento mais rápido do ácaro
em todas as fases de seu ciclo biológico, nestas condições térmicas o período de incubação
do ovo apresenta duração média de 5,2 dias a 30°C contra 16,3 dias a 20°C, sendo que o
ciclo completo ocorre em 14,3 dias a 30°C contra 43,4 dias a 20°C. Constatou-se também
uma duração mais curta do ciclo de vida do ácaro quando este se desenvolve sobre o fruto
Ambientes
estudos de Geografia
141
do que sobre a folha.
Apesar do ácaro da leprose estar presente nos pomares paulistas durante todo o
ano, é no inverno que ocorrem os maiores picos populacionais, devido às condições de
baixa umidade, características deste período do ano. Oliveira (1986) estudando a flutuação
populacional deste ácaro em citros demonstrou que os níveis populacionais elevam-se a
partir dos meses de março-abril, período em que normalmente começam a diminuir as
precipitações, atingindo os níveis mais altos a partir de julho, com o máximo nos meses de
setembro-outubro, decrescendo gradativamente com o início das chuvas.
A disseminação do ácaro da leprose se dá através de três formas principais: aquisição
de mudas infestadas, trânsito de material de colheita e de veículos nos pomares e através
de ventos de mais de 60km/hora. Seu controle se dá de forma direta através da aplicação
de acaricida, porém, outras medidas auxiliares devem ser adotadas a fim de reduzir a infestação e a disseminação do ácaro, tais como: eliminação de plantas hospedeiras, evitar
plantio intercalar, poda e erradicação de plantas doentes, uso de cerca-viva e quebra-ventos,
e principalmente a inspeção periódica dos pomar.
Comportamento climático do município de Bebedouro (SP)
Com relação à temperatura, a média registrada para o período estudado foi de
23,1°C, sendo os anos de 1994-99 que registraram as temperaturas mais elevadas da série.
O comportamento das médias anuais apresentou-se relativamente constante, com maior
oscilação durante os anos de 1989 a 94 (Figura 2). Quanto ao comportamento mensal, o
mês de fevereiro registra as temperaturas mais altas, média de 25,2°C, e julho as menos
elevadas com média de 19,7°C (Figura 3). Tal distribuição evidencia bem o regime térmico predominante nesta região, com média na primavera-verão de 24,9°C e inverno pouco
rigoroso com média de 20,5°C.
Figura 2 – Temperatura média anual do município de Bebedouro (SP) para
os anos de 1982 a 1999
ºC
142
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Figura 3 – Temperatura média mensal do município de Bebedouro (SP) para
os anos de 1982 a 1999
ºC
No que diz respeito à influência da temperatura na incidência do ácaro da leprose, a
literatura mostra que esta incidência está mais associada ao fator umidade do que ao fator
temperatura. Com relação ao cancro cítrico, comparando com as exigências térmicas da
bactéria causadora da doença (Xantomonas axonopodis pv. citri) a qual tem seu desenvolvimento favorecido durante a primavera-verão sob temperaturas entre 25-30°C e concomitante
presença de umidade, verificou-se que tais condições são registradas em Bebedouro durante
o primeiro e último trimestre do ano apresentando, portanto, condições térmicas favoráveis
ao desenvolvimento da doença.
Com relação à variável climática precipitação, durante a série temporal foi registrada
precipitação média de 1497,6 mm, sendo o ano de 1983 o mais chuvoso com total anual de
2367,9 mm, e o ano de 1987 o que registrou menor índice pluviométrico da série, 1108,2
mm. Dos dezoito anos de observação, onze registraram precipitação abaixo da média, sendo
que destes onze, seis ocorreram somente na década de 90 (1993-97 e 1999), o que pode ser
observado na figura 4. As precipitações mais altas da série ocorridas respectivamente nos
anos de 1983, 1992, 1982 e 1993 estando associadas à ocorrência, em tais anos, do fenômeno
El Niño, o qual provoca aumento no índice pluviométrico devido às mudanças na circulação
atmosférica geradas pelo aquecimento das águas oceânicas.
A distribuição mensal da precipitação, caracteriza bem o regime climático descrito por
Monteiro (1973) predominante nesta região do Estado, onde há a ocorrência de um período
seco muito nítido durante o outono-inverno. A soma das médias mensais da precipitação
deste período é de 222,9 mm, ou seja, menor que a média dos meses de janeiro (280,2 mm)
e fevereiro (240,2 mm) considerados como os mais chuvosos da série, respectivamente. Observando o balanço hídrico calculado para o município de Bebedouro (Figura 5), constata-se
um acentuado período de deficiência hídrica que vai do mês de abril à setembro totalizando
76,9 mm, sendo que o armazenamento mensal de água no solo ficou abaixo da capacidade
praticamente o ano todo ( abril à novembro), com armazenamento mais baixo registrado
no mês de setembro (21,0 mm).
Ambientes
estudos de Geografia
143
Figura 4 – Precipitação anual do município de Bebedouro (SP) para os anos
de 1982 a 1999
Figura 5 – Representação do balanço hídrico no município de Bebedouro
(SP) para os anos de 1982 a 1999
Com relação à umidade relativa, a média anual registrada para a série foi de 70%,
considerado um índice médio de umidade, de acordo com Pedelaborde (1980). O ano de
1983 registrou a umidade relativa média anual mais alta da série ( 77%) e o ano de 1994
a mais baixa (65%). Dos quinze anos de observação, sete apresentaram umidade relativa
acima da média, sete abaixo e um ano coincidiu com a média, podendo dizer que esta variável climática apresentou uma distribuição equilibrada ao longo da série (Figura 6). Chama
a atenção os altos índices registrados nos anos de 1982 (74%) e 1983 (77%) em relação
aos demais, explicados pela ocorrência do fenômeno El Niño, o qual provoca aumento
da precipitação, exercendo influência positiva sobre a umidade relativa. Quanto à análise
mensal desta variável, o mês de janeiro registra a média mensal mais alta do ano (80%) e
144
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
agosto a mais baixa (55%). Ao longo do ano as médias mensais mais altas concentram-se
durante o verão e outono, com os meses de junho à novembro representando um período
mais seco (Figura 7).
Figura 6 – Umidade relativa média anual do município de Bebedouro (SP)
para os anos de 1982 a 1999
Figura 7 – Umidade relativa média mensal do município de Bebedouro (SP)
para os anos de 1982 a 1999
Assim, o comportamento da precipitação e da umidade relativa em Bebedouro mostrase favorável à incidência do ácaro da leprose o qual, alcança níveis populacionais mais altos
a partir do inverno, com picos durante os meses de julho a outubro, quando a quantidade de
precipitação é bem reduzida em relação aos demais meses. Com relação ao cancro cítrico,
de acordo com o zoneamento climático de Melo e Antunes (1979), o comportamento hídri-
Ambientes
estudos de Geografia
145
co de Bebedouro apresenta-se pouco favorável ao desenvolvimento da bactéria causadora
da doença, enquadrando-se na faixa de deficiência hídrica entre 60 a 200mm, considerada
relativamente alta, apresentando restrições ao desenvolvimento da doença.
Comportamento climático do município de Limeira (SP)
Durante a série temporal considerada o município registrou temperatura média
anual de 21,2°C (1,9°C mais baixa que a média de Bebedouro), sendo o ano de 1984 o que
apresentou a média mais alta 21,9°C e 1989 a menos elevada 20,4°C. De um modo geral,
o comportamento das médias anuais ao longo da série mostrou-se relativamente pouco
variável, podendo ser destacados dois períodos distintos: o primeiro referente aos anos de
1989 a 93, onde todas as temperaturas registradas ficaram abaixo da média da série; e outro
referente aos anos subseqüentes onde, no geral, foram registradas as temperaturas mais altas
da série, ficando todas acima da média (Figura 8).
Com relação ao comportamento mensal da temperatura, os meses mais quentes
da série foram fevereiro 24°C e janeiro 23,9°C, sendo o mês de junho o que registrou a
média menos elevada 17,6°C. As temperaturas mais baixas predominantes no período do
ºC
outono-inverno são decorrentes da maior atuação da massa Polar Atlântica, nesta época do
ano (Figura 9).
ºC
146
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Figura 8 – Temperatura média anual do município de Limeira (SP) para os
anos de 1982 a 1999
Figura 9 – Temperatura média mensal do município de Limeira (SP) para os
anos de 1982 a 1999
Na análise da variável climática precipitação, a média registrada no município foi de
1468,2 mm, sendo o ano de 1983 o mais chuvoso da série com total de 2286,7 mm, e o ano
de 1984 o menos chuvoso registrando 1046,7 mm. A distribuição dos totais anuais (Figura
10) mostra que, dos dezoito anos considerados, doze registraram precipitação abaixo do
total médio e seis acima; destes seis, quatro foram durante a década de 90. Comportamento
semelhante também foi observado para o município de Bebedouro, onde mais da metade dos
anos apresentaram precipitação abaixo da média, porém, a maioria deles durante a década de
90. Com relação à distribuição mensal da precipitação, as médias mais altas foram registradas
no primeiro e no último trimestre do ano, sendo o mês de janeiro o mais chuvoso com média
de 252,4 mm. De abril à setembro, durante o outono-inverno, as médias mensais são mais
baixas, sendo o mês de junho o que registrou menor quantidade de chuva no ano, 26,3 mm.
Figura 10 – Precipitação anual do município de Limeira (SP) para os anos
de 1982 a 1999
O balanço hídrico calculado para Limeira (Figura 11) registrou deficiência hídrica
em apenas dois meses do ano (julho e agosto) perfazendo um total de 14,6 mm, sendo que
o armazenamento mensal de água no solo ficou abaixo da capacidade durante os meses de
julho à agosto, com armazenamento mais baixo registrado neste último mês (55,24 mm).
Considerando a variável climática umidade relativa, durante a série temporal analisada, registrou-se média anual de 74,7%. A média mais baixa ocorreu no ano de 1989 (65,4%)
e a mais alta em 1998 (81,6%). Pelo comportamento das médias anuais pode-se dizer que,
no geral, a década de 80 apresentou umidade relativa média mais baixa que a década de 90,
71,5% contra 77,3% respectivamente (Figura 12). Quanto ao comportamento das médias
mensais (Figura 13) observou-se que estas apresentaram-se mais baixas durante os meses
Ambientes
estudos de Geografia
147
de julho a novembro com média para estes meses de 70,4%, sendo a umidade relativa média
mais baixa registrada no mês de agosto (67,9%).
É durante este período do ano que ocorre o aumento da população do ácaro da leprose, devido às condições de precipitação e umidade relativa reduzidas. Considerando a
148
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
disponibilidade hídrica anual, Limeira apresenta condições favoráveis ao cancro cítrico em
decorrência da baixa deficiência hídrica total anual registrada.
Figura 11 – Representação do balanço hídrico do município de Limeira (SP)
para os anos de 1982 a 1999
Figura 12 – Umidade relativa média anual do município de Limeira (SP)
para os anos de 1982 a 1999
Figura 13 – Umidade relativa média mensal do município de Limeira (SP)
para os anos de 1982 a 1999
Considerações finais
No contexto geral, com relação à temperatura, em ambos os municípios a década de
90 registrou as temperaturas mais elevadas da série, sendo que o período de 1989 a 94 foi o
que apresentou a maior oscilação em relação às médias anuais, e em Limeira foi o período
das mais baixas temperaturas da série.
Dos dezoito anos correspondentes à série temporal analisada, doze registraram precipitação abaixo da média, nos dois municípios. Em Limeira a década de 90 apresentou-se
mais chuvosa que a de 80, ocorrendo o inverso para o município de Bebedouro, onde a
década de 80 foi mais chuvosa.
A distribuição anual da umidade relativa ao longo da série temporal apresentou-se
mais equilibrada no município de Bebedouro. Em Limeira a década de 80 registrou umidade
relativa mais baixa que a de 90.
Considerando o comportamento mensal destas variáveis climáticas para os dois
Ambientes
estudos de Geografia
149
municípios, elas expressam bem o regime climático predominante em cada região descrito
por Monteiro (1973). Apesar da estação seca corresponder ao mesmo período do ano para
ambos, em Limeira ela é menos acentuada que em Bebedouro.
Sendo assim, em relação ao ácaro da leprose, sabe-se que a presença de uma estação
seca durante o inverno em ambos os municípios é propícia à sua incidência, porém, no
município de Bebedouro esta característica climática é mais acentuada, tanto em relação
à umidade relativa mais baixa quanto à quantidade de precipitação (que em alguns meses
chega a ser ausente) sendo, portanto, mais favorável à incidência desta praga do que o
município de Limeira.
Da mesma forma, com relação ao cancro cítrico, comparando suas exigências climáticas com as características climáticas dos municípios estudados, pode-se dizer que Bebedouro
é mais favorável à sua incidência do que Limeira pois, mesmo apresentando deficiência
hídrica anual desfavorável, a temperatura registrada no período chuvosos é elevada, representando assim as condições ideais para o desenvolvimento da doença.
É importante salientar que tendo ou não condições ambientais favoráveis à estas ou
à outras pragas e doenças, a sanidade do pomar depende também da adoção de práticas de
manejo que proporcionem a limpeza das áreas cultivadas tais como: capinas, apanha de frutos
caídos, corte e destruição dos despojos da planta, entre outras, gerando assim condições
para um bom desenvolvimento da cultura e proporcionando, ao mesmo tempo, condições
adversas ao ciclo de vida de pragas e doenças. Aliado à isso, a inspeção constante do pomar
é importantíssima para garantir sua sanidade, permitindo que as medidas de controle sejam
tomadas rapidamente, antes do avanço da incidência.
O fato das condições climáticas exercerem papel significativo na incidência de pragas,
tanto em relação ao seu desenvolvimento quanto à sua disseminação, faz com que o clima
seja considerado um elemento importante na ajuda ao controle fitossanitário.
Como salienta Gillham (1968) e Ayoade (1986), o conhecimento do microclima
de uma lavoura é fundamental no controle de pragas e doenças, pois através dele pode-se
aplicar práticas agrícolas que ofereçam um ambiente desfavorável à elas.
O conhecimento das características climáticas de uma localidade também auxilia
na previsão de tais incidências, como mostra Smith (1975) citando métodos de previsão
de doenças baseados em dados de temperatura e umidade. Neste sentido, os estudos sobre
comportamento climático e sua influência na agricultura podem trazer importantes contribuições para a previsão e conseqüente prevenção da incidência de pragas e doenças agrícolas,
representando campo aberto e amplo para novas pesquisas.
Referências
AYOADE, J. O. Introdução à Climatologia para os Trópicos. Tradução Maria Juraci Zani
dos Santos. São Paulo: Difel. 1986.
CHIAVEGATO, L. G. Biologia do ácaro Brevipalpus phoenicis em citros. Pesquisa Agropecuária Brasileira. Brasília, v.21, n.8, p.813-16, ago.1986.
FUNDECITRUS. Ações atingem todo o Estado de São Paulo. Revista Fundecitrus. Ara-
150
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
raquara, ano XIV, n.101, p.10-11, nov/dez 2000a .
FUNDECITRUS. Comprovada a resistência do ácaro da leprose. Revista Fundecitrus.
Araraquara, ano XIV, n.97, p.12-13, mar/abr 2000b.
GILLHAM, F.E.M. Climate, pests and agriculture. In: UNESCO (Coord.). Agroclimatological Methods. Paris:UNESCO. 1968, p.131-138.
MELO, M. J .S . e ANTUNES, F. Z. Zoneamento climático de Minas Gerais visando a
exclusão do cancro cítrico. Informe Agropecuário. Belo Horizonte, v.5, n.51, mar.1979.
MONTEIRO, C. A F. Dinâmica climática e as chuvas no Estado de São Paulo: Estudo
geográfico sob a forma de Atlas. São Paulo: Instituto de Geografia, Universidade de São
Paulo, 1973.
NAKANO, O. Insetos nocivos aos citros. In: RODRIGUEZ,O (Ed.) Citricultura Brasileira.
2° edição. Campinas: Cargil. 1991.
NIMER, E. Climatologia do Brasil. Rio de Janeiro:IBGE, 1979.
OLIVEIRA, C. A L. Flutuação populacional e medidas de controle do ácaro da leprose
Brevipalpus phoenicis (Geijskes, 1939) em citros. Agrotécnica Ciba-Geigy, p.14-23, 1986
PEDELABORDE, P. Introdução ao estudo científico do clima. Tradução Glauceir Ureniuk.
REVALORIZAÇÃO DO CENTRO DE SÃO PAULO:
A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DOS VENCEDORES1
Sidney Gonçalves VIEIRA
Introdução: ideologia e discurso
A noção de ideologia está presente em todo o processo de análise do espaço urbano,
principalmente quando é feito por intermédio da paisagem. Bobbio et al. (1992) reconhecem
a multiplicidade de significados para a palavra ideologia e aponta, entretanto, duas tendências
ou dois tipos de significados que se agrupam ou se aproximam, pelo menos. Nomeou a estes
grupos de “significado fraco” e “significado forte”. No que chamou de “significado fraco”,
a ideologia se refere aos sistemas de crenças políticas, ou seja: “um conjunto de idéias e
de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos
políticos coletivos” (BOBBIO et al, 1992, p.585).
Ao seu turno, o “significado forte” tem sua origem no conceito de ideologia proposto
por Marx, onde se procura expressar uma falsa consciência das relações de domínio entre
as classes. Se no primeiro significado a ideologia aparece como um conceito “neutro”, que
prescinde do caráter eventual e mistificante das crenças políticas, agora já tem a conotação
negativa, mostrando precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença
política.
É o próprio Bobbio et al (1992, p.585-593) quem atenta para a evolução que o “significado forte” de ideologia teve, propondo a reformulação do conceito marxista de falsa
consciência e do nexo entre falsidade e função social da ideologia, que nela está presente.
O entendimento da “falsidade” da ideologia, como uma “falsa representação”, implica na
aceitação de que uma crença ideológica é falsa porque não corresponde aos fatos. É necessário
que se distinga, portanto, o fenômeno objetivo concreto da forma sob a qual o percebemos.
Esta idéia está presente também em Marx e Engels (1989, p.21), quando afirmam que:
Não partimos do que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na
representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e
osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu
processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos
reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital (MARX E
ENGELS, 1989, p.21).
Esta formulação evidencia que as imagens e as representações que os homens fazem
da situação social e de si próprios são determinadas pelo processo real da vida em que operam. E, por outro lado, evidencia também uma falsa representação que não corresponde à
realidade. No que diz respeito ao espaço urbano, a ideologia enquanto falsa representação
1
Tese de doutorado orientada pela Profª Drª Silvana Maria Pintaudi
152
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
está presente nas concepções acerca da realidade social, que são transpostas para as formas
produzidas, e as acompanham de modo a agir sobre a representação que delas se faz. É preciso
reconhecer que não se trata de um propósito explícito das formas, mas sim de um resultado
do processo de produção determinado por relações de produção específicas. Neste sentido,
as representações que povoam as obras humanas não são sempre o resultado da intenção
explícita da sua mente mas, na maioria das vezes, espelham mesmo as representações que
os homens fazem de si e da situação social em que vivem na sociedade.
Com relação à produção simbólica, que em muito se aproxima da produção do espaço
urbano no que diz respeito às formas, sobretudo às formas arquitetônicas, ainda que não se
manifeste diretamente sobre este tema, a análise que Bordieu (1992) apresenta é bastante
elucidativa do papel da ideologia. Já Miceli (1992), na própria introdução da obra de Bordieu (1992), esclarece este papel. Partindo da noção de prática em geral, no sentido que lhe
atribuiu Althusser (1966, apud MICELI, 1992), ou seja, todo processo de transformação
de uma determinada matéria-prima em um outro produto, também específico, ocorre por
intermédio de um determinado trabalho humano que se utiliza de determinados meios de
produção. Seguindo, a prática política passa a ser entendida como o processo de transformação de relações sociais dadas, em novas relações sociais produzidas pelo emprego de certos
instrumentos políticos. Por outro lado, a prática ideológica seria a transformação de uma
“consciência”, em uma nova “consciência” produzida mediante a reflexão da consciência
sobre si mesma.
O relacionamento entre a prática política e a prática ideológica será feito por intermédio do discurso que, nessa direção, constitui o instrumento de expressão e transformação da
prática política, enquanto as ideologias seriam as formas de produção política. Se a produção
é sempre uma produção para alguém, então é lícito dizer, no entendimento althusseriano,
que a demanda de produção que provém das relações sociais será determinante não só do
produto, mas também do próprio modo pelo qual o produto será consumido. A prática ideológica constitui, nesta corrente, um modo pelo qual se reformula a demanda social, tarefa
esta realizada mediante um discurso, neste sentido, um discurso que dissimula e encobre.
Segundo sumaria Miceli (1992):
A ideologia constitui uma prática no sentido estrito de que transforma as
relações sociais entre os homens (matéria-prima do trabalho ideológico)
em um discurso (enquanto sistema articulado), seja sob a forma de um
mito [...], seja sob a forma de um sistema. As práticas ideológicas que ‘funcionam produzindo a resposta à sua própria demanda – isto é, produzindo
um produto sob a forma de um discurso, têm por função a transformação
das relações sociais dentro da prática social, de tal modo que a estrutura
global desta não se modifique’ (MICELI, 1992, p.46).
No entanto, Bordieu (1992) confere, na maior parte de seu trabalho, um alcance
muito mais restrito para a ideologia. Para ele, trata-se de um termo reservado para referir
as produções eruditas de um corpo de agentes profissionais. A preocupação maior do autor
é mesmo a de analisar a distinção entre os esquemas geradores das práticas, e as representações que envolvem estas práticas. E é por este caminho que se locomove. Todavia, não
é apenas isto, pois será capaz de localizar o trabalho de transformação das relações sociais
em ideologias além dos discursos, mas presente também na etiqueta, nos signos de respeito
Ambientes
estudos de Geografia
153
e em outros atos da vida cotidiana, ou seja, em todos aqueles atos em que a educação e as
estratégias de inculcação reduzem ao automatismo. Portanto, não só o discurso deve ser
considerado, nem se deve conferir a ele um poder maior do que o que se pode conferir às
outras práticas sociais.
Para concluir com Bordieu (1992), podemos seguir a seguinte linha de raciocínio,
proposta por Miceli (1992):
A inteligibilidade das práticas, dos rituais, é condição necessária para a
compreensão do discurso mítico; vale dizer, o discurso enquanto opus
operatum encobre por meio de suas significações reificadas o momento
constitutivo da prática. Sendo o que são, vale dizer, produto de práticas, os
sistemas simbólicos ‘só podem preencher suas funções práticas na medida
em que envolvem princípios que não são apenas coerentes, mas também
práticos, no sentido de cômodos, quer dizer, imediatamente passíveis de
controle e de manipulação porque obedecem a uma lógica pobre e econômica’ (MICELI, 1992, p.50).
Portanto, fica evidente a necessidade de se levar em conta, quando da análise do
discurso, as condições sociais de produção e de utilização dos discursos, vale dizer, as determinações sociais que não se manifestam de pronto nos próprios discursos e documentos
com que lida o observador. Relegar estas determinações equivale a incorrer em erro de
leitura, que torna incapaz o deciframento das significações sociais reificadas. Por isso a
lição de Bordieu é pertinente, no sentido de reconduzir o estudo dos sistemas simbólicos às
suas bases propriamente sociais, ou, dito de outro modo, “às práticas com que os agentes
afirmam seu código comum de significações presentes nos objetos, instrumentos e agentes
mítica e ritualmente qualificados” (MICELI, 1992, p.51)
As considerações analisadas até aqui apontam sempre no sentido de que é preciso
distinguir com exatidão a realidade, e aquilo por intermédio do que ela nos é comunicada.
A diferença entre estes dois momentos poderá ser verificada tanto na produção do objeto, já
ele prenhe de significados, quanto no consumo, igualmente marcado pelas determinações a
que se está exposto na sociedade. Tal distinção é necessária no campo da produção do espaço
urbano, para tornar evidente a que agentes se vinculam as propostas e as concepções sobre
esse espaço. Mais do que uma intenção própria do sujeito que produz ou do que consome, a
ideologia aparece como uma falsidade produzida pelo próprio sistema de relações existentes
na sociedade, em que a luta entre classes e setores de classes aparece sempre camuflada sob
distintas estratégias e apropriações.
E estas considerações se aproximam mais ainda do objeto de estudo deste trabalho,
qual seja, o processo de revalorização do centro de São Paulo, quando relacionamos as noções
de ideologia e de discurso sobre bens simbólicos, em geral, à produção arquitetônica, em
específico. Não que a re-produção do espaço, a qual se fez referência na primeira parte, se
restrinja unicamente a estes objetos, mas principalmente porque será por meio dos objetos
arquitetônicos e sua organização no espaço, que poderemos analisar a paisagem da cidade.
Ou seja, em última análise, por intermédio da forma, da fisionomia e da estrutura urbana a
eles associados, ou ainda, do espaço urbano produzido e consumido por uma dada sociedade.
A Semiologia aparece então como uma fonte de esclarecimentos, isto se a considerarmos,
conforme Eco (1992), como a ciência que estuda todos os fenômenos de cultura como se
154
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
fossem sistemas de signos (e não a ciência dos sistemas de signos reconhecidos como tais),
ou seja, considerando que a cultura seja essencialmente comunicação.
Neste sentido a arquitetura desafia a Semiologia, porque, pelo menos aparentemente,
os objetos arquitetônicos não comunicam, ou não são concebidos, explicitamente para a
comunicação, senão que para a funcionalidade. Esclarece Eco (1992):
Ninguém duvida que um teto sirva fundamentalmente para cobrir e um
copo, para recolher o líquido de modo que seja fácil, depois, enguli-lo. Essa
constatação é tão imediata e indiscutível que poderia parecer peregrino
querer ver a todo o custo como ato de comunicação algo que, ao contrário,
se caracteriza tão bem, e sem problemas, como possibilidade de função (ECO, 1992, p. 188).
No entanto, a relação que se mantém com o objeto arquitetônico nos mostra que a
arquitetura é fruída por nós como fato de comunicação, sem que isto implique na perda da
funcionalidade a ela associada. Isto por que a codificação dos elementos arquitetônicos,
que faz com que possamos associar um modelo abstrato à realização de uma determinada
idéia (a idéia de uma determinada caverna pode ser substituída por uma idéia de caverna,
qual um modelo, uma estrutura que não existe concretamente mas que serve de base para
reconhecer certo contexto de fenômenos como caverna), gera um código icônico, que tornase, este sim, objeto de comunicação. O uso se converte, deste modo, em um signo daquele
uso. E é por causa desta possibilidade que os objetos arquitetônicos não denotam apenas
uma função, mas remetem também a uma certa concepção, ou seja, conotam uma ideologia
que presidiu à operação do arquiteto.
É importante observar que a função não deriva diretamente da forma, nem o contrário.
Isto torna impossível a produção de uma função nova a partir de uma forma desconhecida,
assim como também não se poderá dar forma a uma nova função. Vale dizer que a função
de uma nova forma (ou a forma de uma nova função) tem que se apoiar nos processos de
codificação já existentes. E isto é deveras importante quando se trata da reconversão de
usos de edifícios, por exemplo, em que a adaptação de formas e funções não podem se dar
ao acaso, pois partem de materialidades existentes.
Um objeto que pretenda promover uma nova função poderá conter em si mesmo, na
sua forma, as indicações para decodificar a função inédita, apenas com a condição de que se
apóie em elementos de códigos precedentes, isto é, deformando progressivamente funções já
conhecidas. Caso contrário, o objeto arquitetônico passa de objeto funcional a obra de arte:
forma ambígua que pode ser interpretada à luz de códigos diferentes (ECO, 1992, p.201).
No entanto, não podemos vislumbrar na arquitetura apenas um sistema de regras
retóricas que pretendem dar ao usuário aquilo que ele já espera. A arquitetura pode ser
também uma operação que se dirige às pessoas para satisfazer suas exigências e fazer com
que vivam de um modo determinado, ou seja, pode-se entendê-la enquanto comunicação
de massa. E ainda, seguindo além, a arquitetura também é informação que comunica uma
ideologia, porque ao mesmo tempo em que informa as funções que promove e denota,
também é capaz de explicitar o modo pelo qual as promove e as denota. É, portanto, uma
mensagem auto-significante capaz de conotar as intenções arquitetônicas do remetente.
Ambientes
estudos de Geografia
155
A influência italiana na arquitetura de São Paulo
São Paulo foi reconstruída a partir de 1871, logo após a chegada das ferrovias que
alteraram as rotas comerciais brasileiras. O capitalismo propiciado pela agricultura do café
e toda riqueza correlata foi o grande impulsionador da renovação que a cidade assistiu. Foi
a época em que surgiram os grandes negócios, o comércio mais refinado das lojas e das
confeitarias luxuosas, foi quando surgiram também os grandes empreendimentos imobiliários. Em 1875 a cidade contava com menos de três mil prédios. Já em 1886, quando Ramos
de Azevedo iniciou sua atividade em São Paulo, a cidade contava com cerca de sete mil
prédios. Neste ponto há que se destacar que a imagem de São Paulo devida a Ramos de
Azevedo não deve ser buscada apenas nos dias atuais quando suas obras se confundem no
emaranhado de prédios existentes, mas fundamentalmente neste momento em que a cidade
se afirma, justamente quando se afirma também sua identidade cultural, fortemente influenciada pelo estilo arquitetônico. A marca de Ramos de Azevedo foi firmemente plantada
na cidade em reconstrução, com o destaque dado pela imponência do estilo de Ramos de
Azevedo. Em 1900 o número de prédios já chegava a vinte e um mil, para alcançar trinta
e duas mil construções em 1910. Não se trata apenas de uma evolução numérica mas de
uma verdadeira mudança qualitativa, pois as novas construções surgiram em substituição
das velhas obras de taipa de pilão. Aliado a este processo de substituição das construções
estavam os novos prédios que surgiram para abrigar o crescente contingente populacional
que aumentava significativamente.
As relações da época mostravam uma sociedade paulista emergente e competitiva
com relação aos cariocas até então dominantes no cenário nacional. O enriquecimento
desta sociedade propiciou o capital capaz de financiar construções que copiavam estilos e
técnicas importadas. Os arquitetos, engenheiros, mestres-de-obras e outros trabalhadores
eram recrutados entre os imigrantes ou buscados diretamente na Europa para reproduzirem
os padrões vigentes. O crescimento, como se disse, passou a contar não só com o aspecto
quantitativo, mas também com o elemento qualitativo na definição arquitetônica. No dizer
de Lemos (1987, p.74) “era a consciência da modernidade que arribara”. No afã de substituir
a mentalidade “caipira” várias soluções foram sendo alinhadas.
A variedade passou a compor o cenário sem repetições, mas, ao mesmo
tempo, homogeneizado pelas mesmas regras de composição, pelos mesmos
ritmos das envazaduras que ganhavam predomínio sobre os cheios das
alvenarias, as mesmas platibandas, os mesmos gabaritos reguladores. Era
o ecletismo. (LEMOS, 1987, p.74)
Os minuciosos detalhes da arquitetura das construções que foram surgindo em São
Paulo, e que permitem uma classificação mais detalhada dos estilos seguidos pelos construtores não serão analisados neste estudo. Tal refinamento permite identificar quase que prédio
a prédio a origem da influência seguida e recompor a evolução cronológica dos diferentes
estilos em voga. Contudo, fugiria em demasia ao objeto do trabalho, visto que é suficiente
insistir na grande influência italiana ainda viva na arquitetura paulistana de modo genérico,
independentemente das especificidades possíveis de serem identificadas.
Há uma contribuição incontestável na construção da cidade de São Paulo que é devida
156
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
aos imigrantes italianos. De fato, no final do século XIX e também no início do século XX a
presença dos italianos em São Paulo foi marcante não apenas na arquitetura, mas na própria
construção do que seria uma identidade paulistana. A carga da cultura que traziam logo foi
impregnando o espaço que construíram, de maneira que a influência que exerceram trouxe
junto a cultura italiana que aqui ganhou expressão. Assim, cabe falar em uma influência
italiana na arquitetura paulistana, que tem maior significado do que falar de uma influência
de italianos neste setor, pois reflete não apenas a contribuição dos imigrantes, mas além
disto, da sua história e cultura precedentes.
Na paisagem deixaram marcas indeléveis desta influência e mostras ímpares das relações sociais que ocorreram naqueles tempos. De 1800 até a metade do século XIX a cidade
de São Paulo havia se desenvolvido muito pouco, como se tem insistido em afirmar, sendo
que algum surto realmente importante começou a ser notado verdadeiramente a partir de
1870. A cidade começava a ampliar seus limites e ia se renovando, lentamente, no princípio,
e com mais vigor depois de 1885. É preciso não esquecer que o ano de 1874 marca o início
da imigração regular de trabalhadores italianos para o Brasil, principalmente vindos para
São Paulo. Até aqui a cidade fora sendo construída sob a nítida lógica portuguesa, que se
deixava guiar pela natureza do local e a seguia. “A simplicidade das técnicas denunciava,
assim, claramente, o primitivismo tecnológico de nossa sociedade colonial: abundância de
mão-de-obra determinada pela existência de trabalho escravo, mas ausência de aperfeiçoamentos” (REIS FILHO, 1997, p.26).
No entanto, a marca mais profunda foi mesmo dada pelo estilo italiano das construções, devido à imagem que os imigrantes, aqui construtores, traziam das ruas, das fachadas
e do casario italiano. Mais precisamente se pode dizer que as imagens remetem mesmo às
construções italianas do período neoclássico. Um exame mais minucioso aponta ainda para
um refinamento capaz de distinguir diferentes influências dentro deste período, como bem
lembram Salmoni e Debenedetti (1981), que apontam para a existência de três grupos individualizados na influência italiana. Primeiro o das construções realizadas pelos alemães com
base na influência neoclássica italiana; depois o das obras de Bezzi, Pucci e aqueles que por
eles foram influenciados; por fim o das construções modestas, mas não menos importantes
dos mestres-de-obras italianos, que aqui chegaram depois de 1880.
O neoclássico a que aqui nos reportamos difere daquele que foi trazido ao Brasil
por influência do traslado da Corte Portuguesa em 1808. Aquele, cuja maior influência se
pode sentir no período imperial, foi mais forte no Rio de Janeiro e em outras cidades onde
a Missão Artística Francesa de 1816 exerceu maior domínio. O neoclássico ortodoxo, como
lembra Lemos (1979), foi aquele depurado na França de Napoleão
que ordena composições arquitetônicas simétricas e extremamente contidas, onde os frontispícios eram divididos em grandes painéis delimitados
por pilastras e cimalhas, acolhendo envasaduras bem ritmadas e todo o
conjunto coordenado visualmente pelo centro de interesse maior que era
o frontão triangular diretamente filiado aos tímpanos gregos (LEMOS,
1979, p.81).
Como é sabido, a esta época, o desenvolvimento em São Paulo era por demais
Ambientes
estudos de Geografia
157
incipiente para poder sustentar o florescimento de um estilo desta ordem. Ainda presa às
construções de taipa só conheceu um desenvolvimento significativo com a riqueza advinda
do café, já bem mais tarde do que no Rio de Janeiro.
Com efeito, apesar da nítida influência italiana, o primeiro neoclássico em São Paulo
deve ser atribuído realmente aos alemães, o que se justifica pela presença de engenheiros
e arquitetos desta origem que aqui moravam e se dedicavam a construir para as famílias
dos grandes fazendeiros na cidade. A colônia alemã já era numerosa desde antes da vinda
sistemática de italianos para o Brasil. Entre os nomes de maior destaque nesta época se
pode citar Puttkamer, Häussler, Ploy, Vilbeft, Behmer, entre tantos outros. Ao tempo em que
deixaram a Alemanha a influência da arquitetura renascentista italiana e a gótica francesa
certamente ainda não haviam aflorado, mantendo vivo o gosto pelo neoclassicismo ainda
por mais tempo. É de se supor que esta influência perdurou ainda o Brasil, enquanto na
própria Itália já houvesse sido superado.
Enquanto na Itália o ecletismo histórico românico substituía totalmente o neoclassicismo também os imigrantes italianos continuavam a reproduzir aqui projetos com base
naquela influência tardia. Assim foi a obra de Tommaso Gaudenzio Bezzi, que projetou o
monumento comemorativo da independência do Brasil, no Ipiranga. Este monumento serve
inclusive para explicar o aparecimento de muitas construções posteriores em São Paulo,
feitas sob a influência mais específica do estilo coríntio e de outras ordens, constituindo
assim um modelo distinto daquele neoclassicismo trazido pelos alemães. Também participa
deste grupo Luigi Pucci, que ficou encarregado da obra do Museu do Ipiranga, de Bezzi, e
também de inúmeros outros projetos sob a mesma orientação estilística. Também se destacam
neste grupo Giulio Micheli, Bianchi Betoldi, Bertolotti e Cláudio Rossi.
As casas construídas pelos próprios imigrantes parecem ter sido o primeiro sinal de
uma importante conquista na nova terra. Por intermédio dela os recém chegados podiam
experimentar um sentimento de vínculo mais estreito com o Brasil, ao mesmo tempo em
que repetiam as técnicas e o estilo que traziam na lembrança. A quantidade e o ritmo das
construções atesta a importância deste grupo na formação da cidade. Como bem notaram
Salamoni e Debenedetti (1981) os documentos no Arquivo Histórico de São Paulo atestam
um pequeno número de pedidos de construções entre 1870 e 1873, guardados em um único
volume; para o ano de 1888 existem três volumes e já para 1897 é possível contar quarenta
e sete volumes. A mesma progressão é sentida quanto aos nomes dos requerentes: enquanto
nos primeiros pedidos ainda é freqüente a influência alemã depois os nomes italianos começam a aparecer em maior profusão até serem a maioria nos documentos arquivados de
1897. Os italianos que haviam chegado primeiro já exercem profissões como de pedreiros e
mestres e por fim se auto-promovem a construtores e arquitetos. Cada vez mais os italianos
são chamados para atuarem, primeiro em pequenos consertos e depois como construtores
de edifícios importantes (LEMOS, 1979, p.59). No entanto, cabe salientar, que as casinhas
construídas pelos mestres-de-obras cumpriram um importante plano social, considerando a
imensa massa de operários que começou a fazer parte da sociedade de então. Cabe a estes
pequenos mestres o mérito de terem construído um tipo de casa mais evoluído do que o
existente, já que agora se utilizava a alvenaria e que cumprem as condições mínimas de
habitação.
158
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Entretanto, apesar da grande profusão de mestres-de-obras, construtores e arquitetos
de origem italiana há que se reconhecer a limitação destes empreendimentos seja quanto a
capacidade profissional ou financeira dos empreendimentos. Além das casinhas para operários executaram obras de importância maior, mas sempre com as limitações impostas a
estrutura dos empreendimentos. Neste sentido a figura de Ramos de Azevedo apareceu como
um importante marco, uma vez que pode demonstrar uma grande capacidade para organizar
e manter uma poderosa empresa construtora. A importância de seu escritório já tem sido
sobejamente enaltecida neste trabalho, em função da importância que exerceu na produção
da cidade de São Paulo do final do século XIX e início do século XX. Mas também com
Ramos de Azevedo poderemos notar uma expressiva influência dos imigrantes italianos
graças a participação intensa deste grupo junto ao Liceu de Artes e Ofícios coordenado por
Ramos de Azevedo. Ao mesmo tempo em que levou para o corpo docente do Liceu um número significativo de italianos, também os recrutou para atuarem como seus colaboradores.
Esta participação é ainda mais importante quando se observa por informações recorrentes
que era fato comum o titular do escritório indicar as linhas gerais de uma obra, permitindo
muitas liberdades aos seus colaboradores.
Em 1896 quando abriu o seu Escritório Técnico, Ramos de Azevedo chamou para
tomar parte do empreendimento Domiziano Rossi, recém chegado ao Brasil, vindo de uma
formação em Gênova. Em várias obras, a partir daí, se pode notar a influência do estilo que
Rossi proclamava também nas cátedras que lecionava na Escola Politécnica e no Liceu,
onde também foi introduzido por Ramos de Azevedo.
Aos poucos também no Brasil o estilo neoclássico foi sendo ultrapassado, de modo
que se pode afirmar que por volta de 1910-1915 já estava superado. A influência de revistas
como Artista Moderno, Monitor e Facciate Moderne traziam para nossas terras as influências
que estavam emergindo na França e também na Itália. Muitas obras em estilo Art Noveau
devem ter contado com a colaboração da divulgação propiciada por estas revistas. Construções como a do Palácio das Indústrias atestam a influência destas inovações mesmo na
obra de seguidores do neoclassicismo como Domiziano Rossi.
Depois de 1900 a difusão do estilo arquitetônico contou com a colaboração da profusão de construções que eram necessárias naquela época para atender a grande demanda.
O crescimento vertiginoso da população aliado a um afluxo de riquezas que impulsionou
o comércio e a indústria em São Paulo obrigava a construção rápida de edifícios de toda
ordem. Os nomes dos italianos imigrantes continuam ligados às transformações ocorridas
neste período, sobretudo entre 1900 e 1920. Giulio Micheli, Giuseppe Chiappori e Giuseppe
Battista Bianchi são os expoentes maiores desta época, graças à atividade laboriosa de seus
escritórios.
Já entre 1920 e 1930 houve uma sensível diminuição na imigração de italianos para o
Brasil, até mesmo por conta da política fascista. O estilo floreal é que impera como dominante
na arquitetura, dando vazão ao oferecimento do ferro e do cimento que acontecia. A partir
daí a influência se deve não mais a uma arquitetura italiana como dissemos até então, mas
a uma arquitetura de italianos, posto que fundada não em um estilo de vida e em um período
histórico em que a Itália se destacou, mas sim em uma produção desenvolvida por italianos.
Os novos fundamentos desta arquitetura estão alicerçados em uma cultura humanística que é
Ambientes
estudos de Geografia
159
comum a diversos países, manifestada aqui por italianos, mas também por outros imigrantes.
A arquitetura moderna contará com a influência de italianos como Marcello Piacentini,
Rino Levi, Daniele Calabi, Lina Bo Bardi e Giancarlo Palanti, cujas construções refletem
as tendências por que passou a arquitetura paulistana.
Na verdade a grande influência italiana foi mesmo marcante naquele período do final
do século XIX e início do século XX, onde o ritmo das construções e a quantidade vertiginosa
exigida para suprir as necessidades locais provocaram a afirmação de um estilo. Foi assim
que o neoclassicismo se implantou definitivamente na identidade paulistana, suplantando
qualquer outra tendência em evolução ou em formação naquele momento. Mesmo a linha
barroca da influência colonizadora não pode sustentar a continuidade de um estilo local.
Assim, a expressão neoclássica sufocou qualquer influência que pudesse ter expressado com
maior exatidão a organização social, as necessidades climáticas ou mesmo a operosidade
artística já existentes no país. O grande número das construções originadas no estrangeiro,
sobretudo na Itália, é que conduziu o imaginário e a identidade de São Paulo, sendo capaz de
se firmar como um estilo característico e marcante, cuja influência e sentida até o presente.
Ramos de Azevedo e Prestes Maia na formação da identidade do centro de
São Paulo
Mesmo sendo cuidadoso com a consideração que se fará aos bens culturais arquitetônicos, é impossível não registrar aqui uma ressalva importante. Ao apontar apenas as
grandes obras e seus autores diretos está se deixando de fazer referência explícita a todos
aqueles anônimos que foram compulsoriamente submetidos ao trabalho na realização destas
obras. Não se resgata a memória dos operários da construção, dos artífices que estiveram
presentes em todo o processo e que foram, diretamente responsáveis pela produção material da obra que representará o trabalho alienado. Entretanto, se tem a plena consciência
de que a cidade foi produzida por estes trabalhadores, submetidos às relações sociais que
lhes conferia apenas o caráter subsidiário no processo e que, por este fato mesmo, retrata
a própria barbárie que representa a dominação de uma classe sobre outra na sociedade.
Ao se exaltar os grandes mitos, os grandes engenheiros e arquitetos que construíram São
Paulo não se quer deixar de fazer uma importante alusão aos trabalhadores explorados na
construção da cidade, trabalhadores das obras que edificaram os prédios e monumentos que
representam as idéias e a vontade dos dominantes. Ao lado desta São Paulo monumental
que ficou registrada nas obras arquitetônicas preservadas existiu também uma outra, com
menos glamour , com menos imponência. No entanto é preciso deixar claro que estas duas
faces da sociedade são necessariamente complementares e que foi justamente a existência
dos pequenos industriais, comerciantes e trabalhadores que garantiu uma acumulação que
tornou possível aos dominantes a construção da sua cidade.
O centro histórico que sobrevive na memória e na representação simbólica de São
Paulo é, na verdade, um resultado da segregação sócio-espacial que ocorre na cidade. A
permanência deste centro como representativo da memória da cidade, em detrimento de
outros lugares de memória, torna a imagem do centro uma idéia universal e abstrata da pró-
160
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
pria cidade e seus valores. A imagem dos demais lugares sucumbe enquanto representação
da imagem da cidade, pois prevalece o centro como a referência oficial da cidade. Trata-se,
pois, de contar uma história dos vencedores, não como opção única e obrigatória, mas sim
como explicação bastante e suficiente para demonstrar a lógica da produção do espaço pela
ótica dominante. Do conhecimento de seus meandros é que pode brotar a possibilidade de
entendimento para a construção de um outro futuro.
O caráter do centro de São Paulo e sua identidade foram sendo construídos paulatinamente ao longo do tempo. No entanto, é inegável a força que alguns elementos inseridos
na paisagem exerceram na composição desta identidade. É claro que se está levando em
conta a advertência de Santos (1986):
O espaço não pode ser estudado como se os objetos materiais que formam
a paisagem trouxessem neles mesmos sua própria explicação. Isso seria
adotar uma metodologia puramente formal, espacista, ignorando os processos que ocasionaram as formas. [...] As formas em si mesmas, isto é, os
objetos geográficos, deixaram de ter um papel exclusivamente funcional.
As coisas nascem já prenhes de simbolismo, de representatividade, de
uma intencionalidade destinadas a impor a idéia de um conteúdo e de um
valor que, em realidade, eles não têm. Seu significado é deformado pela
sua aparência (SANTOS, 1986, p.40-1).
De qualquer modo, a imagem pública de uma cidade, que ajuda a construir a sua
identidade, se estabelece a partir dos elementos físicos existentes. Não se está aqui aderindo,
de pleno, aos pressupostos da Escola de Chicago, ainda que se faça referência à importância dos elementos considerados por Lynch (1960), sobretudo aqueles aos quais chamou de
elementos marcantes, e também as vias, os limites, os bairros e os cruzamentos.
Na configuração do centro de São Paulo, assumimos como importante o papel exercido por duas ordens de fatores: o plano viário e as formas da arquitetura. No primeiro caso,
porque as modificações preconizadas para o centro, de algum modo, sempre levam em conta
a necessidade de chegar ao centro, circular pelo centro e conectar o centro com novas áreas
urbanizadas. No segundo caso, porque a representação simbólica associada aos elementos
marcantes da paisagem arquitetônica do centro são fundamentais para a formação da imagem
do centro. Estes elementos são únicos e capazes de ensejar sua própria revalorização, como
forma de garantir a preservação da memória e a capacidade de fazer emergir, da evocação
de sua representação simbólica, formas próprias de apropriação do espaço urbano.
O centro sempre foi profundamente alterado pelas transformações observadas em
cada novo plano do sistema viário. Esquematicamente, pode-se afirmar que a lógica da
circulação na cidade começa a ser alterada em 1911, a partir da articulação do centro com
as outras áreas da cidade, como se contempla no “Diagrama da Rede Geral de Viação”,
produzido por Victor da Silva, para a Diretoria de Obras do município. O diagrama era
composto por um conjunto de ligações viárias que partiam radialmente do triângulo central
na direção dos novos bairros que se formavam, como explica Grostein (1994). Atua ainda
no papel desenvolvido durante as primeiras décadas do século, qual seja, o de criar um
centro e estruturar a cidade.
Foi em 1929, na gestão do prefeito José Pires do Rio, que o engenheiro Francisco
Prestes Maia concebeu um Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo. Retomava as
Ambientes
estudos de Geografia
161
idéias de Ulhoa Cintra, apresentadas em 1924, de formar um Perímetro de Irradiação, ou
seja, um conjunto de vias que permitisse circundar o centro novo e velho. O cruzamento do
centro seria evitado pelas avenidas de irradiação. Os anos 40 representaram o período de
construção deste plano, que consolidava uma estrutura urbana radiocêntrica. Porto (1992,
p.147), afirma que em 1942 o trecho inicial do Perímetro de Irradiação, que é a avenida
Ipiranga, já está concluído2.
Será em 1945, quando Prestes Maia é o prefeito de São Paulo, que se colocará em
prática o “Sistema Y”, introduzido pelo próprio Prestes Maia a partir de inovações no Plano
de Avenidas. O conceito de ligação diametral foi introduzido no plano original, preconizando
a travessia do centro por um “Y”, formado pelas avenidas Anhangabaú superior (atual 9 de
Julho), Itororó (agora, 23 de Maio) e Anhangabaú inferior (hoje, avenida Prestes Maia), que
atravessavam o centro no sentido norte-sul estabelecendo diametralmente a ligação entre as
margens do rio Tietê e do rio Pinheiros. As avenidas planejadas por Prestes Maia criaram
espaços novos no centro, eram amplas e arborizadas. Permitiram a instalação de edifícios
residenciais em áreas agradáveis, escritórios novos e amplos que vieram a modernizar o
uso e a ocupação do centro.3
Pouco tempo depois de concluído o perímetro de irradiação o crescimento observado no volume do tráfego de carros e ônibus demandava modificações novamente. Em
1954 define-se o traçado da Segunda Perimetral, que triplica a capacidade de circulação
de veículos. O objetivo desta avenida é o de desviar as correntes diametrais e aumentar
a velocidade de circulação. Buscava-se alterar o modelo geral de circulação, fugindo do
esquema rádiocêntrico.
Basicamente, até os anos 70, a lógica da circulação no centro foi implantada pelo
“Plano de Avenidas” e seus corolários, ou seja, as avenidas radiais, perimetrais e o cruzamento diametral do centro no vale do Anhangabaú.
Depois dos anos 70 Paulo Maluf, como Prefeito de São Paulo, em seu primeiro
mandato (1969 – 1971), retomando a idéia de ligação leste-oeste, a implanta de forma
desastrosa e agressiva para a cidade, e ao invés de impulsionar a requalificação da área
central irá produzir justamente o contrário, sua deterioração. A construção do elevado Costa
e Silva promoveu a deterioração das condições de vida da população em uma importante
área da avenida São João. Também neste período, a implantação do Metrô irá provocar a
reorganização do transporte público por ônibus e a instalação de novos terminais no centro.
Novas correntes de circulação de usuários são formadas. A Praça da Sé é transformada e os
calçadões são introduzidos para dinamizar a circulação pedestrianizada.
Atualmente, aponta Grostein (1994), o congestionamento do centro já não é o mote
das transformações exigidas. A necessidade agora é a de conjugar e equacionar os seguintes
elementos: a acessibilidade aos setores de circulação restrita, as atividades econômicas do
centro e as conquistas na melhoria da qualidade ambiental representada pelos calçadões.
2
3
Sobre a atuação de Prestes Maia, ver também: Campos Filho (1996), Prestes Maia (1942), TOLEDO (1996).
A este respeito, veja-se, LEME, M. C. S. Prestes Maia no plano de avenidas: nasce a marginal tiétê. São Paulo: Pini, 1991.
162
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Por seu turno, o caráter dado ao centro pela arquitetura dos prédios públicos e das
residências mais ilustres, terá a marca indelével de Francisco de Paula Ramos de Azevedo
e seu escritório.
Ramos de Azevedo estudou em Gand, na Bélgica, tendo cursado a Escola Especial de
Engenharia e a Academia real de Belas Artes, no período de 1875 a 1878, sob a influência
da Escola Politécnica de Paris, do ponto de vista do paradigma seguido. A escola de Gand
observava o pragmatismo, o espírito cientificista e democrático. O principal mestre desta
escola, no período em que Ramos de Azevedo estudou, foi o professor Adolphe Pauli que,
prenunciando a formação profissional de Ramos de Azevedo, mostrava em seus trabalhos
um arquiteto preocupado com os aspectos técnicos e construtivos, distributivos, de higiene
e saneamento, bem como com as questões de conforto e bem-estar, estilísticas e formais.
Carvalho (1996, 1998, 2000) aponta a trajetória profissional de Ramos de Azevedo,
informando que após o período europeu, com 28 anos, em 1879, ele se estabelece em Campinas. Naquela cidade, erige a Catedral campineira (1883), elabora os projetos da Escola
Ferreira Penteado (1880), do Matadouro Municipal (1885) e de diversas residências. Deixa
presente nas formas destas construções o conhecimento trazido da profissionalização. Diz
a autora: “nos projetos de Ramos de Azevedo não há nada que, deliberadamente, evoque a
arquitetura tradicional brasileira, ao contrário” (CARVALHO, 1998, p.8).
Em 1886 Ramos de Azevedo mudou-se para São Paulo, por influência do presidente
da província, que o convidou para construir a sede do Tesouro Nacional, que foi o primeiro
projeto do engenheiro-arquiteto em São Paulo, (construído entre 1886 e 1891). Seguiu-se
o Quartel de Polícia, na Luz (1888); a Escola Normal Caetano de Campos (1890 – 94), e
o Jardim de Infância (1896), na praça da República; a Secretaria da Agricultura (1896), no
Pátio do Colégio; a Escola Prudente de Moraes (1893 – 95); o Hospital Militar, (1893); os
Laboratórios Gerais da Politécnica (1895); o Liceu de Artes e Ofícios (1897 – 1900), na
Luz; a Escola Modelo do Brás; o Teatro Municipal de São Paulo, (1903 – 11); o edifício
Alexandre Mackenzie (Shopping Light); o prédio da agência central dos Correios (1924 –
29); e muitas residências.
Os edifícios projetados e executados pelo escritório de Ramos de Azevedo têm
características que os diferenciam das obras de outros arquitetos do período. Segundo
Carvalho (1998):
Existe um mesmo princípio norteador a dar coerência e unidade ao conjunto
da obra. Construtivamente seus edifícios utilizam a alvenaria de tijolos
armada. A organização do espaço será arranjada de acordo com o programa
em pauta, atribuindo-se importância ao estabelecimento de áreas afins e
sua separação, funcionamento e articulação (CARVALHO, 1998, p.9).
Mais adiante, continua a autora:
Se o edifício for público ou institucional, a feição guarda, invariavelmente, os traços
da arquitetura clássica, em versões que variam entre contidas e austeras até aquelas mais
livres e exuberantes, a depender de sua finalidade, respeitados cânones tais como os da
simetria, harmonia, decoro, uso de ‘ordens’e modenatura. Quando se trata de um edifício
residencial o arquiteto atua com maior liberdade formal e estilística, guardando, porém,
Ambientes
estudos de Geografia
163
profunda atenção para os aspectos de conforto, salubridade, iluminação, zoneamento das
áreas e distribuição das praças (CARVALHO, 1998, p.9).
Ramos de Azevedo não atuou sozinho. Com seu escritório, colaboraram diversos
profissionais, com e sem formação superior. Destacam-se Ricardo Severo, Domizziano
Rossi, Victor Dubugrass e Maximiliano Hehl, entre outros. Não havia uma orientação
estilístico-formal por parte do titular. Obviamente que não se pode atribuir apenas a Ramos
de Azevedo e seu escritório a responsabilidade pelas mudanças da arquitetura paulistana
no período. Ramos de Azevedo e sua visão de mundo fazem parte de um espírito de época
e de um contexto propício aos empreendimentos e empreendedores.
É novamente Carvalho (1998, p.9) quem salienta que vivia-se um momento diferenciado na história brasileira. Com o fim do Império e, mais do que isto, com o fim do trabalho
em regime escravo, tinha início o processo de imigração sistemática no país. O destaque
de São Paulo na produção do café possibilitou a incursão em novas formas da economia,
fora da base agrícola e escravocrata, possibilitando mudanças na divisão do trabalho. Na
construção civil a mão-de-obra passa a ser recrutada entre italianos, alemães, poloneses e
outros grupos de cultura diferente da portuguesa, há tanto tempo aclimatada por aqui.
As mudanças sociais também propiciavam mudanças no campo cultural e suas manifestações, que se explicitavam por intermédio das diferentes apreensões e representações
do mundo. A arquitetura proposta por Ramos de Azevedo forma um corpo de idéias em
conformidade com uma das concepções arquitetônicas européias de seu tempo. Para ele,
a “arte de construir” necessita de formas estáveis e estabelecidas. Suas obras vão recriar a
paisagem urbana de São Paulo e lhe conferem uma nova referência, um novo conjunto de
critérios para a cidade, de cunho erudito, clássico e disciplinado.
O conservadorismo e a modernidade convivem em Ramos de Azevedo, sem conflitos.
Ao propor uma arquitetura cujas características fazem parte de um repertório consagrado,
que o costume e o uso reiterado estabeleceram como manifestações artísticas em si e de
sucesso garantido, o arquiteto mostra a adesão à estabilidade que esta evoca. Promotor da
modernização de São Paulo, Ramos de Azevedo saberia conduzir sua missão em bases
seguras, não se deixando levar pelo espírito investigador das pesquisas ou aventureiro, de
tendências não consolidadas (CARVALHO, 1998, p.12).
No mesmo sentido, Souza (1998), também se expressa:
O conjunto da obra arquitetônica de Ramos de Azevedo impôs uma
nova face à cidade de São Paulo, definida pela imponência, elegância e
sobriedade de seus edifícios públicos. Ao lado dos projetos de edifícios
que definiram o padrão não só das construções públicas na cidade, como
também a própria noção de espaço público, houve certa preocupação de
Ramos de Azevedo com questões de ordem urbanística. Se, do ponto de
vista exclusivamente arquitetônico, Ramos de Azevedo se destacou como
revolucionário, do ponto de vista urbanístico ele se manteve atado a uma
concepção idílica e comunitária dos espaços públicos, um Camilo Sitte
brasileiro, talvez. (SOUZA, 1998, p.32).
A produção de Ramos de Azevedo não tinha nada de excepcional no que diz respeito
ao fato de seguir um modelo europeu, nem este fato constituía qualquer traição às suas ori-
164
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
gens nacionais. Toda a arquitetura ocidental é baseada na história, e vivíamos um momento
em que apenas recentemente os arquitetos estavam tendo uma formação de nível superior,
via de regra, no exterior. Ao retornarem, traziam consigo o “estilo” aprendido na escola e o
implantavam, até como forma de buscar igualdade em nossa incipiente emergência.
Nem por isso, no entanto, a arquitetura expressa por Ramos de Azevedo deixava de
ser a transposição das idéias sobre a organização social, organização do trabalho, enfim,
expressavam as relações sociais presentes naquele tempo. São padrões que respondem às
necessidades da modernização que se experimenta. O que havia mudado em São Paulo não
era apenas o material de construção (os tijolos substituindo a taipa de pilão). Tratou-se mesmo de uma mudança de método, que separa profundamente a cidade colonial e o entreposto
rural, da cidade industrial que está se formando. A mudança na paisagem é radical. A cidade
passa a ser marcada pelos signos deste novo tempo. A obra de Ramos de Azevedo é o retrato
perfeito desta sociedade. A monumentalidade erudita, a necessidade de afastamento para a
contemplação, a funcionalidade da obra e do entorno deixam claros os sinais preconizados
pela arquitetura utilizada.
O espaço funciona como o repositório das criações materiais que refletem o que
se passa na sociedade, mas não apenas isso, pois a permanência destas obras influencia a
formação do espaço a ser construído, por força da representação que produzem nas consciências. Assim, a influência da arquitetura e de um estilo não se extingue na obra construída.
Ultrapassa a intenção proposta pelo criador e atinge a todos pelo simbolismo presente na
forma, na estrutura e na função.
Conclusão: centro histórico e conflito
O crescimento das cidades, de um modo geral, ocorreu de maneira avassaladora
desde a industrialização fazendo com que o tecido urbano fosse sendo redesenhado de uma
maneira tão rápida que se tornou difícil manter intactas muitas áreas com valor histórico,
cultural, artístico ou arquitetônico em muitos lugares. A necessidade de produzir novos
espaços para moradia, para comércio, serviços e indústria se aliou à ganância para a obtenção de lucro, fazendo com que toda a área urbana passasse a ser objeto de disputa. O
centro histórico não escapou ileso a esta sanha insaciável dos novos momentos sociais e
econômicos experimentados, o quadro que se desenhou desde logo foi a contraposição do
desejo de preservação dos lugares históricos com a intervenção de caráter modernizador da
cidade. Tudo isto é próprio da dinâmica da cidade que faz com que a reorganização interna
permanente do espaço seja uma necessidade sempre presente. Sempre que surge uma nova
ordem econômica é necessária uma nova ordem espacial que lhe seja correlata e, sob esta
argumentação, se busca a transformação da cidade existente por intermédio da transformação
ou substituição dos edifícios. Assim se coloca o problema do conflito existente na cidade
que contrapõe o centro histórico, da cidade existente e plasmada, contra as intervenções
clamadas pelas mudanças. O espaço resultado deste embate é o fruto das relações sociais
de produção que se verificam na sociedade em um dado momento, fazendo valer ora um
ora outro argumento, produzindo uma cidade que será a resultante deste sistema de forças.
Ambientes
estudos de Geografia
165
Com a finalidade de estabelecer parâmetros para este conflito de interesses existe a
imposição da norma legal. Pode-se dizer que em certo sentido toda a regulamentação urbanística visa justamente ajustar o embate entre estes dois opostos. A legislação que regulamenta
a produção do espaço urbano não faz mais do que permitir a efetivação da adequação do
espaço às novas realidades econômicas e sociais que surgem na sociedade. Daí a importância
de que as leis reguladoras destes embates sejam elaboradas depois de uma ampla discussão e
conscientização, sobretudo educadora, da importância do espaço preservado enquanto parte
da história de uma sociedade. Como muito bem escreveu Campesino Fernández (1984).
Un hombre sin memoria no existe, es un guiñapo fácil de manejar, uniforme e indiferenciado, sumiso. La capacidad de protesta y afirmación
del ciudadano respecto a su patrimonio reside en su bagage cultural. No
podemos negar nuestras raíces y existen múltiples razones para entender el
por qué deliberadamente se pretende crear una sociedad sin memoria, sin
identidad, sin personalidad (CAMPESINO FERNÁNDEZ, 1984, p.52).4
A alusão do Autor é endereçada diretamente às classes dominantes que não exitam
em mascarar as históricas reminiscências do povo que remetem à sua própria identidade,
de maneira a produzir uma sociedade sem apego ao seu passado, sem história e sem causas
para lutar. Seria conveniente se o espaço não fosse ele próprio portador destas lembranças
que em muitos casos remetem o presente rarefeito a um passado comum, capaz de identificar
as pessoas como cidadãos que caminham na mesma direção.
O patrimônio histórico não pode ser reduzido a um monumentalismo sem sentido.
Sua real e verdadeira importância está na capacidade histórica e identitária que possui e,
portanto, o centro histórico tem que ser visto como algo mais do que simplesmente uma
obra de arquitetura singular e isolado. Até mesmo porque existe também importância na
obra anônima que não se filia a uma determinada escola ou padrão, mas que igualmente
tem valor por atestar sua integração econômica e social e compor no conjunto a cidade.
Ao analisar o caso espanhol Trotiño Vinuesa (1992) aponta um movimento na evolução das idéias sobre a intervenção urbana que, até certo ponto, pode ser transposto para uma
análise universal. O Autor identifica uma espécie de «movimento pendular» das idéias, que
se verifica ou em direção a valorização da dimensão histórica ou das formas de intervenção,
sendo que este movimento pode ser entendido a partir da evolução do pensamento científico
e das mudanças sociais e culturais. O Autor atenta para o detalhe de que a conservação de
um centro histórico significa o reconhecimento da existência de determinadas constantes
morfológicas, tipológicas e estruturais no tecido urbano e que isto justifica a criação de
instrumentos e programas de atuação capazes de proteger ou reconstruir a relação original
existentes entre a população e o cenário físico, ou dito de outro modo, entre as exigências
sociais e econômicas, que mudam constantemente, e o ambiente construído (TROTIÑO
VINUESA, 1992, p.30-).
Hoje é possível se ter a certeza de uma evolução das idéias acerca da valorização
dos centros históricos que ultrapassou a consideração de singularidades arquitetônicas e
avançou em direção às dimensões históricas, culturais, históricas e simbólicas do espaço.
A consideração que valoriza apenas as visões «museísticas» do espaço está fadada a ver
triunfar apenas o monumentalismo de obras desprovidas de sentido, motivo pelo qual se
deve buscar uma concepção de valorização que leve em conta o centro histórico como uma
166
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
«realidade urbana viva e dinâmica que tem funções e significados específicos no marco da
estrutura atual da cidade» (TROTIÑO VINUESA, 1992, p.39). O centro histórico constitui
verdadeiramente um espaço simbólico onde se pode identificar e diferenciar as cidades pois
guarda a memória coletiva, conta a história de uma sociedade e o espaço por ela produzido.
Diante do inegável caráter monofuncional que caracteriza a maioria das centralidades
existentes na cidade fora do centro, uma das características mais importantes do centro é
justamente o caráter multifuncional que consegue manter. No centro convivem as atividades
residenciais com as comerciais, religiosas, administrativas e tantas outras que existem na
vida urbana. Ainda que do ponto de vista econômico possa existir uma perda do centro em
relação à outras formas de centralidade não se pode deixar de reconhecer a grande riqueza
que existe na multifuncionalidade associada ao centro.
Deste modo o centro da cidade é considerado como um marco importante para a
construção da própria cidadania, da identidade e historicidade da sociedade. Sendo assim,
as políticas que propõem alguma forma de revalorização do centro se utilizam em grande
medida do reforço desta dimensão cultural e simbólica existente. Diante da tensão permanente que existe entre as mudanças sociais e os processos de adaptação da estrutura formal
da cidade é preciso conduzir a dinâmica urbana de forma a tornar possível a captação das
mudanças sem a destruição pura e simples do passado. No mesmo sentido, é preciso que os
defensores do centro não façam desta luta uma luta isolada, pois é importante que conduzam
esta busca como parte integrante de um processo que busca a recuperação geral da cidade
e a diminuição das injustiças existentes.
Ainda seguindo Trotiño Vinuesa (1992, p.44) se verifica que o Autor aponta alguns
suportes nos quais se embasar para realizar uma análise geográfica dos centros históricos.
O suporte metodológico deve observar os seguintes pilares: a) perspectiva histórica, com o
fim de interpretar a dinâmica do centro, permitindo a análise das transformações necessárias;
b) visão dinâmica da realidade urbana, que contemple a dimensão espacial dos processos
econômicos e sociais; c) valorização da herança histórica e cultural da cidade do passado,
que permita o entendimento da cidade enquanto memória coletiva e possibilite a adoção de
políticas adequadas ao presente e respeitosas do passado; d) consideração do centro histórico
como uma realidade viva e parte integrante da cidade atual, onde se verifique a ocorrência
das rupturas e dos equilíbrios das estruturas morfológicas, sociais e econômicas..
De qualquer forma o conflito não se resolve com facilidade, ainda mais porque não
aparece de forma explícita na sociedade. Os dominantes se utilizam de artifícios os mais
diversos para fazer com que suas ações não denunciem o real interesse que têm. A revalorização do centro aparece sempre como um movimento de defesa e proteção do patrimônio, e
muito bem se adecua ao discurso que se contrapõe às mudanças que alteram o tecido urbano
comprometendo sua historicidade. No entanto é preciso reconhecer que o uso ideológico
deste argumento, que faz parecer que a preservação do centro histórico é um bem universal,
para toda a sociedade,esconde interesses particulares, de uma classe dominante. Não se
quer com isto denunciar toda a tentativa de preservação do patrimônio histórico como uma
atitude que interessa somente à classe dominante. O que se quer é propiciar exatamente o
contrário: que a revalorização do centro histórico possa ser apropriada por todos, ou pela
grande maioria da sociedade, ou fazer, pelo menos, que este processo de conservação da
Ambientes
estudos de Geografia
167
cidade não seja usado como agente da exclusão social e espacial.
No entanto o movimento de revalorização dos preços do solo na área central pode
muito bem ser explicado pela necessidade que tem a classe dominante de se apropriar das
elevadas rendas diferenciais de localização nos centros urbanos. Só que via de regra o mais
interessante para o aproveitamento do valor imobiliário deste espaço melhor seria a construção nova sobre a terra arrasada do que o aproveitamento do velho estoque existente e
deteriorado. Em outro sentido, quando a preservação pode representar em si uma valorização
imobiliária pelo seu atributo simbólico, a mudança para usos mais competitivos e lucrativos
é uma condição necessária para a revalorização. Assim o investidor capitalista imobiliário
será favorável à conservação do patrimônio aqruitetônico enquanto lhe convier a valorização
simbólica associada ao bem. A construção de um imaginário baseado na própria história
da cidade e que tenha como substrato formal os edifícios do centro mais do que um resgate
cultural pode representar também uma valorização imobiliária. Cabe à sociedade, sobretudo
na representação que se atribui ao Estado, e não ao Governo, zelar para que a preservação
do centro histórico não se caracterize apenas por uma valorização imobiliária a partir do
aproveitamento de melhorias no patrimônio construído que, ao invés de resgatarem a imagem
e a identidade da cidade para uma apropriação da cidadania, a resgatem para a apropriação
privada de investidores. A possibilidade de apropriação privada dos investimentos, públicos
ou não, na preservação do centro só é possível pela transformação da imagem da cidade
em uma mercadoria. A imagem do centro reificada é que pode ser apropriada privadamente
pelo lucro obtido na valorização imobiliária.
Campesino Fernández (1984) também conclui que a mudança de usos do centro que
faz surgir uma nova relação entre os aspectos formais-funcionais e residenciais é causa de
valorização do centro. Porcessa-se uma transformação da estrutura econômica dos centros
a partir da apropriação elitista dos espaços mais valorizados. O processo é indisfarssável:
Si los cascos antiguos poseen declaración monumental la intervención
reviste estrategias más civilizadas y culturalistas, reutilizando edificios
catalogados como residencia de lujo, apartamentos o ‘casas antiguas’
para sectores sociales de rentas elevadas, estudios o gabinetes de trabajo
de profesionales del terciario superior o cuaternario (CAMPESINO FERNÁNDEZ, 1984, p.57).4
O que se verifica mais comumente é que, dada a descaracterização funcional do
centro original, na atualidade o centro é de todos, menos dos residentes. Concluindo, ainda
com Campesino Fernández (1984, p.58), se pode verificar que sua análise segue também
esta linha de raciocínio, uma vez que reconhece que após um período de depreciação do
solo, verificado principalmente a partir dos anos 50 no caso de São Paulo, se verifica a
degradação da área. No entanto novos usos propiciados originam a renovação, como uma
postura radical de intervenção que procura eliminar os edifícios antigos construindo novas
mercadorias. Não havendo alternativa se respeita os símbolos existentes no espaço e, mais
4
“Se os centros históricos possuem declaração monumental a intervenção comporta estratégias mais civilizadas e culturalistas, reutilizando edifícios catalogados como residência de luxo, apartamentos ou casas antigas para setores sociais
de rendas elevadas, estúdios ou gabinetes de trabalho de profissionais do terciário superior ou quaternário.”.
168
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
do que isto, se procura uma valorização justamente a partir destes símbolos pela evocação
do caráter identitário e imaginário que reportam. Entretanto, a rentabilidade do processo está
apoiada na melhoria do status social da área e pressupõe, portanto, a expulsão dos residentes
indesejáveis. Será a segregação socio-espacial que irá garantir uma apropriação monopolista
do espaço central. Contrário a isso é que se preconiza para o centro uma recuperação integral, capaz de conferir ao centro seu valor de utilidade pública e não de consumo privado.
A revalorização da forma como um valor em si não resgata mais do que valores estéticos,
esvaziados de conteúdo, estes bens valem como redutos onde os valores subjetivos podem
ser ideologicamente incoporados para reverterem em uma valorização objetiva do espaço.
O centro deve estar submetido a critérios que garantam a apropriação por todos os
cidadãos, aí então não haverá a injusta apropriação do espaço, ademais se for possível conseguir a recuperação de espaços vivos e vividos. Um dos mecanismos capazes de garantir este
proceso será o controle democrático da gestão, que se apoie na divulgação de informações
que despertem a consciência e a participação.
Referências
BOBBIO, N. et al. Dicionário de política. 4. ed., , Brasília: Edunb, 1992.v.1.
BORDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CAMPESINO FERNÁNDEZ, A. J.. Los centros históricos: análisis de su problemática.
Norba Geografia, Cáceres, v. 5, p. 51-62, 1984.
CAMPOS FILHO, C. M. Prestes Maia: um globalizador em seu tempo. Arquitetura e
Urbanismo, São Paulo, n. 64, 1996.
CARVALHO, M.C.W. Arquitetura de Ramos de Azevedo. 1996. 290f. Tese (Doutorado
em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1996.
______. A arquitetura de Francisco de Paula Ramos de Azevedo. In: CIDADE, Signos de um
novo tempo. A São Paulo de Ramos de Azevedo. Revista do Departamento de Patrimônio
Histórico da Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo, ano V, n. 5, p. 4-19, 1998.
______. Ramos de Azevedo.. São Paulo: EDUSP, 2000 (Artistas brasileiros, 14).
ECO, H. A estrutura ausente. Introdução à pesquisa semiológica. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
GROSTEIN, M. D. A reconstrução permanente. In: ASSOCIAÇÃO VIVA O CENTRO. São
Paulo Centro XXI. Entre história e projeto. São Paulo: Associação Viva o Centro, 1994.
LEME, M. C. S. Prestes Maia no plano de avenidas: nasce a marginal tietê. São Paulo:
Pini, 1991.
LEMOS, C.A.C. Arquitetura brasileira. São Paulo: Melhoramentos; Edusp, 1979.
______. Ecletismo em São Paulo. In: FABRIS, A.. Ecletismo na arquitetura brasileira.
São Paulo: Nobel / Edusp, 1987.
Ambientes
estudos de Geografia
169
LYNCH, K. The image of the city. Massachusets: MIT, 1960.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989
MICELI, S. A força do sentido. In: BORDIEU, P. O A economia das trocas simbólicas. 3.
ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
PORTO, A. R. História urbanística da cidade de São Paulo (1554 a 1988).São Paulo:
Carthago & Forte, 1992.
PRESTES MAIA, F. Os melhoramentos de São Paulo. São Paulo: Gráfica da Prefeitura,
1942. (palestra pelo engenheiro Francisco Prestes Maia, prefeito municipal, por ocasião da
‘Semana do Engenheiro’)
REIS FILHO, N. G. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1997
SALMONI, A.; DEBENEDETTI, E. Arquitetura italiana em São Paulo. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
SOUZA, L. A. F. O processo de urbanização de São Paulo e os projetos de edificações de
Ramos de Azevedo. Revista do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria
Municipal de Cultura, São Paulo, ano 5, n.5, p. 32, 1998.
TOLEDO, B. L. de Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo.
São Paulo: Empresa das Artes, 1996.
TROTIÑO VINUESA, Miguel Angel. Cascos antiguos y centros históricos: problemas,
políticas y dinámica urbana. Madrid: MOPT, 1992.
A CIDADE: O ESPAÇO, O TEMPO E O LAZER1
Eliane Guerreiro Rossetti PADOVANI
Introdução
Assim - dizem alguns- confirma-se a hipótese que cada pessoa tem em
mente uma cidade feita de diferenças, uma cidade sem figura e sem forma,
preenchida pelas cidades particulares. (CALVINO, 1990, p.34)
Esse trabalho é fruto de minha tese de doutorado, na qual procurei aprofundar a
discussão sobre a importância dos espaços de lazer dentro do urbano, discutindo seu uso
público e privado, bem como, as diversas conotações que a preponderância de um sobre o
outro podem acarretar nas relações sociais com o espaço, através de sua apropriação.
Como objeto de minha análise escolhi os espaços construídos para o lazer (parques
temáticos indoor e outdoor e parques aquáticos), que introduzem modelos de diversão, assim
como acontece no setor produtivo, acabando com toda a espontaneidade dos encontros entre
pessoas de diversos estratos sociais, diversas raças, credos, enfim encontro entre os diferentes.
Esses espaços não propiciam o encontro, a conversa e portanto os espaços de vivência,
seus proprietários aproveitam-se das fragilidades urbanas para veiculá-los como espaços
seguros, limpos, confortáveis e portanto atraírem os citadinos.
Mas percebemos que todo esse processo não acontece passivamente, existem as negatividades, as resistências que estão relacionadas ao espaço vivido, no qual comunidades
ainda desfrutam de momentos em que o lazer e o trabalho aparecem como instâncias que
não são se distinguem, que formam as verdadeiras relações sociais.
A cidade: o espaço, o tempo e o lazer
A cidade é o lugar privilegiado para a reprodução das relações de produção em seu
âmbito político, econômico e social; ela é produto, condição e meio para que esse processo
aconteça. Ela divide, mas ao mesmo tempo une os lugares, que se entrelaçam no contexto
da produção e reprodução.
A cidade, fruto do trabalho humano, é criação, é produto social e, portanto, historicamente produzida. Assim como outras mercadorias, é comercializada e apropriada de
maneira particular, produzindo segregação.
As relações existentes nas cidades, sem dúvida são as grandes responsáveis pelo modo
1
Tese de doutorado orientada pela Profª Drª Silvana Maria Paintaudi
172
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
de vida urbano, e os processos que nela acontecem extrapolam seus limites, pois interferem
de forma integral em todos os espaços. Por exemplo, ao criar espaços segregados impõese aos citadinos a situação de ruptura do contato, portanto da transmissão de informações,
mensagens, o que impede o desenvolvimento (qualitativo) dos indivíduos, aprisionando-os
a tempos quantitativos, cujo lema é “tempo é dinheiro”. O tempo qualitativo está ligado
ao espaço qualitativo, onde nós temos nossas ligações afetivas, onde nascemos, vivemos e
morremos, enquanto que o tempo quantitativo está ligado ao espaço quantitativo, onde tudo
é geometricamente traçado, onde o espaço é dos objetos e não dos homens2.
Com a urbanização da sociedade e a aceleração dos ritmos, não é mais a “qualidade
de vida” que interessa e sim a quantidade de vida, seu ritmo e a intensidade de suas experiências, o que dá a sensação de falta de tempo, que se prolonga nos momentos de lazer.
Geralmente, a maioria da população que é submetida ao tempo quantitativo é excluída
no espaço dos objetos, nas cidades.
A produção invade as cidades, no âmbito do econômico, vinculada ao espaço fabril,
captura o tempo e o espaço, em todas as suas dimensões, generalizando o mundo da mercadoria, transformando-os em mercadorias. Periferia, banlieue, ghetto, favela: é sempre a
mesma história de destinar o menos urbano, o mais inacessível e desqualificado dos espaços
às camadas mais populares, para evitar a convivência que ameaça valores imobiliários e
de estabilidade social. Então a cidade, dentro deste sistema, se defende dela mesma, imaginando que finalmente possam existir espaços absolutamente imunes à pobreza e isentos
de contradições e utopias de conversão final de todos os habitantes urbanos em clientes e
consumidores.
Em um primeiro momento, revela-se nas cidades a fragmentação do espaço, pois
seu acesso é regulado pelo capital, ao mesmo tempo em que ocorre a hierarquização, para
assegurar a reprodução das relações sociais de produção, que separando os espaços consegue descontextualizá-los até banalizá-los, fazendo com que a totalidade passe a ser vista
como uma grande nebulosa. A divisão acontece, para que novamente os espaços possam
ser articulados, seguindo os interesses capitalistas.
A cidade se desarticula sob pressão das prioridades de circulação, explode
em zonas monofuncionais que são separadas uma das outras no espaço e no
tempo, que têm apenas vida intermitente, e que estão quase mortas fora de
suas “praias” de atividade funcional. Deve-se programar os deslocamentos
para o centro comercial, a zona industrial, a região das escolas, o complexo
hospitalar, o parque de jogos, o centro administrativo, em função da lógica
particular a cada um deles. Pois cada um se inscreve num tempo limitador,
como também num espaço limitador. (CHESNEAUX, 1995, p.21)
Nas grandes metrópoles esse processo é mais intenso que nas cidades interioranas,
2
Cela est allé si loin que l´on a pu dire que la représentation ainsi construite a substitué “à notre monde de qualités et de
perceptions sensibles, monde dans lequel nous vivons, aimons et mourons, un autre monde : le monde de la quantité,
de la géométrie réifiée, monde dans lequel, bien qu´il y ait place pour toute chose, il n´y en a pas pour l´homme.(LAUTIER, 1997, p. 182-183)
Ambientes
estudos de Geografia
173
onde as necessidades básicas de trabalho, de consumo, de lazer e religiosas acontecem em
espaços muito próximos. A dispersão que existe nas grandes metrópoles faz com que os
bairros sejam o lugar onde as relações de significado e, conseqüentemente, de pertencimento
se processem mesmo assim, é nos bairros carentes que esse processo é mais notório, pois
além do espaço público, que permanece como lugar de encontro, o espaço privado, o bar, a
padaria, o circo, os pequenos parques de diversão permitem, graças aos valores cobrados,
o acesso dessa população. As cidades são ao mesmo tempo lugar de integração e fragmentação, como diz Roncayolo, (1990, p. 79)3:
A cidade ou o centro urbano, apresenta dois aspectos complementares: é
sede de diferenças que se refletem no ordenamento interno e separam de
maneira mais ou menos visível os grupos sociais, as funções, os usos do
solo, é também sede de reunião, de convergências que dominam e anulam,
enquanto seja possível, o efeito da distância.
As metrópoles possuem, desta forma, ritmos diversos e dialéticos. Os bairros, principalmente os mais carentes, conservam os espaços públicos e privados, em alguns casos,
como áreas de diversão, do lúdico. Não podemos, mesmo assim, generalizar essa perspectiva,
pois em vários bairros tanto o espaço público quanto o privado são de difícil acesso, seja
pela insegurança, seja em decorrência da questão financeira. Embora com valores mais
baixos o preço pago pelas diversões atua como um obstáculo.
Os bairros não são unidades desvinculadas do ritmo das cidades, estão ligados a elas
e devem ser avaliados neste contexto. Assim, os espaços de lazer, sem dúvida, fazem parte
do conjunto de potencialidades desses espaços, mas para se tornarem realidade devem ser
conquistados, como diz Damiani, (1997, p.47):
O lazer é, também, uma conquista. Nos espaços periféricos, mais populares, o caráter de conquista dos lugares de lazer é evidente. Dramática
e coletivamente eles são conquistados, sendo expressões da identidade
irredutível dos espaços empobrecidos, da ação solidária de homens, mulheres e, mesmo, das crianças- as ruas fechadas para a prática de esportes,
os bares clandestinos e os campos de futebol nos conjuntos habitacionais
programados, sem sua presença, as praças conquistadas, etc.
A conquista do espaço denota um processo de resistência da sociedade que procura
unir os espaços de seu cotidiano, aqueles com os quais estabelece uma relação de pertencimento. Contudo, esse processo supera muitas vezes a escala do vivido, para acontecer
na escala das redes, que une os espaços segundo outros interesses que não estão ligados à
comunidade do lugar, ao seu espaço e tempo da vida.
As redes que se formam, apesar da dispersão no espaço unem os diversos momentos
do cotidiano dos indivíduos, sendo responsáveis segundo Roncayolo (1990), pelo “metabolismo urbano”4. Unem o tempo de trabalho, o tempo da vida privada, o tempo livre, e
são elas que recebem toda a codificação do mundial, transferindo para os lugares que deco3
La ciudad o el centro urbano presenta aspectos complementarios: es sede de diferencias que se reflejan en el ordenamiento
interno y separan de manera más o menos visible los grupos sociales, las funciones, los usos del suelo; es también sede
de reunión, de convergências que dominan y anulan, en quanto sea posible, los efectos de la distancia.(RONCAYOLO,
1990, p. 79)
174
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
dificam as informações, segundo seu momento de produção e reprodução. Neste sentido,
observamos mudanças nítidas nos espaços, com ritmos diferentes, formando nas cidades,
sob a aparência da reunião, uma desintegração e uma confusão “babélicas”5.
Os ritmos urbanos que outrora acionavam a reprodução social, econômica e política,
eram guiados pelos processos fabris; hoje passam por uma alteração, em que o tempo e o
espaço são capturados pela reprodução das relações de produção em tempo integral, seja
no trabalho, seja no tempo livre ou no tempo de lazer, que não deixam de ser administrados
pela rede do capital.
O capitalismo não subordinou apenas a si próprio, setores exteriores e anteriores: produziu setores novos transformando o que preexistia, revolvendo
de cabo a rabo as organizações e as instituições correspondentes. É o que se
passa com a “arte”, com o saber, com os “lazeres” com a realidade urbana
e a realidade quotidiana. Este vasto processo, como sempre, reveste-se de
aparências e mascara-se com ideologias. (LEFEBVRE,1973, p.97)
A sociedade pós-industrial seria, na verdade, a sociedade urbana, a sociedade burocrática de consumo dirigido (LEFEBVRE, 1970, p.8), a qual cria a propagação de valores
e formas de consumo típicas das cidades, e ao estender esses valores ao espaço como um
todo, gera a sociedade urbana.
O lazer na sociedade moderna também muda de sentido, de atividade
espontânea, busca o original como parte do cotidiano, passa a ser cooptado pelo desenvolvimento da sociedade de consumo que tudo que toca
transforma em mercadoria, tornando o homem elemento passivo. Tal fato
significa que o lazer se torna uma nova necessidade. (CARLOS, 2001, p.25)
Para tanto, deve acontecer e está acontecendo uma mudança cultural, mexendo com
o modo de vida, com os valores. A necessidade de reprodução do capital, que produz o espaço e as relações sociais e culturais intrínsecas a ele, cria o consumo desses novos espaços.
A necessidade de espaços privados de lazer é produzida pelo sistema, que pretere o
espaço público6. Os espaços de lazer materializam as contradições existentes entre as classes
sociais, visto que esses espaços são hierarquizados pela divisão de renda, principalmente
quando os mesmos deixam de ser públicos, para se tornarem privados.
Segundo Martins (1998, p. 659-726), nas diversas classes sociais os limites entre
Il n´y aurait pas de système “urbain” de réseaux techniques pour supporter les échanges de produits, de personnes,
d´informations et de signes- tout ce qui constitue le métabolisme urbain. (RONCAYOLO, 1990, p. 241)
5
Sucede, sin embargo, que llevando al límite la ilisión y la aprencia, esta instituición quiere hacerse cargo de la totalidad,
cuando lo que hace es alentar las separaciones y solo las reúne en una confusión babélica. (LEFEBVRE, 1970, p. 69)
4
Ambientes
estudos de Geografia
175
o público e o privado nunca foram os mesmos, ou seja, os ricos sempre contaram com o
domínio de sua privacidade, tanto no que se refere ao espaço intra, como extra muros, enquanto que para os pobres o privado tinha uma conotação bastante restrita e a casa muitas
vezes tornava-se a continuação da rua.
Essa relação permanece até hoje, com algumas transformações. As classes de maior
poder aquisitivo moram nas grandes cidades em condomínios fechados (horizontais e verticais). Esses espaços permitem aos moradores a ilusão de solidificar relações mais solidárias
com seus vizinhos, os quais têm os mesmos padrões de vida e consumo que o seu. Porém, os
moradores também se preocupam em proteger o seu espaço privado, construindo fortalezas
que permitem o contato com vizinhos desde que esse seja previamente acordado. Segundo
Carlos (1996, p.171), os condomínios fechados, bem como os bairros mais ricos, tentam
resgatar a identidade entre os moradores, em um processo artificial.
Nesses espaços existem duas atitudes. De um lado há a preocupação de
se resgatar formas de vida tradicionais, chamadas de “mais humanas” por
seus moradores, que privilegiam o encontro e a construção de um lugar
de vida diferenciado; por isso, a preocupação de criação de uma comunidade solidária ligada ao verde e à natureza. De outro lado há aqueles
que se mudam para esses locais e a primeira coisa que fazem é erguer
muros altíssimos, são os chamados “intramuros” que se fecham em suas
conchas, altamente protegidos tanto dos possíveis ladrões como de seus
vizinhos. Reproduzem na “periferia rica” o mesmo comportamento que
existe nos bairros centrais, pontuados por luxuosos apartamentos. Isto é
não-vizinhança; estão abertos apenas a alguns amigos que desfrutam de
sua confiança. (CARLOS, 1996, p. 71)
Em decorrência da apropriação da terra, os menos abastados têm nas cidades os piores
espaços. Para eles a rua não é apenas o lugar do trabalho, da circulação, mas em algumas
cidades e bairros das grandes metrópoles ela também tem a função lúdica da festa, dos jogos,
procissões, desfiles, entre outras atividades, como diz Gaviria (1971, p.142). Nestes bairros
o contato entre os vizinhos é baseado nos encontros espontâneos, que podem acontecer a
qualquer momento, pois independem de regras rigidamente firmadas.
Nas grandes cidades, na maior parte de seus bairros, como escreve Chesneaux (1995,
p. 26), que manifesta opinião semelhante a Jacobs, as ruas passaram a ser lugares vazios de
6
Nossa pesquisa tornou mostrou uma certa nostalgia da população com relação às praças, mas quando realmente elas saem
dos projetos para se tornarem espaços reais, nas grandes metrópoles, seu uso efetivo pode não ser dos mais consideráveis. Isso talvez se deva à forma como são resolvidas e construídas, como pode ser constatado em Jacobs (2000, p. 14):
“No East Harlem de Nova York há um conjunto habitacional com um gramado retangular bem destacado que se tornou
alvo d ira dos moradores. Uma assistente social que está sempre no conjunto ficou abismada com o número de vezes que
o assunto do gramado veio à baila, em geral gratuitamente, pelo que ela podia perceber, e com a intensidade com que os
moradores o detestavam e exigiam que fosse retirado. Quando ela perguntava qual a causa disso, a resposta comum era:
‘Para que serve?’, ou ‘Quem foi que pediu o gramado?’ Por fim, certo dia uma moradora mais bem articulada que os
outros disse o seguinte: ‘Ninguém se interessou em saber o que queríamos quando construíram este lugar. Eles demoliram
nossas casas e nos puseram aqui e puseram nossos amigos em outro lugar. Perto daqui não há um único lugar para tomar
um café, ou comprar um jornal, ou pedir emprestado alguns trocados. Ninguém se importou com o que precisávamos.
Mas os poderosos nos dizem: ‘Que maravilha! Agora os pobres têm de tudo!’”
176
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
identidade, espaços reivindicados, mas pouco aproveitados, pois não são utilizados como
deveriam, tornando-se até abandonados, fazendo com que os momentos de encontro coletivo
se tornem raros, muitas vezes virtuais.
As cidades sujeitas ao processo de especulação imobiliária, que impulsiona sua reconstrução contínua, e expulsa seus “usadores”, transformando espaços de vivência, fazem
com que muitas praças, parques e ruas percam o significado, já que a vizinhança não tem
com eles a relação de pertencimento, pois estão constantemente se mudando. O processo
torna-se então argumento do poder público, que não consegue absorver as contradições e
significados, recorrendo ao discurso da não utilização desses espaços, apesar dos pedidos
feitos pela população.
As ruas deveriam ser locais de contato entre a privacidade e a sociabilidade; contudo,
nas grandes metrópoles elas se transformaram em espaços de fluxo, onde nem uma coisa
nem outra acontece. Ainda existem em determinados bairros, nas cidades pequenas, as ruas
que podem ser consideradas seguras, onde seus moradores atuam como co-proprietários das
mesmas. Nesse caso, a identidade com o espaço cria uma espécie de monitoramento, no
qual os moradores têm a função de controle e vigilância e a qualquer problema que acontece
eles estão a postos para resolvê-lo, ou ao menos participar dele. Mas, a abrangência dessa
participação não aparece em todos os espaços, nem no passado, nem atualmente, como foi
notado por Jacobs (2000, p. 86)
Sem dúvida, nem todas as calçadas têm essa vigilância, e esse é um dos
problemas urbanos que o planejamento deveria corrigir. Calçadas pouco
usadas não oferecem vigilância adequada para a educação das crianças.
Nas grandes cidades, nos grandes bairros, ou nos grandes condomínios verticais e
horizontais, as pessoas não se conhecem, não possuem grandes vínculos com o espaço, que
se apresenta como um grande leque de opções, de oportunidades. As pessoas circulam por
este espaço, mas não estabelecem compromissos, além dos relacionados com o consumo
no espaço e do espaço, rompendo assim com o processo de co-propriedade, já que o espaço
deixa de ser o espaço do vivido. A reconstrução constante da cidade faz com que o nível
do vivido não consiga, mesmo que isso fosse possível alcançar as mudanças que ocorrem
na escala do econômico: elas sempre se processam mais rapidamente, ocasionando a fragmentação das cidades, e, mais ainda dilacerando, o pertencer ao espaço.
Nesse ritmo frenético da composição da cidade, o movimento de construção e reconstrução constante dá origem à justaposição, sobreposição, aproximação e distanciamento,
ruptura e continuidade, nos diversos momentos. Mas, quando as formas dão indícios de
hegemonia de um determinado momento, se avaliarmos o movimento integralmente, perceberemos as negatividades relacionadas aos resíduos referentes ao espaço do vivido. O
espaço da festa programada por comunidades de um bairro, que resistem às mudanças da
metrópole, é um exemplo, mesmo que tenha absorvido algumas transformações, pode ser
considerado como negatividade do processo.
A existência da festa ajuda a relativizar a massacrante tendência da sociedade à constituição do homogêneo enquanto estratégia de poder ou
vinculada à tendência de se ignorarem os resíduos que emergem juntamente
no cotidiano programado, onde é possível pensar que trabalho/festa não se
Ambientes
estudos de Geografia
177
separam, que o lazer, enquanto possibilidade de manifestação-realização
de desejos, relativiza o lazer programado. (CARLOS, 2000, p.73)
Quando falamos das transformações sofridas em relação à concepção original dessas
festas, estamos relacionando principalmente a privatização de alguns espaços dentro delas,
ou seja, a rua com suas barracas é de livre acesso ao público, mas existem também os lugares com mesas, onde se entra mediante a sua compra ou de um ingresso. Isso diferencia o
público freqüentador, que teme ficar desprotegido nos lugares realmente públicos.
Os espaços tornam-se perigosos para determinadas classes sociais, as relações sociais
de produção diferenciam os indivíduos, criando desigualdades e a necessidade de espaços
privados e específicos para o lazer.
O espaço passa a ser produzido e consumido para o lazer, que materializa a divisão social do trabalho, não a restringindo à escala habitacional , mas prolongando-se nos
espaços de consumo destinados ao tempo livre. Cria-se a necessidade que é absorvida pela
classe média de sair no final de semana, sair do espaço cotidiano, para buscar o heterogêneo
estabelecido, sem se quebrar o ritmo frenético dos grandes centros urbanos, procurando
desmaterializar o real nos hiperespaços.
As grandes metrópoles se tornam para a classe média e média alta lugar de passagem,
em conseqüência da deterioração das condições ambientais, sociais, culturais7, aumento da
violência, entre outros aspectos. Elas compartilham a necessidade de viver nas cidades, de
estar incluídas na movimentação urbana, ao mesmo tempo, que querem evitar os inconvenientes gerados por ela. As saídas não podem ser muito prolongadas, tendo em vista que as
obrigações laborais não permitem grandes afastamentos, por isso o ritmo do final de semana,
um período de quarenta e oito horas, deve servir para múltiplos fins e assim ser considerado
como tempo aproveitado com intensidade.
Existe por parte desses indivíduos uma procura por lugares diferentes, ou ao menos
que pareçam diferentes: a casa de campo ou na praia, a diversão e o consumo de espaços
construídos especificamente para o consumo do lazer - parques de diversão, temáticos e
aquáticos.
Mas existem ainda os espaços residuais, aqueles que resistem ao domínio do movimento hegemônico atual. Assim não podemos comparar a praça e outros espaços públicos,
que apesar de projetados principalmente para o lazer se transformam em espaços de representação8, espaços do vivido, pelo menos enquanto a reconstrução urbana não interfere no
processo, com os espaços privados de lazer.
Os grandes espaços de diversão, entre os quais podemos destacar os parques de diversão, temáticos (indoor e outdoor) e aquáticos, assim como outros espaços produzidos pelo
lazer, são a passagem do espaço de consumo para o consumo do espaço, como diz Lefebvre:
Os espaços de lazer constituem objeto de especulações gigantescas, mal
7
Como consecuencia del automóvil y del tamaño desmesurado de la información y del número de personas acumuladas,
la ciudad comienza a deteriorarse. Sigue siendo lugar de producción, informacion, decisión y acumulación de capital,
pero va perdiendo la calidad de la vida cotidiana de los que en ella residen, por lo que las classes dominanates tienden
a salirse de ella hacia zonas suburbanas más cómodas o se ausentan en períodos cada vez más prolongados de las vacaciones, puentes, “curas sanitárias”, etc. (GAVIRIA, 1971, p. 166).
178
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
controladas e frequentemente auxiliadas pelo Estado (construtor de estradas
de comunicação, aval direto ou indireto das operações financeiras, etc). O
espaço é vendido a alto preço aos citadinos expulsos da cidade pelo tédio
e pelo bulício. Férias, exílio, refúgio, este espaço reduz-se a propriedades
visuais que depressa perde. Severamente hierarquizado, vai desde os locais
para as multidões aos lugares de elite, das praias públicas ao Eden- Roc,
etc. Os lazeres entram assim na divisão social do trabalho, não só porque o
lazer permite a recuperação da força de trabalho, mas também porque passa
a haver uma indústria dos lazeres, uma vasta comercialização dos espaços
especializados, uma divisão do trabalho social projetada no território, e
que entra na planificação global. (LEFEBVRE, 1973, p. 97)
Assim como as indústrias, os poderes governamentais estão muito interessados na
atração desses empreendimentos, grandes geradores de empregos e lucro. Para tanto, suprem
suas necessidades de infra-estrutura e fecham os olhos para possíveis efeitos negativos
oriundos dos processos de apropriação privada.
A divisão social do trabalho, presente nos mais diversos lugares, configura-se no
espaço que tem suas especificidades reforçadas ou criadas, sempre usando de muito apelo
comercial, ou seja, os patrimônios naturais e culturais são super valorizados pela indústria
do lazer, sendo transformados em espetáculo para o consumo dos voyeurs culturais9. Como
diz Baudrillard (1995, p. 166), o lazer é repartido na sociedade com grandes desigualdades,
selecionando os indivíduos e distinguindo-os culturalmente.
Os espaços não possuidores de potencialidades para o lazer, para o ócio, podem
ser produzidos, seja nos pequenos parques de diversão que circulam pelos bairros e pelas
pequenas cidades, até os espaços mais especializados.
Em um momento em que a natureza e as tradições culturais se tornam elementos
raros nas cidades, os empreendedores podem reproduzi-los em espaços criados, valorizando
esses aspectos e o próprio espaço, interferindo em toda configuração urbana, que por sua
vez os determinam.
As cidades que não produzem e não mantêm seus espaços públicos impulsionam a
criação de áreas de simulação da convivência, da sociabilidade, ao mesmo tempo em que
eliminam toda forma de possível organização social para contestação.
Os lugares de centralidade, no sentido de espaços de reunião, de discussão, como diz
Roncayolo (1990, p.102), são lugares de acumulação de valores simbólicos, que se perdem na
cidade desorganizada publicamente. Os lugares produzidos passam a ser os determinadores
da centralidade, provocando um movimento contrário a tudo que está relacionado à construção da cidadania, pois a cidade desta forma se torna o acúmulo de percepções individuais.
E, os espaços de representação como campo de experimentação permitem que se exercitem habilidades, conhecimentos e interações previstas e imprevistas, constituem o teatro da vida; integram à vida por significações e sentidos.
Considerando-se o âmbito do vivido, do existencial, quer seja no domínio público como no privado, quem usa o espaço
pode também conceber. São os usadores, que conforme suas necessidades e desejos redefinem trajetos, projetos, porque
podem abstrair a forma e produzir para si, apropriando-se! Mas não fazem livremente. Fazem-no enquanto pertencentes
a uma sociedade. Fazem-no em grande medida sob coações. (SEABRA,, 2001, p.555)
9
Voyeur cultural: mera contemplação dos espaços culturais feita por pessoas, que não têm identidade com mesmos.
(MENESES, 1999, p. 97)
8
Ambientes
estudos de Geografia
179
Sem as ruas toda animação das cidades é bloqueada, contribuindo para que o movimento da vida leve mais um golpe, passando a ser lugar de transgressão, ao invés do lugar
da informação, do jogo, do encontro, da identidade. Nos bairros periféricos a própria infraestrutura das ruas (SECCO; SQUEFF, 2001, p.86-93) faz com que o tráfico de veículos
seja dificultado, o que poderia levar a sua ocupação efetiva pela população. Contudo, a
segurança é um fator limitador.
As gerações passadas tinham no espaço urbano um eixo de referência mais duradouro,
enquanto que nos últimos tempos o ritmo que se estabelece em relação às mudanças bloqueia
a relação de identidade. O permanente estágio de construção, símbolo do progresso das
grandes cidades, permite poucas opções de convívio para os citadinos.
As ruas, refúgio do sistema de produção coletivizada e apropriação privada, lugar
onde o valor de uso realmente se sobrepõe ao valor de troca, e por isso mesmo representa um
grande problema ao sistema, têm que ser suprimidas em suas formas, funções e estruturas
iniciais e reais. Na verdade, as ruas tornam-se os espaços de fluxo dos automóveis. Aliás,
os automóveis tornam-se os grandes lideres do espaço urbano, e seu fluxo direciona toda a
vida pública das cidades. Segundo Jacobs (2000, p.6), “um número crescente de urbanistas
e projetistas acabou acreditando que, se conseguirem solucionar os problemas de trânsito,
terão solucionado o maior problema das cidades”.
A reprodução das relações sociais de produção no modo de produção capitalista
impulsiona a cidade para o esvaziamento, no que se refere à pratica social solidária. A
vida social organizada em torno de pontos de centralidade tem esses pontos reconstruídos,
em função da desintegração ocasionada pela produção do espaço mercadoria e, no âmbito
do lazer, assim como nas esferas relacionadas à moradia, revela a face excludente desses
espaços. “Quem não pode pagar pelo estádio, pela piscina, pela montanha, pelo ar puro,
pela água, fica excluído do gozo desses bens que deveriam ser públicos porque essenciais.”
(SANTOS, 1987, p.48)
O poder público se exime, cada vez mais, de uma proposta séria, no que se refere aos
espaços públicos. Esse tipo de preocupação não ocupa o rol de prioridades dos governos
justamente por não ser interessante criar espaços de convivência onde os indivíduos possam alcançar a proposta de desenvolvimento integral em seu tempo livre. Ao contrário. A
construção de espaços privados para o lazer recebe grandes estímulos, o que explica, entre
outros fatores, o aumento considerável das propostas de construções neste sentido.
O lazer enquanto esfera do cotidiano é normatizado, e o tempo livre é tempo ganho.
Portanto, para se ter tempo livre é necessário economizarmos tempo na produção, na vida
privada, no tempo imposto para circulação. O tempo do cotidiano é normatizado para a
produção e reprodução, e o indivíduo, sem ter plena consciência do que se passa, mas
inserido no sistema, revela seu aprisionamento ao tempo como objeto, pois não admite
simplesmente deixá-lo passar, tem que “gastá-lo” fazendo algo que lhe dê prazer, de preferência consumindo.
[...] as atividades que preenchem o tempo livre- o qual teoricamente se
contrapõe ao trabalho- acabam refletindo diretamente um certo ritmo do
trabalho. Além disso, no nosso sistema, a ocupação constante é um ideal
de vida, o que justificaria a necessidade de preenchimento do tempo livre
180
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
com atividades, como se esse tempo não pudesse simplesmente deixar de
ser ocupado.(PADILHA, 2000, p. 98)
Desse modo existe a obrigação de se divertir, pois só assim se justifica o “tempo
livre”, devendo estar tudo registrado nas fotografias e na compra de souvenirs, para que as
lembranças possam reforçar, perante a sociedade, o consumo e o aproveitamento do tempo
e do espaço.
Nos parques de diversão, temáticos (indoor e outdoor) e aquáticos a relação de
consumo é evidente. Tanto os filmes, as fotos, quanto os souvenirs podem ser comprados
em suas dependências, aumentando a arrecadação. Na verdade, o seu interior é um grande
centro de compras, pois estas se tornam o testemunho do conhecimento dos lugares, já que
não existe a identidade do vivido.
Criam-se as imagens do espaço que podem ser manipuladas, produzindo os símbolos do espaço, reproduzidos de acordo com os interesses individuais, na maioria das vezes
relacionados à busca de status, ou ainda, à busca para “cura” das doenças causadas pela
correria urbana; evidentemente são questionáveis os “poderes terapêuticos” desses espaços.
Com os parques temáticos, o consumo do espaço voltado ao lazer se especializa,
é programado e procura individualizar o consumidor, abastecendo-o através do consumo
dirigido, agora sobre uma temática, que visa transportar os indivíduos ao imaginário, ao
modelo de fantasia almejado. O imaginário, que era estimulado para o consumo das mercadorias, agora ele mesmo se tornou uma mercadoria. A cidade, inspiração desses lugares,
cumpre sua missão de transformar a matéria em símbolo10.
A própria cidade é um simulacro à medida que, como diz Lefebvre11, a cidade é o
ato virtual do possível que incita o impossível, conduz ao inexistente, sendo que ela própria
torna-se para os produtores do espaço o teatro da vida.
A máquina imitativa faz com que tudo seja igual à realidade, que nesses casos é
pura fantasia. Mas é importante que a fantasia não seja de todo desconhecida: os grandes
empreendimentos de consumo do espaço, atrelados a grandes marcas, contribuem para isso,
simulando a familiaridade.
Nunca o chamado tempo livre foi tão controlado, sem que o indivíduo percebesse. A
encenação é tão perfeita que, entre outras coisas, o controle também passa desapercebido.
Todo o mundo de encantamento procura desvincular o indivíduo da coletividade,
da totalidade, pretende, acima de tudo, colocá-lo como um náufrago em um mundo sem
referências, cuja única saída acontece no consumo, na mercadoria.
O espaço mercadoria tende a se homogeneizar, apagar as diferenças, contudo, como
diz Lefebvre, (HARVEY, 1989, p. 216-217), são as lutas de classe que evidenciam as diferenças e elas, ao se manifestarem reforçam a necessidade das bases espaciais. Poderíamos
ousar complementar essa análise ao adicionar o espaço do convívio, do lazer, elementos
10
11
Elle ( la ville) est une machine à transformer la matière en symboles. (DUVIGNAUD, 1997, p.14)
Ainsi la ville est-elle du “virtuel-en-acte”, du possible Qui incite de l´impossible. (LEFEBVRE, 1998, p. 109)
Ambientes
estudos de Geografia
181
importantes nesta discussão. Ao produzir os espaços de lazer e desfigurar os espaços públicos de convívio, como as praças e ruas, que passam a ser elementos complementares da
paisagem, espaços de fluxo dos carros, garante-se mais um passo em direção ao domínio
do espaço mercadoria.
As praças, ruas e parques públicos se colocam no caminho do capital, que precisa
reproduzir-se destruindo velhos espaços, para a criação de novos; é preciso refazer a cidade
todo o tempo, reproduzindo e produzindo o novo urbano. Antigos espaços passam a ser
espaços da memória expostos no museu das grandes cidades, servindo à indústria da cultura.
O velho centro é agora Centro Histórico e como tal insere-se como memória, nos circuitos da indústria da cultura e do turismo. Essa indústria encontrou “seus parceiros” na velha elite patrimonialista e no setor imobiliário
que viam, a contra gosto, os novos usos que a “sociedade de massa” estava
impondo aos velhos espaços citadinos. É por isso que, estrategicamente,
as políticas urbanas aparecem como requalificadoras daqueles espaços
e que pinçam aqui e ali “produtos-obras” da história urbana, para que,
como coisas, esses produtos sejam transfigurados em objetos começando
a integrar novos circuitos de valorização.(SEABRA, 2001, p. 550)
Ao transformar praças em estacionamentos, o poder público e o capital acabam com
a possibilidade de espaços de convívio, lugar onde era viável a discussão das diferenças
existentes no espaço urbano, constituindo-se como um obstáculo para a segregação, Seabra
(2001, p. 551) chama-os de espaços qualitativos residuais da metrópole. As praças, ruas
e parques públicos, quando desvinculados da racionalidade produtivista e relacionados
com a identidade construída pela comunidade, são os lugares onde as diferenças podem
ser debatidas. Se esse processo é bloqueado nas cidades, acaba acarretando ampliação das
contradições existentes, mascaradas pela suposta passividade.
O lazer, mais institucionalizado, o da produção e conservação de grandes
parques urbanos, por exemplo, consegue atingir diferentes camadas sociais. Esses parques não significam a anulação dessas diferenças sociais,
não produzem um encontro real entre essas camadas sociais, mas definem
diferentes usos, a partir dessas diferenças sociais. Definem múltiplos usos.
É onde a classe média se exercita e se diverte. É onde, para as camadas
mais populares, se produzem encontros de intensa significação, tempo
e espaço dos encontros de migrantes, vindos, muitas vezes, da mesma
região e dispersos no cotidiano das grandes cidades. É o lugar da paquera,
da festa. Também da festa oficial e oficializada, dos programas culturais
promovidos pelas autoridades políticas. Mas esses parques e as praças são
também lugar dos “excluídos” e de atividades ilegais: tráfico de drogas,
encontro de homossexuais e michês, lugar de repouso de mendigos, lugar de arregimentação de trabalhadores “desocupados”, potencialmente
disponíveis, portanto, momento de circuito das migrações temporárias,
etc. A significação social desses espaços é múltipla. E cada um tem uma
peculiaridade, quase irredutível. Através desses espaços, cria-se um novo
ponto de vista, que não prescinde dos outros –o das estratégias políticas
e econômicas: é o da prática espacial, que chega ao limite de recuperar
a ação e a consciência da ação individuais, como vida social, produzida
socialmente. Uma certa apropriação concreta e prática de um tempo e
espaço, em conflito com as coações. (DAMIANI, 1997, p. 50)
182
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
É a práxis do espaço socialmente construído, onde podemos encontrar proposições
que podem nos conduzir à formação de indivíduos realmente inseridos em uma comunidade.
Considerações finais
Os espaços privados de lazer, tal como os estudamos, escondem sua verdadeira face,
ou seja, correspondem ao trabalho socializado, que na maior parte das vezes impede o acesso
daqueles que os construíram. O espaço é socialmente produzido para então ser consumido de
forma privada. Esse processo faz com que o espaço se transforme em uma mercadoria, por
sinal muito rara, principalmente nas áreas metropolitanas. Neste contexto, a valorização da
mercadoria é óbvia, e não pode ser desperdiçada com usos que não lhe confiram ampliação
do valor de troca. Os espaços públicos de lazer, portanto, são encarados como uma forma
de investimento sem retorno e além do mais perigosos, pois podem proporcionar o espaço
para a participação das comunidades.
O lazer entendido como momento de encontro entre pessoas que mantêm relações
pessoais é capturado e toda sua espontaneidade é normatizada, e o espaço então passa a ser
vendido como mercadoria, pois as relações de troca suplantam o uso.
Enquanto os espaços públicos eram majoritários, as resistências e as possibilidades, no
que se refere à conquista do espaço, poderíamos dizer que eram quantitativamente maiores,
porque davam a oportunidade de se formarem grupos estáveis. A relação estabelecida com
o espaço, de identidade e pertencimento, demandava em questionamentos no que se referia
à apropriação do espaço, ampliando as chances de surgirem possibilidades e negatividades
do processo.
A partir do momento em que o espaço urbano, como espaço de concretização do
trabalho coletivo, entra como mercadoria no processo de valorização, adicionando valor às
outras mercadorias, acelera-se o processo de implosão das cidades, com sua ininterrupta
construção e reconstrução, que impede a formação das relações estáveis, e conseqüentemente
da conquista do espaço, passando então a acontecer o consumo do espaço. A implosão, a
fragmentação do espaço vivido, faz com que se opte pela uniformização como forma de
segurança, decretando o apogeu dos espaços normatizados de lazer.
O consumo do espaço implica na aceleração da modernidade, ou da suposta modernidade, já que o espaço deve conter a novidade como qualquer outra mercadoria, para que
se acelere também seu processo de circulação, diminuindo quantitativamente os espaços,
onde as possibilidades de rupturas e resistências poderiam vigorar.
Os objetos passam a ter mais valor que as relações pessoais; no caso do lazer, os
equipamentos, brinquedos, espaços são mais importantes que a convivência, que sua prática
pode proporcionar. Aliás, a convivência e a sociabilidade nos grupos pode ter maior ou menor
sucesso através da forma como os indivíduos se relacionam com a modernidade, se conseguem se estimular ou não com a adrenalina das atividades modernas do lazer normatizado,
quantas vezes as freqüentam, quantos espaços desse tipo já conhecem. Brincar nas ruas não
garante aceitação nos grupos de classe média e média alta; não conhecer nenhum dos espaços
Ambientes
estudos de Geografia
183
privados de lazer , então, é inadmissível, e as pessoas ficam constrangidas em admitir isso.
Evidentemente, não são todos que permanecem alheios às mudanças urbanas, assim
elas não se estabelecem sem conflitos, pois provocam a fragmentação do espaço, que se
torna uma mercadoria rara, vendida em pedaços, cada vez menores, e com “funções” extremamente diversificadas e especializadas, ou seja, existe o espaço da moradia, do trabalho,
do encontro, do lazer, entre outros, fazendo com que o cidadão perca a noção de conjunto.
Mas mesmo nos espaços especializados, e ao mesmo tempo fragmentados, por mais
que se procure implantar o homogêneo, convivem na área urbana os diversos tempos da
produção, como se o lugar, através da força das comunidades, assegurasse na presença de
seus referenciais no espaço, seus pontos de resistência.
Referências
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: ELFOS, 1995.
CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CARLOS, A. F.A. . O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.
______. “Novas” contradições do Espaço. In: DAMIANI, A L.; CARLOS, A. F.; SEABRA, O. C. de Lima. O espaço no fim de século a nova raridade. São Paulo: Contexto,
2001. p. 62-74.
CHESNEAUX, J. Modernidade mundo. Petrópolis: Vozes, 1995.
DAMIANI, A. L. Turismo e Lazer em espaços urbanos. In: RODRIGUES, A.B. (Org)
Turismo, modernidade, globalização. São Paulo: Hucitec, 1997. p.46-54.
DUVIGNAUD, J. Lieux. et non lieux. Paris: Galilée, 1977
GAVIRIA, M. Campo, urbe y espacio del ócio. Madrid: Siglo XXI de España Editores,
1971.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola. 1989.
JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LAUTIER, François. Espace de l´orgaization et place du sujet. In: YOUNÉS, C. ; MANGEMATIN, M. Lieux contemporains. Paris: Descartes e Cie, 1997. p. 177-199.
LEFEBVRE, H. La revolución urbana. Madrid: Gallimard, 1970.
______. A re-produção das relações sociais de produção. Porto: Publicações Escorpião,
1973.
MARTINS, J. de S. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In:
PAQUOT, Thierry. Homo urbanus: essai sur l´urbanisation du monde et des moeurs.
Paris: Du Félen., 1998.
MENESES, U. T. Os usos culturais”da cultura. Contribuição a uma abordagem crítica das
práticas e políticas culturais. In: YAZIGI, E.; CARLOS, A.F.A.; CRUZ, R. DE C. A. (Org)
184
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Turismo: espaço, paisagem e cultura. São Paulo: Hucitec, 2ª edição, 1999.
PADILHA, V. Tempo Livre e capitalismo: um par imperfeito. Campinas- SP: Alínea, 2000.
RONCAYOLO, M. La ville et ses territoires. Paris: Folio Essais, 1990.
SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Hucitec, 1987.
SEABRA, O. Carvalho de Lima. Urbanização e fragmentação: apontamentos para estudo do
bairro e da memória urbana. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA,
8. 2001. Santiago. Anais. Universidade do Chile, 2001. p.548-556.
SECCO, Alexandre, SQUEFF, Larissa. A Explosão da Periferia. Veja. São Paulo ano 34,
nº 3, p. 86-93, 24 de janeiro de 2001.
YÁZIGI, E., CARLOS, A. F. A. ; CRUZ, R. de C. A. (Org.) Turismo: espaço, paisagem
e cultura. São Paulo: Hucitec, 2º edição, 1999.
NEOPOSITIVISMO NA GEOGRAFIA BRASILEIRA:
PARAFRASEANDO O PENSAMENTO DE
SPERIDIÃO FAISSOL (1923-1995)
Dante Flávio da Costa REIS JÚNIOR
José Carlos Godoy CAMARGO
A ciência alcança sua perfeição quando começa a utilizar a matemática.
(Karl Marx)
Introdução
Está em curso nos círculos acadêmicos brasileiros a avaliação do impacto que algumas produções científicas tiveram/têm na confecção de um, por assim dizer, “Pensamento
Geográfico Brasileiro”. Para isso, tem sido priorizada a releitura de documentos textuais,
os quais colaborem para que seja divisada a relevância circunstancial de instituições e ou
indivíduos. Trata-se, em verdade, de um procedimento sistemático circunspeto; pois que
os pesquisadores necessitarão respeitar os limites de uma análise, sobretudo, de discursos
– detalhe crucial que deles exige certos cuidados e ponderações. A atenção para com a cena
histórica (eventos de caráter social e político), para com a biografia (em se tratando do exame
da obra de autores) e, especialmente, para com o conteúdo discursivo mesmo (modos de
reflexão contidos em publicações diversas) são os critérios fundamentais na empresa analítica.
Em Dissertação de Mestrado, recentemente defendida junto ao Programa de Pósgraduação em Geografia da UNESP, campus de Rio Claro, é explorada parte da produção
científica de um eminente geógrafo brasileiro. Speridião Faissol – o autor cuja obra recebeu
tratamento – merece atenção especial por ter devotado boa parte dela ao que se costuma
denominar, simplificadamente, de “Geografia Quantitativa”. Para sermos mais justos e
precisos, precisaríamos perceber esta “nova” Geografia em sentido mais amplificado, mais
implicante. A verdade é que nos anos sessenta consubstancia-se, em essência, uma Geografia claramente neopositivista; fato que subentende características adicionais (conforme
veremos a seguir). Faissol, então, veio a ser um representante, no contexto doméstico, do
movimento renovador da ciência geográfica. E é por ter assimilado, discutido e feito propagar seus pressupostos e efeitos, que ele se converte em autor de atuação merecedora de
uma pesquisa mais detida. Não duvidamos que ele foi um dos principais consolidadores de
uma Geografia Neopositivista Brasileira e esperamos que isso possa ser deduzido com certa
facilidade pelos leitores deste capítulo.
224
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Neopositivismo e reflexos na Geografia
Antes de explorarmos a produção científica de Speridião Faissol – e as implicações
epistemológicas a ela atreladas – cabe-nos qualificar (ainda que brevemente) a escola quantitativa e “teorética” da Geografia, bem como sua matriz filosófica.
O Neopositivismo é uma filosofia que (como a própria expressão sugere) vem oxigenar
a genuína doutrina positivista. É claro que ele acaba por trazer caracteres completamente
novos, destoando, de certa forma, de seu ancestral. Tratemos, então, de expor seu perfil
característico.
Podemos dizer, sem grandes riscos, que o Neopositivismo assenta-se sobre um, por
assim dizer, “tripé” (REIS JÚNIOR, 2003, p. 22); isto é, compreende, simultaneamente,
elementos antigos (herdados/mantidos da filosofia positivista), reformulados (resultantes de
aprimoramento/adaptação) e novos (configurando sua peculiaridade).
É mais ou menos consensual a idéia de que ele tenha se estruturado nas primeiras
décadas do século passado; muito em função das reuniões do chamado Círculo de Viena.
Este, composto por eminentes lógicos, matemáticos e filósofos da ciência (Hahn, Neurath,
Carnap, Wittgenstein, entre outros), interessou-se em redefinir parâmetros para estabelecer
a fronteira entre a ciência e a não-ciência. Aos seus membros parecia imprescindível livrar
o conhecimento científico de todo e qualquer vestígio de metafísica; de toda sorte de vagas
impressões, em outras palavras. Para isso, o acolhimento da linguagem matemática foi irresistível. Nada mais óbvio do que impregnar o discurso com sentenças logicamente erigidas
e passíveis de análise formal (segundo os critérios da sintaxe simbólica, está claro) para
torna-lo manipulável ou operacional. Eis, então, que já conseguimos destacar dois elementos
daquele tripé: o antigo é o monismo metodológico que se configura a partir do momento em
que uma aproximação da Matemática passa a ser amplamente preconizada (fato que termina
por expressar, indiretamente, uma aproximação analógica entre as ciências naturais – mais
afeitas à matematização – e as humanas), enquanto o reformulado (ou “antigo renovado”)
no Neopositivismo é precisamente este monismo auxiliado, agora, pela análise lógica ou
pela abstração intrínseca às Matemáticas.
Mas, como mencionamos, há ingredientes novos acrescidos à mistura filosófica.
Um deles – o qual terá traduções nas várias ciências – é o fato do Neopositivismo aceitar
o paradigma apriorista. E o curioso é que o viés apriorista foi claramente rejeitado pelo
positivismo clássico, quando este insistia em desdenhar a relevância dos juízos ou sentenças estipuladas, hipoteticamente, como pontos de partida para construções explicativas
posteriores. Se o positivismo genuíno vira as costas para o a priori, o Neopositivismo
salienta sua potencialidade explanatória. Assim, o procedimento científico neopositivista
parte do enunciado protocolar (justamente o dado apriorístico) para que, mensurando suas
propriedades e desdobrando-o em enunciados outros, possa vir a atestar a validade de uma
explanação terminal confrontando-a com aquilo que se “mediu” primeiramente.
A verdade é que essas três qualidades da doutrina dão margem a uma série de pressuposições que se estabelecem como sendo inerentes a ela (se bem que, como podemos
deduzir, em alguns aspectos, igualmente circunscritos pelo positivismo genitor). Sciacca
(1968, p. 292) nos informa sobre os valores que são caros ao Neopositivismo:
Ambientes
estudos de Geografia
225
• só descartando a metafísica alcançamos o conhecimento científico;
• o empirismo deve ser estendido a todo o domínio do pensamento;
• todas as ciências são matematizáveis;
• experiência e linguagem completam-se reciprocamente;
• só tem sentido o que é fisicamente verificável (pelo princípio do “fisicalismo” a
Física entrona-se como ciência modelo);
• proposições que não se prestem à verificação e à mensuração são destituídas de
sentido;
• a ciência não estuda leis objetivas da natureza, mas somente os dados da experiência
mediada pelos sentidos ou por instrumentos.
E o viés neopositivista vai replicar-se no domínio das disciplinas ainda órfãs de um
norte conceitual e metodológico bem sedimentado. Previsivelmente, aquelas que devotavam
atenção às questões humanas e sociais perceberam a vantagem que havia em se mirar no
próspero exemplo da Física (o principal tesouro do Neopositivismo): resultados práticos
nos quesitos estruturação e predição.
Uma Geografia Neopositivista irá começar a se delinear nos anos cinqüenta do passado século, estando esta forja muito vinculada à disseminação dos valores cientificistas. O
acúmulo de dados dizendo respeito a uma sociedade crescentemente complexa exigia arsenal
técnico capaz de dar conta dos processos de coleção e tratamento das informações. Daí que
os recursos analíticos disponibilizados pela Matemática viram-se incorporados também
pela “nova” Geografia; esta, agora, interessada em transcender as monografias paisagísticas,
revertendo o jogo a favor de uma ciência mais funcional, assentada no paradigma hipotéticodedutivo e sobre um objeto mais bem precisado: as organizações espaciais.
O sentido de ordem imerso em tais organizações, justificava a explanação por meio
das tão desejadas teorias (um primeiro vestígio neopositivista), pela via dos modelos (que
são proposições a priori – um segundo vestígio neopositivista, portanto) e com o auxílio
explanatório da análise sistêmica (que nada mais significou do que a formalização de um
rigorismo lingüístico – arrematando, assim, uma terceira herança neopositivista).
No Brasil, a manifestação da Geografia Neopositivista pode ser observada a partir do
final da década de sessenta. E são dois os núcleos que mais detidamente procuraram exercitar
os préstimos de uma ciência – desde havia uma década – comprometida com a especulação
teórica e sua funcionalidade pragmática: a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Rio Claro, São Paulo (na figura de um grupo de professores de seu Departamento de
Geografia) e o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (mais especificamente
pelos trabalhos desenvolvidos por grupo de geógrafos lotados no Rio de Janeiro). Foi nesta
última instituição que Speridião Faissol se revelou expoente dentro de uma, por assim dizer,
Geografia Neopositivista Brasileira.
Estimando a relevância de Speridião Faissol
Speridião Faissol, nascido no ano de 1923 (em Ituiutaba, Minas Gerais), ingressa
no IBGE logo no final da década de quarenta. Já formado geógrafo – na então Faculdade
Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro – começa a atuar no referido Instituto (por recru-
226
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
tamento) pela via do CNG (Conselho Nacional de Geografia), órgão muito vinculado às
questões do planejamento territorial, criado e bastante ativo durante o 2o Governo de Getúlio
Vargas (1951-1954).
O planejamento – imerso nas discussões prioritárias do urbano e do regional – é
justamente o tema que mais vai estar presente na produção científica de Faissol. Contamos
algumas dezenas de artigos dedicados à reflexão sobre ele (em seus aspectos metodológicos
e técnicos, sobretudo). E esse interesse que se mantém ao longo de sua carreira (dos anos
cinqüenta aos noventa), apesar de, em parte, estar respondendo ao que do geógrafo era demandado institucionalmente, vê-se impulsionado pelas reformulações conceituais na Geografia.
Basta que reconheçamos: a empresa quantitativa, matematizante, que caracterizou em
grande parte a saliência de uma Geografia Neopositivista, tornava possível (ou pelo menos
mais facilitado) o registro sistemático de informações diversas em natureza, dimensão e
escala. A operacionalidade dos dados, desejada pela esfera da tomada de decisão (governos
e seus órgãos de assessoria), aproximou, naturalmente, planejamento e tecnicismo.
Faissol percebeu que as circunstâncias pediam a ultrapassagem da fase monográfica
da Geografia; entendeu que o contexto requeria a formulação de teorias sobre processos espaciais (o que, digamos aqui, não significava, na sua opinião, o abandono dos estudos de caso).
Acatou os ditames vindos de fora e inconformou-se com o determinismo e o possibilismo,
que, segundo os críticos, apenas constatavam realidades, entronizando as observações de
campo (uma herança positivista que se encontrou reduzida na Nova Geografia; mais afeita
às estatísticas e teorizações e, neste sentido, tributária de um Positivismo “renovado”).
Entendeu que auxílios poderiam muito bem ser buscados em campos alheios: da Economia
poderiam ser absorvidas teorias locacionais e das ciências matemáticas, métodos analíticos
confeririam objetividade aos dados. Faissol incorporou muito bem a revolução quantitativa,
ao sustentar que a precisão e a especificação, trazidas por ela, eram propriedades necessárias
a qualquer ramo científico.
Na verdade, conforme salientamos há pouco, Speridião Faissol foi o representante
do IBGE que mais destacadamente produziu trabalhos acerca da renovação metodológica.
Sem essa sua atuação, no sentido de esclarecer, didaticamente, o histórico, o significado e
as potencialidades da Nova Geografia, a propagação do ideário, digamos, pró-quantificação
dificilmente prosperaria anos seguidos.
Faissol interagiu com um grande número de pesquisadores estrangeiros (Brian Berry
e Peter Cole, por exemplo). Geógrafos esses que estiveram muito engajados na disseminação pedagógica de uma Geografia assentada sobre o paradigma da análise espacial. Não
há dúvida, portanto, que muito de seu próprio engajamento foi conseqüência do convívio
com autores-ícone na cena internacional. Produziu artigos em parceria com alguns deles e
por isso, conscientemente ou não, acabou fazendo as vezes de representante-mor, em nosso
país, da Geografia Quantitativa.
Mas devemos ter claro o fato do geógrafo – tal como se espera, aliás, que aconteça
com qualquer autor circunscrito por circunstância social, histórica – apresentar interesses
diversificados na linha do tempo. Isto é, a par de ser possível abstrair, de fato, elementos
de verificação contínua (e entre estes, os de natureza neopositivista), também há, imerso no
Ambientes
estudos de Geografia
227
discurso do autor, elementos transitórios. Pelo que se deduz, os últimos articulam-se com
as contingências próprias do processo de transição contextual no cenário político brasileiro.
Convencionamos chamar a diversificação em Faissol de “nuances”, enquanto às continuidades verificadas nos referimos como “centralidades”. Comentemos algumas.
Durante um longo período (do início da década de cinqüenta até meados dos anos
sessenta, mais ou menos), Faissol empenhou-se nos estudos regionais, mais especificamente na questão da colonização de áreas do Centro-Oeste brasileiro. A ocupação dessas
regiões, é bem verdade, esteve justificada por toda uma ideologia nacionalista associada
à segunda gestão de Vargas (1951-1954). Assim, a idéia de interiorização, no sentido de
promover a ocupação de sítios ainda relegados, terminou por mobilizar um grande corpo
de profissionais subjugados pelo poder executivo (e o IBGE se inclui aqui). Os trabalhos
técnicos converteram-se, pois, em projetos de assentamento racionalizado, compreendendo
inúmeras excursões para reconhecimento dos locais. Faissol fez levantamentos circunspetos,
dando pareceres acerca do andamento (prosperidade/fracasso) de colônias de imigrantes
europeus, por exemplo.
Mas é no período que se inicia na segunda metade da década de cinqüenta (justamente com o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960) que o geógrafo vai começar a
se aproximar de temáticas e técnicas que viriam a se mostrar como sua marca registrada.
Um contexto de aceleração do desenvolvimento industrial, bem como de atração de capitais
estrangeiros (características que denotaram a expansão capitalista sobre a América Latina e
que vieram a se manifestar pela articulação governamental através de planos de ação), só fez
favorecer a incorporação, por parte dos órgãos técnicos, de procedimentos metodológicos
mais eficientes. Estamos falando de procedimentos estatísticos para o tratamento das informações. Num primeiro momento, previsivelmente precários; mas com a “solidariedade” de
países avançados, aprimoraram-se. Eis, então, que Faissol vai estar se imbuindo da causa
quantitativa gradativamente, até o momento em que (isto ocorre mais ao término da década
de sessenta) se constitui num de seus principais divulgadores.
A par da propagação metodológica com a qual colaborou decisivamente, também
tratou de realizar trabalhos de aplicação das operações matematizantes em estudos de caso.
Participou, portanto, de uma série de comissões de estudo (análises técnicas), vindo a ser
grato aos ensinamentos/convivências com geógrafos já eminentes no trato teórico e quantitativo das áreas de interesse da Geografia.
Admiravelmente, a partir dos anos oitenta, Faissol não deixará de abordar temas de
cunho econômico (dívida externa), social (iniqüidade, pobreza) e política (regimes, doutrinas
ideológicas). O geógrafo discutirá, com propriedade, programas econômicos estratégicos
(seus efeitos espaciais) e – muito preocupado – os assuntos relacionados com o fenômeno da globalização, tais como a soberania das nações e as implicações territoriais de um
rearranjo no sistema-mundo. Por isso, exatamente por ver-se imerso numa circunstância
histórica movente e complexa, vai por reparo na situação brasileira, detectando obstáculos
endógenos e analisando conjunturas em escalas superiores (explanação sobre a cena mundial
e seus subsistemas). Em sua obra, uma preocupação dessa natureza adentra os anos noventa.
Bem, a essa altura, estamos aptos a destacar, pela via da abstração, três elementos
que constituiriam, pois, a transitoriedade ou as “nuances” em Faissol. São três momentos
228
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
sucessivos no tempo que se permitem verificar na forma de interesses circunstancias (como
falamos, amarrados pelo cenário histórico); são eles: projetos de colonização; procedimentos
matemático-estatísticos; e análise de conjunturas.
Por outro lado – ou seja, a despeito dessas manifestações bem demarcáveis cronologicamente – também conseguimos perceber elementos, por assim dizer, “sedimentados”
em sua produção científica. E o fato de haver a constância de alguns vieses caracterizadores
seus, acaba fazendo-nos deduzir que as nuances, ainda assim, não evitaram que se consolidassem a partir delas certas peculiaridades mais extensas no tempo e, por conseguinte,
presumivelmente sobrepostas (são as “centralidades”).
A prática da quantificação começa a aparecer no conteúdo dos artigos de Speridião
Faissol na última metade da década de sessenta e vai se estender nas seguintes três décadas.
Trata-se do exercício de cálculos matriciais, da análise de fatores e da composição de “scores”. O interesse pela reflexão ponderada a propósito dos significados teóricos e pragmáticos
advindos com a Nova Geografia e sua replicação no Brasil é uma característica igualmente
manifesta no referido transcurso. Neste caso, Faissol tratava de explanar sobre o objeto da
ciência geográfica, sobre a cautela nas operações de abstração (envolvidas na lida dos modelos matemáticos) e sobre as implicações filosóficas da quantificação (riscos explicativos;
endossamento de uma ciência fisicista, refém de analogismos; etc.). Estas são, portanto,
duas centralidades no geógrafo: a quantificação de dados e a discussão epistemológica/
metodológica. Mas há, todavia, outras duas.
Faissol demonstrou tremenda familiaridade com o pensamento sistêmico. Não é estranho, assim, que o geógrafo tenha lançado mão das ferramentas conceituais que ele – em
sua versão formalizada (entenda-se, travestido de Teoria dos Sistemas Gerais) – ofertou às
ciências. Conceitos de “hierarquia”, “retroalimentação”, “estado estacionário”, “entropia”,
os quais figuraram como redenção, como “assepsia” dos discursos científicos, estiveram
invariavelmente presentes no discurso de Faissol, mesmo em se tratando de artigos em que
discutiu globalização ou questões macroeconômicas, por exemplo.
Um último elemento que nos chamou a atenção nas leituras – uma quarta centralidade – foi justamente o interesse pelo tema do planejamento; talvez, de todos, o elemento
de maior longevidade. Desde os anos cinqüenta até os noventa, a temática da planificação
pró-desenvolvimento foi recorrente. Faissol sempre fez questão de deixar clara sua preocupação com a fundamentação técnica dos projetos que visassem ao equacionamento das
desigualdades regionais brasileiras. Essa fundamentação presumia, é claro, um papel decisivo a ser jogado pelos geógrafos e estes – preconizava – deveriam estar aptos a manejar
instrumental de efeito organizacional: técnicas de coleta e análise de dados; métodos de
correlação; ferramentas lingüísticas operacionais; etc.
Sustentamos, por fim, que são quatro as centralidades em Faissol, quais sejam: a
quantificação, a discussão metodológica (caracterizada pela recomendação da cautela),
a linguagem sistêmica e o planejamento. Mas, para arrematar a presente seção, cabe-nos
apontar qual(is) delas nos permite(m) vislumbrar o viés neopositivista no discurso do geógrafo. Vejamos.
Comentamos, ainda que em linhas bem gerais, o fato da doutrina neopositivista ter
elegido, como condição sine qua non, o recurso a um monismo fraseológico; isto é, a um
Ambientes
estudos de Geografia
229
molde lingüístico universal, pelo qual os enunciados e as sentenças pudessem alcançar o status
de científicas. Bem, a linguagem sistêmica, tendo encontrado campo fértil primeiramente no
campo da termodinâmica (ramo especializado da Física), estendeu-se, analogicamente, para
o estudo dos organismos vivos; daí, não precisou saltar muitas fronteiras até atingir em cheio
a Geografia dos anos sessenta (às voltas com uma formalização conceitual próspera). Não
duvidamos, portanto, que um claro indício neopositivista em Faissol há de ser precisamente
esse seu manejo consciente com a linguagem em sistemas.
Mas uma tal aproximação das ciências naturais não se deu tão somente pelo usufruto
do acervo conceitual empreendido inicialmente para elas (o modelo sistêmico). A prática
da quantificação foi, em grande medida, uma conseqüência quase irresistível. Os recursos
matemáticos de tratamento da informação (álgebra linear, geometrias espacial e analítica,
métodos estatísticos variados, etc.) acabaram sendo incorporados como uma extensão natural
do novo vínculo que a Geografia passou a cultivar com as ciências sistemáticas. Em outras
palavras, a disciplina, uma vez comungando da linguagem científica, viu-se brindada por
modernas técnicas operacionais de natureza matemática. Daí que a prática quantitativa é,
sim, um indício neopositivista (dada a aproximação funcional das ciências que sugere e dada
também a institucionalização do argumento lógico-simbólico no trato dos fenômenos). Este
indício é, a exemplo do que acontece no caso do dialeto sistêmico, amplamente verificado na
obra de Speridião Faissol e reflete, pois, um segundo vestígio neopositivista em seu discurso.
Coleção de textualizações: uma panorâmica comentada
Depois do sobrevôo rápido sobre o que entendemos ter sido a atuação científica de
Speridião Faissol, resta-nos exemplificá-la por meio de textualizações abstraídas de alguns
de seus artigos.
Antes disso, permitam-nos destacar seis artigos em particular, os quais – nos parece – são os melhores veículos para que os leitores interessados possam perceber mais
detidamente o pensamento geográfico de seu autor. Ademais, são excelentes provas do que
acreditamos ser o principal predicado de Faissol: a fé ponderada numa Geografia que havia
se remodelado. Todos foram publicados pela Revista Brasileira de Geografia (melhores
identificações na seção de Referências Bibliográficas), clássico periódico do IBGE, no qual
encontramos a maior parte da produção do autor. São eles:
1o) “As grandes cidades brasileiras: dimensões básicas de diferenciação e relações
com o desenvolvimento econômico. Um estudo de análise fatorial”, de 1970
(onde podemos antever o duradouro interesse de Faissol em explanar sobre o
tema urbano pela via da análise de fatores e demais técnicas quantificantes) ;
o
2 ) “A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no Brasil”, também de
1970 (texto bastante didático e esclarecedor que escreveu junto com Marília V.
Galvão, uma parceira freqüente) ;
o
3 e 4o) “Teorização e quantificação na geografia”, de 1972 e 1978 (trata-se de dois
artigos curiosamente homônimos que dão conta de discutir as implicações
da renovação metodológica na Geografia, sendo que no segundo o autor vai
230
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
especificar técnicas matemáticas mais sofisticadas) ; e
5 e 6 ) “A geografia na década de 80; os velhos dilemas e as novas soluções”, de 1987
e “A geografia quantitativa no Brasil: como foi e o que foi?”, de 1989 (dois
trabalhos nos quais Faissol esbanja coerência argumentativa e nos presenteia
com sua apologia comedida da quantificação; na verdade, são uma prova de
que o autor não deixou que suas convicções fossem maculadas pelo tempo).
Comecemos, então, a exposição de textualizações, enquadrando-as em dois subgrupos
específicos (o primeiro dizendo respeito às nuances e centralidades):
o
o
Sendo a Amazônia muito grande para o volume de recursos que se pode
mobilizar, a estratégia a seguir deverá ser a de formação ou expansão de
pólos de crescimento, empresariais ou pólos de colonização; os primeiros
de responsabilidade de empresas privadas devidamente assistidas e orientadas, e os segundos da responsabilidade também do poder público, como
interessado na ocupação do território. (FAISSOL, 1967, p. 55, grifo nosso).
Esta primeira textualização vem ilustrar bem um daqueles três elementos de transitoriedade (mais especificamente o inicial), exemplificando o contato que Faissol teve
com o tema da colonização orientada (devidamente assistida por atores sociais diligentes).
Reparemos na seguinte:
Como esta economia mundial opera num sistema político que reitera e
defende o modelo político de dominância econômica, somente uma revisão, em profundidade, dos conceitos e do consenso relativos a esta mesma
economia mundial, seria capaz de alterar o quadro. Um quadro que precisa
considerar a idéia de um mundo só, mas um mundo só de todos e não só
dos países ricos. (FAISSOL, 1989a, p. 21, grifo nosso).
Aqui, por sua vez, observamos a simpatia que teve, mais ao término de sua carreira,
pela temática da globalização e suas contradições. Isso não significa – devemos frisar – que
o geógrafo tenha exercitado um discurso político-ideológico combinado com a fraseologia
tipicamente marxista. Ao contrário, Faissol apresenta certas reservas com relação ao pensamento geográfico questionador de estilo mais radical.
Vejamos, agora, algo de centralidade:
[cautela] se deve ter ao aplicar um modelo matemático abstrato a uma realidade empírica, na qual uma variada gama de fatores indeterminados pode
perturbar a regularidade do modelo. (FAISSOL, 1973, p. 12, grifo nosso).
Esta é uma breve amostra textual da consciência que Faissol cultivou das fragilidades
inerentes às operações de abstração. No caso, o geógrafo comentava o fato da modelagem
matemática não conseguir oferecer reproduções perfeitas e, indiferentes às contingências
e à variável temporal, plenamente sintonizadas com a realidade da qual se extraem os elementos construtores do modelo.
Ainda com respeito à centralidade do autor ligada às ponderações e cuidados meticulosos:
[...] não é que não haja analogias entre processos físicos e humanos¤sociais
como pretendem os positivistas¤newtonianos, mas sim que estas analogias
Ambientes
estudos de Geografia
231
não podem ser erigidas em modelos, sem discussão, [...] Na raiz de muitas
críticas mais sérias à fase quantitativa da Geografia está esta questão.
(FAISSOL, 1994, p. 33-34, grifo nosso).
Já aqui Faissol lembra os riscos intrínsecos à empresa analógica. Aliás, não foram
poucas as vezes em que ele sentenciou como perigosas as tentativas de adaptação de terminologias e ou métodos advindos das ciências naturais. Seria preciso sempre ponderar acerca
da viabilidade lingüística dos conceitos imigrantes e, ao mesmo tempo, certificar-se da real
relevância desses furtos metodológicos.
Como sugerimos, duas centralidades bem evidentes na obra de geógrafo são o
interesse pela prática (circunspeta) do planejamento e o amplo manuseio da linguagem
sistêmica (verificado, sobretudo, pelo uso de conceitos associados à Teoria dos Sistemas
Gerais); exemplifiquemos isso com as seguintes duas textualizações:
Antes de se tomar a decisão final em torno do assunto [colonização dirigida em Goiás], é preciso que todos os pontos tenham sido focalizados;
do contrário, será correr o risco de ver tão importante iniciativa periclitar
ou mesmo malograr por falta de previsão e planejamento. (FAISSOL,
1949b, p. 758, grifo nosso).
Analisado segundo as concepções de um sistema, o fluxo de migrantes de
uma área para outra pode, não só ser entendido como um fluxo energético,
como também os processos de perda e ganho que este fluxo acarreta podem
ser vistos em termos de ajustamentos homeostáticos, [...] (FAISSOL, 1971,
p. 163, grifo nosso).
Com as seis citações acima esperamos ter ilustrado, minimamente, o subgrupo das
nuances e centralidades. Passemos, então, ao segundo subgrupo, o qual dirá respeito mais
exatamente ao procedimento quantitativo (suas vantagens e reflexos). Uma primeira textualização nos permite constatar que Faissol estava mesmo a par dos significados utilitários
da Geografia Neopositivista:
[...] um surto de teorização e quantificação na Geografia permitiu de um
lado o esforço de aglutinação de todos os princípios gerais já estabelecidos
na Geografia e a absorção de um conjunto de formulações comumente
usadas nas ciências sistemáticas, tendendo a formar teorias geográficas.
(FAISSOL, 1972a, p. 163, grifo nosso).
Refletindo bem a adaptação lingüística (do meramente descritivo-verbal à estilização
sistêmica) que tanto se esmerou em tornar factível, temos o próximo trecho extraído de
artigo no qual abordou a questão da diferenciação regional do desenvolvimento econômico:
“A utilização dos conceitos da teoria dos sistemas gerais pode iluminar
bastante os raciocínios sobre o desenvolvimento dos dois processos – o
regional e o nacional – mas sobretudo pode mostrar a profunda interdependência entre os dois, uma vez que o regional é um subsistema do sistema
nacional. (FAISSOL, 1970, p. 121).
Uma tendência notável em Faissol é, como já mencionado, a retidão que se preocupou em recomendar nas ocasiões em que, indiretamente, formava usuários em potencial.
Falamos “indiretamente” porque seus artigos não tinham, em essência, o propósito estrito
232
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
de ensinar os interessados a manejar técnicas de tratamento estatístico (ainda que, pela via
indireta, de fato, tenha terminado por promover explanações pedagógicas com estudos de
caso). E no sentido dessa sua coerência, desse seu comedimento em não mitificar as benesses da quantificação, conseguimos visualizar passagens em que mescla convicção (fé na
fecundidade dos métodos então recentes) e parcimônia (ciência de que há fatores limitantes
invariavelmente envolvidos); um exemplo conexo:
[...] embora a linguagem matemática não acrescente conteúdo à linguagem
de qualquer ramo das ciências sociais ou biológicas, pois a sua própria
essência é ser abstrata, ela contém no seu bojo o fundamento do argumento
lógico. Ela obriga [...] a pensarmos logicamente. (FAISSOL, 1972b, p.
84-85, grifo nosso).
Cabe-nos também chamar a atenção para o fato de Faissol ter discordado da impressão simplista, segundo a qual uma Geografia Quantitativa, aos moldes do Neopositivismo,
apenas encontrou ambiente propício na cena brasileira em virtude de, nos anos sessenta e
setenta, o país ter sido regido politicamente por governos defensores de práticas autoritárias.
A idéia (simplória) imersa é a de que haveria uma sintonia natural e inexorável entre os
regimes que mascaram desigualdades, contradições e injustiças sociais e as práticas técnicocientíficas baseadas em postulados abstratos de maximização de variáveis. Estas práticas
remontariam à questão da eficiência – um conceito, de fato, muito ligado aos paradigmas
de cunho capitalista. Bem, Faissol simplesmente não se deixou levar por essa muito vaga
impressão, conforme nos deixam claro as seguintes duas textualizações:
[...] podia-se constatar que o temário da Conferência [Conferência Regional
da União Geográfica Internacional, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1982]
e os temas dos expositores continham numerosos assuntos de inspiração
social e mesmo marxista, sem que a isto tivesse qualquer observação nem
dos organizadores, nem da direção do IBGE, que foi o principal patrocinador; o que foi até objeto de alguns comentários na crônica internacional
a respeito, que ao ressaltar o alto nível profissional em que se realizou a
Conferência, estranhava esta liberdade conceitual e mesmo ideológica,
dado o fato de estar isto acontecendo num momento de governo militar
autoritário e de direita. (FAISSOL, 1989b, p. 23-24, grifo nosso).
A preocupação com relevância social foi, em muitos casos, interpretada
como descartando métodos quantitativos de análise, pois muitos deles se
constituíam em funções otimizadoras de eficiência, portanto contrários aos
objetivos de eqüidade, o que apenas revelava um certo desconhecimento
do que é uma função otimizadora, que poderia otimizar a distribuição de
rendimentos, por exemplo. (FAISSOL, 1987, p. 9, grifo nosso).
Para arrematar essa breve panorâmica, selecionamos um extrato no qual o autor
deixa transparecer seu desacordo com um dos preceitos clássicos na doutrina positivista: o
da extirpação dos enunciados (“pseudo-científicos”) contaminados pelas ideologias:
[...] a teoria jamais poderia ser socialmente neutra, como às vezes se pretende, pois pensamento reflexivo implica nossa própria visão do mundo,
o que deixa inaplicável a idéia positivista de value free no processo de
Ambientes
estudos de Geografia
233
conhecimento científico. (FAISSOL, 1987, p. 12, grifo nosso).
Por outro lado, a negação desta “recomendação” positivista – desta conduta (ingênua)
de livrar as sentenças dos juízos de valor – não impediu que se vissem imersos, no discurso
de Faissol, alguns dos caracteres tipicamente neopositivistas. Não houve, portanto, a negação
de um Positivismo, por assim dizer, “reconfigurado”.
Considerações finais
O exame dos artigos de Speridião Faissol presenteia seu leitor em dois aspectos. Em
primeiro lugar, uma leitura sistemática (guiada por parâmetros pré-estabelecidos) tende a
revelar todo um acervo de experiências com a prática científica. Para os desavisados – aqueles
que, por ventura, nada saibam a respeito da atuação desse geógrafo na cena brasileira – até
pode causar surpresa o grau de envolvimento que o profissional foi capaz de devotar às,
digamos, “coisas da Geografia”. Coisas que, com sabemos, ainda não convergiram a fim
de, finalmente, compor uma base epistemológica bem coesa e de consenso mínimo. Em
verdade, sabedor dessa desordem intrínseca, Faissol desempenhou uma porção de atividades
dentro do amplo espectro de interesses da disciplina, sondando, pacientemente, um norte
teórico-metodológico que pudesse ser sua redenção. Veio a se deparar, nos fins da década
de sessenta, com aquilo que – teve para si – parecia ser a saída providencial para um ajustamento definitivo da Geografia.
O segundo regalo com que Faissol nos presenteia – a par, portanto, da própria riqueza
informativa (em termos de história e contextos vividos) – diz respeito exatamente às profundas e pedagógicas reflexões que fez a propósito da Nova Geografia. Posto que elas são
muito mais do que simples revisões bibliográficas ou exposições pobres em juízo pessoal,
seu conteúdo obriga-nos a rever impressões que possivelmente ainda cultivemos; sobretudo aquelas que nos constrangem especulações de base fisicista ou organísmica (temidas
ou ferozmente atacadas). Ler Faissol é educar-se. Ele nos ensina, mesmo sem saber, que
algum anarquismo ainda é possível em ciência, mas o faz apontando-nos, paternalmente,
todas as armadilhas.
Referências
FAISSOL, S. Problemas de colonização na Conferência de Goiânia. Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 274-278, abr./jun. 1949a.
234
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
______. O Mato Grosso de Goiás. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 7, n. 79, p. 745750, out. 1949b.
______. Amazônia. In: FUNDAÇÃO IBGE. Curso de geografia para professores do
ensino superior: geografia regional. Rio de Janeiro: IBGE, 1967. p. 31-58.
______. As grandes cidades brasileiras: dimensões básicas de diferenciação e relações
com o desenvolvimento econômico. Um estudo de análise fatorial. Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 87-130, out./dez. 1970.
______. Migrações internas – um subsistema no processo de desenvolvimento. Revista
Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 33, n. 3, p. 163-170, jul./set. 1971.
______. Teorização e quantificação na geografia. Revista Brasileira de Geografia, Rio de
Janeiro, v. 34, n. 1, p. 145-164, jan./mar. 1972a.
______. Análise fatorial: problemas e aplicações na geografia, especialmente nos estudos
urbanos. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 34, n. 4, p. 77-100, out./dez.
1972b.
______. O processo de difusão no sistema urbano brasileiro: análise do padrão de distribuição
espacial de centros urbanos e seu ajustamento a distribuições de probabilidades. Revista
Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, p. 3-106, jul./set. 1973.
______. Teorização e quantificação na geografia. Revista Brasileira de Geografia, Rio de
Janeiro, v. 40, n. 1, p. 3-50, jan./mar. 1978.
______. A geografia na década de 80; os velhos dilemas e as novas soluções. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 49, n. 3, p. 7-37, jul./set. 1987.
______. O impacto das crises da energia e da dívida externa no processo de desenvolvimento
da América Latina e do Brasil. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 51, n.
3, p. 7-24, jul./set. 1989a.
______. A geografia quantitativa no Brasil: como foi e o que foi? Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 21-52, out./dez. 1989b.
______. O espaço, território, sociedade e desenvolvimento brasileiro. Rio de Janeiro:
IBGE, 1994.
GALVÃO, M. V.; FAISSOL, S. A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no
Brasil. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 5-22, out./dez. 1970.
REIS JÚNIOR, D. F. da C. O humano pelo viés quantitativo: um exame do (neo)positivismo em Speridião Faissol, através da leitura de textos selecionados. 2003. 141 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade
Estadual Paulista, Rio Claro, 2003.
SCIACCA, M. F. História da filosofia. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
A APRENDIZAGEM ESCOLAR DO CONCEITO DE USO DO
TERRITÓRIO POR MEIO DE CROQUIS E
FOTOGRAFIAS AÉREAS VERTICAIS
Valéria CAZETTA
Rosângela Doin de ALMEIDA
Imagens e fotografias aéreas aparecem continuamente em matérias de jornais e
revistas, por isso, novas perspectivas para a Didática de Geografia tornam-se necessárias
no desenvolvimento de práticas de sala de aula e sua devida avaliação para com esse instrumental, principalmente no momento atual, em que as imagens passaram a veicular, de
forma vertiginosa, a nossa comunicação com o mundo; afinal, elas possuem uma dimensão
pedagógica.
Dentre as diversas formas de representação do espaço geográfico (mapas, cartas
topográficas, maquetes, imagens de satélite), trabalhamos com as fotografias aéreas verticais em branco e preto (escala 1:5.000) e mais dois mosaicos também de fotografias aéreas
verticais em branco e preto (escala 1:25.000): um referente ao ano de 1972 e o outro ao
ano de 1995. Assim como as imagens de satélite, as fotografias aéreas verticais apresentam
o espaço em toda sua complexidade, inexistindo uma seleção da informação. A seleção da
informação para este último tipo de documento é dada pela escala e pelo enquadramento
da câmera aérea fotográfica.
Para fins escolares, a utilização deste tipo de fotografia esbarra em dois tipos de
dificuldades:
• a restrita produção dos levantamentos aerofotogramétricos;
• o difícil acesso a este tipo de documento, pois pertence a órgãos públicos ou a
empresas especializadas, que não as liberam para o domínio público.
Além disso, nas grades curriculares dos cursos de licenciatura em Geografia inexiste
o Sensoriamento Remoto aplicado ao ensino de Geografia. Se existe é como uma disciplina técnica (e não como área da Didática) da formação do geógrafo que irá trabalhar com
Sensoriamento Remoto
para fins de pesquisa aplicada ou empresarial. Então, como explicar que o professor
tenha este conhecimento aplicado ao ensino se ele não existe sistematizado em nenhuma
instância?
Nesta pesquisa investigamos como os alunos constroem/aproximam-se do conceito de
uso do território (SANTOS; SILVEIRA, 2001) por meio da elaboração de croquis1. A partir
desta pergunta diretriz delineamos a hipótese de nosso estudo de que é possível por meio da
elaboração de croquis construir o conceito de uso do território, porque tal atividade pode
possibilitar aos escolares realizar a passagem daquilo que é polissêmico (fotografias aéreas
1
Chamamos de croquis os overlays obtidos em papel vegetal pelos escolares por meio da fotointerpretação.
216
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
verticais – pré-mapas) para o que é monossêmico. Para tanto, definimos como objetivo:
desenvolver e avaliar procedimentos de ensino com escolares do terceiro ciclo (6a série)
do Ensino Fundamental sobre como se dá a construção/aproximação do conceito de uso do
território a partir da elaboração de croquis utilizando-se das fotografias aéreas verticais.
Enquanto recurso metodológico para registrar os acontecimentos presenciados e
vividos em sala de aula, adotamos o “diário de campo”, através do qual relata-se o que se
olha?; como se olha? e o que faz (ou poderá fazer) com o que está olhando? (PELISSARI,
1998, p.1; ZABALZA, 1994 ). Após cada aula, relatava no “diário de campo”, as maneiras
de resolução dos problemas encontrados pelos alunos, suas dificuldades, seus modos de
raciocínio, seus comentários e todas as situações apresentadas tanto em sala de aula como
na escola.
Por meio da pesquisa participante, observamos em um primeiro momento a classe
em que ministramos as aulas, para irmos ambientando-nos e conhecendo melhor os sujeitos
da escola (alunos e professores). Bogdan e Biklen (1994, p. 125) afirmam que:
[...] num dos extremos situa-se o observador completo. Neste caso, o investigador não participa em nenhuma das atividades do local onde decorre
o estudo. Olha para a cena, no sentido literal ou figurativo, através de um
espelho de um só sentido. No extremo oposto, situa-se o observador que
tem um envolvimento completo com a instituição, existindo apenas uma
pequena diferença discernível entre os seus comportamentos e os do sujeito. Os investigadores de campo situam-se algures entre dois extremos.
Nesta pesquisa, situamo-nos no extremo oposto, ou seja, observadora com envolvimento completo com a instituição.
Portanto, definimos inicialmente o tempo em que ficaríamos realizando as observações na escola e depois o período das aulas, pois de acordo com Bogdan e Biklen (1994,
p. 125) “é necessário calcular a quantidade correta de participação e o modo como se deve
participar, tendo em mente o estudo que se propôs elaborar”.
Na elaboração da atividade de ensino (na concepção de Leontiev, 1964), constituída
por dez fichas de trabalho, organizamos o mapa conceitual da figura 1. Os mapas ou esquemas conceituais, no dizer de Moreira e Buchweitz (s.d., p. 13) são
[...] diagramas hierárquicos indicando os conceitos e as relações entre
esses conceitos [procurando] reflectir a organização dos conceitos de
uma disciplina ou parte de uma disciplina, de um livro, de um artigo,
de uma experiência laboratorial, da estrutura cognitiva de um indivíduo
sobre um dado assunto, de uma obra ou de uma outra fonte ou área de
conhecimento qualquer.
Na seleção das fotografias aéreas verticais na elaboração das dez fichas de trabalho
para o desenvolvimento da pesquisa em sala de aula utilizamos dois critérios (FORESTI;
HAMBÚRGUER, 1995): o funcional - áreas residenciais, comerciais, industriais, rurais, etc;
na definição deste critério levamos em consideração as atividades principais desenvolvidas
em cada bairro; e o socioeconômico - neste critério consideramos a setorização2 realizada
de acordo com o padrão de vida da população de Rio Claro.
Ambientes
estudos de Geografia
217
Para que os escolares conseguissem atingir ao final da atividade, os padrões de uso
do território eles deveriam conseguir interpretar uma fotografia aérea vertical, utilizando-se
das “chaves de interpretação” (figura 1). E ao final da atividade, concluírem que a dinâmica
no uso do território, em princípio, é um processo que se dá pela transformação do uso rural
em uso urbano do território.
Estabelecemos quatro módulos no desenvolvimento da pesquisa na escola. No primeiro módulo, abordamos as transformações ocorridas nas técnicas fotográficas paralelamente
às transformações ocorridas na aviação.
No segundo módulo, enfocamos os pontos de vista vertical e oblíquo e as “chaves de
interpretação” por possibilitarem a descrição e a fotointerpretação. Estas chaves implicam
em padrões de uso do território que resultam na elaboração dos croquis, apresentando ao
aluno como é o uso de um determinado bairro ou lugar.
Como a fotointerpretação envolve primeiramente a fotoleitura (observação e detecção), depois o reconhecimento-identificação dos objetos, padrões-feições, e por fim a
fotoanálise, destacamos, neste estudo as seguintes “chaves”:
• tamanho;
• forma: plano de um objeto permitindo distinguir um prédio de uma casa;
• cor (tonalidade): expressa em tonalidade do preto ao branco com graus intermediários de cinza e é afetada pela luz refletida ou absorvida e pela textura das superfícies;
• textura: é criada pelas repetições tonais em grupos de objetos;
• feições que lhe são associadas: sombra, padrão, etc.
O terceiro módulo consistiu na elaboração dos croquis pelos escolares que lançaram mão das “chaves” para atingir os padrões de uso urbano e rural do território. O quarto
módulo concluiu a atividade, tratando da transformação no uso do território em Rio Claro
(SP-Brasil) nas décadas de 70 e 90.
Na elaboração dos primeiros croquis, os alunos apresentaram certa “resistência”
quanto a esse conhecimento novo.
O sujeito [...] quando em face de objetivos que não pode atingir diretamente, de situações problemáticas para cuja solução não dispõe de condutas
adequadas, tem de resolvê-las mediante o estabelecimento de combinações
novas de esquemas ou modificações dos esquemas anteriores. (DELVAL,
1998, p. 89).
Esta resistência ocorreu, provavelmente, devido ao próprio instrumental técnico
utilizado, no caso, as fotografias aéreas verticais, pois os escolares desconheciam-nas e necessitaram criar novos esquemas de conhecimento para apropriarem-se deste conhecimento
novo. Nos croquis posteriores, a “resistência” oferecida pelas fotografias aéreas verticais
foi diluindo-se. Para Miras (1998, p. 61),
[...] uma aprendizagem é tanto mais significativa quanto mais relações
2
Esta setorização foi feita a partir do projeto “Integrando universidade e escola através da pesquisa em ensino: atlas
municipal escolar”, coordenado pela profa. Dra. Rosângela Doin de Almeida (Depto. de Educação/Instituto de Biociências - Universidade Estadual Paulista/Unesp - Rio Claro/SP/Brasil), no período de março de 1997 a maio de 1999.
218
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Figura 1. Conteúdo temático geral da atividade:
o uso do território
Elaborado por Valéria Cazetta
Ambientes
estudos de Geografia
219
com sentido o aluno for capaz de estabelecer entre o que já conhece, seus
conhecimentos prévios e o novo conteúdo que lhe é apresentado como
objeto de aprendizagem.
Essa resistência não quer dizer aquela referente aos alunos quanto à aprendizagem,
mas a resistência oferecida pela fotointerpretação e elaboração dos croquis à aplicação dos
esquemas que os alunos já possuíam anteriormente, isto é, esta atividade exigiu dos escolares
a criação de outros esquemas, que foram aglutinados aos esquemas anteriores, na realização
desta atividade. Esta “resistência” pode estar associada também à prática do professor que
acompanhava aquela classe, que possui outras concepções sobre o processo educativo.
Os três primeiros croquis representam simultaneamente tanto o conceito (uso do território) como a resistência do ambiente, no caso, a elaboração de croquis a partir de fotografias
aéreas verticais na aquisição de um conceito novo. Para apreender esta atividade, os alunos
tiveram que se apropriar de outros conceitos, tanto que a resolução da ficha de trabalho 1
era pré-requisisto para a seguinte e, assim, sucessivamente. Na passagem do módulo I para
o módulo II e do módulo II para o módulo III, não verificamos dificuldades na aprendizagem dos escolares. Porém, o módulo III, por introduzir conceitos que mobilizaram novas
habilidades dos alunos, que estavam habituados a estabelecer uma relação específica de
apropriação do conhecimento escolar mediada pelo professor, eles tiveram que criar novos
esquemas para lidar com a atividade. A criação destes esquemas demandou em certo tempo.
Constatamos que, por meio de croquis obtidos de fotografias aéreas verticais – representações monossêmicas semelhantes a mapas (pré-mapas) -, no contexto de uma atividade de ensino (LEONTIEV, 1964 ), alunos do Ensino Fundamental constroem o conceito
geográfico de uso do território.
A aproximação do conceito teórico ocorreu através da aglutinação dos esquemas
que os alunos já possuíam aos esquemas novos criados. Por exemplo, eles representaram
os terrenos vazios e as áreas verdes, a partir da concepção que tinham, isto é, a partir dos
esquemas de conhecimentos existentes. Porém, a diferenciação destes dois quesitos exigia
uma acuidade de fotointerpretação. Esta habilidade exigiu que os alunos criassem esquemas
novos, os quais, por sua vez, foram aglutinados aos esquemas anteriores.
O conceito de uso do território envolveu tanto os esquemas de ação quanto os esquemas abstratos. O primeiro, no caso desta pesquisa, refere-se propriamente à elaboração dos
croquis. O segundo diz respeito à resolução das fichas de trabalho e produção dos textos.
Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o
ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das
palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras;
e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem
acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada,
na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer.
(ARENDT, 2000, p.191).
Estes esquemas estiveram envolvidos simultaneamente, pois os alunos, ao elaborarem os croquis, sentiram-se estimulados pela idéia de “nascimento” de um conhecimento
novo, no sentido dado por Arendt (2000, p.190), e responderam a isso por iniciativa própria,
220
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ao estarem dispostos a criar esquemas novos. Este nascimento de um conhecimento novo
estimulou também habilidades como: observar, comparar, diferenciar e classificar.
Assim, a diferença de adensamento das construções, bem como sua organização
espacial, emergiram através dos croquis. Isso possibilitou aos alunos, durante as discussões
em grupo por meio de esquemas de interação social, verificar como, por que e com que
finalidade o território é usado.
Para se aproximar deste conceito, o domínio das “chaves de interpretação” é prescindível, porque estas foram circunstanciadas pelas relações que os escolares estabeleceram
com este conhecimento. Isto está impresso nos croquis, motivo pelo qual estes não foram
discutidos pelas “chaves”, conforme havia imaginado. Tanto que, apesar de nos três primeiros croquis, a representação das áreas verdes e terrenos vazios ser parcial, nas respostas
destas fichas de trabalho, verificamos os atributos decisivos apontados, enquanto critérios
de diferenciação de um bairro para outro.
Além disso, temos que considerar também a resistência oferecida por este instrumental
técnico (as fotografias aéreas verticais). Isso nos auxiliou a verificar como um conhecimento
produzido na universidade, ao ser transposto para a escola, recebe uma ressignificação devido ao “triângulo didático” (MÉRENNE-SCHOUMAKER, 1999) que envolve as relações
professor-saber, aluno-saber e professor-aluno.
As constatações proporcionadas por esta pesquisa evidenciam que as fotografias
aéreas verticais favorecem a representação de um conceito/sistema de conceitos à medida
que possibilitam concomitantemente a sua construção teórica. Disso compreende-se que
estas fotografias utilizadas na passagem para a representação bidimensional permitem caminhos mais promissores no processo de ensino e aprendizagem de conceitos geográficos.
Contudo, o ensino de Geografia nas séries iniciais seria melhor empreendido se partisse das
fotografias aéreas verticais (pré-mapas) para levar à passagem daquilo que é polissêmico
para o que é monossêmico.
Caberia ainda verificar como este conceito poderia ser aprofundado nas séries posteriores empregando, além das fotografias aéreas verticais, as imagens de satélites, e incluindo
também outra rede de conceitos, a qual mobilizaria provavelmente novos esquemas.
Referências
ARENDT, H. A condição humana. Tradução R. Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.
Ambientes
estudos de Geografia
221
BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução
à teoria e aos métodos. Tradução M. J. Alvarez e S. B. Santos. Portugal: Porto, 1994.
DELVAL, J. Aprender a aprender. 3. ed. Tradução J. P. Santos. Campinas: Papirus, 1998.
FORESTI, C.; HAMBURGER, D. S. Sensoriamento Remoto aplicado ao estudo do uso
do solo urbano. In: TAUK-TORNISIELO, S. M.; GOBBI, N.; FOWLER, H. G. Análise
ambiental: uma visão multidisciplinar. 2. ed. São Paulo: Edunesp, 1995. p.143-149.
LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1964.
MÉRENNE-SCHOUMAKER, B. Didática da Geografia. Tradução C. Marçal. Lisboa:
Asa, 1999.
MIRAS, M. Um ponto de partida para a aprendizagem de novos conteúdos: os conhecimentos
prévios. In: COLL, C.; MARTÍN, E.; MAURI, T. et al. O construtivismo na sala de aula.
Tradução C. Sclilling, 5. ed. São Paulo: Ática, 1998. (Série Fundamentos)
MOREIRA, M. A.; BUCHWEITZ, B. Novas estratégias de ensino-aprendizagem: os
mapas conceptuais e o vê epistemológico. Coimbra: Plátanos, [s.d.]
PELISSARI, M. A. O diário de campo como instrumento de registro. 8p. 1998 (Mimeografado).
SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
ZABALZA, M. A. Diários de aula. Contributo para o estudo dos dilemas práticos dos
professores. Porto: Porto Editora, 1994.
A AGRICULTURA E ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO - O CASO DO
CHAPADÃO, NO MUNICÍPIO DE JAGUARI, RS,
NOS ÚLTIMOS 40 ANOS.
Valdemar VALENTE
Manuel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy
Introdução
As transformações técnico-científicas são permanentes, no entanto não atingem
simultaneamente os diversos espaços. O desenvolvimento tecnológico torna o processo de
produção capitalista mais flexível, no sentido de utilizar mais máquinas e menos mão-deobra, favorecendo a acumulação do capital, não se restringindo, no entanto, à acumulação
no campo econômico, mas também ao político, social e espacial.
Não somente pela presença de inovações tecnológicas que um espaço se renova e se
organiza, assim como se interliga com os demais, mas também pela forma como se organiza
a produção, bem como pela estrutura que se cria e pela função que determinada área passa
a ter no processo de acumulação em nível regional, nacional ou internacional.
Na pesquisa geográfica, o estudo da organização do espaço se consolida e se valoriza à
medida que são destacados os estudos locais e regionais, uma vez que a organização espacial
é indicativo da existência de uma unidade integrada resultante de um produto terminal (no
sentido de concluído), só que esse produto terminal nos parece relativo, visto que o espaço
está em constante modificação e transformação. O estudo da organização espacial envolve
relações, combinações, interações, conexões e localizações, processados de forma dinâmica
entre os elementos que a constituem e que dão origem à diversificação de formas espaciais.
Para analisar a evolução da organização do espaço, temos que pressupor, inicialmente, a existência do meio natural que, mediante a ação humana e através do uso da técnica,
transforma-o em espaço geográfico. O avanço da ciência permite que o meio técnico científico seja incorporado ao espaço geográfico, possibilitando outras formas de organização do
espaço. Atualmente, além da técnica e do meio técnico científico, ainda compõe o espaço
geográfico o conteúdo técnico-científico informacional. Desse modo, novas formas de
organização espacial são incorporadas. Porém, “um meio não suprime o outro, por isso o
espaço geográfico é uma acumulação desigual de tempos”, segundo Santos (1988, p. 6).
A ação humana geradora da organização espacial (em termos de forma, movimento e
conteúdo de natureza social) é caracterizada pelo trabalho dos atores (pessoas) que deixam
suas marcas sobre o espaço com o objetivo de se apropriarem e controlarem os recursos
existentes. O espaço se torna humanizado não pelo simples fato de ser habitado, mas, sim,
porque o homem cria os objetos e se apropria dos mesmos. A ação humana, que estrutura
e produz um espaço, ocorre por razões de sobrevivência, de manutenção da vida, através
da relação de trabalho e de uma população que utiliza a superestrutura existente (política,
202
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ideológica, jurídica e religiosa).
O trabalho não só transforma o espaço como também determina a apropriação do
mesmo, pois, à medida que o processo de produção capitalista avança, este gera mudanças
com relação à importância e ao valor de determinadas parcelas do espaço, tendo em vista
que o mesmo depende das modificações.
Portanto, a organização espacial espelha fielmente a qualidade das relações sociais.
Na organização espacial, encontramos o lugar que exprime uma categoria básica. No entanto,
esse lugar apresenta um conjunto de paisagens que exprime suas finalidades e que, por sua
vez, caracteriza o lugar.
Tomando por base o exposto, o presente trabalho procurará traçar um perfil do
processo de construção do espaço relativo a localidade do Chapadão, no município de Jaguari, pela sua inserção na economia estadual e regional, pela diversificação da atividade
econômica, pela participação dos agricultores no mercado consumidor e pela utilização de
bens e serviços modernos.
Também foram analisados o desenvolvimento e a importância da agricultura na
construção do espaço da referida localidade, nos últimos 40 anos, num corte temporal até
os dias atuais. Pretendemos também verificar o estágio atual em que se encontra a agricultura, o grau de inserção dos agricultores na economia moderna e as modificações ocorridas
naquele espaço geográfico.
Considerações acerca da organização do espaço
A base econômico-social de cada sociedade, que constitui um espaço organizado,
consiste num determinado modo de produção e na reprodução da vida social, pois a técnica, fruto da criatividade humana e considerada medida de poder do homem é, em última
análise, o elemento determinante das forças produtivas, nas quais o homem se coloca como
principal elemento e agente de transformação dos recursos naturais.
Conforme Miorin (1988), o mundo é a realidade material em transformação e em contínua construção, realizada por pessoas que vivem em determinada época e num determinado
sistema de relações sociais, uma vez que o grau de transformação do mundo, encontrado
pelas gerações sucessoras, depende das relações de produção das gerações anteriores e da
atividade prática de desenvolvimento da consciência do grupo humano anterior.
Assim sendo, o número de objetos construídos no espaço aumenta a cada geração
através dos quais é possível descobrir seus aspectos, suas propriedades e esclarecer os meios
de ação. Também é possível, a cada geração, descobrirmos que cada ação pode se realizar
de diferentes maneiras e por meio de diferentes instrumentos, assim como um mesmo
instrumento pode ser usado para a realização de diferentes ações. Portanto, o espaço é um
testemunho de momentos de um modo de produção, no qual, em cada paisagem criada, é
fixada a construção das forças produtivas e dos instrumentos utilizados.
Na geografia, o espaço deve ser concebido como totalidade, constituída de momen-
Ambientes
estudos de Geografia
203
tos, mas há totalidades mais abrangentes, outras, nem tanto. As totalidades e os momentos
expressam a dinâmica natural e social, bem como suas determinações específicas em termos
de tempo e de lugar. Cada momento guarda peculiaridades próprias do tempo histórico e do
lugar manifestadas na paisagem de forma diferenciada, razão por que não existe um espaço
único na superfície da Terra. No entanto, muitos espaços existentes na superfície terrestre
apresentam um traço comum, a submissão ao modo de produção, pois, em muitos deles,
ocorreu ou ocorre a exploração econômica e existe um componente básico, a terra, onde as
relações sociais de produção se caracterizam pela divisão social do trabalho.
O espaço, visto como algo organizado e ao mesmo tempo indicador de relações
sociais, não pode ser concebido como estático, pois, quando surge o homem, este constitui
a paisagem humanizada, símbolo do espaço geográfico, dando provas de que a produção
existe e, desse modo, a organização do espaço deve ser entendida como resultado das relações de produção. Para compreendermos o espaço geográfico, necessário também se faz
conhecermos a forma, representada pelas atividades que nele se desenvolvem, bem como
vê-lo em suas contradições, e elas existem em cada realidade.
As mudanças provocadas no território afetam as formas de sua organização de
maneira diversa, quando não organizando ou reorganizando o espaço. Essa organização
ou reorganização ocorre vinculada não só à produção propriamente dita, mas também à
circulação, distribuição e consumo, já que são questões que se complementam. No entanto,
esse espaço se organiza de acordo com os níveis de exigência do processo, vinculado ao
volume de capital, à tecnologia e à organização correspondente, razão pela qual a paisagem
agrária é mais homogênea, se comparada à urbana.
A organização do espaço geográfico consiste na criação de um sistema de objetos
cada vez mais artificiais, compostos por sistemas de ações imbuídos de artificialidade, muitas
vezes com fins estranhos ao lugar e a seus habitantes. Nesse sentido, o espaço constitui-se
em um novo sistema da natureza quase que totalmente desnaturalizado.
Na análise da organização do espaço, não se pode excluir a produção, vinculada ao
meio urbano-industrial e ao modelo de produção capitalista. As diferenças territoriais de
produção agrícola são resultantes dos tipos diferentes de integração entre os setores agrícola
e industrial e da articulação da produção agrícola capitalista com os modos anteriores de
produção. Novas produções agrícolas se estruturam dentro da lógica da produção capitalista
do espaço, mediante uma interação com as especificidades da agricultura e do lugar. As
interligações não se limitam por aí, acontecem também com os setores da comercialização,
da armazenagem, dos transportes e das comunicações.
Com o aumento dos capitais fixos (estradas, silos, etc.), dos capitais constantes (máquinas, fertilizantes, veículos) e dos fluxos, rompem-se os equilíbrios preexistentes, porque
aumenta a necessidade de movimento e outros se impõem, diminuindo, desse modo, o espaço reservado à produção, enquanto aumenta o espaço das outras instâncias da produção,
circulação, distribuição e consumo, de acordo com Santos (1999).
204
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
A evoluçao da agricultura
A intensificação do capital circulante no campo estabelece, por sua vez, uma intensa mobilidade territorial do capital, ganhando novos espaços, ganhando mais agilidade,
organizando-se de acordo com o mercado, diversificando o uso do solo, aperfeiçoando as
técnicas agrícolas e elevando a produtividade. Sendo assim, o campo se subordina cada
vez mais ao capital industrial, embora com certa polaridade e evolução regional desigual.
A modernização da agricultura consiste num processo de mudanças, mediante a
adoção de técnicas mais avançadas. Tal processo também inclui o aumento do conhecimento técnico, modificação das relações de trabalho e do sistema de investimentos, visando
ao aumento da produtividade e da rentabilidade. A modernização significa uma mudança
qualitativa de transformação de base técnica. Entretanto, o processo de modernização na
agricultura brasileira consistiu no rompimento das velhas formas de dominação no campo, na
eliminação gradativa das antigas relações de produção e na ampliação da fronteira agrícola.
A modernização da agricultura implica ainda “o aumento da produtividade do trabalho,
a submissão do trabalho ao capital, a superação das barreiras naturais e, por conseguinte, a
submissão da terra ao capital e à contribuição do setor ao processo de acumulação”, segundo
Ferreira (1990, p. 74). Essa modernização permite ainda mudar rapidamente a configuração
do processo produtivo e os produtos ajustarem-se às demandas de mercado e à divisão de
trabalho entre empresas que controlam a produção agrícola. Dessa forma, é crescente a integração dos segmentos modernos da agricultura com a indústria fornecedora de insumos,
máquinas e equipamentos.
Uma característica que marca a pequena propriedade, no Estado, está no emprego
predominante da força animal como força motriz, especialmente em áreas de topografia
acidentada. No entanto, com a implantação da soja, esta prática é deixada de lado parcialmente e a tendência é aumentar o uso do trator e máquinas e diminuir o emprego de animais.
Algumas propriedades na área da pesquisa já substituíram o modo tradicional de produzir,
pelo uso de técnicas mais modernas.
O processo de capitalização do campo não é um processo que abrange de modo uniforme e homogêneo, mas, sim, incide nas diversas regiões do Estado sob diferentes formas.
O processo ocorre tanto pela adoção de técnicas agrícolas modernas como pela ocupação
de terras por unidades produtivas.
O processo de capitalização que sofre a agricultura proporciona a modificação do
cenário agrícola e, desde então, do espaço geográfico. A capitalização, na verdade, precisa
atender a um mercado consumidor cada vez maior, face ao elevado crescimento populacional,
até porque “a necessidade de acumulação de capital leva a uma franca expansão geográfica
da sociedade capitalista, conduzida pelo capital produtivo”, de acordo com Smith (1988,
p. 175). Acreditamos que este modelo deva ser repensado, porque não basta alimentar a
população hoje e a que existirá daqui a vinte ou trinta anos, já que este não é um modelo
sustentável, uma vez que apenas atende às necessidades de expansão do capital.
A conversão da agricultura pela indústria provoca uma reunificação do campo e da
cidade quando os novos espaços assumem formas urbanas e rurais que se ligam no processo
Ambientes
estudos de Geografia
205
comum que as formou. A capitalização da agricultura brasileira, a partir dos anos sessenta,
embora conservadora, ajusta-se à estrutura fundiária sem modificá-la, privilegia produtos,
regiões e investidores, esboça um novo modelo de organização espacial, acentuando as
variações sazonais das atividades em vez de atenuá-las. Verificamos que não apenas novos
espaços são criados, mas que o território se remodela e neste processo estão envolvidos o
campo e a cidade.
A agricultura se relaciona com uma indústria fortemente oligopolizada que consegue
impor preços aos insumos adquiridos pelo agricultor, além do estabelecimento de preços
e padrões dos produtos agrícolas, comprimindo a renda dos produtores rurais e, de certo
modo, inviabilizando a produção no campo, uma vez que, apesar da relação de interdependência existente, “a indústria se apropria do excedente que seria o lucro e a renda da terra”,
segundo Silva (1991, p. 11).
O desenvolvimento da agricultura no Estado é desigual, razão pela qual em algumas
regiões ainda são utilizados meios de trabalho diversos do modo de produção dominante,
pois persistem agricultores que, em suas propriedades, apresentam baixo nível tecnológico,
com marcas típicas das formações pré-capitalistas.
Os aspectos que modelaram a evolução da agricultura estão ligados à expansão
do espaço agrícola e à intensificação do processo de mecanização. Este processo altera
profundamente as relações no modo de produção da agricultura até então desenvolvida,
introduzindo novos tipos de culturas e novos métodos e técnicas de plantio.
O ser humano, ao transformar o espaço natural através do trabalho, realizou alteração
sobre o espaço físico e seus recursos naturais e foi influenciado pelas condicionantes técnicas. Essas limitações são inversamente proporcionais ao desenvolvimento tecnológico de
cada grupo social. A partir do momento em que o ser humano avança tecnologicamente, as
limitações vão se restringindo e a natureza passa, então, a ser entendida como um recurso
à sua ação, tanto mais eficaz quanto maior for a disponibilidade de capital e tecnologia.
Desse modo, a organização espacial do Chapadão, no município de Jaguari está
condicionada também pelas influências das bases físicas, como relevo, clima, solo e vegetação que, associadas às relações sociais, políticas e econômicas, possibilitaram a atual
configuração do espaço geográfico.
A Organização do espaço no Chapadão
O território municipal de Jaguari pertence à microrregião de Santa Maria, MRH-l8,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), composta dos municípios
de Cacequi, Dilermando de Aguiar, Itaara, Jaguari, Mata, Nova Esperança do Sul, Santa
Maria, São Martinho da Serra, São Pedro do Sul, São Sepé, São Vicente do Sul, Toropi e
Vila Nova do Sul, que se localiza no centro oeste do Estado do Rio Grande do Sul.
Essa região está inserida, ainda que parcial, na zona de transição entre a Campanha
Gaúcha, composta por planícies com pequenas elevações denominadas coxilhas, cujas
altitudes variam de 100 a 160 metros e por sedimentos, depositados por diferentes agentes,
206
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
cujos solos são pouco evoluídos, dificultando o desenvolvimento da vegetação, e o Planalto
Meridional, variando de 380 a 450 metros, com uma superfície bastante diversificada, porém
com feição suavemente ondulada.
A área relativa à pesquisa é de ocupação recente, final do século XIX, e se caracteriza pela presença dominante de pequenas propriedades como formas de organização de
produção, contrária à porção sul do Estado e outras regiões, caracterizadas pela existência
de latifúndios. Nesse sentido, a área se destaca por apresentar unidade produtiva.
O processo de mecanização, que tem início na agricultura brasileira na década de
1960, não é total e sim parcial na referida área, ou seja, a mecanização é desigual, porque
desigual é a capacidade econômica dos agricultores, desigual é a capacidade de inserção
no processo de capitalização. Mecanizaram-se aqueles agricultores que cultivam a soja ou
que tiveram uma melhor capitalização, devido à diversificação da atividade agrícola e à
possibilidade de acesso ao capital financeiro.
O comportamento espacial da área em evidência é de uma região periférica, ou
seja, subordinada a um mercado local, resistindo, de certo modo, às inovações tecnológicas
pelas dificuldades econômicas em que os agricultores se encontram, aliadas ao baixo nível
de instrução da grande maioria e à carência de orientação técnica dos moradores e essa
reduzida orientação/assistência implica a lentidão das transformações.
O espaço organizado na área do Chapadão é um espaço que apresenta pouca materialização das relações sociais, incapaz, portanto, de proporcionar uma dinâmica mais
intensa na reprodução do capital, pois são poucos os fixos existentes, assim como também
os fluxos não são muito intensos.
O uso de alguns meios técnicos, considerados elementos determinantes das forças produtivas, não é dominante no processo produtivo da localidade, tendo em vista, por exemplo,
a significativa utilização da força animal, de instrumentos antigos como o arado, a enxada,
entre outros, conforme comprova o questionário aplicado. Poucas foram as agregações ao
espaço das etapas historicamente já vencidas.
Se todo e qualquer espaço se organiza vinculado aos níveis de exigência do processo
produtivo e este vinculado ao nível de capital empregado e à tecnologia, o nível de exigência não é grande, porque a quantidade de capital e de tecnologia empregada também não
é acentuada e, portanto, o nível de organização não é avançado, justificando as relações
econômicas e sociais correspondentes.
Por sua vez, a paisagem, num processo lento, embora sem grandes transformações,
proporciona um novo conjunto de formas heterogêneas. É possível afirmar que encontramos
um verdadeiro mosaico de paisagens na área do Chapadão, tendo em vista a diversificação de
culturas existentes, a introdução de novas atividades e cultivos ligados à produção agrícola.
Esse mosaico de paisagens compõe a organização espacial atual.
Quanto maior a diversificação de objetos no espaço, maior será a interdependência
desse mesmo espaço. Como a área pesquisada reúne pouca diversidade de objetos, podemos
afirmar que o espaço geográfico do Chapadão não apresenta grande interdependência com
outros espaços, porque a capacidade de articulação não é expressiva.
Ambientes
estudos de Geografia
207
Com relação à produção agropecuária, são observadas formas tradicionais (como o
uso de roças) e modernas, que dependem da fertilidade natural do solo, da declividade do
relevo, da disponibilidade de terras e da capacidade técnica dos agricultores. O predomínio
das práticas tradicionais aliadas à mecanização, muitas vezes inadequada, provocaram o
esgotamento das terras com repercussões na produtividade. Para melhorar a produção, será
necessário adotar a prática da agricultura alternativa ou agroecológica, caso contrário, a
submissão do setor urbano-industrial tenderá a aumentar, assim como pode se acentuar o
esgotamento dos solos. A dependência aumentada significará maior quantidade de implementos agrícolas no campo, maior uso de adubos, corretivos no solo e defensivos agrícolas,
controlados por empresas transnacionais, de elevado custo e duvidosa eficiência e, ainda,
uma melhor infra-estrutura disponível, o que não deixa de ser positivo, no entanto significará
maior transferência de capitais por parte dos agricultores para as indústrias.
Os excedentes agrícolas são comercializados. Porém, o que comanda o processo
produtivo na pequena propriedade do Chapadão é a produção voltada para a subsistência
familiar, embora exista uma produção comercial que se expande com o passar dos anos,
mediante a venda de leite, da uva, do fumo, de frutas, entre outras. A comercialização do
leite, da uva, do vinho, do fumo, dos animais, da cachaça e outros excendentes garantem o
poder de compra para adquirir aquilo que não produzem em suas propriedades, sendo para
muitos uma relação de intercâmbio negativa, uma vez que pouco sobra da renda para investir
em melhoramentos de suas atividades, bem como para o progresso econômico e social dos
agricultores e de seus familiares.
O investimento em cultivos de maior valor agregado significará, provavelmente, maior
circulação de dinheiro, beneficiando diretamente a coletividade, uma vez que aumentará
a capacidade de aquisição de novas máquinas, ampliará o consumo, a produtividade, em
razão de novos conhecimentos, e estimulará o comércio local.
A tecnologia utilizada nas propriedades apresenta alguns traços modernos, acompanhados de outros tradicionais. Na verdade, é aquilo que o agricultor pode fazer frente
aos condicionantes que se impõem, como o tamanho da propriedade, o relevo acidentado,
a pouca capacidade de obtenção de empréstimos bancários, etc. O resultado da formação
agrícola na referida área é a presença de agricultores técnica e economicamente capacitados
a desenvolver uma mecanização, bem como daqueles que utilizam, de forma expressiva,
a força de trabalho familiar sem condições de capitalização de sua atividade, apesar da
modesta tecnologia introduzida em suas propriedades.
Cada período histórico apresenta suas próprias técnicas e essas são as responsáveis
pela dinamização espacial de uma região. No Chapadão, há ainda um número razoável de
agricultores que usam técnicas tradicionais ou mesclam as tradicionais com as modernas
em suas atividades. Dessa forma, a dinâmica econômica não é intensa nem geral para todos,
assim como não são intensas as relações sociais, conseqüentemente a dinâmica espacial se
apresenta como tal.
A mão-de-obra é predominantemente familiar, inclusive de ambos os sexos, sem
remuneração fixa. O trabalho assalariado se apresenta reduzido, uma vez que a renda das
famílias, de modo geral, é insuficiente para adotá-lo como prática. A jornada de trabalho
208
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ainda se prolonga geralmente de sol-a-sol, apesar da transformação que se incorpora ao
processo produtivo, característica da produção familiar.
O fato do pequeno agricultor possuir os meios de produção, tradicionais ou modernos, não lhe garante uma autonomia, enquanto produtor, uma vez que o mesmo não pode
se desvincular do mercado consumidor, embora local e, sim, cada vez mais influenciado
por ele, como condição de sobrevivência. Assim sendo, o agricultor trabalha cada vez mais
e mais transfere para as casas comerciais e para as cooperativas seus capitais, impedindo-o
de ter uma vida sócio-econômica melhor.
Não ocorreram maiores transformações na organização do espaço no Chapadão,
porque o processo de desenvolvimento da sociedade brasileira, em geral, e da inserida na
pesquisa, em particular, é muito lento. Em razão disso, a própria estrutura social, os hábitos e os costumes daquelas pessoas, bem como suas relações, evoluíram pouco, apesar
de a mudança em si não ser o mais importante, mas, sim, a propensão à mudança e essa é
realidade. No entanto, essas poucas mudanças não impediram que algumas transformações
ocorressem no espaço no período analisado.
A complexidade do modo de produção repercute diretamente numa melhor organização espacial. Desse modo, a organização do espaço do Chapadão não é muito complexa,
porque o modo de produção dominante é simples, tendo em vista o estágio de evolução
em que se encontra e por determinar um ritmo pouco intenso de transformações espaciais.
O aumento da informação técnico-científica, da produção, da diversificação, da
comercialização, da integração e das estruturas de produção tornará muito mais complexo
o modo de produção inserido na localidade do Chapadão e, desse modo, ampliará as repercussões na organização espacial, tornando-a mais complexa, à medida que intensifica as
transformações espaciais.
Incentivada e concretizada a atividade turística, em curso, esse espaço rural se tornará parcialmente agrícola e dará suporte a uma nova relação com a terra e com a natureza
já que outras pessoas advindas do meio urbano também usufruirão desse mesmo espaço.
Novos elementos deverão fazer parte dele, aliás já surgiram novos objetos espaciais como
o mirante, visando atender turistas com ambientes que oferecem alimentação, postos de
venda dos produtos locais, etc.
Um espaço geográfico não se organiza somente pela inovação tecnológica, mas
também pela maneira como se organiza a produção. No caso específico do Chapadão,
constatamos uma renovação tecnológica relativa, pois não se trata da tecnologia mais
avançada disponível no mercado. Quanto à organização da produção, é predominantemente
representada pela agricultura familiar, embora com geração de excedentes. Esse modelo
de organização da produção não é capaz de implementar grandes mudanças no espaço
geográfico, porque é um modelo limitado em sua capacidade de inovação, face à realidade
da agricultura brasileira.
Parece-nos evidente que ocorreram mudanças negativas, como, por exemplo: houve
desmatamento para ocupar novas terras com a pecuária e a agricultura; os solos sofreram um
processo de desgaste, tanto pela erosão quanto pelo uso de adubação química e defensivos
agrícolas, que atingem a microvida do solo, repercutindo na vegetação remanescente e na
Ambientes
estudos de Geografia
209
produção agrícola. Essas mudanças, na base natural, refletem diretamente a organização do
espaço, à medida que os moradores dependem e muito das condições naturais para sobreviver, bem como afeta as relações sociais.
Com relação ao estágio atual da agricultura, fica claro que ocorreu uma evolução, no
entanto, não é uma grande mudança, porque a modernização foi parcial e predatória, pelo uso
de máquinas pesadas não adequadas ao tipo de solo e pelo uso de insumos químicos. Muito
ainda será necessário evoluir para atingir uma verdadeira modernização. A diversificação de
cultivos e de atividades são evidentes, pois de uma produção baseada no cultivo de milho,
feijão e uva, hoje verificamos ainda o cultivo da soja, do fumo, de frutas, de cana-de-açúcar,
consorciadas à pecuária de corte, leiteira, à piscicultura e à produção de vinho. Com relação
à piscicultura, o que observamos são alguns açudes para a criação de peixes destinados à
alimentação das famílias e um “pesque-pague” para fins de lazer.
O avanço da especialização, observado na área pesquisada, o crescimento da produção,
assim como o aumento das trocas contribuem para “tornar o homem estranho ao seu trabalho, estranho ao seu espaço, à sua terra, transformada praticamente em fábrica”, de acordo
com Santos (1999, p. 19). Estranho, porque o agricultor deverá aumentar a produtividade
da terra, racionalizar a atividade que desenvolve, dar um novo ritmo ao trabalho para atingir
uma determinada produção. Assim sendo, intensificam as relações comerciais e o homem
se vê condenado a ser uma mercadoria, um valor de troca no mercado de trabalho. Para
aumentar a produtividade da terra e racionalizar a atividade que desenvolve o agricultor
obrigatoriamente deverá incorporar maior informação técnico-científica, significando uma
atualização do espaço no tempo.
A agricultura que, no passado, foi responsável pela sobrevivência dos agricultores,
continua sendo a principal fonte de renda, no entanto apresenta-se mais diversificada,
mais mecanizada, o que possibilitou a inserção de alguns agricultores no comércio local
e esporadicamente no regional. Essa inserção no comércio garante um fluxo mais intenso
de capitais, de produtos, de pessoas e de informações na localidade, tornando o espaço
geográfico mais complexo.
A constatação de que o cultivo da soja foi uma atividade introduzida na área na década
de 1970, contribuiu para novas paisagens que compõem o espaço geográfico, portanto um
elemento a mais na paisagem e uma mudança espacial significativa. No entanto, a soja não
constitui apenas uma nova paisagem, ela tornou-se importante à medida que possibilitou
a introdução de novas máquinas à produção agrícola, intensificou o comércio, facilitou a
capitalização de alguns produtores e a aquisição de novas informações.
O aumento da plantação de parreirais nos últimos 40 anos, quando muitos dos agricultores a introduziram em suas propriedades ou aumentaram recentemente a área cultivada,
responsável também por mudanças no espaço, contribuiu para melhorar os níveis de vida,
mas nem todos tiveram os parreirais aumentados, porque os agricultores não dispõem de
espaço físico, não possuem recursos financeiros para tal empreendimento ou mesmo vocação,
uma vez que existe um morador que não cultiva parreiras.
Se maiores transformações não ocorreram no espaço geográfico é porque a mobilidade
social da comunidade de moradores é pouco significativa. O grau de mobilidade repercute
210
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
diretamente na organização do espaço, uma vez que esse espaço é organizado a partir das
relações homem/meio ambiente e entre os próprios seres humanos. Concordamos, quando
Santos (1988) afirma que “o espaço é uma estrutura social dotada de um dinamismo próprio”.
O espaço do Chapadão apresenta seu dinamismo próprio à medida que está integrado ao
comércio local, embora de pouca intensidade e esporadicamente ao regional e apresenta um
modo de produção agrícola com base na produção familiar. Assim sendo, não se poderia
esperar outra dinâmica, a não ser a pouca mobilidade social e transformação espacial.
O modo de produção identificado pode ser considerado misto, uma vez que inclui
técnicas antigas e modernas, portanto o padrão tecnológico empregado na produção agrícola
do Chapadão não é o único elemento determinante na organização do espaço, mas, sim,
resultado também do conhecimento absorvido pelos agricultores, pelos valores herdados,
pelas condições naturais que, embora não sendo determinantes, são capazes de estabelecer
limites na produção, pelas condições de um certo isolamento que ainda persiste e por um
comércio não muito expressivo.
Por sua vez, os objetos encontrados, constituintes do espaço geográfico, testemunham
uma evolução das forças produtivas na área e das relações sociais de produção, portanto
não subordinadas à repetição das relações do ato de produzir. Assim sendo, a sociedade do
Chapadão consegue sobreviver e reproduzir-se sem grandes transformações.
Acreditamos que a organização do trabalho, existente na área pesquisada, garante
a produção e a formação de excedentes, indispensáveis à manutenção dos indivíduos e
da própria comunidade. Esse excedente, embora não expressivo, garante a circulação de
produtos agrícolas que, por sua vez, estimula a troca e a manutenção do produtor rural em
sua comunidade.
Concebido o espaço geográfico como não apenas aquilo que se apresenta diante de
nós, tendo em vista sua abrangência e generalizações, percebemos através da observação de
campo, de entrevistas, de conversas informais no clube do Chapadão que o fazer do homem
daquele lugar não é de total exploração, de submissão e alienação material, embora apresente
anseios, desejos e esteja consciente de suas limitações.
No caso do Chapadão, constatamos que as forças sociais não seguem explicitamente
orientações do poder político local nem instrumentos sociais foram construídos pelos moradores, mas estão assumindo “naturalmente” a ampliação das relações, mediante a aquisição
de conhecimentos, de equipamentos técnicos, intensificando, desse modo, as relações sociais,
bem como do homem com a natureza. Dessa forma, os agricultores seguem implicitamente
a política de evolução, de aperfeiçoamento existente.
O progresso técnico presente já é capaz de alterar a configuração dos meios de produção existente, uma vez que há tendência por parte de algumas famílias e, concretamente,
por outras de acompanhar, mesmo que parcial, a evolução técnico-científica e informacional,
bem como pela melhora na infra-estrutura.
O conjunto de paisagens caracteriza o lugar. Observamos que o Chapadão apresenta
uma diversificação de paisagens, representada pelas lavouras de milho, de soja, de feijão,
de cana-de-açúcar, de fumo, pelos parreirais, pastagens, campos, matas nativas, casas,
bosques de eucaliptos, pela forma como as propriedades acompanham o “travessão”, (de-
Ambientes
estudos de Geografia
211
finido como uma precária estrada em linha reta, ou uma clareira na mata), pelos galpões,
estufas, mangueiras, estrebarias, pela rede elétrica, etc. No entanto, a paisagem não implica
o espaço geográfico do Chapadão. Esses elementos elencados apresentam um conteúdo, em
sua maioria, de pouca renovação.
Analisando essa paisagem, observamos que a mesma apresenta pouco conteúdo
técnico-científico-informacional, mesmo assim, exprime sua finalidade que é garantir a
sobrevivência do agricultor, inserido no comércio local e, por vezes, no regional, mas que
carece de expressivo desenvolvimento econômico e de acumulação capitalista, representado
pela baixa utilização de bens e de serviços modernos.
Se o presente na organização do espaço é constituído principalmente pelo conteúdo
técnico-científico-informacional, percebemos que o espaço do Chapadão é dominado por
conteúdo do passado, porque este passado tem caráter dominante e o presente não, representando, desse modo, pouca dinamicidade.
O espaço humanizado é capaz de revelar o passado, o presente e o futuro. Com
relação ao passado, é dominante a presença de objetos de uma estrutura social sem grande
dinamismo. O presente, na verdade, começa a ser inserido, enquanto no futuro deverá repercutir, de forma mais intensa, o conteúdo técnico-científico-informacional, resultado lógico
do processo de modernização da atividade agrícola que busca, de todas as formas, maior
produtividade, o cultivo de produtos com maior valor agregado, a inserção mais intensa da
produção no comércio, como alternativa de maior acumulação de capital, além de ocorrer
uma renovação técnica, social e econômica, pois se não ocorrer tal evolução, os lugares
envelhecem, e não terão condições de acompanhar a evolução que está, obrigatoriamente,
vinculada a novos futuros.
A paisagem cultural já é significativa no Chapadão, uma vez que a vegetação natural,
representada pela floresta, foi quase totalmente substituída por lavouras de milho, de soja,
de fumo, de cana, pelas parreiras, por galpões, estufas, pastagens, bem como pela presença
de máquinas, implementos agrícolas, casas modernas, rede de energia, entre outros. Desse
modo, ocorreram mudanças nas formas estruturais, quanto funcionais.
Considerações finais
O espaço geográfico do Chapadão no período analisado, de 1960 a 2000, tornou-se
mais artificial, devido à ampliação dos objetos construídos, pelas transformações ocorridas
na natureza, pela ampliação das relações entre a sociedade e a natureza, pela implementação
de instrumentos mecanizados de origem industrial, amenizando, dessa forma, as influências
das condições naturais e garantindo a esse espaço maior dinamicidade.
Assim, novas condições de produção são estabelecidas no espaço, bem como novas
necessidades de intercâmbio comercial, vinculadas ao meio urbano industrial e ao modelo
de produção capitalista, com conteúdo de técnica, de ciência e de informação, rompendo,
desse modo, os equilíbrios preexistentes, uma vez que aumenta a necessidade de produção
e de circulação de seus habitantes.
212
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Diante das evidências espaciais, concluímos que o espaço do Chapadão é caracterizado pelo meio técnico e não pelo meio técnico-científico, uma vez que são encontradas
técnicas que sofreram modificações, mas que carecem de informação científica. Diante disso,
percebemos que esse é o tempo do espaço geográfico do Chapadão, uma vez que cada lugar
do espaço tem seu próprio tempo.
Outra conclusão interessante que nos cabe destacar é que, no passado, a comunidade
do Chapadão estava ligada à profissão desempenhada pelos moradores, a de agricultor,
mas que hoje, se transfere para o consumo diante do novo momento histórico, em que a
circulação e não a produção é o que importa, significando a necessidade da diversificação
produtiva, a adoção de novas técnicas e a ampliação do mercado.
Concluímos também que o aumento da renda dos agricultores através da diversificação da produção significa maior capacidade de consumo, no entanto não significa mudança
na condição sócio-econômica, uma vez que as estruturas de produção, de distribuição e
circulação da produção não os beneficia e, sim, fortalece o grande capital.
Conclui-se ainda, que, apesar da conclusão do asfaltamento da estrada, na década de
1980, o município continua isolado e este isolamento tem contribuído para o esvaziamento
populacional do município, fato inibidor de investimentos. Foi possível concluir também
que o comércio do município não se apresenta intenso e essa pouca intensidade deve-se à
baixa produção, resultante das condições de esgotamento dos solos, da pequena propriedade
e do isolamento, inibindo o comércio local ou regional, significando também dificuldades
econômicas e sociais para a população residente.
O espaço é a primeira realidade com que se defronta o grupo social. A sociedade moderna, apesar de seus avanços, é dependente do espaço, mas o que fica evidente nessa relação
é que a satisfação das necessidades primárias, como a habitação e a alimentação, depende
do nível tecnológico, porque o avanço tecnológico decorre do adensamento populacional ou
da escassez dos recursos naturais, assim sendo, o grupo social cria um novo espaço, face à
saturação do originário. Esse novo espaço está sendo criado no Chapadão, uma vez que as
necessidades impostas pela ampliação das relações capitalistas exigem ou estimulam novos
empreendimentos tecnológicos, capazes de reestruturar o espaço, constatado pela elevação
do padrão de vida de algumas famílias.
Para Megale (1992), “a mudança do espaço geográfico é motivada por uma mudança
no espaço social, como um movimento através da mobilidade social” (p. 58). Essa mudança
no espaço social e por extensão no espaço geográfico no Chapadão ocorre quando seus
moradores ganham mobilidade, pois têm acesso ao conhecimento e a outras cidades ou
regiões do Estado, quando da visita aos seus familiares que emigraram. Assim sendo, essa
mobilidade social possibilita o processo de socialização do conhecimento, da informação,
do novo, pois essa mobilidade é permanente, visto que o espaço social torna-se mais amplo
que o espaço geográfico, uma vez que as relações dos indivíduos ultrapassam seu domicílio,
o local de trabalho, estendendo-se, dessa forma, a lugares de participação social de cunho
político, religioso, de lazer, etc., ampliando sua forma, estrutura e função.
Observamos ainda que toda ação social sobre o espaço como, por exemplo, a agricultura, a pecuária, o reflorestamento é sempre um exercício da função social, mas dependente
Ambientes
estudos de Geografia
213
das condições históricas da evolução de cada grupo social, em especial dos moradores do
Chapadão, uma vez que a vida rural, como todas as demais instituições sociais, apresenta
duas dimensões: a social (inerente ao próprio grupo) e a geográfica (presente na interferência
do espaço) e o relacionamento do grupo social com o espaço é historicamente diferenciada.
Apesar da importância que as condições naturais representam no processo de organização do espaço, são as condições artificialmente criadas que se sobrepõem, uma vez
que representam a expansão dos processos técnicos e da informação. Assim sendo, essa
nova forma de manifestação do meio geográfico é representada por espaços desiguais, por
razões que nos parecem muito simples, ou seja, a não simultaneidade da informação e da
absorção daquilo que é novidade, uma vez que, para sobreviver, o capital precisa expandir-se
e a constatação é que essa expansão ocorre de forma lenta. Assim sendo, “a reprodução da
vida material fica totalmente dependente da produção do valor excedente”, conforme Smith
(1988, p. 87), já que o espaço é o resultado direto da produção material.
Concluímos ainda que a aplicação da ciência no processo de produção modifica a
estrutura da produção, a qual determinará um tipo de organização espacial, já que os velhos
ramos de atividades são paulatinamente eliminados e novos vão surgindo. Isso tudo impõe
uma nova organização do trabalho e o trabalho humano passa a desempenhar um novo
papel, embora a aplicação tecnológica seja seletiva em relação à qualificação do trabalho.
Assim, a sociedade e a vida humana são também afetadas, bem como os lugares
que não escapam a tal processo hegemônico. Dessa forma, o local é a versão da dinâmica
global visto que um subsistema se instala sobre subsistemas preexistentes. Novos espaços se
estruturam ao mesmo tempo que o espaço como um todo se remodela submetido à dinâmica
do processo global. Ocorre, pois, a mudança na composição orgânica e técnica do território,
o qual passa a contar com mais ciência, mais técnica e mais informação.
Desse modo, a especialização do território se torna uma exigência da produção e a
própria complementariedade, significando uma maior circulação de mercadorias ou produtos
e uma maior divisão do trabalho. A especialização, a circulação e a divisão do trabalho se
retroalimentam. Dessa forma, os circuitos de produção, além de se tornarem mais amplos,
possibilitam uma maior fluidez de informação.
A interação existente entre espaço e sociedade, fortalecida pelos laços comuns que
unem os moradores da localidade, representados pelos traços étnicos, lingüísticos, religiosos,
costumes e folclore constroem uma identidade local, e esta, por sua vez, contribuirá para
desencadear um processo de resistência, tanto transformadora quanto conservadora, a qual
garante a especificidade espacial. Acreditamos ser essa a razão das diferentes respostas que
o modo de produção capitalista recebe ao tentar homogeneizar o espaço geográfico.
214
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Referências
FERREIRA, I.C.B. Inovações tecnológicas e novos espaços da produção. In: ENCONTRO
NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA. 10 . Teresópolis, 1990, Anais..., Rio de Janeiro:
UFRJ, 1990.
MEGALE, J.F. Espaço e realidade social em Max. Sorre. In: Geografia e Sociologia em
Max. Sorre. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1982
MIORIN, V. M. F. Modo de produção e organização do espaço agrário: uma abordagem
teórica-metodológica. 1988. Tese (Doutorado em Geografia), Instituto de Geociências e
Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1988.
SANTOS, M. et al. O espaço em questão. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
____ . Modo de produção técnico-científico e diferenciação espacial. Território, Rio de
Janeiro v. 6, n. 6, 1999.
SILVA, J. G. da. Complexos Industriais e Outros Complexos. Reforma Agrária. v. 21, n.
3, 1991.
SMITH, N. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção do espaço. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESPAÇO URBANO NO BRASIL
Paulo Roberto Teixeira de GODOY
Silvio Carlos BRAY
Introdução
Iniciada nos primeiros séculos da colonização portuguesa, a urbanização no Brasil
constitui-se em um processo histórico e espacial em curso. Acompanhou de modo singular a formação do território colonial e posteriormente, a do território nacional. Com uma
configuração litorânea, a urbanização integrou-se às práticas econômicas e às políticas de
conquista territorial por todo o interior do país. A ação urbanizadora do sistema colonial
português deu ao Brasil um caráter urbano antes mesmo do rural (REIS FILHO, 1968;
OLIVEIRA, 1982).
A cidade sempre esteve presente na história de diferentes sociedades. Em culturas
de base agrícola ou comercial, apresentava-se como uma mediação entre as mediações
(LEFEBVRE, 1974). Como cenário da evolução social, a cidade tornou-se sede do poder
político, da produção e do consumo assim como em fábrica de culturas.
Em Geografia Humana, J. Brunhes (1955) afirma que a cidade não passa de uma
aglomeração improdutiva e que deveria ser analisada com uma espécie de “ser natural”.
Na acepção de M. Sorre (1953, p. 253), a cidade em sua forma específica, “é um lugar de
contactos e de trocas de atividades, formas de vida, de sistemas de necessidades distintas”.
Para este autor, “as cidades traduziriam, na sua estrutura interna e na sua fisionomia, o caráter dominante da civilização que as produziu”. Considerou ainda, que a ação consciente
está na origem das cidades e que “o contato de duas regiões seria propício ao nascimento de
cidades e uma grande estrada, com suas etapas, determinaria verdadeiras linhas urbanas ”.
Nesse sentido, Sorre (1953, p. 256) conclui que “ existe uma cidade quando há coalescência de funções em uma aglomeração. Esta expressão significa que as funções chegam
a depender uma das outras, tornando-se assim independentes da atividade primária que deu
origem à aglomeração”.
Para Munford (1961, p. 16 e 494), a cidade “representa a possibilidade máxima de
humanização do ambiente natural e de naturalização da herança humana : ela dá ao primeiro uma conformação cultural e exterioriza a segunda em formas coletivas permanentes”.
Segundo este autor, a cidade é um “complexo geográfico, uma organização econômica, um
processo institucional, um teatro de ação social e um símbolo estético de unidade coletiva”.
A cidade condensou em sua materialidade, a técnica, a arte e as funções sociais, fazendo do
urbanismo e da política urbana, pares históricos na produção do espaço urbano.
Para o historiador F. Braudel (1967), em Civilsation matérelle, économie et capitalisme, a cidade apresenta-se como um produto da divisão social do trabalho e, ao mesmo
tempo, condição concreta de existência dos mercados nacionais.
186
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
O espaço urbano, na conjugação das concepções acima, consiste no lugar de mediações, de possibilidades, de trocas e de formas de vida. Na história das conquistas territoriais,
as cidades aparecem como espaço do poder político e militar, de efetivação do processo
colonizador e de ordenação dos fluxos de mercadorias.
Inicialmente deve-se enfatizar que a colonização portuguesa no Brasil, a partir do
século XVI, mostrou que o desempenho das cidades na conquista de territórios foi de
grande importância para o sucesso do empreendimento colonizador. A fundação de vilas,
freguesias e povoados ocorria, muitas vezes, como uma técnica de apropriação territorial.
O papel específico da cidade era o de demarcar fronteiras e garantir o domínio sobre as
terras conquistadas. A sobrevivência dessas cidades dependeu menos do campo do que da
geopolítica administrativa realizada pela coroa portuguesa.
As considerações preliminares apresentadas sobre o urbano no processo de colonização do território brasileiro durante o período colonial não procurou uma re-interpretação
do processo de urbanização na de contraposição de idéias ou concepções teóricas de espaço
e de história.
A Cidade na colônia
No Brasil, a expansão da colonização portuguesa sempre foi marcada pela presença de
freguesias, patrimônios, cidades, vilas e povoados. O significado desses núcleos urbanos na
paisagem conquistada, refletia as preocupações político-administrativas com a ocupação e a
exploração do território e também, com as formas que assumiam o domínio do colonizador
sobre a natureza e o nível de desenvolvimento técnico de sua cultura.
A idéia de criação de cidades na colonização de novas áreas, constitui-se em uma
prática secular. As fronteiras econômicas, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1963, p.
61-62), “estabelecidas no tempo e no espaço pelas fundações de cidades no Império Romano tornaram-se também as fronteiras do mundo que mais tarde ostentaria a herança da
cultura clássica”.
Na América Latina, as colonizações portuguesa e espanhola a partir do século XVI,
ocuparam e demarcaram seus territórios mediante a criação de cidades e desenvolveram,
em certa medida, economias que, necessariamente, passaram por elas.
Para Geiger (1963, p. 69),
o Brasil não escapou à característica geral da colonização européia em continentes novos, marcada pela fundação de núcleos urbanos em áreas ainda
não povoadas, como ponto de partida para a ocupação e desenvolvimento
de atividades econômicas. As localidades fundadas no Brasil podem não ter
tido, durante dezenas de anos, grande expressão, do ponto de vista de sua
população [...] Salvador, pôr exemplo, precede a expansão açucareira no
Recôncavo Baiano e mesmo se pode afirmar quanto ao Rio de Janeiro e ao
Recôncavo da Guanabara. Apoiando-se nestas cidades é que os engenhos
de açúcar se desenvolveram, inicialmente, nos seus arredores.
No século XVI, como informa Reis Filho (1968, p. 66), Portugal já realizava uma
Ambientes
estudos de Geografia
187
política urbanizadora (grifo do autor) no Brasil como “solução mais eficaz de colonização
e domínio”. O espaço urbano, como lugar de concentração de bens e pessoas, controle
político, militar e religioso e difusão do poder instituído, integrou-se de modo singular à
prática de conquista territorial, desde o período colonial.
A política urbanizadora não estava dirigida para a criação de uma economia urbana
e com base regional de influências diretas sobre uma determinada hinterlândia. Antes de
estimular, a “política urbana” portuguesa conteve-se em deter o crescimento urbano nas
colônias. Os núcleos urbanos fundados no período colonial, tiveram apenas um sentido
político de domínio territorial e escoamento de mercadorias.
Na visão do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1963, p. 66), em outra direção
conceitual e histórica sobre o papel da cidade na colônia, argumentou que
os portugueses, esses criavam todas as dificuldades às entradas terras a
dentro, receosos que com isso despovoasse a marinha. No regimento do
primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, estipula-se, expressamente, que pela terra firme a dentro não vá tratar pessoa alguma sem
licença especial do governador ou provedor-mor da fazenda real [...] outra
medida que destinada a conter a povoação no litoral é a que estipulam as
cartas de doação das capitanias, segundo as quais poderão os donatários
edificar junto ao mar e dos rios navegáveis quantas vilas quiserem, por
que por dentro da terra fyrme pelo sertam as nam poderam fazer menos
espaço de seys legoas de hua a outra pera que se posam ficar ao menos
tres legoas de terra de termo a cada hua das ditas villas e ao tempo que se
fizerem as tais villas ou cada hua dellas lhe lymitaram e asynaram logo
termo pera ellas e depois nam poderam da terra que asy tiverem dado
por termo fazer mays outra villa , sem licença prévia de Sua Majestade”.
Nota-se, na citação acima, que ao referir-se ao poder atribuído aos donatários de
fundar povoamento no litoral, quando na verdade eles não tinham tal direito, ignorou o
fato de que a fundação de vilas e povoados só poderia acontecer em terras alodiais, como
colocava o antigo direito romano em relação ao Município. Por outro lado, a fundação de
povoados e sua elevação à categoria de vilas eram considerados como título de benemerência
(grifo do autor) dos governadores coloniais perante à Coroa portuguesa.
Para Reis Filho (1968, p. 84),
a política urbanizadora da Metrópole consistia em controlar mais
diretamente a fundação e o desenvolvimento das cidades e estimular,
indiretamente, a ação urbanizadora dos seus donatários [...] A política de
colonização aplicada pelos portuguêses no Brasil até meados do século
XVII é a mesma utilizada pelos holandêses durante os 30 anos de sua
colonização do Nordeste : concentrar a atenção e os recursos nos núcleos
urbanos.
No período de dominação espanhola (1580-1640), a conquista do território a partir
das cidades, iniciou-se na Paraíba (1585), Natal (1599) e São Luís do Maranhão (1612);
e com a fundação de povoados no interior, como Caeté (1634), Canutá (1635), Alcântara
(1637) e Gurupá (1639), nos atuais Estados do Maranhão e Pará (REIS FILHO, 1968).
À medida em que a cidade tornou a ação colonizadora mais eficaz e presença na
paisagem conquistada mais comum, maior foi o empenho da Coroa portuguesa em controlar
188
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
a criação de núcleos urbanos. A cidade pode ser antes de tudo, como coloca Monbeig (1943,
p. 08), “uma forma de ato de posse do solo por um grupo humano”.
M. Marx (1991, p. 18) informa que,
um pequeno arraial que se formasse [...] por certo dependia da necessidade
de terrenos para cada morador e sua família, para toda a comunidade. Teria
ou não acesso a essa terra? Seguramente, dependeria do reconhecimento da
sociedade organizada, por mais distante que estivessem os centros do poder.
A oficialização de núcleos urbanos perante ao poder institucional dava-se com a
edificação de uma capela que uma vez visitada por um cura, poderia promover o povoado
à categoria de vila ou de cidade. Porém, segundo M. Marx (1991, p.19), “não bastava,
contudo erguer uma ermida; não bastava construir, por melhor de fosse, uma capelinha; era
necessário oficializá-las. Não era suficiente dotar o povoado de um abrigo para o exercício
religioso em comum; era necessário sagrá-lo”.
A união entre Estado e Igreja, desempenhou papel fundamental na fundação e na
elaboração de políticas de expansão urbana. O espaço urbano passou a representar não só
o poder do Estado como o da Igreja católica. A influência exercida pela organização dessas
relações de poder entre Estado-Igreja sobre o urbano, representou, de acordo com M. Marx,
um fator decisivo na definição da rede urbana brasileira.
Assim, a cidade tornava-se peça fundamental do empreendimento colonizador e religioso, a sua expansão territorial implicava em maior capacidade e eficácia na exploração
de recursos naturais. Somente no território paulista, nas antigas províncias de São Vicente
e Santo Amaro, foram fundadas, entre 1610 a 1693, nove vilas : Mogi das Cruzes (1611);
Santana de Parnaíba (1625); Taubaté (1645); Jacareí (1653); Jundiaí (1655); Guaratinguetá
(1657); Itu (1657); Sorocaba (1661); e Iguape (1693) e no oeste do Paraná, havia o núcleo
de Guaíra, que fora destruído em 1627, durante o conflito entre jesuítas e bandeirantes
(REIS FILHO, 1968).
Ianni (1988, p. 36) destacou em seu estudo sobre a cidade de Itu que
no início do século XVII, a fundação de povoados no interior paulista
forneceu apoio de ligação “na vasta rede de rios, trilhas e caminhos (ou
sítios, arraiais, freguesias, povoados, vilas e cidades) que se criaram com
a expansão do povoamento do planalto paulista, das regiões de Minas
Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná e de todo o sul do país.
Em relação a importância das estradas, Azevedo (1957, p. 151) argumentou que, “os
caminhos coloniais constituíram a espinha dorsal da rede urbana brasileira”.
No início do século XVIII, o Brasil contava com uma rede urbana de sessenta e cinco
vilas e oito cidades. Notou-se que somente no século XVIII, foram fundadas 118 vilas no
Estado de São Paulo. As principais eram : Pindamonhangaba (1705); São José dos Campos
(1767); Mogi Mirim (1769); Lorena (1788); Campinas (1797) e Bragança Paulista (1797).
No mesmo período, foram fundadas no Centro Oeste brasileiro Cuiabá (1727), Vila Bela
(1752), Cáceres (1778) e Poconé (1780) (AZEVEDO, 1957).
A distribuição espacial dessa rede urbana e sua estrutura interna revelaram o sentido exploratório da colonização e a posição política da Metrópole portuguesa em relação a
Colônia. Deve-se ponderar que o número de cidades e vilas citados corresponde aos dados
Ambientes
estudos de Geografia
189
oficiais, ou seja, considera-se apenas os que foram oficializados e sacramentados.
O controle do Estado e da Igreja na fundação e expansão de núcleos urbanos, na
organização e escoamento de mercadorias e a voracidade que caracterizou a exploração
dos recursos naturais da colônia, influenciou diretamente a ordenação do espaço interno
das cidades.
Em relação a estrutura interna das cidades, Holanda (1963, p. 62) argumentou que
ao comparar as colonizações espanhola e portuguesa na América Latina,
o próprio traçado dos centros urbanos na América Espanhola denuncia o
esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste [...] As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas
asperezas do solo;
de acordo com Aymord (1985, p. 138), seria uma espécie de “vitória da ordem sobre a
sombra, em uma cidade ideal estabelecida sob o signo do espírito”.
Sem considerar as implicações teóricas e as diferenças geográficas existentes entre
as regiões Andinas e as do litoral brasileiro, Holanda (1963) procurou enfatizar nas cidades de colonização espanhola, o rigor geométrico na ordenação do espaço urbano que as
“imunizaram” contra as forças e as assimetrias da natureza.
Em relação as cidades da colonização portuguesa, Holanda (1963, p. 75-76) as
caracterizou como espaços desorganizados e irracionais, isto é, “não é produto mental, não
chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem”.
Em relação ao traçado das cidades, Pe. Antônio Vieira dizia: não fez Deus o Céu em xadrez
de estrêlas (XAVIER PEREIRA, 1982, p. 82).
A Vila de São Paulo, como informa Xavier Pereira, significava uma paisagem de
casario estreitado no topo da colina, entrecortada pelos rios Anhangabaú e Tamanduateí,
que se mesclava às roças e criações de animais nos arrabaldes. Na descrição de Azevedo
(1957, p. 152), São Paulo se apresentava “com suas tortuosas ruas serpenteando no cabeço
da colina, estreitas num ponto, largas noutro, recortadas de casas baixas e enormes beiradas
de telhado a protegerem as paredes de taipa. Nas palavras de Morgado de Mateus, era uma
verdadeira cidade de barro”.
O espaço interno das cidades coloniais no Brasil traduzia, em primeiro lugar, o objetivo do empreendimento colonizador e, consequentemente, a função atribuída à cidade no
processo de exploração do território. Além disso, deve-se acrescentar como informa Azevedo
(1957, p. 152), que os núcleos urbanos criados pelas autoridades coloniais “obedeciam,
em suas origens, um plano regular e geométrico, se bem que adaptado às características
topográficas. Sem demora, porém, deixava-se de lado essa preocupação urbanística e a
expansão passava a se realizar de maneira espontânea”.
Além disso, vale lembrar que, segundo M. Marx (1992, p. 22), a localização do sítio
urbano não ocorreu aleatoriamente, mas obedecendo uma legislação específica criada pelo
Estado e pela Igreja. Assim, segundo o direito canônico, as Igrejas se devem fundar, e edificar em lugares decentes, e acomodados, pelo que mandamos, que havendo-se de edificar
de novo alguma igreja parochial em nosso Arcebispado, se edifique em sitio alto, e lugar
decente, livre de humidade, e desviado, quanto for possível, de lugares immundos, e sordidos.
190
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Na concepção de Holanda (1963), os núcleos urbanos caracterizavam-se pela pequena
concentração de casas em torno de uma igreja, geralmente localizada no alto de um espigão.
À revelia da natureza, o traçado das ruas, das quadras ou da praça central se faziam na
medida em que as casas, os edifícios públicos e a igreja eram construídas.
O costume de se destacar a igreja na paisagem, consistiu em uma tradição e uma
decisão política, estética e simbólica que, na verdade, obedeceu, segundo M. Marx (1992,
p. 23) “a uma legislação clara a ser cumprida se se quisesse a sagração, ainda que de uma
pobre capelinha [...] Em boa parte, nosso território com seu relevo ensejou a exploração
das colinas e das escarpas pelas capelas e igrejas em todo porte [...]” Com efeito, essa
legislação incidiu diretamente sobre
[...] o sistema de ruas e prédios ou, no mínimo, para as redondezas da
igreja. Se esta devia estar afastada das demais construções, e quanto isto
fosse possível, um espaço à volta se configuraria, sendo transformado,
com o passar do tempo e com a evolução do povoado [...] em determinado
logradouro. E isso foi possível quando o povoado era incipiente, pequeno e
de construções ainda esparsas. Além de uma igreja destacada pelas alturas,
pelo próprio sítio urbano, o arraial passava a contar com a sua valorização
pelo espaço livre em volta. Estava definida a ocupação de algum ponto
topograficamente privilegiado e um espaço aberto de expressão relativa.
(MARX, 1992, p. 23)
Desse modo, supõe-se que a configuração topográfica do sítio urbano, constituiu-se
em outro obstáculo de geometrização do espaço interno das cidades. Os casos de Salvador,
São Vicente, Ouro Preto e outras, são exemplos de “obediência” da estrutura urbana às
sinuosidades do terreno.
O traçado prévio, organizando a ocupação do solo urbano, surgiu, historicamente
como resposta às mudanças de funções adquiridas pela cidade na economia colonial e pela
valorização do solo urbano decorrentes da concentração populacional.
Embora a Igreja, unida ao Estado, tenha sido responsável em grande parte pela
expansão urbana, a sua distribuição espacial ao longo do litoral correspondeu, sem dúvida,
aos objetivos econômicos e geopolíticos da Coroa portuguesa. A localização das cidades e o
traçado dos caminhos que as interligavam, relacionaram-se diretamente com as necessidades
de escoamento de mercadorias e controle da exploração de recursos naturais.
Em relação à configuração litorânea da urbanização, Oliveira (1982, p. 37) argumentou que
[...] as cidades se constituíram segundo um padrão litorâneo não só devido
ao seu caráter exportador de produtos primários, mas também devido à
divisão social do trabalho, e isto tem a ver com a forma específica do
capital que controlava desde cima (sem entrar nela) essa economia agroexportadora. Vai ser nas cidades que se localizarão tanto os aparelhos que
fazem a ligação da produção com a circulação internacional de mercadorias quanto os aparelhos de Estado - do Estado colonial português,
em primeiro lugar, e depois do Estado brasileiro - que tem nas cidades,
evidentemente, a sua sede privilegiada.
De acordo com Reis Filho (1968, p. 38), a cidade se estabeleceu em decorrência do
Ambientes
estudos de Geografia
191
processo de urbanização e não ao contrário. Isso porque, como bem argumentou Oliveira
(1982, p. 37),
estamos acostumados a entender que o fenômeno da urbanização na sociedade e na economia brasileira é um fenômeno que se deflagra apenas a
partir da industrialização [...] O que nos tem levado a desprezar, de certa
forma, a formação urbana dentro das condições da economia exportadora.
Assim, a rede urbana que se formou nos primeiros séculos de colonização, constituiuse em um conjunto de respostas às solicitações deste processo de urbanização e conquista
territorial.
De acordo com Oliveira (1982, p. 38), “o urbano no Brasil é historicamente fundado
numa contradição singular : enquanto o locus da produção era rural, agrário, o locus do
controle foi urbano”. Considerou-se que o movimento de acumulação primitiva do capitalismo mercantil teve sua sede de controle na cidade porque tratava-se de uma economia
com uma função específica dentro do sistema internacional de acumulação. Fundada para
exportação, a cidade nasce no Brasil antes mesmo do campo.
A política de exploração realizada pela Coroa portuguesa no Brasil, não excluiu a
idéia de criação de cidades como forma de domínio territorial e pontos de escoamento de
mercadorias. A articulação entre elas, caracterizou a rede urbana e o modo como o processo
de colonização se desenvolveu.
A colonização portuguesa no Brasil não caracterizou-se como um movimento demográfico. Na verdade, como argumenta Novaes (1997, p. 20),
a colonização moderna não foi um fenômeno essencialmente demográfico,
mas por certo tinha uma dimensão demográfica muito importante. Não foi
essencialmente demográfico no sentido de que o movimento colonizador
não foi impulsionado por pressões demográficas [...]. A colonização do
Novo Mundo articula-se de maneira direta aos processos correlatos de
formação dos Estados e de expansão do comércio que marcam a abertura
da modernidade européia.
Na dimensão política, decorreu um permanente esforço metropolitano no sentido
de expandir o território da dominação colonial para além das possibilidades de exploração
econômica. Isso devido, segundo Novaes (1997, p.22), ao fato de
os Estados modernos em gestação na Europa estão se formando uns contra
os outros, de aí essa furiosa competição para garantir espaços na exploração colonial. No caso português, esse processo é levado ao limite, e é
o que explica a enorme desproporção entre a pequenez da Metrópole e a
imensidão da Colônia. E é também de aí que resulta a enorme dispersão
e rarefação das populações coloniais.
Em relação ao rompimento da concentração do povoamento na faixa litorânea ocorreu parcial e momentaneamente na fase da mineração, quando a ocasião da descoberta de
ouro e diamantes gerou um importante movimento migratório entre as regiões litorâneas
(São Paulo e Rio de Janeiro) e as regiões de Minas Gerais e sul de Goiás. De acordo com
Deffontaines (1944, p. 143), “a colonização mineira se apresentou essencialmente sob a
192
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
forma de uma civilização urbana”.
A vida urbana da colônia foi vista como um prolongamento e uma complementação
da metrópole e, ao mesmo tempo, a sua negação e o seu avesso. A população da colônia
na perspectiva metropolitana era equivalente à da metrópole, porém a metrópole era uma
região de emigração, e a colônia uma região de imigração (NOVAES, 1997, p.20).
A forte concentração econômica e política em São Paulo e no Rio de Janeiro a partir
principalmente de meados do século XIX, associada às formas de controle sobre a distribuição de terras, foram fatores internos que contribuíram para o fortalecimento da economia
litorânea. Para Azevedo (1957, p. 114), a obra de urbanização conseguiu libertar-se da orla
atlântica, em conseqüência da expansão povoadora e da conquista do Planalto Brasileiro e
da própria Amazônia”.
Vale dizer, de acordo Novaes (1997, p. 25), que
a economia açucareira organiza-se para exportação; e a subsistência (como
a de São Paulo, ou a pecuária nordestina), que está voltada para dentro, dá
lugar a uma formação social instável, móvel, sem implantação. De outro
ângulo, o contraponto entre o caráter profundamente rural da sociedade
litorânea, e marcadamente urbano das Minas, realça a diversidade até o
paradoxo : o mais estável, permanente, é o setor litorâneo, voltado para
fora, nas bordas; o mais fluido e superficial é o setor interiorizado e urbano.
Como elo de ligação entre Metrópole e colônia, a cidade encontrou-se envolvida
por um conjunto de relações políticas administrativas, comerciais e culturais que a tornava,
cada vez mais, parte de uma rede urbana e de um sistema econômico interno.
A política urbanizadora, como argumenta Reis Filho (1968), teve seus desdobramentos durante todo o século XVIII para se consolidar como processo de urbanização no
século XIX, quando o espaço urbano adquiriu novos significados para os agentes sociais,
políticos e econômicos da conquista territorial. Na perspectiva do poder da Metrópole
portuguesa, os núcleos urbanos na colônia tornaram-se espaços de controle e, ao mesmo
tempo, permitiram ampliar, com eficácia, o sistema administrativo. Para o Estado brasileiro,
a cidade tornar-se-ia a condição concreta de intervenção política na economia e na sociedade.
As melhorias ocorridas nos quadros administrativos no início do século XIX, implicaram a incorporação de novos serviços tipicamente urbanos, (jurídicos-burocráticos,
comerciais, transportes e culturais) provocando alterações nas funções da cidade, bem como
modificações importantes na regulação do uso do solo urbano. As demandas de serviços
derivadas das atividades agrícolas e comerciais, que passaram a ser atendidas na cidade,
resultaram na edificação de prédios públicos, estabelecimentos comerciais, casas teatrais,
escolas, bibliotecas, praças etc.
Com o adensamento da aglomeração urbana, aumentou-se a pressão sobre o solo
urbano e, desse modo, as necessidades de parcelamento e geometrização do espaço interno
das cidades.
O parcelamento do solo urbano, como forma de regulamentação e controle do uso e
ocupação, registrou as regras impostas e elaboradas exclusivamente para as cidades. A divisão
dos lotes implicava na definição de espaços públicos e privados, bem como no seu preço.
Ambientes
estudos de Geografia
193
O desenvolvimento da economia colonial ao longo dos séculos XVII e XVIII, embora
voltada inteiramente para o campo, desdobrou-se em uma rede urbana que no século XIX
passou a concentrar, em determinadas regiões, significativos contingentes populacionais.
Segundo Geiger (1963), três fatores contribuíram para a expansão urbana durante o
século XIX : a abolição da escravatura; a maior divisão do trabalho; e o desenvolvimento
das médias e pequenas propriedades rurais. Um quarto fator pode ser acrescentado se
considerarmos a imigração européia na segunda metade do século XIX, sobretudo, para
São Paulo e Estados do sul do País. Por outro lado, como observa Deffontaines (1944, p.
144), “no decurso do século XIX, com o declínio da mineração, a montanha ficou vazia
com suas cidades mortas, verdadeiros monumentos históricos perdidos num deserto: São
João del Rei e Congonhas do Campo”.
Santos (1996, p. 20) informa que “ no final do período colonial, as cidades, entre as
quais avultaram São Luís do Maranhão, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, somavam perto de 5,7% da população total do País, onde viviam, então, 2.850.000 habitantes ”.
No final do século XIX, haviam apenas três cidades com mais de 100.000 habitantes:
Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A partir do início do século XX, sobretudo no Estado de
São Paulo, a cafeicultura e a ferrovia foram decisivos para crescimento das cidades. Em
1900, a cidade de São Paulo contava com aproximadamente 240.000 habitantes.
Localizadas na faixa litorânea, formando o tão propalado “arquipélago econômico”,
as cidades litorâneas lançaram raízes para o interior do território, configurando uma relativa
continuidade do processo de expansão urbana através do movimento da fronteira agrícola.
De acordo com Santos (1996, p. 20), esse
arquipélago, formado por subespaços que evoluíam segundo lógicas próprias [...] foi relativamente rompido na segunda metade do século XIX,
quando, a partir da produção do café, o Estado de São Paulo se torna o pólo
dinâmico de vasta área que abrange os estados mais ao sul e vai incluir,
ainda que modo incompleto, o Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Na verdade, o processo de urbanização sofreu poucas alterações entre o final do
século XIX e o início do século XX. A aceleração do processo se deu entre os anos 20 e 40,
período em que a população ocupada em serviços cresceu mais rapidamente que o total da
população economicamente ativa. No caso do Estado de São Paulo, a taxa de crescimento
da população urbana no o referido período foi de 43% (SANTOS, 1996).
A história da colonização portuguesa no Brasil, mostra também a história e a geografia
da cidade. Da conquista territorial à exportação de produtos agrícolas, a cidade desenhou o
mapa econômico e político do Estado português, constituindo-se, ao mesmo tempo, como
espaço de controle sobre o território conquistado e ponto de articulação com a economia
metropolitana, tornando-se cidades internacionais antes mesmo de serem nacionais.
As relações econômicas entre Metrópole e Colônia se faziam através das cidades
e estas, por sua vez, dependiam menos do sucesso empreendedor da colonização do que
da política administrativa estabelecida pela Metrópole. O caráter de espaço de articulação
entre Colônia e Metrópole produziu uma rede urbana singular dado à especificidade de suas
funções no sistema colonial e de sua distribuição geográfica .
194
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Evidentemente, outras características poderiam ser atribuídas a cidade no período
colonial e outras relações poderiam ser exploradas do ponto de vista teórico e conceitual,
como também do seu papel em territórios em processo de incorporação. A arquitetura, o
urbanismo, a cultura urbana e as relações de poder através das cidades, constitui-se em um
campo de pesquisa extremamente importante para a geografia urbana brasileira, mas ainda
pouco estudado e analisado teoricamente.
Os trabalhos realizados durante os anos 40 e 50, revelaram uma certa preocupação em
relação ao período colonial, um desses trabalhos, como observou-se, foi Vilas e cidades do
Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva, de Aroldo de Azevedo, publicado
pela Universidade de São Paulo (USP), em 1956. Outro trabalho, menos abrangente, foi
o de Pierre Deffontaines (1944) no artigo Como se constituiu a rede de cidades, enfatizou
sobretudo o Estado de São Paulo.
Outro geógrafo que tratou da questão urbana no início dos anos 50, considerando
a cidade desde o período colonial foi Pierre Monbeig (1943), em estudos sobre Goiânia e
a frente pioneira no oeste paulista e norte do Estado do Paraná, mostrando a preocupação
em valorizar o período de colonização para uma melhor compreensão do urbano no Brasil.
Com Evolução da Rede Urbana Brasileira lançado em 1963, Pedro Geiger apresentou
um importante estudo sobre as funções da cidade na Colônia e seu processo de evolução
nas áreas de expansão territorial.
A partir dos anos 60, os trabalhos de pesquisa em geografia urbana passaram a
enfatizar principalmente, o processo de industrialização, a formação da rede urbana, a
regionalização e questões relacionadas ao planejamento regional. Muito desses trabalhos
romperam com a história. Um exemplo pode ser notado em Análise fatorial : problemas
e aplicações em geografia, de Faissol (1973), e tantos outros considerados de abordagem
quantitativa ou neopositivista.
Assim, considerando o que se expôs anteriormente em relação ao recorte histórico
e espacial da análise sobre o papel da cidade nas áreas de fronteira econômica, passou-se a
examinar a urbanização do Estado de São Paulo até os anos 30 em seus aspectos gerais.
O processo de urbanização no Estado de São Paulo nas décadas de 1920 e 1930
O processo de urbanização no Brasil, entre o final do século XIX e as primeiras
décadas do século XX, apresentou em termos numéricos, pequenas alterações no quadro
geral do seu crescimento. Em 1872, a população total era de 10.112.061 habitantes, apenas
6,8% estavam nas cidades; em 1920, a população total era de 27.500.000, e a população
urbana passou para 10,7% (SANTOS, 1996).
Em relação ao interior do Estado de São Paulo, Rossini (1988, p. 74) informa que
a urbanização acelerada pelo “movimento de capitais mercantis locais propiciando investimentos de origem privada de companhias de energia, de telefone, de meios de transporte,
bancos, instituições de ensino etc”; reforçaram de modo significativo o crescimento urbano
através da ampliação do setor de serviços.
Considerou-se que o uso de energia elétrica, como um dos indicadores do crescimento
Ambientes
estudos de Geografia
195
de atividades urbanas e de inovações técnicas, mostra que no início do século XX (1907),
trinta e dois estabelecimentos industriais utilizavam-se da energia elétrica e nos anos 20,
eram 3.042 estabelecimentos (LORENZO, 1997, p.179).
Nos anos 20, embora tenha sido a exportação de café o principal elo de ligação com
o mercado externo, foi na cidade que o capital estrangeiro se instalou com maior proeminência. Entre os anos 30 e 50, o Brasil passou de exportador de produtos primários, para
importador de bens de consumo duráveis e de capital fixo.
Esse processo de urbanização, que antecedeu o desenvolvimento da economia industrial do pós guerra (1945), apresentou-se nas décadas de 1920/30 de modo bastante singular
nas zonas de fronteira agrícola do oeste paulista.
As regiões pioneiras do oeste paulista (municípios de Marília, Araçatuba, São José
do Rio Preto e Presidente Prudente) foram durante as três primeiras décadas do século XX,
o palco privilegiado da atuação do café e da ferrovia. Ambos constituíram-se nos agentes
protagonistas do movimento pioneiro, alterando a localização (privilegiou-se os espigões
dos planaltos) e a estrutura das cidades, bem como suas relações comerciais. A estação
ferroviária, como observa Geiger (1963, p. 92), “ou atraiu para a sua proximidade o centro
comercial, ou criou um outro”.
A relação café-ferrovia, no final do século XIX, iniciou-se com a construção da São
Paulo Railway entre 1860 e 1865, ligando Santos-Jundiaí. Em 1872, como informa Singer
(1974, p. 39),
deu-se a concessão da Estrada de Ferro São Paulo-Rio, que partindo de São
Paulo, alcança Moji das Cruzes em 1875, Jacareí, São José dos Campos,
Caçapava e Taubaté no ano seguinte, e Pindamonhangaba, Guaratinguetá
e Cachoeira, em 1877, entroncando nessa cidade com a Estrada de Ferro
Central do Brasil (antiga D. Pedro II). Completava-se desta forma a ligação
com a Capital Federal.
No início do século XIX, o café representava 18,4% da exportação nacional; no caso
açúcar era de 30,1% . Entre 1831 e 1840, a exportação de café chegou a 43,5% e a do açúcar
a 24,0%. No final do século o café era responsável por 64,5% das exportações (ROSSINI,
1988, p. 73). Além disso, foi a partir do final do século XIX, como informa Rossini, “ que
o grande surto imigratório para São Paulo vai ocorrer, subsidiado pelo governo provincial.
Neste período, a população cresceu cerca de 46,0%, atingindo 1.221,383 habitantes em 1900
chegou a 2.282.269 habitantes”.
Deve-se enfatizar o período compreendido entre 1872 e 1920, pois a partir deste
período que o processo de urbanização no Estado de São Paulo ganhou impulso definitivo.
Segundo Lorenzo (1997, p. 169), em estudo sobre o uso de energia elétrica no Estado de São
Paulo durante a década de 1920, observou que “o crescimento da população das cidades de
mais de trinta mil habitantes [...] entre 1872 e 1920, é de 7.393%, contra um crescimento
de 488% para a população total do Estado”.
Observou-se ainda que, neste período, quando a imigração se acentuou e o café e a
ferrovia passaram a expandir-se para o oeste paulista, o segmento dominante do movimento
196
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ruralista brasileiro passou a empenhar-se mais fortemente na organização política da agricultura. Em 1897 foi fundada a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), que propunha
a diversificação agrícola e a modernização técnica das relações de produção. Em 1909,
foi criado o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio com o objetivo de estimular
a diversificação agrícola e preparação da mão-de-obra rural através do ensino agrícola e
fomento à imigração/colonização.
Por outro lado, referindo-se às relações de trabalho, a importância da ferrovia
relacionou-se não somente com o avanço da cafeicultura e com a reestruturação da rede
urbana paulista, mas também com a expansão das relações capitalistas de produção. A
divisão interna do trabalho, a hierarquia administrativa, os regimentos internos de regulação e controle da produção, são aspectos que fizeram da empresa ferroviária um modelo
de organização e disciplina do trabalho que influenciaram outras atividades econômicas,
inclusive a cafeicultura.
A influência da ferrovia deu-se, sobretudo, na cidade. O traçado das estradas de ferro
não só alterou o funcionamento da rede urbana, surgindo várias cidades ao longo de suas
paralelas de aço, como diria Odilon Nogueira (1974), como também as “contaminou” de
cultura urbana e ‘modernidade’.
Sem dúvida, a expansão urbana que acompanhou a chamada “frente pioneira” correspondeu de acordo com Lorenzo (1997, p. 137),
às necessidades do café, ou dos privilegiados urbanos, em seus investimentos” e abriu “possibilidades de absorção do desemprego, e [...] à
necessidade de manutenção da situação básica dominante; a sociedade
hegemonicamente agrária faz do desenvolvimento urbano a sua janela
para o exterior, a janela que recepcionará o moderno.
As cidades que surgiram com a ferrovia modificaram, em grande parte, o funcionamento da antiga rede urbana. Antes de serem criadoras de cidades, como argumentou
Deffontaines (1944, p. 56), as ferrovias provocaram uma verdadeira hecatombe urbana. Este
autor informa que, “primeiro foi a morte de todos os pequenos portos da costa não servidos
pelas vias férreas: Angra dos Reis, Ubatuba, Nova Almeida e Tôrres”. Depois, provocaram
uma forte concorrência com a navegação fluvial que gerou a decadência e a estagnação de
cidades ligadas a este setor.
Seguindo as “cristas dos espigões” a ferrovia no Estado de São Paulo, sobretudo
na primeira metade do século XX, tornou-se, parafraseando Azevedo, a “espinha dorsal”
da rede urbana do interior paulista. As principais companhias ferroviárias que atuaram no
Estado de São Paulo (Companhia Paulista, Sorocabana, Noroeste do Brasil, Mogiana), tinham
como prática comum a construção de estações e sub/estações em distâncias que variavam
entre 20 e 30 quilômetros ao longo das respectivas linhas férreas. As estações ferroviárias
funcionaram, muitas vezes, como embriões de cidades ou pequenas vilas ou simplesmente
sucumbiram, mais tarde, com a crise do café e da ferrovia.
No caso da Companhia Paulista, a maioria das linhas foram estabelecidas principalmente na chamada zona velha, anteriormente ocupada pelo café e com inúmeras cidades.
A Noroeste do Brasil, por outro lado, se expandiu nas zonas pioneiras, onde a divisão da
Ambientes
estudos de Geografia
197
terra e tampouco a cafeicultura tinham alcançado.
Geralmente, na estação terminal da linha férrea – ponta de linha – surgia um núcleo
urbano que ganhava rapidamente status de cidade. Em 1896, quando a ferrovia chegou em
Bauru, era um povoado que contava, como informa Deffontaines (1944), com cerca de “50
cabanas de madeira”; 2 anos depois era uma cidade com perto de 4.000 habitantes.
Além da ferrovia e da cafeicultura, as médias e pequenas propriedades produtoras
de alimentos, proporcionaram também, como argumentou Prado Jr. (1944, p. 64), uma
“maior rapidez na organização da rede urbana, com melhor caracterização da hierarquia de
seus centros urbanos”.
As cidades que surgiram com a monocultura do café e a expansão da ferrovia até
o final do século XIX, foram essencialmente cidades de serviços. As cidades da indústria
nasceram com o algodão e a cana-de-açúcar. O processo de urbanização nutrido pelo binômio café-ferrovia no Estado de São Paulo só ganhou impulso definitivo a partir dos anos
30, mas as duas primeiras décadas do século XX foram decisivas para o desempenho da
economia paulista no cenário nacional.
Entre 1900 e 1920, a população paulista cresceu 101,2%. No censo de 1920 o Estado
de São Paulo contava com 15% da população nacional (4.592.188 habitantes) e participava,
em 1907, com 16% da produção industrial; em 1919, era de 31%. Além disso, em 1920, São
Paulo contava com 6.810 quilômetros de estradas de ferro e a Capital paulista chegava aos
593.134 habitantes ( ROSSINI, 1988; SINGER, 1974).
A expansão da ferrovia foi acompanhada durante todo período pela expansão rodoviária. Observou-se que no governo de Washington Luís Pereira de Souza (1920-1924), a
abertura de estradas estaduais (rodovias) e vicinais foram alvos constantes de investimentos.
“Em 1924, [...] o Estado de São Paulo contava com 22.432 veículos, sendo 4.395 caminhões,
trafegando em mais de mil quilômetros de rodovias, construídas pelo governo estadual”; O
ano de 1924 foi também o da instalação da General Motors, no município de Santo André
(REIS FILHO, 1997, p.149).
No referido período, a agricultura paulista produzia 28% do valor da produção
agrícola em 2.000.000 de hectares cultivados (30% da área cultivada no País). Segundo o
Censo Agropecuário de 1920 (FIBGE), dos 648 mil estabelecimentos agrícolas existentes
no Brasil, 80.921 estavam no Estado de São Paulo. Além disso, como informa Tartaglia
(1993, p. 14), “a agricultura paulista utilizava 401 tratores e 27.902 arados (tração animal
e mecânica) o que representava 23,5% do total de tratores do país e 19,8% dos arados utilizados”. Os 24,7 milhões de hectares do Estado de São Paulo, 14,3% estavam ocupados
com lavouras, 48,4% com pastagens e terras incultas e 37,2% com matas naturais. Evidentemente, devemos ponderar sobre a exatidão desses dados, uma vez que as dificuldades
encontradas na época e as possibilidades de mapeamento das áreas e levantamento de dados
eram extremamente limitadas.
Para Tartaglia (1993, p.59-64), durante os anos 20 a rede urbana paulista definiu-se
“em torno dos eixos ferroviários e as cidades-pólo mais importantes delineadas e consolidadas em sua maioria”. Segundo este autor, “ao longo dessas ferrovias nascem e florescem
núcleos urbanos que, de várias formas, apoiam a atividade agrícola, sustentam a operação
198
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
da ferrovia e se integram rapidamente ao sistema urbano paulista”. A base dessa rede urbana originou-se, portanto, na produção do café e “assentou-se no desenho das ferrovias,
onde se distribuíam núcleos urbanos que davam suporte às lavouras e às necessidades de
armazenagem e transporte de café e outros produtos”.
Neste caso, o surgimento da cidade condicionou-se, primeiramente, à expansão da
ferrovia e a função de suporte dos fluxos e armazenagem de mercadorias. Ou seja, o surgimento dos núcleos urbanos correspondeu à demanda gerada pela produção agrícola : o café.
Entretanto, cidades como Ribeirão Preto, Araraquara e São José do Rio Preto (todas fundadas
por mineiros) surgiram antes do café e da ferrovia; por outro lado, cidades como Valparaíso
e Andradina (Noroeste do Brasil) surgiram antes mesmo da chegada da “frente pioneira”.
A concepção de que a rede urbana no oeste paulista se formou a partir da expansão
cafeeira e ferroviária, deixou de lado fatores que não permitem a compreensão acerca dos
processos de espacialização do urbano no Interior do Estado do São Paulo. Entre os fatores
importantes, analisados mais adiante, referem-se à atuação das companhias privadas de
colonização e comercialização de terras, do processo de estruturação agrária e do papel
desempenhado pelo Estado na formação da economia regional.
O surgimento da cidade na fronteira agrícola do oeste paulista, na primeira metade
do século XX, resultou, em grande parte, do processo de urbanização de meados do século
XIX, e não somente de um conjunto de fatores que passou a se articular economicamente
em função da cafeicultura e da ferrovia, fazendo com que a cidade surgisse como espaço
do excedente.
Sem dúvida, as cidades constituíram-se em espaço de trocas, de suporte da economia agrícola, armazenagem e beneficiamento de produtos agrícolas. Essas funções, porém,
foram as que as cidades adquiriram ao longo do movimento de expansão agrícola e não as
que lhes deram origem.
Em relação ao avanço da economia paulista, referido acima, pode-se destacar vários
fatores que contribuíram para o seu dinamismo : a expansão da cafeicultura; a implantação
de uma importante malha ferroviária; a substituição do trabalho escravo pelo imigrante
livre; a descentralização política administrativa advinda com a proclamação da República;
e o precoce, mas acelerado, processo de industrialização da Capital paulista.
O conjunto desses fatores deve ser entendido como resultado de um contexto mais
amplo, envolvendo as escalas nacional e internacional. A Primeira Guerra Mundial, por
exemplo, aumentou as exportações, favoreceu a emergência de políticas industriais e ampliou,
relativamente, o mercado interno. Os dados abaixo confirmaram a supremacia econômica
de São Paulo no referido período: 15% da população nacional; 28,8% da produção agrícola;
2,3 milhões de hectares de área cultivada (50% de café); 50% das exportações nacionais;
75% das exportações são produtos manufaturados; 6.600 quilômetros de ferrovias.
A partir dos anos 30, o processo que articulou agricultura-urbanização-indústria,
ganhou impulso decisivo com a presença do Estado. A mudança no modo de acumulação de
capital, unificou os interesses industriais, financeiros, imobiliários, comerciais e agrícolas,
como também instituiu uma nova divisão espacial e social do trabalho. São Paulo tornouse, como argumentou Rossini (1988), o centro nervoso da economia nacional.
Ambientes
estudos de Geografia
199
Embora a crise do modelo agro-exportador a partir do anos 30 tenha colocado a
agricultura em segundo plano em relação aos investimentos políticos e econômicos do Estado, parte do capital cafeeiro se associou às diretrizes da indústria e do setor de serviços,
sobretudo nos ramos de transporte e imobiliário, e dinamizou de modo efetivo o desenvolvimento industrial.
Com o avanço da industrialização, o processo de unificação do mercado interno e
a concentração da produção industrial na região sudeste se acentuou de modo decisivo e
permitiu a rápida formação de aglomerados urbanos industriais e, consequentemente, aprofundou as desigualdades regionais. Por outro lado, a diminuição do movimento imigratório
acentuou a migração interna, o que resultou em uma divisão regional do trabalho, onde a
Região Nordeste apareceu como mercado de mão-de-obra para a indústria do Sudeste, e o
Norte e Centro-Oeste como regiões de expansão da fronteira agrícola dirigida pelo Estado.
A partir de 1940, como informa Rossini (1988, p. 106 e 113), “as ferrovias entram em
franco declínio, acelerando a retirada de ramais deficitários por falta de modernização e por
causa da nova política do Estado. Em 1955 quase 1.000 km de ferrovias foram suprimidos”
, ao mesmo tempo, a diversificação da agricultura passou a impor uma “nova orientação na
compartimentação espacial da produção agrícola”, fazendo com que a articulação Capital e
Interior passasse a se apoiar no tripé industrialização-urbanização-agricultura.
Referências
AZEVEDO, A. De vilas e cidades do Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva. Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros, tomo I, n. 9, 1954.
AYMORD, M. Espaços. In: BRAUDEL, F. (Org.). O Espaço e a História no Mediterrâneo.
Tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 129-151.
BRAUDEL, F. Civilization matérelle économie et capitalisme. Paris: Armand Colin, 1967.
BRUNHES, J. Geografia humana. Tradução P. Deffontaines. Barcelona: Editorial Juventud, 1955.
DEFFONTAINES, P. Como se Constituiu no Brasil a Rêde de Cidades. Boletim Geográfico.
Rio de Janeiro, v. 2, n. 14, p. 141-148, 1944.
FAISSOL, S. Tipologia de cidades e regionalização do desenvolvimento econômico: um
modelo de organização espacial do Brasil. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 30, n.
223, p. 25-58, 1971.
GEIGER, P.P. Evolução da rede urbana brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos, Brasil: Ministério da Educação e Cultura, 1963.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil . Brasília: Universidade de Brasília, 1963.
IANNI, O. Uma Cidade Antiga. Campinas: Unicamp, 1988.
LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.
LORENZO, H. C. Eletricidade e modernização em São Paulo na década de 1920. In: LORENZO, H.C.; COSTA, W. P. (Orgs) A década de 1920 e as origens do Brasil moderno:
São Paulo, Editora Unesp, 1997, p. 159-184.
200
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Edusp;Nobel, 1991.
MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec;Polis, 1984.
______. O Estudo Geográfico das Cidades. Boletim Geográfico: Rio de Janeiro, v. 1, n.
07, p. 6-15, 1943.
MUNFORD, L. Cultura das cidades. Tradução Neil R. da Silva. Belo Horizonte: Itatiaia,
1961.
NOVAES, F. A. Condições da privacidade na colônia. In: SOUZA, L. M. (Org.), História
da vida privada : cotidiano na América Portuguesa . São Paulo: Companhia das Letras,
1997. p. 13-40.
OLIVEIRA, F. O Estado e o urbano no Brasil. São Paulo. Espaço & Debates, São Paulo,
n.6, p. 27-41, 1982.
PEREIRA, P. C. X. Espaço, técnica e construção. São Paulo: Nobel, 1988.
PRADO Jr., C. Problemas de povoamento e a pequena propriedade. Boletim Geográfico:
Rio de Janeiro, v. 1, n. 12, p. 42-68, 1944.
REIS FILHO, Nestor G. Contribuição ao estudo da evolução urbana no Brasil
(1500/1720). São Paulo: Pioneira; EDUSP, 1968.
______. Cultura e Estratégias de Desenvolvimento. In: LORENZO; COSTA, H. C. e W.
P. (Org.), A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora Unesp,
1997. p. 143-158.
ROSSINI, R. E. Geografia e Gênero : a mulher na lavoura canavieira paulista. 1988.Tese
(Livre-Docência) .Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, 1988.
SANTOS, M. A Urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1996.
SINGER, P. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana. São Paulo: Nacional, 1974.
SORRE, M. Les fondements de la géographie humane – tomo III, “L’Habitat”, Paris:
Libraire Armand Colin, 1953.
TARTAGLIA. J. C. Agricultura e Urbanização em São Paulo (1920-1980). 1993. Tese
(Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade
Estadual Paulista, Rio Claro, 1993.
A TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA DO CONCEITO DE
TERRITÓRIO NO ENSINO DE GEOGRAFIA
Levon BOLIGIAN
Rosângela Doin de ALMEIDA
Introdução
Neste trabalho, parte-se do pressuposto de que a atual crise do ensino de Geografia,
nas fases do Fundamental e Médio, deve-se, em grande parte, ao tipo de conhecimento
geográfico que o sistema de ensino tem apresentado aos alunos: de maneira geral, uma
Geografia escolar desatualizada, cujos conteúdos (oriundos de uma Geografia tradicional
e descritiva) e os métodos (baseados na memorização de conceitos) não acompanharam as
mudanças epistemológicas e conceituais ocorridas na esfera da Geografia acadêmica nas
últimas décadas.
Dessa forma, torna-se clara a existência de um distanciamento entre o conhecimento
geográfico científico e o conhecimento geográfico escolar, decorrente da desatualização dos
conteúdos e dos métodos empregados pela Geografia escolar em relação àqueles da Geografia
científica. Ou seja, o conhecimento ou o saber geográfico ensinado na escola apresenta-se
envelhecido, gasto, em função daquilo que Chevallard (1991) chama de “obsolescência”
diante das transformações sociais e científicas contemporâneas. Portanto, entende-se que
este fato estaria distanciando o saber geográfico acadêmico do saber geográfico escolar.
Objetivos e metodologia do trabalho
Sabendo-se que o conhecimento ensinado na escola é, em grande parte, orientado
pelos conteúdos selecionados e estabelecidos pelos currículos oficiais e pelos conteúdos
programáticos dos livros didáticos, investigou-se neste trabalho, a maneira pela qual estes
elementos do sistema de ensino promovem na disciplina de Geografia, aquilo que Chevallard
(1991) denomina “transposição didática do saber”, ou seja, de que forma transformam um
“objeto de saber científico” - no caso deste estudo, o conceito de território - em um “objeto
de ensino”, ou melhor, em um saber a ser ensinado na sala de aula.
Antes de continuarmos a discorrer sobre o processo de transposição didática, é
fundamental esclarecer alguns pontos a respeito da escolha do conceito de território – uma
categoria fundamental da ciência geográfica – como objeto de análise dentro do currículo
oficial e dos livros didáticos de Geografia.
Atualmente, é bastante difundida entre estudiosos da Educação, e mesmo do ensino
de Geografia, a idéia de que a priorização do aprendizado de conteúdos conceituais é uma
das principais formas de romper com uma tradição, ainda bastante forte, de se desenvolver
236
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
apenas a aprendizagem memorística de conteúdos factuais. Dessa forma, o uso de conceitos vem atribuir sentido ao processo educacional, ou seja, vem priorizar, aquilo que David
Ausubel (AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1980) chama de processo de aprendizagem
significativa dos conteúdos escolares. Isso porque, segundo Pozo (1998, p.21), para que
“[...] os dados e os fatos adquiram significado, os alunos devem dispor de conceitos que
lhes permitam interpreta-los”.
De acordo com Moreira e Buchweitz (1993), para Ausubel, o processo de aprendizagem decorre da relação que estabelecemos, em nossas mentes, entre as novas idéias,
informações e conceitos e aqueles que já havíamos apreendido anteriormente e que, de
certa forma, encontravam-se disponíveis no interior de nossa estrutura cognitiva. Ainda
segundo os autores (citados), Ausubel supõe que as pessoas pensam, basicamente, a partir
de conceitos, os quais revelam o significado das coisas, ou seja, dos objetos, dos fenômenos
ou dos eventos. Assim, para esses dois primeiros autores, a aprendizagem significativa “[...]
envolve a interação da nova informação com uma estrutura de conhecimento específica,
a qual Ausubel define como conceitos ‘facilitadores’, existentes na estrutura cognitiva do
indivíduo”.
Dessa maneira, entendemos que os conceitos ou as categorias-chave de cada ciência
podem ser empregados como elementos “facilitadores” do processo de aprendizagem, na
medida em que passam a nortear os conteúdos escolares, criando condições para que os
processos pedagógicos tenham maior sucesso no âmbito da sala de aula.
Ao transportarmos essa discussão para a esfera da Geografia escolar, citamos Santos
(1993), que afirma ser essencial ao currículo apresentar-se como um instrumento contemporâneo, aproximando os alunos da realidade por meio de conteúdos que mostrem como as
relações entre as coisas são históricas e dinâmicas. Segundo esse autor, isso somente será
possível por meio do ensino das categorias fundamentais da Geografia.
Neste estudo, propomos o território como um conceito “facilitador” no ensino de
Geografia, por entendermos que todos os outros conceitos geográficos fundamentais estão,
de certa forma, e em escalas diferentes, contidos implicitamente nesse conceito. Pela sua
abrangência teórica, o conceito de território nos parece ser mais que um conceito-chave da
Geografia. Na realidade, o território é, por assim dizer, um metaconceito da ciência geográfica.
O que é a transposição didática
A transposição didática apresenta-se como uma teoria sobre o que ocorre como o
saber quando este percorre o “caminho” entre as esferas de conhecimento, isto é, quando
parte da esfera científica, onde é produzido, rumo à esfera escolar, onde é ensinado.
A transposição surge como um dispositivo que permite analisar como o saber “passa”,
ou é transposto, de uma esfera de conhecimento para outra esfera. Permite analisar, também,
quais transformações podem ocorrer nesse percurso, assim como quais são os atores ou
elementos que interferem nessas transformações.
De acordo com Chevallard (1991), em cada esfera de conhecimento o saber é “preparado” de maneira diferente, adquirindo uma característica própria. Não se trata aqui, ao
Ambientes
estudos de Geografia
237
tomar essa idéia como base, de promover uma análise segmentada do saber, mas de colocar
em evidência o fato de existir uma diferenciação epistemológica em relação à produção
do conhecimento. Segundo Rodrigo (1998), essa diferenciação ocorre de acordo com o
“cenário sociocultural” onde o conhecimento é produzido. A autora propõe a existência
de três cenários socioculturais distintos: o cotidiano, o escolar e o científico – além de um
provável cenário profissional. Em cada um deles, desenvolve-se um tipo de conhecimento
que, conseqüentemente, associa-se ou distingue-se a um tipo de “epistemologia construtiva”
que norteia sobre “o que”, “por que” e “como” os saberes são construídos.
Outro aspecto relevante para este estudo, é que a idéia de transposição didática rompe
com aquele “esquema” tradicional e, segundo Chevallard (1991, p. 14), ultrapassado de se
pensar e analisar o sistema didático a partir da “[...] tão famosa ‘relação professor-aluno’,
que obscureceu, durante pelo menos duas décadas, a abordagem dos fatos didáticos os mais
imediatamente aparentes”.
Ocorre que a transposição didática insere um terceiro elemento nessa relação, o
saber, criando assim uma “relação ternária: saber – professor – aluno”. É o que Chevallard
(1991, p. 14), chama de “relação ou contrato didático”, base do esquema segundo o qual
“[...] a didática dos matemáticos [e por que não dizer aqui dos geógrafos ou professores de
Geografia] pode então começar a pensar o seu objeto” 1.
Diante de tais colocações, acreditamos na pertinência do modelo transpositivo para
a realização deste estudo, como forma de contribuir para o avanço das análises científicas
na área da didática do ensino de Geografia.
De acordo com Chevallard (1991), para a análise da transposição didática, possuem
relevância os seguintes saberes:
• O saber sábio: conjunto de conhecimentos elaborados e aperfeiçoados na esfera da
comunidade acadêmica ou científica, por meio de pesquisas e/ ou reflexões teóricas.
São aqueles conhecimentos aferidos e comprovados como lógicos e verdadeiros
por meio de métodos de investigação científicos e, por isso, considerados como
conhecimentos válidos e legítimos pela sociedade, de maneira geral.
• O saber a ensinar: conjunto de conhecimentos produzidos pelas pessoas que
pensam a respeito do sistema de ensino e que, de certa forma, decidem “o que”
e “como” estes devem ser adaptados no sentido de tornarem-se hábeis para que
sejam transpostos para a sala de aula. Chevallard (1991) refere-se a esse grupo de
“pensadores” do sistema de ensino como noosfera.
· O saber ensinado ou saber escolar: conhecimento que professor e alunos constroem
em sala de aula, isto é, no ambiente escolar. É nesse ambiente que se dá o contrato didático,
a relação ternária (saber – professor – aluno), como a inserção do saber a ensinar trazido
pelos currículos e pelos livros didáticos, e do saber cotidiano, aquele introduzido pelos
próprios professores e estudantes, assim como pelos funcionários da escola, pelos pais de
alunos, etc.
1
“(...) la didactique des mathématiques peut donc entreprendre de penser son object.”
238
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Há, assim, fluxos de saberes oriundos tanto da esfera científica (saber sábio), como
da sociedade (saber cotidiano), os quais convergem para o sistema de ensino. O esquema a
seguir (figura 1) visa representar esses fluxos, esferas de saber onde ocorre a transposição
didática.
Figura 1 – A transposição didática segundo Chevallard (1991)
Elaborado por Levon Boligian (2003)
Perrenoud (1997), ao analisar o conceito de transposição didática estabelecido por
Chevallard, propõe a existência de três fases diferentes, nas quais ocorrem as transformações
entre o saber erudito e o saber escolar, de forma a tornar os conhecimentos “ensináveis”
em sala de aula. São elas:
• a fase de transferência entre o saber sábio (produzido na esfera acadêmica) e o
saber a ensinar ou a ser ensinado (produzido pela noosfera);
• a fase de transferência entre o saber a ser ensinado e o saber ensinado (aquele que
se dá no interior do ambiente escolar ou do sistema de ensino);
• a fase entre o saber ensinado e o saber efetivamente adquirido pelo aluno.
Portanto, o foco de análise do trabalho foi estabelecido na fase de transferência entre o
saber sábio (produzido na esfera acadêmica) e o saber a ser ensinado (produzido na noosfera),
ou seja, traçou-se como objetivo, analisar como o conceito de território é “preparado” como
saber a ser ensinado pela noosfera, grupo delimitado neste estudo como sendo composto
pelos elaboradores dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997; 1998)
e pelos autores dos livros didáticos mais utilizados no país (ADAS, 1995; LUCCI, 2000;
VESENTINI; VLACH, 2001) na atualidade.
Ambientes
estudos de Geografia
239
Procedimentos de pesquisa
A fim de alcançarmos os objetivos propostos para este trabalho de investigação,
desenvolvemos alguns procedimentos de pesquisa.
Em primeiro lugar, buscou-se, apreender o significado teórico acadêmico empregado ao conceito de território, por meio de uma ampla revisão bibliográfica de autores que
discutem cientificamente esse conceito na esfera acadêmica.
Essa revisão bibliográfica levou em consideração as principais discussões que
atualmente envolvem o território, não somente na esfera acadêmica da Geografia, mas da
Sociologia, da Filosofia, entre outros. Foram analisados também, outros conceitos e noções
a ele subentendidos, como os de territorialidade, Estado-nação, território nacional, organização e configuração territorial.
Para tanto, buscou-se o entendimento do significado teórico do território sob a
perspectiva da teoria das relações de poder. De acordo com Raffestin (1993), o espaço é
a base para formação do território, ele é a matéria-prima para a construção deste último.
Na realidade, segundo este autor, em um espaço, propriamente dito, ainda não se deram
relações de poder, relações onde um ator manifeste a intenção de apoderar-se deste espaço.
Em contrapartida, um território enquanto tal, não exprime mais um espaço, mas um espaço
construído pelo ator dominante, apropriado e organizado de acordo com seus objetivos e
interesses. Ainda segundo Raffestin (1993), o território é sempre um enquadramento do poder
ou de um poder, em um determinado recorte espacial. Nesse sentido, e, de acordo com as
leituras teóricas realizadas, concluímos que as relações de poder se dão em diferentes escalas territoriais. A escala do território determina a escala dos poderes. Existem poderes que
interferem em diferentes escalas territoriais, como é o caso do Estado. Contudo, há poderes
que estão limitados a determinadas escalas territoriais. Assim sendo, temos relações de
poder em diferentes escalas: local, regional, nacional, supranacional, etc., produzindo uma
multiplicidade de territórios, cada qual com uma territorialidade diferente, ou seja, com uma
dimensão própria, e um conteúdo específico, sendo apropriado, apreendido e vivenciado de
maneira singular pelos atores sociais.
A partir da revisão bibliográfica, foi organizado em seguida um mapa conceitual teórico sobre o território, com o objetivo de promover uma análise constitucional deste conceito.
De acordo com Moreira e Buchweitz (1993), os mapas conceituais podem ser elaborados de várias maneiras, ou seja, há diferentes formas de se estabelecer, num diagrama
– neste caso o mapa – as relações necessárias entre conceitos e entre conceitos e proposições.
Segundo Faria (1995), levando em consideração a teoria da aprendizagem significativa de
David Ausubel, têm-se alguns princípios básicos que servem como critério para a seleção e
organização dos itens que compõem os mapas conceituais. Entre os principais estão:
• selecionar os conceitos, noções e proposições considerados como unificadores de
uma determinada ciência;
• priorizar os conceitos e proposições que possuem amplo poder explicativo, de
forma a possibilitar generalizações e relações com os conteúdos que fazem parte
do corpo da disciplina.
Neste sentido, Pozo (1998) coloca que um conceito científico não é um elemento
240
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
isolado, mas faz parte de uma grande teia de conceitos, organizada hierarquicamente. Assim sendo, foram elaborados dois mapas conceituais a respeito do conceito de território,
cada qual organizado de forma hierárquica, apresentando-se, em primeiro lugar, as idéias
(conceitos e proposições) mais gerais e, seqüencialmente, as idéias mais específicas, ou
subordinadas, apontando-se graficamente no diagrama as relações existentes entre eles.
Posto dessa forma, Moreira e Buchweitz (1993) colocam que o mapa conceitual permite o
“desempacotamento” dos conhecimentos contidos nos documentos científicos, tornando-os
próprios para serem usados no ensino, ou, como expressam estes mesmos autores, próprios
para fins educacionais.
Vejamos, então, os mapas conceituais referentes ao território (figura 2) e ao território
nacional (figura 3), construídos com base no referencial teórico levantado.
Seguindo a descrição dos procedimentos de pesquisa, com base no levantamento
bibliográfico teórico e nos mapas conceituais elaborados, investigou-se, na seqüência, a
proposta de transposição que os Parâmetros Curriculares Nacional (PCN) (BRASIL, 1997;
1998) e que os livros didáticos mencionados estabeleceram para o conceito de território.
Para tanto, foi utilizado como método de investigação científica o modelo de interpretação
teórica da “transposição didática”, assim como o exercício de “vigilância epistemológica”,
conceitos estabelecidos pelo matemático Yves Chevallard. Ou seja, a partir de uma posição
externa ao sistema didático, como observador do objeto de estudo, verificou-se de que maneira esses agentes propuseram transformações ao saber erudito, neste caso ao conceito de
território, de maneira a torna-lo “ensinável” em sala de aula, e se neste processo foi preservada a essência de sua semântica estruturante, oriunda do pensamento geográfico científico.
Resultados da investigação
No caso dos PCN foram constatados vários problemas, a partir do exercício de
vigilância epistemológica.
• Os referenciais teóricos utilizados pelos autores em relação ao conceito de território
são pouco claros, tornando difícil a identificação de seu significado e a corrente
à qual é atribuído, fato que se agrava quando se sabe que, atualmente, diversos
estudiosos da Geografia discutem este conceito, enquanto categoria de análise
geográfica. Assim, mesmo fazendo uma análise da bibliografia citada no final de
cada documento, tornou-se difícil detectar as concepções que nortearam as reflexões
teóricas dos elaboradores, pois são poucas as referências que tratam especificamente
das discussões científicas a respeito do território.
• Constatou-se que o significado do conceito de território nos PCN mostra-se, na
maioria das vezes, desvinculado de seu mote teórico fundamental – as relações de
poder. Entende-se que esse tratamento dispensado pelos autores ao conceito, se
apresenta semanticamente míope. Por outro lado, encontra-se adequado à tônica
despolitizada e, de certa forma, acrítica que permeia os documentos de maneira
geral. Pois, na realidade, há uma preocupação maior com a dimensão sociocultural
das relações humanas, do que com as questões de ordem econômica, política e
Ambientes
estudos de Geografia
241
242
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Ambientes
estudos de Geografia
243
244
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Ambientes
estudos de Geografia
245
246
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
Ambientes
estudos de Geografia
247
ideológica.
Os livros didáticos também apresentaram problemas na preparação do conceito de
território.
• Os autores analisados deram pouca atenção ao conceito em estudo. Privilegiouse na maioria dos volumes, o trabalho com os conceitos de espaço geográfico e
paisagem, assim como a noção de regionalização. Na realidade, detectou-se um
trabalho concentrado a respeito do conceito de território nos volumes de 6a série,
característica que revelou, também, um planejamento descontínuo de apresentação
dos conteúdos conceituais nestas coleções, não somente com relação ao conceito
de território, mas aos demais conceitos básicos da Geografia.
• Há o predomínio de uma abordagem político-econômica que permeia os conteúdos
relacionados ao conceito de território, na maioria das vezes, abordado na escala do
território nacional e do Estado-nação. Poucas são as menções feitas a existência de
processos territorializantes na escala local.
Dessa forma, o resultado da análise efetuada veio confirmar a principal hipótese de
estudo: os PCN e as coleções de didáticos de Geografia de maior adoção no país, são elementos do sistema de ensino que falham na transposição de conteúdos oriundos da esfera
científica para a esfera escolar, visto a série de imprecisões e de incongruências conceituais
e teóricas verificadas nestes documentos, em relação à categoria geográfica de território.
Conclusão
Entendemos que as questões levantadas neste estudo, a respeito dos PCN de Geografia e dos livros didáticos para o ensino fundamental, por meio da metodologia empregada,
configuram-se como problemas à transposição do saber geográfico entre as esferas científica e escolar. Sabendo-se disso, acreditamos que tais problemas devem ser superados, de
forma a se alcançar, na disciplina de Geografia, o que Chevallard (1991) chama de “bom
funcionamento do sistema didático”. Para tanto, há a necessidade de um esforço maior por
parte das pessoas que pensam o ensino de Geografia, professores, profissionais da área da
didática, acadêmicos, burocratas de órgãos públicos, etc. Isso significa dizer que a noosfera
geográfica precisa criar um diálogo melhor entre a ciência geográfica e as disciplinas da
educação, promovendo, assim, uma “didatização” e uma “pedagogização” das teorias e dos
conteúdos relacionados ao saber geográfico.
Referências
248
Lúcia Helena de O. Gerardi (org.)
ADAS, Melhem. Geografia, volumes 1, 2, 3 e 4. 3a edição. São Paulo: Moderna, 1995.
AUSUBEL, D.; NOVAK, J.; HANESIAN, H. Psicologia educacional, Rio de Janeiro:
Interamericans, 1980.
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares
Nacionais: história, geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997.
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares
Nacionais: geografia. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CHEVALLARD, Yves. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné.
Grenoble: Ed. La Pensée Sauvage, 1991.
FARIA, Wilson de. Mapas conceituais: aplicações ao ensino, currículo e avaliação. São
Paulo: EPU, 1995.
LUCCI, Elian Alabi. Geografia: homem e espaço, volumes 1, 2, 3 e 4. 16a edição. São
Paulo: Saraiva Editores, 2000.
MOREIRA, Marco António; BUCHWEITZ, Bernardo. Novas estratégias de ensino
aprendizagem: os mapas conceptuais e o Vê epistemológico. Lisboa: Plátano Edições
Técnicas, 1993.
PERRENOUD, Phillippe. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
POZO, Juan Ignácio. A aprendizagem e o ensino de fatos e conceitos. In: COLL, César et al.
Os conteúdos na reforma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e atitudes.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p.17-72.
RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.
RODRIGO, Maria José. Do cenário sociocultural ao construtivismo episódico: uma viagem
ao conhecimento escolar mediante as teorias implícitas. In: RODRIGO, Maria; ARNAY,
José. Conhecimento cotidiano, escolar e científico: representação e mudança. São Paulo:
Ática, 1998. p.219-238. A construção do conhecimento escolar, n.1.
SANTOS, Milton. Mesa redonda: A formação do professor de Geografia. Orientação, São
Paulo, n. 10, p. 44-57, 1993.
VESENTINI, José William; VLACH, Vânia. Geografia Crítica, volumes 1,2,3 e 4. 15a
edição. São Paulo: Ática, 2001.
Sobre os Autores
Ambientes - Estudos de Geografia
251
Adler Guilherme VIADANA - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. Email: [email protected]
Adriana Rosa BIERAS - Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia da
Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected]
Dante Flávio da Costa REIS JÚNIOR - Doutorando do Programa de pós-graduação em
Geografia, Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]
Eliane Guerreiro Rossetti PADOVANI - Centro Universitário Salesiano de São Paulo Americana-SP. E-mail: [email protected]
Elias Antônio VIEIRA - E. E. Prof. Cid Oliveira Leite - Ribeirão Preto- SP – E-mail: [email protected]
Francisco Roberto Brandão FERREIRA - Centro Federal de Educação Tecnológica do Maranhão. Doutorando do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual
Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected]
José Carlos Godoy CAMARGO - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro.
E-mail: [email protected]
José FRANCISCO - Universidade Federal de São Carlos-SP. E-mail: [email protected]
Juergen Richard LANGENBUCH – Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro.
E-mail: [email protected]
Levon BOLIGIAN - E-mail: [email protected]
Lucia Helena de Oliveira GERARDI - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio
Claro. E-mail: [email protected]
Marcos César FERREIRA – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: macferre@uol.
com.br
Manuel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy - Universidade Estadual Paulista - Campus
de Rio Claro. E-mail: [email protected]
Maria Juraci Zani dos SANTOS - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro.
E-mail: [email protected]
Odeibler Santo GUIDUGLI - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. Email: [email protected]
Paulo Ricardo Machado WEISSBACH - Universidade de Cruz Alta – RS. E-mail: paulorw@
bol.com.br
Paulo Roberto Teixeira de GODOY - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio
Claro. E-mail: [email protected]
Pompeu Figueiredo de CARVALHO - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio
Claro. E-mail: [email protected]
Regina Helena Moreira Riani COSTA - Faculdades Integradas Einstein – Limeira-SP. Email: [email protected]
252
Lúcia Helena de Oliveira Gerardi (org.)
Rosane BALSAN – Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected]
Rosângela Doin de ALMEIDA - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro.
E-mail: [email protected]
Sidney Gonçalves VIEIRA - Universidade Federal de Pelotas – RS. E-mail: yendis@ufpel.
tche.br
Susimara Cristina LEVIGHIN - Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia
da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] .br
Silvio Carlos BRAY - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail:
[email protected]
Valdemar VALENTE – Centro Universitário Franciscano de Santa Maria – RS. E-mail:
[email protected]
Valéria CAZZETA - Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] ou vcazetta@
hotmail.com
Vilma Dominga Monfardini FIGUEIREDO – Universidade Federal de Santa Maria – RS.
E-mail: [email protected]
Download

Ambientes estudos de Geografia