Ambientes estudos de Geografia Organizadora:Lucia Helena de Oliveira Gerardi Edição: Programa de Pós-graduação em Geografia - UNESP - Rio Claro-SP Associação de Geografia Teorética - AGETEO Apoio: Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da UNESP Rio Claro-SP - 2003 Programa de Pós-graduação em Geografia Instituto de Geociências e Ciências Exatas - IGCE Universidade Estadual Paulista-UNESP Campus de Rio Claro-SP Caixa Postal 178 Rio Claro-SP - CEP: 13.506-900 e-mail: [email protected] http://www.igce.unesp.br/ Associação de Geografia Teorética - AGETEO Av. 24-A, 1515 - Bela Vista Rio Claro-SP - CEP: 13.506-900 e-mail: [email protected] www.ageteo.org.br 910 A492 Ambientes : estudos de Geografia – Lucia Helena de Oliveira Gerardi – organizadora. – Rio Claro : Programa de Pós-graduação em Geografia – UNESP ; Associação de Geografia Teorética – AGETEO, 2003, 252 p. : il. Apoio: Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da UNESP. 1. Geografia. 2. Geografia econômica. 3. Geografia física. 4. Geografia – Filosofia. 5. Geografia humana. 6. Geografia regional. I. Gerardi, Lucia Helena de Oliveira. II. Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP SUMÁRIO 5 Apresentação 7 Safras-pico e transferência de capital e iniciativas entre campo e cidade: análise em cinco municípios paulistas COSTA, Regina Helena Moreira Riani; LANGENBUCH, Juergen Richard 23 Possibilidades de aproveitamento turístico da área rural de Cruz Alta - RS WEISSBACH, Paulo Ricardo Machado; BERRIOS Godoy, Manuel Baldomero Rolando 37 Lixo: fato ambiental da modernidade VIEIRA, Elias Antônio; BERRÍOS, Manuel R. 53 Agricultura familiar no Rio Grande do Sul: perfil socioeconômico dos produtores de São Francisco de Assis - RS BALSAN, Rosane; GERARDI, Lucia Helena de Oliveira 75 A aplicação dos perfis geo-ambientais em setores da cidade de Rio Claro (SP) LEVIGHIN , Susimara Cristina; VIADANA, Adler Guilherme 89 População e qualidade de vida urbana em Santa Maria (RS): estudo de caso bairro Urlândia FIGUEIREDO, Vilma Dominga Monfardini; GUIDUGLI, Odeibler Santo 105 Desconstrução do lugar - o aterro da praia da frente do centro histórico de São Sebastião (SP) FRANCISCO, José; CARVALHO, Pompeu Figueiredo de 121 Modelagem de parâmetros morfométricos de bacias hidrográficas em sistemas de informação geográfica FERREIRA, Francisco Roberto Brandão; FERREIRA, Marcos César 135 Condições climáticas e incidência de pragas e doenças na cultura de citros nas principais regiões produtoras do Estado de São Paulo BIERAS, Adriana Rosa; SANTOS, Maria Juraci Zani dos 151 Revalorização do centro de São Paulo: a preservação da memória dos vencedores VIEIRA, Sidney Gonçalves 171 A cidade: o espaço, o tempo e o lazer PADOVANI, Eliane Guerreiro Rossetti 185 Considerações sobre o espaço urbano no Brasil GODOY, Paulo Roberto Teixeira de; BRAY, Silvio Carlos 201 A Agricultura e organização do espaço - o caso do Chapadão, no município de Jaguari, RS, nos últimos 40 anos VALENTE, Valdemar; BERRIOS Godoy, Manuel Baldomero Rolando 215 A aprendizagem escolar do conceito de uso do território por meio de croquis e fotografias aéreas verticais CAZETTA, Valéria; ALMEIDA, Rosângela Doin de 223 Neopositivismo na Geografia brasileira: parafraseando o pensamento de Speridião Faissol (1923-1995) REIS JÚNIOR, Dante Flávio da Costa; CAMARGO, José Carlos Godoy 235 A transposição didática do conceito de território no ensino de Geografia BOLIGIAN, Levon; ALMEIDA, Rosângela Doin de 251 Sobre os Autores 5 APRESENTAÇÃO A produção geográfica brasileira tem sido largamente alimentada pelos estudos realizados no âmbito dos programas de pós-graduação, que têm incentivado seus alunos e docentes a expor à comunidade suas reflexões e achados. O Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de Rio Claro, no espírito de dar contas à sociedade de sua produção, no intuito de apresentar à opinião dos pares os trabalhos aqui desenvolvidos, no interesse de levar seus alunos a registrar suas idéias, publica, pelo terceiro ano consecutivo, um conjunto de textos extraídos, por seus autores, das teses e dissertações defendidas no Programa durante o ano de 2002. A diversidade temática percorre ambientes vários: rurais, urbanos, naturais, antropizados, tratando de questões relativas a climas, agricultura, turismo, qualidade de vida, bacias hidrográficas, centro de cidades, geomorfologia, lixo, aprendizagem etc sob enfoque teórico, metodológico ou factual. O resultado desta miríade constitui Ambientes – estudos de Geografia – que organizamos e apresentamos aos estudiosos de Geografia e ciências tangentes. A publicação deste livro deve, muito, à Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da UNESP, cujo aporte financeiro deu materialidade às nossas idéias, mostrando que sensibilidade pode ser compatível com administração competente. Deve muito, também, aos autores que aceitaram nosso convite e entenderam que pesquisa sem divulgação se esteriliza e esteriliza a ciência. Que esta obra, fruto do esforço de muitos, seja seminal para os muitos que vierem a utilizá-la. Lucia Helena de Oliveira Gerardi SAFRAS-PICO E TRANSFERÊNCIA DE CAPITAL E INICIATIVAS ENTRE CAMPO E CIDADE: ANÁLISE EM CINCO MUNICÍPIOS PAULISTAS Regina Helena Moreira Riani COSTA Juergen Richard LANGENBUCH Introdução O estudo das relações cidade-campo torna-se hoje de extrema importância, pois nos permite verificar as dimensões econômicas e sociais de intensas e complexas redes de interdependência, que podem inclusive atingir níveis internacionais. Atualmente, quando prevalece uma sociedade mundial ou globalizada, devemos observar nas relações estabelecidas entre o rural e o urbano uma intrínseca dependência que, ao longo dos anos, vem gerando o desenvolvimento econômico das principais cidades brasileiras, inserindo-as num contexto global. Através da análise das relações cidade-campo deparamos com numerosos aspectos, cada qual com suas especificidades e importância dentro de um contexto geral. Porém, nossa pesquisa irá se ater à transferência de capital e iniciativas entre dois setores econômicos do município – rural e urbano – o que nos permitirá visualizar a existência e o grau de importância desses fluxos, além de sua direção (origem e destino) numa avaliação positiva ou negativa que, direta ou indiretamente, contribui para o desenvolvimento econômico local ou regional. As relações cidade-campo Ao longo da história econômica brasileira, podemos destacar o período cafeeiro como o mais expressivo exemplo da transferência de capital e/ou iniciativas entre o campo e a cidade, que sem dúvida proporcionou o desenvolvimento urbano e industrial de numerosos municípios, modificando a estrutura social política e econômica do estado e do país. Percebemos através de uma vasta bibliografia a grande importância da agricultura cafeeira para o desenvolvimento econômico, urbano-industrial brasileiro, sem esquecer que ela estava intimamente vinculada a interesses externos. O capital gerado pela lavoura cafeeira foi o elemento essencial para a formação e manutenção de uma classe hegemônica que determinava, em todos os níveis, os rumos do país. O desenvolvimento urbano-industrial, desencadeado pela agricultura do café, também amplamente estudado, se apresenta como a comprovação dos intensos fluxos de recursos de origem rural, que, com destino urbano, proporcionou o crescimento e o surgimento de importantes setores econômicos na época. Dessa maneira, não podemos desvincular industrialização de café, principalmente no caso paulista, no qual a agricultura foi responsável 8 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) pela geração dos recursos financeiros necessários ao desenvolvimento da indústria, além de estimular diretamente novas atividades industriais ligadas ao café. A expansão econômica e financeira da cafeicultura resultou no surgimento de atividades tipicamente urbanas - indústrias, bancos, escritórios, armazéns, oficinas de estrada de ferro, comércio, etc., que passaram a ser desenvolvidas nos centros urbanos “envolvidos” pela produção cafeeira. Além dessas atividades, desenvolviam-se também outras, relacionadas ao crescente processo de urbanização - comércio varejista, transportes urbanos, comunicações, energia elétrica, construção civil, equipamentos urbanos, etc. “Quanto mais avançava esse processo, mais interdependentes se tornavam todas essas atividades, gerando uma intrincada rede de conexões econômicas, financeiras e de serviços” (CANO, 1990, p. 69). A abordagem da economia cafeeira serviu como um preâmbulo para a análise das relações cidade-campo, principalmente no aspecto referente à transferência de capital e iniciativas, e a partir daí, procuramos verificar sua evolução ao longo dos anos. As funções, bem como as características, atribuídas aos espaços urbano e rural, vêm sofrendo transformações de acordo com os modelos de desenvolvimento adotados, assumindo atividades e serviços específicos, que ampliam ou diminuem o grau de dependência entre ambos; no entanto, essas transformações podem ser constantemente vinculadas ao contexto econômico no qual o país está inserido. Não é possível analisarmos a situação do meio rural, em seus variados aspectos, sem o relacionarmos ao meio urbano, ou seja, não há campo sem cidade e nem cidade sem campo. Em muitos casos, a caracterização do espaço rural se faz por condições determinadas pelo urbano, numa relação de complementaridade e funcionalidade, que interliga e, ao mesmo tempo, distingue, resultando em duas realidades paralelas, mas dependentes. Assim, ... o meio rural não pode nunca ser estudado em si mesmo, mas deve ser encarado como parte de um conjunto social mais amplo, do qual faz parte juntamente com a cidade”. E, ainda: “... a cidade está sempre implantada no campo, tendo para com este relações de variada forma, desempenhando funções diferentes em relação a ele. (QUEIROZ, 1979, p. 163-164). Tanto o campo quanto a cidade adquirem funções específicas e regionais, conforme o nível de dependência existente entre ambos, o que também define o grau de urbanização da sociedade em questão: ...já que não é apenas o fato da população habitar em concentrações urbanas que dá ao país o caráter de urbanização. Esse depende da amplitude das funções desempenhadas pelas cidades, por um lado, e mais ainda, pela independência destas em relação ao meio rural, que decorre da importância de suas atividades produtivas – isto é, de seu grau de industrialização. (QUEIROZ, 1979, p. 165). Algumas cidades – e podemos encontrar exemplos brasileiros – acabam se tornando um prolongamento da zona rural, pois assumem atividades e serviços diretamente relacionados com a produção agrícola regional (beneficiamentos, usinagem, etc). Nesses casos, fica difícil se estabelecer uma separação entre a cidade e o campo. O processo de industrialização e urbanização do território envolve a concentração de outro tipo de produção, em Ambientes estudos de Geografia 9 que as relações ganham maior amplitude e independem do seu meio rural direto para seu abastecimento e sobrevivência, ou seja, sua economia está vinculada a espaços cada vez mais distantes, incluindo-a em relações cada vez mais globalizadas. As antigas relações entre o campo e a cidade, baseadas na produção de alimentos para o abastecimento local, vêm sofrendo alterações com o passar dos anos. O processo de desenvolvimento econômico-industrial, desencadeado no país, trouxe inúmeras conseqüências e profundas transformações na dinâmica rural-urbana. “Na medida em que a economia se altera profundamente, a sociedade e os tipos de relações econômicas de toda ordem mudam de maneira substancial”. (SILVA, 1998, p. 36). As relações estabelecidas entre as áreas urbanas e rurais, no processo de desenvolvimento nacional, são percebidas ao longo de toda a evolução econômica brasileira e paulista. A interdependência entre os setores é verificada em sua forma mais elementar: os setores urbano-industriais necessitam, de maneira imprescindível, da produção, no meio rural, de alimentos e matérias-primas para o desenvolvimento de suas principais funções e manutenção de sua mão-de-obra. Em contrapartida, o campo não consegue permanecer autônomo e isolado; apesar de produzir bens essenciais à sobrevivência humana, necessita também de serviços e produtos industrializados oferecidos pela área urbana. A função de consumidor, adquirida pelo setor rural, pode representar para a área urbana um grande desenvolvimento tanto comercial quanto industrial. Ao desenvolver suas atividades agrícolas e criatórias, o trabalhador rural necessita de equipamentos diversos, que podem ser altamente modernos ou as tradicionais ferramentas manuais (enxadas, foices, etc.). Para atender a essa “demanda”, as cidades podem desenvolver núcleos comerciais específicos, que, de acordo com as culturas agrícolas existentes, ofereçam os equipamentos e insumos adequados e essenciais ao aumento da produtividade e ao desempenho das funções agrárias. Dessa maneira, podemos concluir que uma área rural devidamente ocupada e produtiva, além de absorver mão-de-obra nas atividades agrícolas, criará um aumento pelos serviços urbanos, tanto no que se refere ao consumo de equipamentos e insumos agrícolas, como por outros bens de consumo duráveis e não-duráveis – alimentos industrializados, roupas, calçados, equipamentos eletro-eletrônicos, etc. Assim, verificamos que, apesar de desempenharem funções diferentes dentro do contexto, as áreas rurais e urbanas têm grande importância na dinâmica do desenvolvimento econômico. Ou seja, a deficiência de uma das partes, ou a subordinação de uma pela outra, poderá provocar conflitos e conseqüências sócio-econômicas e políticas de nível internacional, embora essa harmonia seja difícil de se encontrar. Mesmo na forma clássica de relação rural-urbana: o fornecimento de alimentos ou matéria-prima para a sociedade urbana industrial, podemos levantar uma questão de extrema importância – a transferência de capital ocorrida entre os setores. Se o campo é produtor de alimentos para o abastecimento ou de matéria-prima para a indústria, essa atividade não é espontaneamente desempenhada pela natureza, ou seja, há a organização e, muitas vezes, a transformação do espaço natural em espaço produtivo, através das mais variadas técnicas e instrumentos de pesquisa. Assim, o proprietário das terras acaba adequando-se a essa situação de diversas maneiras: ele próprio faz os investimentos necessários, ou, na ausência de 10 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) recursos, “cede” o território para outros investidores mais capacitados e dispostos a aderir ao possível desenvolvimento econômico exposto. Dessa maneira, recursos financeiros são disponibilizados para o investimento nas áreas rurais, desencadeando profundas transformações de ordem econômica, social e mesmo cultural. Cabe salientarmos aqui que a origem do capital pode ser variada, indo desde financiamentos promovidos pelo Estado como os créditos agrícolas, como o capital urbano originado em outros centros maiores, capital originado no próprio campo, ou ainda proveniente de herança familiar. De qualquer forma, a introdução de tais recursos no meio rural é suficientemente capaz de causar repercussões, tanto no meio rural quanto no meio urbano, provocando uma especialização das cidades em termos de serviços e produtos, e intensificando as relações entre ambos. Silva (1998, p. 36), afirma: a intensificação das relações cidade-campo não é senão a forma aparente que assume o próprio desenvolvimento capitalista na agricultura. E, ainda, “a separação cidade-campo só se dá por inteiro quando a indústria se muda para a cidade; a reunificação, quando o próprio campo se converte numa fábrica”. (SILVA, 1998, p. 37). A transferência de capital entre campo e a cidade A transferência de capital entre o campo e a cidade pode ser claramente exemplificada na economia cafeeira, em que o fluxo de investimentos na área urbana foi intenso, propiciando a manutenção da hegemonia cafeeira, resultando num significativo desenvolvimento urbano-industrial. Além de aplicações em áreas urbanas, o capital gerado pelo café também permanecia no campo, à medida que os produtores ampliavam suas propriedades, suas plantações, a mão-de-obra, etc. No entanto, após a consolidação da indústria em áreas urbanas, com o arrefecimento do mercado internacional do café, a cidade urbanizada e industrializada assume o poder econômico, subordinando as atividades rurais às necessidades urbanas – abastecimento da população, comércio e indústria. Nesse sentido: “a grande cidade, cabeça da rede urbana, extrai do campo e das cidades menores, via migrações e força de trabalho, assim como deles retira a renda fundiária”. (SILVA, 1998, p. 39). Cria-se um ciclo de exploração da cidade sobre o campo ou região, através de diversos fatores e serviços centralizados na área urbana. A comercialização, distribuição da produção, movimentação, aplicações financeiras, e vários outros serviços que são desenvolvidos na cidade fazem com que o setor rural permaneça numa “subordinação” dinâmica. A cidade, por sua vez, se alimenta dessas atividades, e com elas atrai a renda produzida no campo além da clássica atração migratória de mão-de-obra. Ao mesmo tempo em que a cidade é alimentada pelo campo, ela exporta “capitais, bens e serviços, idéias e valores”, formando uma área de influência em torno dela. (SILVA, 1998, p. 39). Entretanto, especificamente, para a nossa pesquisa, a transferência da renda fundiária, ou dos capitais gerados na agricultura, direcionados para a cidade, e o inverso – capitais urbanos aplicados na área rural, são o nosso ponto de interesse. Sabemos teoricamente que Ambientes estudos de Geografia 11 essa troca, esse fluxo existe, porém também sabemos a extrema dificuldade de se mensurar, pois se trata de aplicações financeiras, conduzidas em sua maior parte por interesses particulares, dizendo respeito apenas ao próprio investidor. A dificuldade de obtenção de informações, com certeza, é o principal motivo de uma bibliografia escassa sobre o assunto, tornando a pesquisa ainda mais interessante e desafiadora. A ampliação das relações, sejam elas entre o rural e o urbano, entre cidades, econômicas, sociais, políticas, ou outras, torna-se um outro fator interferente. A evolução dos meios de comunicação, a rápida transmissão e difusão das informações e a necessidade de uma economia mundializada trouxeram uma redistribuição nas antigas relações anteriormente estabelecidas em regiões determinadas espacialmente. Hoje, não é mais possível delimitar a área de influência ou interferência, apenas pela proximidade ou dimensão. As relações tornaram-se mais complexas, intensas e amplas, definidas por uma ordem maior, que envolve fatores econômicos, políticos e sociais, organizados numa lógica global. Assim, podemos afirmar que as relações cidade-campo dependem ou refletem as articulações econômicas e políticas promovidas pelo Estado ou pelo setor privado, provocando um inter-relacionamento complexo e abrangente. A transferência da renda produzida no campo para a cidade, ou sua aplicação no próprio campo, é citada por Silva (1998, p. 40): “a renda fundiária pode ser aplicada, ao menos em parte, na zona rural, visando o aperfeiçoamento técnico das atividades de produção, mas pode ser aplicada também nas cidades da região ou extra-regionais”, e, também, nos coloca os lucros, resultantes dos sucessivos acréscimos sobre o valor da produção, como uma forma de drenagem da cidade sobre o campo. Diante da complexidade do tema, selecionamos as safras-pico (safras que se destacam das demais pelo aumento da produção) como ponto de partida para nossa análise. A partir dos lucros – excedentes financeiros – proveniente de uma bem sucedida produção e comercialização, existe a possibilidade potencializada dos produtores rurais realizarem investimentos de capitais em outros setores da economia local, muitas vezes tomando a iniciativa de novos empreendimentos. É claro que, antes de investirem em atividades econômicas não-agrícolas, deve haver uma preocupação com a manutenção, conservação e melhoria da atividade geradora de tais recursos: nesse caso, a atividade agrícola. Isso quer dizer que, dos lucros resultantes da produção e comercialização de produtos agrícolas, subtraem-se os investimentos a serem realizados na própria lavoura, sendo que apenas a diferença poderá ou não ser destinada a outras atividades econômicas, ou servir para investimentos em bens duráveis. Sabemos ainda que as conseqüências de uma bem sucedida produção, não se restringem apenas ao investimento desses excedentes em outras atividades econômicas urbanas ou rurais, num fluxo direto de transferência de capital. Indiretamente outros fluxos são constituídos, e tomamos como exemplo a própria mão-de-obra utilizada na produção gerando um aumento do consumo no comércio local ou regional. Por sua vez, com o aumento do consumo, os comerciantes e prestadores de serviços urbanos também têm um aumento de seus lucros, que poderão ser aplicados de múltiplas maneiras. Dentre elas, poderão ocorrer investimentos na área rural, em atividades agrícolas, ou em atividades na própria área urbana, 12 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) diferentes ou não das já praticadas. Cria-se, assim, um ciclo de investimentos, aplicações e capitais, que são de extrema importância para o entendimento das relações que ora se estabelecem (figura 1). E, ainda, determinam o grau de desenvolvimento de cada região, permitindo-nos verificar o nível de dependência da cidade em relação ao campo, do campo em relação à cidade, e também a inserção ou não do município na economia mundializada. A nova realidade rural Figura 1 - Ciclo de investimentos, aplicações e capitais Como em várias outras regiões, no Estado de São Paulo vem ocorrendo a proliferação das atividades não-agrícolas no meio rural. Os sítios destinados a recreação são os principais exemplos dessas atividades. Localizados nas áreas de entorno das cidades, são considerados refúgios de lazer nos finais de semana, de propriedade da classe média urbana, e podem inserir pequenas e intensivas atividades produtivas – agropecuárias ou não. Além dessas novas atividades, verifica-se o crescimento da população economicamente ativa, com residência rural, que exerce atividades não-agrícolas: nas indústrias de transformação e agroindústrias, prestação de serviços pessoais, construção civil, comércio e prestação de serviços sociais. Em contrapartida, cresce, também, o “contingente de pessoas ocupadas em atividades agrícolas com domicílio urbano (os trabalhadores rurais volantes)” (GRAZIANO DA SILVA et al, 1996). Em meio a essas novas formas do meio rural paulista, surgem novas funções e novos tipos de ocupação, consubstanciados em: implantar locais de lazer nos feriados e finais de semana (pesque-pague, hotéis-fazenda, chácaras de recreio); oferecer moradia à classe média alta (proliferação dos condomínios fechados); estimular atividades de conservação e preservação ambiental, com a criação de parques e estações ecológicas, além do eco-turismo e turismo rural; proliferação no meio rural de atividades tipicamente urbanas (mecânicos, contadores, secretárias, digitadores, trabalhadores domésticos, motoristas – atividades necessárias na manutenção de hotéis, parques, pesqueiros, restaurantes, etc.) Não podemos deixar de mencionar também os postos de gasolinas, restaurantes e motéis, que desenvolvem suas atividades ao longo das rodovias, que apesar de não serem atividades novas, têm crescido em ritmo cada vez mais significativo. Ambientes estudos de Geografia 13 Muitas dessas atividades, desenvolvidas mediante a demanda urbana, transformam a natureza em mais um bem de consumo, transformando também a vida da população rural. Ampliam-se os hotéis-fazenda, por exemplo. E para que sejam próprios ao turismo, demandam construções, utilização de mão-de-obra e infra-estrutura necessárias para atender seus usuários, criando um novo mercado de trabalho e substituindo parte da atividade agrícola desenvolvida anteriormente. Devemos salientar ainda que há hotéis-fazenda que derivaram de verdadeiras fazendas e outros que o são apenas no nome, não passando de “resorts”, ocupando terrenos relativamente pequenos, que podem estar inseridos no campo ou nas periferias urbanas. Como ampliação do mercado de trabalho, essa tendência pode ser uma solução para os problemas da falta de empregos urbanos e rurais. As cidades, durante muito tempo, foram escolhidas pelos trabalhadores rurais, que acreditavam em melhores condições de moradia, serviços, saúde, salários, etc. Diante dos problemas de carência de infra-estrutura que as cidades apresentam, da atual crise econômica por que passa o país, reduzindo a oferta de trabalho, uma nova fonte de empregos parece ser fundamental para se evitar um verdadeiro colapso. Diante do exposto, é compreensível que parte dos excedentes financeiros gerados por atividades tipicamente urbanas ou por atividades agrícolas e pecuárias sejam investidas nesses novos tipos de empreendimentos, muitas vezes a partir de iniciativas tomadas por agricultores, comerciantes, industriais ou profissionais liberais do próprio município. Técnicas de pesquisa Quanto à escolha dos produtos, tanto nas lavouras permanentes, quanto nas temporárias, selecionamos aqueles que apresentaram os números mais significativos, seja em área plantada e/ou quantidade produzida. Foram definidos 04 produtos: cana-de-açúcar, nas lavouras temporárias; e café (em coco), laranja e uva, nas lavouras permanentes. Dentro dessa definição, necessitávamos, agora, selecionar os municípios, relativamente especializados nessas culturas, para a realização da pesquisa de campo. Para a escolha dos municípios, foi efetuado um levantamento junto ao IBGE, utilizando as publicações denominadas PAM – Produção Agrícola Municipal, nas décadas de 80 e 90, num total de 19 anos. Nas PAMs, encontramos as informações disponíveis sobre a produção agrícola, como: área plantada, área colhida, quantidade, valor, etc., em cada município paulista, classificadas conforme a caracterização das culturas – permanentes e temporárias. Com base nos produtos selecionados, efetuamos a análise dos municípios produtores, resultando no levantamento dos principais municípios responsáveis por cada uma das culturas determinadas Como esse trabalho foi feito ano a ano, ao final, tínhamos traçado uma evolução da produção, salientando os anos de pico e queda, revelando municípios em que o contraste entre altos e baixos era mais pronunciado e bem definido (Figura 2). Dentre esses escolhemos cinco para os estudos de caso, pesando na seleção também o interesse em envolver diferentes cultivos e diferentes dimensões do respectivo núcleo urbano, além de situados em áreas relativamente distanciadas entre si. Os municípios e respectivas produções 14 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) consideradas são: Araraquara – laranja, Jaboticabal – cana-de-açúcar, Luiz Antonio – canade-açúcar, Louveira – uva, e Santo Antonio do Jardim – café. Figura 2 - Produção Municipal de Café 1980-1998 Santo Antônio do Jardim Fonte: PAM, IBGE, 1980-1998. Procuramos junto a órgãos públicos (Secretaria Estadual da Fazenda, Departamento Estadual de Trânsito, Ministério do Trabalho e Emprego e Prefeituras Municipais) informações e dados disponíveis para efetuarmos uma análise comparativa a ser realizada. Dentre esses, tivemos acesso à arrecadação municipal de ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, ao levantamento do número de veículos licenciados no Estado de São Paulo e ao estoque de empregos formais no setor industrial, também em nível de município. Junto às Prefeituras, recorremos ao setor de Registro e Aberturas de Firmas, para o levantamento de aberturas e fechamentos de empresas nos anos determinados pelas safras-pico. Esses dados nos possibilitaram inferências e associações sobre a efetiva transferência de capital e/ou investimentos entre campo-cidade, que seriam complementadas, posteriormente com a pesquisa de campo. A elaboração do roteiro para a pesquisa direta em campo foi outra etapa percorrida na realização desse trabalho. Nesse momento, definimos os pontos a serem abordados durante a entrevista, e como se tratava de assunto de interesse particular – aplicação de capitais – resolvemos propor uma “entrevista suave”, como uma “conversa dirigida”, onde o entrevistado pudesse colocar todos os motivos que o levaram a efetuar ou não tais investimentos, suas expectativas quanto ao negócio, à atividade rural e ao desenvolvimento econômico no qual ele próprio está inserido. Como se trata da realização de uma entrevista direta com os produtores rurais e comerciantes urbanos, resolvemos não definir o número de entrevistados, apenas as instituições públicas e privadas que seriam contatadas durante as visitas a cada um dos municípios selecionados. Assim, tínhamos nas Associações Comerciais e Industriais, Casas da Agricultura, Prefeituras Municipais, Sindicatos Rurais Patronais e de Trabalhadores, Associações e Ambientes estudos de Geografia 15 Cooperativas específicas aos produtos cultivados pelos municípios as principais e primeiras referências, ao chegarmos a cada uma das cidades. Após esses primeiros contatos, surgiam outras informações e referências, que eram também incluídas nos roteiros de visitas, ampliando o número de entrevistados e, conseqüentemente, o número de informações e depoimentos. Durante essas entrevistas, pudemos verificar a real dimensão das aplicações e investimentos de capitais e das iniciativas, em ambas as direções, sua área de influência e grau de importância para a economia local e regional. Além disso, procuramos esclarecer as questões referentes às condições, causas, repercussões, expectativas, dificuldades e os elementos (econômicos, sociais, pessoais, políticos, climáticos, etc.) que levaram as pessoas a realizar tal investimento e/ou tomar tal iniciativa. Outro ponto que merece destaque é o nível de conscientização dos entrevistados quanto à importância da atividade agrícola para o desenvolvimento interno da região. Muitos deles, preocupados com a atual situação econômica por que passa o país, já buscam alternativas para melhorar e ampliar suas atividades. Análise dos resultados As relações estabelecidas entre o rural e o urbano, ou, ainda, entre a atividade agrícola e o desenvolvimento das atividades econômicas na área urbana, num determinado município, são intensas e constantes, de acordo com as condições que as envolvem. Direta ou indiretamente, verificam-se fluxos multi e bidirecionais, em que o capital e as iniciativas circulam entre ambos os setores citados – rural e urbano – promovendo condições favoráveis ao desenvolvimento econômico e urbano ou, em outros casos, provocando crises nas quais os municípios permanecem, aguardando novas safras. Essa situação, porém, não é nova, pois, conforme pudemos verificar, a própria formação dos municípios analisados, assim como a grande maioria dos municípios paulistas e brasileiros, estava atrelada à função agrícola desenvolvida no campo, que por sua vez era conduzida por um contexto mais amplo, em níveis nacional e internacional (períodos como os do café, da cana-de-açúcar, etc). Dessa maneira, podemos perceber as inúmeras interfaces do problema e constatar que existem elementos externos que podem interferir na dinâmica local, alterando significativamente a estrutura econômica e social de um município ou região. Nossa tarefa, a de analisar e constatar essa dinâmica relação entre a agricultura e o urbano, principalmente o setor comercial, nos revelou fatores condicionantes e características específicas, que tornaram o trabalho ainda mais interessante, fazendo com que cada município estudado apresentasse uma realidade singular, e por conseguinte, as relações entre rural e urbano também assumissem detalhes particulares dentro do contexto no qual estava inserido. A transferência de capital e iniciativas entre rural e urbano, numa situação em que as mais bem sucedidas safras agrícolas tornariam esses fluxos monetários mais intensos e constantes, realmente foi verificada em todos os municípios selecionados. Entretanto, cada município apresentou características próprias, que interferiam de modo diferente nessa relação entre campo e cidade. 16 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Santo Antonio do Jardim, município de pequeno porte, apresenta-nos uma situação bastante peculiar. O conjunto de agricultores locais é, em sua maioria, composta por pessoas naturais do próprio município, pertencentes a tradicionais famílias de cafeicultores responsáveis pela cultura do café na região. Essa comunidade caracteriza-se pelo forte vínculo dos produtores com a atividade cafeicultora, tornando-as alheia a formas alternativas de cultura e produtos. Amparados por essa estrutura tradicional, que passa de geração em geração, eles se negam a novas discussões, organizar cooperativas e associações, dificultando, inclusive, as atividades do engenheiro agrônomo local. No entanto, verificamos a quase maciça aplicação de recursos na área comercial da cidade, o que nos mostrou a tentativa de novas formas de atividades e investimentos que não sejam agrícolas, porém sem deixar de lado a atividade rural. Essas atividades secundárias, exercidas pelos agricultores ou familiares, são, na verdade, geradoras de recursos para manter ou, ao menos, auxiliar a atividade econômica principal: a cafeeira. Em Santo Antonio do Jardim pudemos verificar também um comércio controlado pelos produtores rurais, ou seja, a grande maioria dos proprietários de estabelecimentos comerciais urbanos era formada primeiramente por agricultores, que efetuaram investimentos nesse setor com recursos provenientes da atividade agrícola. Outro fator que evidencia esse controle é a múltipla atividade desempenhada pelos produtores agrícolas no município: um único cafeicultor, além de suas lavouras, mantém um supermercado (único no município), é vereador e presidente da Associação Comercial da cidade, mostrando-nos o grau de influência do rural sobre o urbano. Assim como em outros municípios, os principais cargos públicos e/ou atividades comunitárias e associativas são ocupados e desenvolvidos pelos agricultores, e em Santo Antônio do Jardim, isso ficou bastante nítido. Prefeito, vice, diretores, presidente da Associação Comercial e outros são cafeicultores, reforçando a hegemonia do café sobre as demais atividades econômicas desenvolvidas no local. Luiz Antonio, também um município de pequeno porte, apresenta características opostas a Santo Antonio do Jardim. O município, produtor de cana-de-açúcar, uma das mais importantes atividades agrícolas do estado de São Paulo, caracteriza-se por grandes extensões de terras ocupadas com as lavouras, e, ainda, pela existência de grupos de usineiros que dominam a atividade econômica, desde o cultivo da planta até a comercialização e industrialização de seus derivados. Percebemos em nossa pesquisa que a estrutura econômica de Luiz Antônio está centrada nas duas grandes empresas instaladas no município – Central Energética Moreno de Açúcar e Álcool e a Companhia Votorantim de Celulose e Papel –, apesar de ambas extraírem suas matérias-primas da agricultura, esta, pouco influencia o desenvolvimento econômico e urbano, pelo menos diretamente. Além das áreas ocupadas com a cultura canavieira – maior porcentagem das áreas cultiváveis do município – existem as culturas de eucaliptos para a fabricação de celulose e uma área destinada à cultura da laranja, adquirida recentemente pela Cutrale, todas apoiadas em mão-de-obra migrante, originária das mais variadas regiões paulistas. Jaboticabal, município produtor de cana-de-açúcar, porém de porte médio, nos apre- Ambientes estudos de Geografia 17 senta características diferentes. No setor agrícola, a cultura da cana aparece soberana em termos de área ocupada e valor da produção em relação as outras lavouras permanentes ou atividades criatórias. Quanto ao setor industrial, apesar de bastante variado a indústria de açúcar e álcool mantém sua hegemonia tanto em termos de arrecadação para o município quanto em número de empregos oferecidos. A estrutura fundiária do município apresenta-se com cerca de 80% dos estabelecimentos agrícolas de propriedade de pessoas residentes em Jaboticabal; são de pequeno e médio porte, e desenvolvem outras culturas associadas à cana (amendoim, soja, algodão). No que se refere ao consumo de bens de produção e de necessidades gerais como alimentação, vestuário, etc, encontramos duas realidades distintas: o consumo realizado pela mão-de-obra e aquele realizado pelos produtores agrícolas. A primeira situação favorece o comércio local, provocando um significativo aumento da arrecadação municipal de ICMS. Já os produtores agrícolas satisfazem suas necessidades consumindo em outros centros comerciais da região. Araraquara, município de maior dimensão, foi analisado segundo sua produção de laranja, que divide com a cana-de-açúcar o espaço físico e econômico regional. Sua estrutura fundiária está dominada pelos médios e grandes estabelecimentos, em sua maioria de propriedade de pessoas procedentes de outros municípios. Os naturais concentram-se no grupo das pequenas propriedades agrícolas. A mão-de-obra utilizada nas lavouras é procedente de município da região e também local. Como Araraquara é um grande centro comercial, tanto a população trabalhadora, quanto os produtores rurais, utilizam-se do comércio local para a satisfação de suas necessidades de consumo. Assim, podemos perceber que a repercussão da agricultura no comércio é bastante direta. Nosso último município analisado Louveira, com uma produção significativa de uva, apresenta algumas particuliaridades. Localizado próximo às áreas metropolitanas de São Paulo e Campinas, sofre grande pressão imobiliária, causada pela ampliação dos condomínios de alto luxo destinados à população dessas grandes áreas urbanas. A estrutura fundiária do município está assentada em pequenas e médias propriedades, em sua maioria de base familiar. Apresentando diversas dificuldades, no que se refere ao escoamento da produção de uva, os produtores locais vêem buscando alternativas (cultivo de outras frutas e produção de doces) para manter suas atividades agrícolas produtivas. Para isso contam com o apoio do poder público local que desenvolve e estimula projetos visando ampliar o agroturismo e a agroindústria caseira. De qualquer forma verificamos que, nos cinco casos analisados, a consciência da importância da agricultura para o desenvolvimento urbano, econômico e social dos municípios é constante e perceptível, principalmente no que se refere ao setor comercial e de serviços. Independentemente do tamanho dos municípios, das condições financeiras ou atividades desenvolvidas pelos entrevistados, as afirmações da importância exercida pelas 18 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) áreas agrícolas sobre os outros setores econômicos das cidades eram freqüentes e claras: “a cidade depende do café”; “a cana e a laranja controlam a economia do município”, etc. Essa conscientização torna-se importante, à medida que as atitudes tomadas por esses cidadãos, investidores ou potenciais investidores, nos principais setores da economia local, serão com certeza norteadas ou influenciadas por essa tomada de posição. A relação positiva entre o comércio local e as safras agrícolas também foi verificada e determina um importante fluxo de capital de origem rural – principalmente através da mão-de-obra ocupada nas lavouras – que tem como direção os setores comerciais e de serviços no urbano. No entanto, esse fluxo pode não ser direto, ou seja, com origem e destino num mesmo município; às vezes ele é desviado para outros centros comerciais, em municípios próximos. É o que acontece com a mão-de-obra volante, utilizada nas lavouras, que vem para as áreas agrícolas apenas para trabalhar, regressando, diariamente ou no final do período de colheita, com alguma reserva financeira acumulada, que será utilizada em seus municípios de origem. A mão-de-obra empregada nas lavouras é, sem dúvida, o principal elo entre as atividades agrícolas e o comércio urbano, pois é ela que absorve uma significativa parcela do capital rural e transfere para o comércio urbano através da necessidade de consumo. De forma mais ou menos intensa, essa população faz com que a circulação monetária, em épocas específicas do ano (períodos de safra) seja intensificada e, com isso, percebida pelos comerciantes locais e externos. Além da mão-de-obra, os agricultores também representam uma classe consumidora muito importante, no que se refere a essa circulação de capital. No entanto, freqüentemente, o fluxo monetário, nesse caso, tem destino em grandes centros comerciais, que oferecem uma maior variedade de artigos, conforto e qualidade, para uma população mais exigente. A necessidade do consumo de equipamentos, máquinas agrícolas, insumos, veículos e outros bens faz com que essa migração de capital seja justificada, embora tenhamos constatado que os bens adquiridos nesses centros comerciais maiores não se restringem apenas aos citados. No que se refere ao consumo urbano, tanto da mão-de-obra agrícola, quanto dos próprios proprietários rurais, duas realidades foram constatadas. Municípios como Luiz Antonio, Jaboticabal e Louveira apresentam uma forte corrente migratória de recursos financeiros, com destino aos centros comerciais vizinhos, enquanto que em Araraquara e Santo Antonio do Jardim, por razões diferentes, esse fluxo permanece dentro dos limites municipais. O primeiro grupo de municípios sente-se atraído por localidades economicamente mais desenvolvidas, que oferecem um amplo conjunto de bens e serviços, que pouco se parecem com os existentes em suas cidades. Já Santo Antonio do Jardim, apesar de sofrer a mesma atração, em relação aos centros comerciais maiores dos municípios vizinhos, procura manter um vínculo mais forte com seu próprio núcleo comercial. Araraquara difere totalmente dos demais, pois é um município que atrai os demais municípios menores da região, pela gama de bens e serviços disponíveis em seu setor urbano. A transferência de parte dos proventos financeiros gerados na agricultura, realizada através do comércio de bens de consumo, é constante e permanente ao longo dos anos, pois, enquanto houver mão-de-obra assalariada na agricultura, haverá consumo por parte dessa população, e, por isso, o comércio local ou regional será o destino de significativa parcela Ambientes estudos de Geografia 19 dos salários dessa massa trabalhadora. É importante salientar que esse fluxo – vinculado diretamente à economia agrícola da região – será intensificado ou reduzido, conforme a situação econômica das safras, e tem como característica marcante o seu caráter unilateral – rural com destino urbano. Verificamos, porém, outro tipo de transferência de recursos financeiros e/ou iniciativas, que se caracteriza pelo seu caráter específico quanto ao seu destino e finalidade. Trata-se dos investimentos realizados pelos produtores agrícolas nas áreas urbanas dos municípios, investimentos estes que podem ser considerados como conseqüência das atividades econômicas rurais bem sucedidas. São investimentos realizados pelos agricultores, principalmente nos setores comercial e de serviços dos municípios, utilizando-se dos recursos procedentes da agricultura, quando esta atinge condições satisfatórias, e permitem a geração de lucros que são disponibilizados para aplicações extra-rurais. Essa situação foi constatada em todos os municípios analisados, de forma mais intensa em uns e menor em outros, porém, o setor comercial é o principal foco dos investidores agrícolas. Esse fluxo de capital, entretanto, torna-se constantemente bidirecional, ou seja, após a consolidação da atividade urbana, os recursos por ela gerados retornam à atividade rural numa troca efetiva entre ambos os setores. No entanto, isso só é possível porque as duas atividades (rural e urbana) são gerenciadas pelo mesmo grupo de interesse: produtores rurais/comerciantes. Em municípios como Santo Antonio do Jardim, Araraquara, Louveira e Jaboticabal, a aplicação no comércio urbano, realizada por produtores rurais, é bastante intensa, determinando em alguns casos uma hegemonia rural, onde os setores urbano e agrícola são controlados pelo mesmo grupo de pessoas. Geralmente, são grupos familiares que ao longo dos anos foram ampliando seus investimentos, formando importantes “domínios” dentro do contexto local. A exemplo disso, podemos citar Araraquara, onde três importantes famílias detêm ramos de atividades distintas dentro do município – são usineiros, donos de concessionárias de veículos e distribuidoras de combustível. Já em Luiz Antonio, essa situação não é verificada. Com uma economia baseada na atividade industrial (celulose e papel, e usina de açúcar e álcool) o setor terciário do município é ignorado pelos potenciais investidores agrícolas. No entanto, essa situação tende a se modificar, já que investidores externos têm se instalado no local, com resultados satisfatórios, fazendo com que o poder público e a população municipal atentem para essa questão, tomando medidas que estimulem a aplicação de recursos locais no comércio urbano do município. Cabe a nós destacar que, em alguns casos, a dominação ou o controle exercido pelos produtores rurais sobre o setor urbano é tão forte e claro que eles estão presentes – ocupando cargos de destaque – em órgãos e entidades com grande importância econômica, social e política, chegando inclusive ao poder máximo no município – a administração municipal. Essa situação foi verificada em todos aos municípios – Santo Antonio do Jardim, Luiz Antonio, Jaboticabal, Araraquara e Louveira – onde cargos com grande importância política 20 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) e econômica são ocupados por produtores rurais ou pessoas pertencentes a tradicionais famílias de agricultores. Prefeitos, vereadores, diretores e outros cargos públicos, assim como presidências de associações comerciais e entidades eram exercidas pelos produtores agrícolas, num evidente controle sobre a situação política do local. Procuramos ainda, em nosso trabalho, constatar o aumento da circulação monetária nos municípios após uma safra bem sucedida, utilizando para isso os registros dos veículos realizados anualmente, junto ao DETRAN, em cada um dos locais analisados. A utilização desses dados nos possibilitou acompanhar a evolução da frota municipal e sua vinculação com a produção agrícola específica. Nos cinco municípios analisados, cada qual com suas especificidades, foi verificado o aumento expressivo das frotas de veículos motorizados (2 e 4 rodas) nos anos imediatamente posteriores às safras-pico, o que de alguma forma representa a aquisição de veículos utilizando-se os recursos provenientes dos setores rurais. Sabemos que outros fatores podem interferir no aumento do número de veículos dos municípios, como a migração populacional, que tende a transferir o veículo para o município atual de residência; ou ainda o aumento do poder aquisitivo da população, provocado por outros setores econômicos locais como a indústria e o comércio, porém, devemos reforçar que a coincidência é clara – crescimento das frotas de veículos nos anos posteriores às safras-pico –, apesar desses outros elementos interferentes. Com os dados colhidos junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, pudemos constatar que, de maneira geral, há uma tendência de redução da oferta de empregos no setor industrial, seja por transferência de atividades para outros setores ou por redução no número de indústrias nos municípios. A análise e comparação com esses dados nos possibilitaram verificar a influência de apenas um dos vários setores da economia local no aumento do consumo urbano, exemplificada nessa pesquisa pelo número de veículos licenciados em cada um dos municípios. Entretanto, fica difícil afirmar as causas do crescimento do número de veículos, quando analisamos apenas a agricultura e a oferta de empregos diretos na indústria de cada município, ou seja, somente dois setores da economia formal, restando outros elementos interferentes, aos quais não temos acesso. No entanto, nossos estudos deixam clara a maior ou menor importância da agricultura na geração de recursos monetários, que conforme vimos, são destinados a investimentos urbanos, rurais e pessoais, proporcionando o crescimento econômico dos municípios. A constatação da relação entre a agricultura local e o desenvolvimento urbano, principalmente do setor comercial e de serviços, foi amplamente verificada e nos mostrou a importância dos recursos gerados pela agricultura para a manutenção econômica de muitos dos municípios estudados. A tradicional relação entre a produção rural, transferindo capital para a área urbana, ainda é verificada atualmente, num constante fluxo monetário, intensificado nos anos em que as safras são mais rentáveis. A mão-de-obra assalariada, seja ela volante ou fixa, é outro importante meio de circulação do capital gerado pela agricultura, que, no entanto, tem destino incerto, já que muitos regressam aos locais de origem após cumprirem a jornada de trabalho e investem seus recursos nesses locais. Ambientes estudos de Geografia 21 O reconhecimento dessa realidade, bem como a sua conscientização pela população e poder público, pode auxiliar o entendimento e direcionar o desenvolvimento econômico local, pois trata-se de importantes fluxos multidirecionais de capitais, que poderão ser conduzidos pelo poder público a permanecer no município, evitando a migração, proporcionando o crescimento de determinados setores da economia municipal. A análise das atuais relações estabelecidas entre o rural e o urbano, ou entre a agricultura e as atividades comerciais urbanas, nos permitiu verificar a grande integração entre os setores, numa interdependência e complementaridade forte e constante, tomando formas concretas de dominação, verificadas nos cargos ocupados pelos agricultores/comerciantes, em níveis econômico, social e político. Esse trabalho procurou visualizar as atuais relações entre o campo e a cidade, no sentido de constatar a existência da transferência de capitais e iniciativas entre os setores, e qual a importância disso para o desenvolvimento municipal. Tal realidade, verificada intensamente no período cafeeiro, poderia ter se modificado com a crescente urbanização e industrialização dos municípios paulistas; no entanto, vimos que essa relação é forte e primordial para a sustentação econômica, social e, muitas vezes, política do local. O estudo de tais realidades, apesar de complexo, pode servir para o entendimento de tais dinâmicas, possibilitando interferências, ou, ainda, como ponto de partida para outras pesquisas, numa tentativa de compreender o complicado universo das relações rural-urbano. Referências CANO, W. Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. São Paulo: HUCITEC, 1990. QUEIROZ, M. I. P. Do rural e do urbano no Brasil. In: SZMRECSÁNYI; QUEDA (Organizadores). Vida Rural e Mudança Social: leituras básicas de sociologia rural. São Paulo: Editora Nacional, 1979, pp. 160-176. SILVA, A. F. da. A relação cidade-campo: como analisá-la? Natal: Imagem Gráfica e Editora, 1998. GRAZIANO DA SILVA, J. et al. O Rural Paulista Muito Além do Agrícola e do Agrário, 1996 [on line]. Disponível em: <eco.unicamp.br/projetos/rurseade 1 html > Acesso em 14 abr. 1998. POSSIBILIDADES DE APROVEITAMENTO TURÍSTICO DA ÁREA RURAL DE CRUZ ALTA - RS Paulo Ricardo Machado WEISSBACH Manoel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy Introdução Devido ao seu intenso crescimento no final do século passado e início deste, o turismo apresenta-se como um vetor de desenvolvimento econômico e social. Além disso, o intenso processo de urbanização pelo qual passa a humanidade, faz com que os habitantes das cidades rumem para locais ermos, com muita natureza, distante da atribulação do dia-a-dia. Uma opção que se apresenta em termos de lazer é o turismo rural. Forma alternativa de turismo e de contato direto com o verde, o turismo rural (TR) cresce como atividade econômica em todo o mundo, representando uma possibilidade de desenvolvimento em áreas com potencialidades específicas. O município de Cruz Alta, por apresentar tais peculiaridades, mostra uma configuração natural e humana apta para desenvolver essa modalidade turística. Turismo em espaço rural Retornar à vida bucólica. Esta, com certeza, faz-se a razão primeira do turismo em espaço rural. A urbanização massiva, associada ao estímulo dos meios de comunicação, conduziram para uma fuga dos ambientes urbanizados. Dessa forma, ao empreender no turismo rural, o turista busca serviços para recreação em espaço aberto, junto à natureza. (TROPIA, 2000, p. 9). Várias são as sub-modalidades de turismo rural surgidas da imprecisão da definição (PORTUGUEZ, 1999, p. 82), entre elas: turismo verde, turismo naturalista, de habitação, de retorno, de estância, de montanha, agroturismo, responsável, leve, da terra. Ou em função das práticas, pode o turismo realizado em espaço rural ser chamado de turismo ambiental, de eventos, de saúde, esportivo, náutico, eqüestre, gastronômico, histórico, cultural, de pesca, científico, educativo e de aventura (onde se encontram atividades como o caiaque, rafting, off road, mountain bike e caminhada, entre tantas). Em razão disso, fica mais prudente assumir a expressão “turismo em espaço rural”, justamente por sua amplitude, do que “turismo rural”, menos abrangente e por vezes ambígua. Distingue-se o turismo em espaço rural e o turismo rural, conforme o conjunto da população usufrua dos rendimentos da atividade, ou seja, no primeiro, os empreendedores não necessitam ser pessoas que vivam exclusivamente do e no campo, ao passo que o segundo compreende àqueles que além de tirar seu sustento da área rural, vivem nela e reinvestem em melhoria na propriedade localizada no meio rural Almeida; Blós (1997, p. 41), prefere empregar a expressão turismo em espaço rural (TER) para a totalidade dos movimentos turísticos efetuados no espaço rural, reservando ao TR (turismo rural) as atividades que 24 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) mais se identificam com a especificidade da vida rural, a economia e sua cultura. Assim o TR estaria correlacionado às atividades agrárias, que emprestam à paisagem sua fisionomia rural, diferente das áreas onde a natureza é predominante. (RODRIGUES, 2000, p. 54). Na atualidade, a EMBRATUR (Instituto Brasileiro de Turismo), com uma preocupação maior sob o ponto de vista dos empreendedores, tem trabalhado com a seguinte definição para o Turismo Rural, segundo Graziano da Silva et al (1998, p. 14): Atividade multidisciplinar que se realiza no meio ambiente, fora das áreas intensamente urbanizadas. Caracteriza-se por empresas turísticas de pequeno porte, que tem no uso da terra a atividade econômica predominante, voltada para práticas agrícolas e pecuárias. O turismo rural, conforme Groulleau citado por Almeida; Blós (1997, p. 43), tem por característica marcante o fato de ser um turismo local, de território restrito, gerido pelos próprios residentes em cinco níveis: “a) de iniciativa local; b) de gestão local; c) de impacto local; d) marcado pelas paisagens locais e e) valorizador da cultura local.” Há de se considerar que o TR apresenta duas marcas importantes: a primeira diz respeito a que o seu desenvolvimento pode dar-se em zonas que não disponham de recursos turísticos extraordinários de grande significado, e a segunda, de que a criação de postos de trabalho não necessita de grande volume de investimento. Desde o ponto de vista da atividade econômica, o TR apresenta-se como viabilidade para o desenvolvimento em zonas rurais desfavorecidas. A conciliação entre a atividade produtiva e a possibilidade de complementar a renda com a recepção de turistas, traz novo alento aos produtores rurais. O comércio diversifica-se e dinamiza-se, a infra-estrutura ajusta-se e melhora-se, a cultura local valoriza-se, sendo respeitadas suas bases tradicionais. A produção caseira e artesanal, além de valorizada, traz retorno financeiro. Almeida; Blós (1997, p. 43) complementam: Como fator de desenvolvimento econômico-social, esta atividade promove a geração de novos empregos, a construção de instalações receptivas apropriadas, o incentivo a pequenas e médias empresas direta ou indiretamente relacionadas com o setor. Assim, cabe relembrar que a crise urbana voltou os olhares para o ambiente rural, não só como pólo antagônico à vida na cidade, mas como possibilidade de uma vida saudável. Nesse sentido, vê-se uma re-valorização do rural. Seja pela visão idílica que o meio rural proporciona ou pela necessidade de manter e conservar os recursos naturais, o meio rural apresenta-se, hoje, como o locus que não se restringe à produção econômica voltada para a geração de gêneros alimentícios e matéria-prima, mas, de mesma sorte, como o espaço de moradia (segunda residência) e de lazer. Dessa maneira, o turismo rural traduz-se, além da vertente econômica, sob a vertente social, em que a diversificação das atividades, no meio rural, propicia benefícios às comunidades locais, preservando a cultura e integrando a economia, tudo isso dentro de uma perspectiva de desenvolvimento endógeno e sustentável. Ambientes estudos de Geografia 25 O Município de Cruz Alta e sua inserção no contexto regional No século XVII os bandeirantes que objetivavam expulsar os jesuítas das terras a leste do rio Uruguai, encontraram, próximo as nascentes do rio Jacuí, uma redução próspera, Santa Teresa, que chegou a abrigar 8.000 indígenas. Destruída a aldeia em 1637, localizada aproximadamente a duas léguas da atual cidade de Cruz Alta, um pequeno grupo se instala no alto de uma coxilha próximo de uma capela na frente da qual havia uma enorme cruz de madeira. A localização e a cruz forneceram os elementos para a denominação do lugar. Cruz Alta localiza-se aproximadamente a 341 Km de Porto Alegre, na Região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul. Com superfície de 2.432,6 Km2, sendo 79,2 Km2 na área urbana, goza de uma relativa centralidade em relação a área estadual. A cidade situa-se a 28° 36' 20” S e 53° 36' 34” W, assentando-se sobre a unidade geomorfológica do Planalto arenito-basáltico. Em Cruz Alta as altitudes variam de 300 a 600 metros (média de 452 m), sendo seu relevo composto, basicamente, por uma topografia suave, com ondulações, sob a forma de coxilhas. (MOREIRA; COSTA,1995, p. 27). Com clima mesotérmico super-úmido temperado, a cidade insere-se em uma faixa com temperaturas médias de 18° a 20º C, sendo que as precipitações situam-se entre 1.500 e 1.600 mm ao ano. A localidade apresenta a alternância entre campos e mata subtropical, onde é freqüente a presença de matas galerias (capões de mato) que estão ligadas à maior presença de umidade. (VIEIRA,1984, p. 94; MOREIRA; COSTA, 1995 , p. 38-39). O sítio urbano situa-se no divisor de água das bacias hidrográficas dos rios Jacuí (a leste) e Uruguai (a oeste), entretanto o município não apresenta rios de importância, com exceção do rio Jacuí na fronteira leste, que possui elevado potencial hidroelétrico que já vem sendo devidamente explorado. Cidade com vocação agrícola, Cruz Alta tem no comércio e na agro-indústria a base de sustentação econômica, com destaque na produção de soja, milho, trigo, bovinos de corte e de leite e de suínos. Acompanhando a modernização agrícola do país, o município incorporou novas técnicas que possibilitaram o cultivo da soja. Antes disso, o trigo já figurava como destaque agrícola, chegando a emprestar à cidade o título de “Capital Nacional do Trigo”. Mais recentemente, o milho vem ganhando espaço em virtude da retração do preço da soja no mercado mundial. Segundo levantamento estatístico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 1996, a população do município encontrava-se em 71.135 habitantes. No censo de 2.000 o contingente populacional apresenta 71.236 habitantes, sendo a sua densidade demográfica de 29,28 hab/ km2. Na área urbana, que representa 3,5% da área do município, vivem 91,73% da população total. Cruz Alta foi fundada oficialmente em 18 de agosto de 1821 (originalmente denominada de Espírito Santo de Cruz Alta). Durante muito tempo foi um local de passagem de tropeiros. De 1821 até 1940, já completara a ligação ferroviária com os principais pontos do estado. Na atualidade, o município de Cruz Alta ainda representa um dos maiores entrocamentos rodo-ferroviários do sul do país, com acesso pelas BR 158, BR 377 e RS 342, todas pavimentadas. 26 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) A SETUR (Secretaria de Turismo do Estado do Rio Grande do Sul) propõe o zoneamento turístico do estado, onde o município de Cruz Alta vem compor a região central. Esta área aparece marcada pelas influências alemãs, italianas e pela tradição gaúcha, evidenciando uma cultura potencialmente aproveitável em termos turísticos. Adotando-se uma outra regionalização, pode-se afirmar que o município enquadra-se dentro da unidade regional do Planalto Médio. Cruz Alta, como centro urbano de expressão regional, detém uma boa infra-estrutura para o turismo receptivo, o que não impede que as demais cidades com seus potenciais venham a dotar seus atrativos com um aparato mais compatível ao desenvolvimento da atividade. Além disso, o desenvolvimento regional, como fruto do desenvolvimento endógeno, surge como uma possibilidade para a região em que Cruz Alta está localizada, pois conforme Wanderley (1998, p. 34): O turismo é a opção que mais se aproxima do paradigma do desenvolvimento endógeno sustentado, na medida em que consegue conjugar vários elementos importantes para o desenvolvimento local e regional, como forças sócio-econômica, institucionais e culturas locais, grande número de pequenas e médias empresas locais ramificadas por diversos setores e subsetores, flexibilização, alto grau de multiplicação de renda local, indústria limpa e globalização da economia local através do fluxo de valores [...]. Atingir uma situação desejável de progresso econômico e justiça social para todos não é tarefa fácil ou de resposta imediata no município de Cruz Alta como em todo o mundo. Sobretudo se levarmos em consideração a estrutura sócio-econômica desequilibrada em que se encontra o Estado, como parte de um contexto maior de um mundo subdesenvolvido, onde as atividades agropecuárias como suporte econômico mantiveram-se alheias às inovações da revolução científica e técnica e o processo de industrialização com tecnologia avançada foi tardio e lento. Entrementes, em caminho oposto à falta de dinamismo, as potencialidades naturais abrem-se como possibilidades se inseridas em um processo planejado de desenvolvimento. De certo modo, Cruz Alta ressente-se no cenário estadual da falta de uma representatividade política. Há muito tempo o município não vem sendo atendido por verbas estaduais que fomentem o desenvolvimento em função de sua fraca participação no cenário político do estado, seja no parlamento quanto no poder executivo. Em razão disso o município sofre de um relativo “isolamento” que priva a população de usufruir de benefícios sociais alcançáveis a outros municípios. Há de se reconhecer, também, que falta planejamento municipal que reforce a sua autonomia, permitindo a sua livre associação com outros municípios no sentido de, baseados em suas peculiaridades, fazer crescer sua economia. O turismo em Cruz Alta Embora possua uma razoável infra-estrutura, o turismo não apresenta uma boa demanda em Cruz Alta. Inúmeros fatores são apontados para a retração dessa atividade. Zamberlan et al (1989, p. 157) apontam: [...] falta em Cruz Alta um organismo que conjugue esforços no sentido Ambientes estudos de Geografia 27 de dinamizar as atuais fontes de turismo que são inúmeras, pois Cruz Alta possui tradição muito grande, desde tempos remotos, que a destaca dentro do contexto regional. Historicamente, a cultura e o lazer do município sempre foram destaque no cenário estadual. Sua condição de liderança político-religiosa na região do Alto-Jacuí facilitaram este desempenho. A instalação precoce de sedes administrativas da religião católica, criação de unidades militares, jornais e escolas, fizeram de Cruz Alta, comparativamente a outros municípios, uma célula emanadora de poder político e prestígio. Entrementes, na atualidade, aquela posição outrora ocupada, perde espaço e cede lugar a uma reflexão que tenha por meta a retomada do status perdido. Entre as iniciativas que visam a estimular a atividade turística no município, o poder executivo, através de lei n° 428/97, sancionou medidas para a participação no Consórcio de Desenvolvimento Sustentável da Região Planalto/Rota das Terras. O poder municipal, através da Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo (SETUR), procura fazer o chamamento aos turistas e visitantes através do rótulo de “Terra de Érico Veríssimo”, pelo fato do escritor ser natural do município. Aproveita, também, uma lenda local – Lenda da Panelinha –para apregoar que “quem bebe da água da panelinha, retorna sempre a Cruz Alta,” em referência à possibilidade de volta do visitante. Nota-se, no entanto, que a demanda – entendida como o total de pessoas que visitam uma região e os recursos financeiros que geram – tanto para os atrativos quanto para os eventos do município, apresentam-se em baixa. O município está desenvolvendo plenamente o Plano Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT), que em linhas gerais, descentraliza a gestão do turismo, fomentando a atividade com base na sustentabilidade econômica, social, cultural, ambiental e política. No sentido de integrar a comunidade em prol da implementação, verifica-se que a Comissão Municipal de Turismo, sugerida pelo PNMT, ficou estabelecida através de lei municipal de 12 de janeiro de 2000 (0692/00), tomando a denominação de CONTUR. Através desta lei, o CONTUR constitui-se em um órgão consultivo no auxílio da administração pública municipal para a promoção do turismo. Por meio do CONTUR, será criado o FMTCA (Fundo Municipal de Turismo de Cruz Alta) que captará recursos para as ações do próprio órgão. Possibilidades para um turismo rural em Cruz Alta Infra-estrutura de acesso Em qualquer economia, principalmente a de mercado, os sistemas viários são fatores importantes para a circulação de pessoas, mercadorias e informação, refletindo, inclusive, o grau de desenvolvimento econômico em determinados casos. O sistema viário de Cruz Alta passou, conforme o momento histórico-econômico, por ciclos, que se iniciaram com os caminhos das tropas de gado – estradas rústicas de chão – passaram pelas ferrovias – que transportavam pessoas e um grande volume de carga -, até chegar nas ágeis rodovias que 28 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) interligam vários pontos. Devido à ausência de corpos d’água consideráveis, os transportes lacustre e fluvial nunca foram possíveis. Através das rodovias dá-se a ligação do município com o restante do estado e do país. Dessa maneira considera-se que Cruz Alta está bem servida de rodovias, permitindo que o seu acesso seja fácil em todas as direções. Entretanto, considerando os fluxos mais freqüentes de mercadorias e de pessoas, há um certo isolamento. Quanto à malha viária urbana, nota-se que é deficiente. São poucas as ruas e avenidas asfaltadas em relação a área urbana. Além disso, o capeamento existente apresenta problemas de durabilidade, já que foi realizado tendo por base o calçamento pré-existente, o que exige periódicos reparos. No entanto, de modo geral, a circulação é boa, não havendo dificuldades na locomoção. As estradas vicinais, porém, que levam às áreas rurais, são todas de chão batido, e, agravado pelo clima úmido e chuvoso, obrigam a freqüentes obras de reparação durante o inverno, período em que a pluviosidade se intensifica Com respeito ao transporte aéreo, a cidade dispõe de um aeroporto com pista de 1.300 metros e de um aeroclube com três pistas de 800, 600 e 500 metros, todas de grama. O aeroporto está desativado, enquanto o aeroclube opera somente com aviões agrícolas. O acesso aéreo mais próximo localiza-se em Santo Ângelo a 92 Km. Equipamentos turísticos Como parte do atual equipamento turístico, o município apresenta os seguintes hotéis e pousadas: Hotel Santa Helena, Pousada Santa Helena, Hotel Fazenda, Hotel Steibrenner, Hotel Califórnia, Hotel Linassi, Hotel dos Viajantes, Hotel Cerezer, Rosmer Palace e Pousada do Estudante os quais perfazem um total de 437 leitos. Quanto as agências de turismo, vê-se que o município é bem servido por essas empresas no que tange a quantidade. No aspecto qualitativo deixam muito a desejar, pois na maioria dos casos, limitam-se a ofertar excursões. As agências de turismo do município são as seguintes: Luciane turismo, Viagens Dantour, Águia Sul Turismo, Beto Turismo, Cruz Alta Turismo, Guia de Luz, Porto Brasil, Ruwer e Cia Ltda, Mano Tour, Merlo Bus, Pampa Turismo, Neto Turismo, Varig-Rio Sul, Discovery Tour, Salvaturi. Verifica-se que em sua maioria as agências turísticas desconhecem ou ressentem-se de uma maior divulgação do consórcio Rota das Terras, revelando que o projeto necessita angariar uma maior participação dos agentes turísticos do município (poder público, comunidade e empresas turísticas) mesmo porque são as agências que “vendem” os atrativos turísticos. Equipamentos de apoio O município possui 08 agências bancárias, um bom número de restaurantes, em geral acolhedores, confortáveis e limpos. Destaque para o fornecimento de massas (cozinha italiana) e o tradicional churrasco. A noite de Cruz Alta carece de ambientes de qualidade e diversificados em termos de bares e boates, o que provoca a fuga de muitas pessoas para Ambientes estudos de Geografia 29 cidades vizinhas como Ijuí e Panambi, relativamente próximas (em torno de quarenta quilômetros). Recursos turísticos A seguir relacionam-se alguns recursos turísticos do ambiente rural de Cruz Alta, não sem antes enfatizar que embora os elementos naturais sejam marcantes, estes não são os únicos levados em consideração na avaliação de um recurso turístico, visto que a ação antrópica dota as áreas rurais de várias manifestações culturais que, via de regra, atraem visitantes em razão de sua singularidade. - Lageado da Cruz, Balneário Novo Horizonte, Propriedade do Sr Joceli Jappe, Complexo turístico Fazenda do Pilão, Parque holístico São Francisco, Propriedade do Sr Francisco Knipoff, Propriedade do Sr Sadi Santana e o Hotel-fazenda. Estes recursos não esgotam o sem-número de estabelecimentos onde o turismo rural pode ser realizado. Avaliação das potencialidades turísticas Após as considerações sobre a infra-estrutura turística existente, os recursos e os equipamentos, e tomando-se por referência as orientações de Ferreira Mendes (1994,p.37), propomos a seguinte avaliação das potencialidades de Cruz Alta, em termos de Turismo Rural, conforme tabela 1. O turismo, na atualidade, não pode ser visto como algo isolado territorialmente. Assim a sua regionalização através de rotas integradas, fazem com que o turista tenha diversificação nos atrativos. Neste sentido a Rota das Terras torna-se um exemplo positivo, pois mais de vinte municípios, enfrentando as adversidades em conjunto, potencializam possibilidades. Sendo a instância executiva mais próxima do povo, a prefeitura torna-se mais sensível aos anseios imediatos populares, de forma que as ações do poder público responderão diretamente à parte interessada, tornando clara a relevância do município na tarefa executiva. Coelho (1997, p. 47), expõe: O município é, hoje, uma subdivisão territorial com funções políticoadministrativas para fins de desempenhar funções próprias de governo e da gestão pública local. Com sua capacidade de autogoverno (como entidade administrativa que se orienta por si mesma respeitando os preceitos constitucionais), o município traz, no contexto geral, uma nova visão que está se inserindo radicalmente no debate municipal, isto é, uma vertente municipalista (movimento que visa ampliar a autonomia municipal através do fortalecimento do poder político da comuna e da revitalização da vida financeira local) que prega necessariamente um novo perfil para o município. Esse fortalecimento do poder decisório, em termos turísticos, encontra respaldo através do PNMT. Com o PNMT todo o município que desejar ter atividade turística como um vetor de desenvolvimento deverá municipalizá-la, criar um órgão específico para tal – Conselho Municipal de Turismo – com o apoio técnico dos governos estadual e federal. 30 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Tabela 1 - Avaliação das potencialidades turísticas de Cruz Alta Organizada por Paulo Ricardo Weissbach Turismo, desenvolvimento e integração regional O turismo pode ter papel positivo no desenvolvimento e na diversificação da economia em áreas rurais, onde as atividades tradicionais como a agricultura estão em declínio, a população está diminuindo e os salários são baixos. Sendo considerado um criador de renda Ambientes estudos de Geografia 31 e de ocupações, um promotor de infra-estrutura e um meio de intercâmbio entre o rural e o urbano, o turismo mostra-se como a chave do desenvolvimento local. O desenvolvimento via turismo, com a finalidade de que não seja restrito ou circunscrito a uma pequena parcela do espaço, deve procurar a integração regional. A região, atuando complementarmente e em conjunto, ganha força para enfrentar seus desafios. Através do oferecimento de produtos diferenciados, próprios do local, caminha-se em direção contrária à homogeneização – prática usual no turismo de massa em tempos de globalização. Enquanto o turismo em termos globais procurar homogeinizar formas de consumo, o turismo com base local afirma-se por sua singularidade e unicidade. Isto quer dizer que a relação turismo rural e desenvolvimento local pressupõe a utilização plena dos recursos endógenos da localidade e de acordo com a realidade regional. Atrativos no turismo rural Nada mais peculiar no TR do que oferecer refeições compostas de pratos típicos. Um churrasco de carne bovina ou ovina, lingüiça caseira, queijo colonial, salame, arroz de carreteiro com polenta frita ou mandioca frita, são algumas das variedades gastronômicas que podem ser ofertadas. A variedade e a qualidade, o esmero no preparo e a apresentação são pontos a considerar. A refeição será mais apreciada se em sua elaboração forem utilizados produtos da região e se, preferencialmente, forem originários do próprio local de visitação. Então é de se prever a existência de hortas, pomares e criação de animais que servirão de matéria-prima às refeições. O turista, em geral oriundo do meio urbano, valoriza os produtos naturais e feitos em pequena escala, que fogem da produção em massa tão característica dos meios altamente urbanizados. Uma comida caseira feita em um fogão a lenha utilizandose panela de barro ou de ferro terá a sua singularidade e sabor apreciados pelos visitantes. A venda de produtos fabricados artesanalmente são outro atrativo. Durante a visitação, ou mesmo antes de ir embora, o turista poderá querer levar uma lembrança para casa. Além de se constituir em outra fonte de renda para o empreendedor, o ‘souvenir’ cumpre o papel de realizar um marketing velado da propriedade ou atrativo. Desta maneira, alguns cuidados são necessários, como a oferta de produtos comestíveis naturais e saudáveis (no caso de alimentos – mel, charque, rapaduras, queijos, salames, leite e derivados, carnes, frutas, compotas, cucas, sucos, melado, etc.) e lembranças elaboradas de forma caseira e artesanal. Preferência deve ser dada para objetos de uso local (tais como arreios ou selaria, cuias, bombas de chimarrão, ponchos, etc), confeccionados com matéria-prima da região e por pessoas da comunidade. Cobertores de lã, utensílios de barro ou de couro, artefatos de pedra ou madeira, utensílios usados na vida diária, podem servir para uso próprio do turista ou usados como objetos de decoração. Outra viabilidade no tocante a atrativos no ambiente rural remete à instalação de museus ao ar livre. A reunião de objetos e a sua disposição de maneira a dar um aspecto de realidade chama a atenção dos visitantes. O importante é que os museus sejam compostos por peças que não sejam fruto dos avanços tecnológicos recentes, ou seja, devem guardar um aspecto “retrô”. Na implementação de museus ao ar livre são necessários guias bem 32 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) informados e/ou placas esclarecedoras quanto à utilidade e destinação das peças, podendo fazer referência a sua capacidade produtiva em relação aos instrumentos atuais. No entanto, os museus tradicionais, com a exposição de peças em ambientes fechados, também são possíveis. Nesse caso a ordenação e identificação das peças deve ser mais rigorosa, com maiores detalhes e expostas em locais adaptados como antigos galpões, estábulos ou casarões. Em Cruz Alta esses tipos de atrativos apresentam uma boa possibilidade pois existe farto acervo em fazendas, sítios ou estabelecimentos rurais do município. Um outro atrativo a explorar pode constituir-se no local de hospedagem do turista. Desde os tradicionais hotéis-fazenda (semelhantes aos hotéis tradicionais com a diferença de estarem localizados na zona rural), aos fazenda-hotéis (estabelecimentos localizados em uma propriedade que continua as suas atividades produtivas), passando pela hospedagem domiciliar (onde o visitante pernoita e faz as refeições na casa da família rural), camping, pousadas rurais (a habitação é alugada nos finais de semana ou pelo período desejado pelo turista). Alguns atrativos podem ser agrupados em determinadas propriedades onde a variedade seja um fator de atenção para o turista, ou oferecidos, isoladamente, conforme seja a demanda. Cita-se, por exemplo: Trato de animais (dar de comer, banho, tosa, tosquia, vacinação, marcação); ordenha; coleta de ovos; colheita, plantio, adubação (que pode ser caracterizado por uma modalidade turística desenvolvida em espaço rural, o agroturismo); manejo de horta; fabricação de queijos, salame, lingüiça, vinho colonial, manteiga; confecção de comidas e doces; pescaria (seja aquela feita em riachos ou córregos, quanto aquela realizada em criatórios, e que habitualmente são denominados de pesque-pague e tem demonstrado significativa agregação de renda ao proprietário) ; passeio a cavalo, charrete, carroça, carro de boi; passeio de caiaque, pedalinho ou barco; trilhas a pé, a cavalo, de bicicleta (guardam o conveniente de se realizarem ao ar livre, em contato com a natureza, porém requerem utilização racional); banho em riachos, açudes, piscinas naturais (o turista tem predileção por locais que disponham de massas líquidas para banho ou atividades de lazer); soltar pipa; brincadeiras e jogos infantis (da cultura local); curso de artesanato e de culinária; apresentação de grupos folclóricos (danças regionais como a chula, o pezinho, a cana-verde, o balaio, o tatu, etc). Destaca-se, ainda, a importância de valorizar e estimular os talentos locais, tais como músicos, dançarinos, trovadores, pintores, escultores, etc. Artistas nativos poderão ser utilizados como atração e enriquecimento do negócio turístico, além de empregar a mão-de-obra local. Vale apontar que a rentabilidade de um empreendimento turístico rural está na razão direta do grau de satisfação que o turista terá ao visitar um local. Satisfeito, o visitante representará um agente multiplicador na divulgação do local, de maneira que, qualidade, variedade e originalidade são objetivos a serem perseguidos obstinadamente. Então o planejamento turístico para o aproveitamento da área rural de Cruz Alta deve prever várias etapas, como o diagnóstico (exame dos componentes do turismo, tanto dos existentes quando dos possíveis); estabelecimento de objetivos e metas (determinação do que se quer atingir e os meios para atingi-lo); implantação do plano; acompanhamento dos resultados. Ambientes estudos de Geografia 33 Nesse planejamento há de se prever a participação ativa do poder público, principalmente da secretaria de turismo do município. Turismo rural em Cruz Alta Se a crescente valorização do ambiente, da paisagem, do rústico, da história, da tradição e do sossego sustenta oportunidades de turismo e de lazer no espaço rural, da montanha à planície, do interior ao litoral, a sua concretização está condicionada pela presença de população permanente, garantia da tradição e da preservação do meio e prestadora dos serviços requeridos. (CAVACO, 2000, p. 89). A promoção do turismo rural está sendo considerada pelos planos de desenvolvimento rural como uma das oportunidades mais destacadas entre as diversas alternativas de diversificação produtiva. Entretanto, apesar do interesse que tem despertado, o turismo rural não pode ser considerado como a solução geral para todos os espaços rurais, não devendo ser tratado como as zonas litorâneas, onde a massificação tem sido a chave do modelo de exploração. No TR a oferta não deve limitar-se à mera restauração dos ambientes e alojamento dos visitantes, mas aproveitar os recursos naturais e paisagísticos existentes e a riqueza do patrimônio rural/cultural, que constituem-se em seu fator de diferenciação, pois as pessoas que procuram pelo TR buscam originalidade e genuinidade, serviços diversos que propiciem repouso e produção local de vários gêneros. Para que esta atividade logre sucesso em Cruz Alta , julga-se importante atentar para que as características a seguir sejam adotadas ou preservadas: - Atenção personalizada; - Convívio com a população local; - Empreendimento delimitado em um entorno natural e/ou produtivo; - Participação nas tarefas rurais; - Passeios com guias; - Reconhecimento da flora, fauna, e demais particularidades do estabelecimento; - Gastronomia típica; - Atividades ligadas ao meio rural (cavalgada, caça, pesca, etc). Os empreendedores, público e privado, do TR em Cruz Alta poderão verificar que através do estabelecimento deste, embora aumente a oferta de destinos turísticos, a rede de serviço não necessita de muitos investimentos, mesmo porque a rede de infra-estrutura turística já serve a outros atrativos existentes. A geração de emprego torna-se um dos fatores de atratividade para as comunidades rurais. Considerando-se que os empregos diretos normalmente não exigem mão-de-obra com grande qualificação e a remuneração não é alta, as populações rurais podem ser amplamente empregadas, evitando-se, assim, a saída de pessoas do meio rural. A população rural pode se beneficiar de sua tradicional hospitalidade para melhor 34 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) acolher o turista, considerando-se que o tratamento é um dos quesitos mais considerados no serviço turístico. O aspecto do contato direto com o proprietário e o meio físico faz com que o TR seja viável, especialmente, para pequenas empresas, nas quais se percebem nitidamente os valores culturais rurais, em contraposição aos urbanos e às expectativas dos rurícolas em relação ao constante processo de modernização. Um dos aspectos do TR que tem encontrado boa receptividade por parte dos turistas diz respeito ao atendimento familiar no atrativo. Esse quesito pode ser viabilizado em pequenos estabelecimentos e gozar de amplo prestígio como fruto da costumeira hospitalidade do homem rural. Considerações conclusivas O turismo está sendo apontado por muitos especialistas como a grande solução para o desemprego que vinga em dias atuais. Exagero a parte, a atividade tem significado uma fonte alternativa de emprego de mão-de-obra, na medida que induz a criação de novos postos de trabalho diretos na área de lazer e, indiretos, em outras atividades subsidiárias ao turismo, como o transporte, o comércio, etc. Afora isso, os meios de comunicação, aproximando mais as pessoas e os lugares, têm oportunizado a criação de novas necessidades em razão do contato com povos de hábitos diferentes. Viajar, dessa forma, tem sido encarado como uma necessidade. Eis porque, dentro do rol das motivações turísticas, ao desejo de evasão acresceu-se a necessidade de evasão, associada ao espírito de aventura do ser humano, aquisição de status, aquisição de cultura e motivos comerciais. Como um segmento do turismo, o turismo rural apresenta inúmeras vantagens e que o colocam como uma boa perspectiva em municípios com áreas rurais que disponham de algum atrativo (mesmo porque o TR não exige atrativos significativos). Verificou-se que o município de Cruz Alta tem amplas chances de empreender no TR. Sua diversidade paisagística e cultural remetem a atividade para um quadro de possibilidades verificáveis a médio e longo prazos. Autores que estudaram o Rio Grande do Sul e a região noroeste do Estado também são unânimes em apontar o potencial do município. A situação da atividade turística no município é razoável, pois prevalece o turismo emissivo e os atrativos existentes carecem de uma maior divulgação. No entanto, vários passos já foram dados para a implementação turística, entre eles o cadastramento junto a EMBRATUR, a criação do Conselho Municipal de Turismo e a própria municipalização do turismo. Cruz Alta, não obstante as várias propriedades aptas a desenvolver o TR, já manifesta uma incipiente incursão pela modalidade turística. Convém enfatizar que, com a finalidade de ser implantado em Cruz Alta, o TR deve reafirmar certos aspectos que permeiam a existência da atividade como: - O TR não é destinado ao turismo de massa, sendo o atendimento personalizado em um ambiente tranqüilo uma de suas marcas; - O TR sofre com a questão da alta e baixa temporadas, o que faz nascer uma preocupação adicional com a demanda; O turismo rural apresenta-se como uma maneira inteligente de divulgar e preservar Ambientes estudos de Geografia 35 as belezas e riquezas locais. Se bem estruturado pode ser decisivo para o desenvolvimento econômico e social, bastando uma ação planejada e com objetivos bem definidos. Sabe-se que o turismo, precedido de um planejamento, proporciona receitas fiscais, redistribuição de renda, geração de empregos, incremento industrial e de serviços, além de fixar o homem ao seu meio, isso sem contar a integração e divulgação cultural, o acréscimo de atividades de lazer, a valorização do patrimônio histórico e a proteção ambiental. A observância da infraestrutura necessária, os impactos positivos e negativos e o futuro da atividade são pontos de passagem obrigatória dos planejadores. Significa pensar o espaço segundo Milton Santos, onde a psicosfera antecipa-se à tecnosfera, ou seja, raciocinar primeiramente em termos de valorização simbólica dos lugares. Em outras palavras é administrar os ambientes, recursos e a comunidade receptora com a finalidade de atender às necessidades econômicas e sociais, preservando a cultura e o meio ambiente. Finalmente, podemos afirmar que a criação de estratégias de atração de investimentos turísticos fortalecerá e dinamizará o setor no município. Com este fim, campanhas de divulgação de imagem e medidas de incentivo podem ser adotadas. Para que vingue tal propósito, urge que a imagem de desenvolvimento integrado seja aceita pelos investidores, no que um plano regional de turismo, seria um excelente motivador para os empresários do setor turístico. Referências ALMEIDA, Joaquim A.; BLÓS, Wladimir. Turismo e desenvolvimento em espaço rural. Revista Ciência e Ambiente, Santa Maria, n. 15, p.31-49,1997. CAVACO, Carminda. Turismo, comércio e desenvolvimento rural. In ALMEIDA, Joaquim A. e RIEDL, Mário (Orgs). Turismo rural: Ecologia, lazer e desenvolvimento. Bauru: EDUCS, 2000, p. 69-94. COELHO, João É. L. Processos sócio-políticos no contexto municipal na perspectiva do desenvolvimento regional. (1988-1996). Revista Perspectiva: Erechim, v. 21, n. 74, p. 43-49, 1997. FERREIRA MENDES, J. L. Ordenamento turístico do território nacional. Contributo para uma dinâmica de actuação. Revista Científica do Instituto Nacional de Formação Turística, Estoril, n. 0, 1º Sem 95, p. 32-40, 1994. GRAZIANO DA SILVA, José; VILARINHO, Carlyle; DALE, Paul J. Turismo em áreas rurais: suas possibilidades e limitações no Brasil. In: ALMEIDA, Joaquim A. et al. (orgs). Turismo rural e desenvolvimento sustentável. UFSM: Santa Maria, 1998, p.12-18. MOREIRA, Igor; COSTA, Rogério H. Espaço & sociedade no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995. 109p. PORTUGUEZ, Anderson Pereira. Agroturismo e desenvolvimento regional. São Paulo: Hucitec, 1999. 127p. RODRIGUES, Adyr B.Turismo rural no Brasil – Ensaio de uma tipologia. In: ALMEIDA, 36 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Joaquim A. e RIEDL, Mário (orgs). Turismo Rural: Ecologia, lazer e desenvolvimento. Bauru: EDUSC, 2000, p. 51-68. TROPIA, Fátima. Turismo no meio rural. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 75p. VIEIRA, Eurípedes F. Rio Grande do Sul. Geografia física e vegetação. Porto Alegre: Sagra, 1984. 183p. WANDERLEY, Lilian de L. Litoral sul de Sergipe: Uma proposta de proteção ambiental e desenvolvimento sustentável. 1998. 234f. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociências e Ciências Exatas, UNESP, Rio Claro, 1998. ZAMBERLAN, Jurandir; BAIOCCHI, Mário; FLORÃO, Santo R. S. Cruz Alta: As perspectivas do desenvolvimento. Cruz Alta: APROCRUZ, 1989. 284p. LIXO: FATO AMBIENTAL DA MODERNIDADE Elias Antônio VIEIRA Manuel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy Introdução O presente artigo tem por objetivo contribuir para a reflexão sobre a questão ambiental do resíduo/lixo enquanto produto residual da Era Moderna, em particular, do modelo de produção e consumo de cunho capitalista que passou a predominar. O advento desse período histórico-econômico-social, que também poder-se-ia denominar Modernidade, é considerado nos diversos estudos teóricos analisados como uma marca importante da intensificação da problemática dos resíduos e do lixo. Dessa época em diante, as quantidades e os volumes dos detritos gerados viram-se contínuas, crescentes e, em muitos casos, gigantescas. A composição e as características tornaram-se diversificadas e difíceis de serem tratadas pela incorporação de novos resíduos cada vez mais estáveis ante a decomposição. Os impactos ambientais que eles originam passaram a constantes. Cumpre salientar que não há um só conceito e nem sempre existe concordância na literatura, para caracterizar os materiais que resultam do uso e consumo de bens e serviços que as pessoas denominam simplesmente como lixo. Assim, o uso do vocábulo composto resíduo/lixo justifica-se porque, apenas, o termo lixo, não é adequado para nomear a quantidade e diversidade, em peso, tamanho, forma, composição etc. dos objetos que, nas últimas décadas, diária e crescentemente, são gerados no cotidiano da população, seja no lar, no trabalho ou no usufruto do lazer. Pode-se constatar termo lixo foi evoluindo através do tempo; inicialmente surgiu para denominar as cinzas que resultavam do processo pelo qual o fogo era utilizado pelas antigas civilizações, com a finalidade de destruição dos resíduos que sobravam das atividades humanas. Desse modo, percebe-se que não se justifica chamar de cinza a materiais ou objetos que não foram incinerados e jogados fora, tais como: utensílios domésticos, roupas, jornais, revistas, listas telefônicas e outro objetos que, por diversas razões, não mais interessam aos usuários. A listagem de bens transformados em resíduo/lixo inclui, também, volantes de propaganda, papéis e correspondências, embalagens (papel, papelão, plástico, metal, vidro etc.), papel de embrulho, fraldas descartáveis, remédios vencidos, lâmpadas, pilhas, cascas de frutas, legumes, restos de alimentos entre outros objetos. Ás vezes estes materiais são indevidamente incinerados em terreno baldio, lixão etc. e aí sim suas cinzas poderiam ser denominadas de lixo. Podemos concluir, que o termo resíduo foi o mais apropriado para identificar a situação em que esses objetos se encontram, enquanto a palavra lixo, por sua vez, ser mais adequada para designar a sujeira miúda, resultante do asseio dos locais, onde são desenvolvidas as atividades humanas. 38 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Modernidade e modelo de produção e consumo capitalistas Reportando-nos à Sociedade Moderna, também conhecida como Sociedade Industrial, percebemos que as relações sociais estão inseridas num processo histórico, alicerçado em um conjunto de valores técnico-científicos, econômicos, financeiros, culturais e políticos. Na maior parte do mundo seu eixo central é o modelo de produção e consumo capitalista MPCC, que vigora a quase duzentos anos, de forma dinâmica. O embrião deste modelo evoluiu da Idade Moderna, para a Idade Contemporânea e parece continuar para depois do ano 2002. O estilo de vida e os costumes então adotados, estabeleceram a espacialização da produção, propiciaram novas modalidades de intercâmbio comercial e de relações entre as pessoas, instituições, empresas e nações; enfim desenhou caminhos e etapas, marcadas pela transformação da natureza e a geração de problemas ambientais conseqëntes, em um ritmo constante e crescente. A evolução do modelo antes citado e o seu exercício de modo hegemônico, forneceram condições para que, apenas um reduzido número de pessoas pudesse usufruir as vantagens propiciadas pelo avanço técnico-produtivo, privilégio nascido junto com o capitalismo o industrial, reproduzido e ampliado até a atualidade. Cumpre destacar que, a maneira pela qual o MPCC está estruturado impõe relações socioeconômicas e políticas desiguais, bem como desencadeia impactos ambientais de diferentes proporções e em diversas situações e escalas geográficas. No assunto da desigualdade, por exemplo, o MPCC oferece amplas condições de multiplicar a riqueza e o poder às elites dominantes e impõe situação de pobreza, dependência financeira, tecnológica e poluição às massas pobres. O termo elite para as finalidades desse trabalho refere-se a grupos e indivíduos que se encontram no ápice das diversas instituições e atividades humanas sociais, políticas, econômicas e culturais. O vocábulo massa designa a maioria da população que não ocupa posições de alto prestígio ou poder, ou educação, ou situação econômica (GERMANI,1974). Na questão ambiental, a voracidade na produção de mercadorias e o ritmo veloz que se imprime ao consumo, contrastam com o desinteresse e a lentidão com os quais age para solucionar os problemas ambientais que acarretam em diversas partes do planeta os processos de produção e consumo desenvolvidos em desacordo e/ou oposição com os interesses e necessidades do ambiente. A constatação do caráter de mudança, no tempo e no espaço, das propriedades do MPCC não foi suficiente para que chegássemos a uma visão exata, deste sistema técnicoprodutivo, nem menos, ainda, para ajustar seu funcionamento às novas exigências ambientais. Para atingir sua especificidade, também, não bastou associar sua capacidade de consumir matérias primas e energia, produzir mercadorias, estimular o crescimento das cidades, criar infra-estruturas e, em especial, de gerar resíduo/lixo em grandes quantidades. Foi preciso conhecer as funções, a finalidade do MPCC, pois, segundo o princípio dialético, as propriedades mudam, mas as qualidades dos objetos não desaparecem. A substituição das atividades exercidas pelos operários, agora pela máquina, por exemplo, depois, da máquina pela máquina, foram propriedades que deixaram de existir Ambientes estudos de Geografia 39 ou sofreram modificações, mas o MPCC em si, não. Ao contrário, sua função essencial, a de produzir cada vez mais aos menores custos para obter lucros crescentes, tornou-se ainda numa premissa vigente. Para Triviños (1987, p. 67) a quantidade e a qualidade estão unidas e são interdependentes. “[...] a mudança da qualidade depende, em determinado momento, da mudança da quantidade”. Diante disso verificou-se que, enquanto a quantidade de mudanças estiver dentro dos limites da qualidade, do padrão de propriedade, o MPCC continuará sendo o que é. O exemplo do autor antes citado ilustra bem esta situação: “a água entre 0°C e 100°C conserva sua qualidade. [...] Mas rompendo-se, à medida da temperatura da água, o padrão ferve e transforma-se em vapor, que é outra substância com propriedades diferentes. Percebe-se, então, que o MPCC só mudará quando sua propriedade fundamental, a de produzir mercadorias em grande escala e obter lucros em quantidades crescentes, aumentar quantitativamente, a ponto de romperem seus próprios limites. Porém, a realidade tem demonstrado, entretanto, que não é possível chegar a um grau tão intenso no uso dessa propriedade, uma vez que a exploração, até a exaustão ou anterior a isso, dos elementos da Natureza compromete não só a continuidade do MPCC, mas o próprio equilíbrio da Terra. Logo, pode-se concluir que, apesar de sua característica estratégica, a capacidade do ambiente para suportar impactos, ainda não foi compreendida nem incorporada, como parte do interesse econômico do MPCC. Por esse motivo, verifica-se que a adoção, assimilação e implementação dos conceitos educação e consciência ambiental, desenvolvimento sustentável, produção limpa e princípio poluidor pagador, entre outros, reafirmados por intermédio de diversas Conferências da Organização das Nações Unidas que deliberam sobre as regras da ordem ambiental internacional, nos moldes em que se apresentam, são providências que estão dentro dos limites do MPCC e, portanto, são insuficientes para promover a ruptura necessária as suas mudanças qualitativas. Quanto ao ambiente, o equilíbrio estabelecido entre a Sociedade e a Natureza deixou de existir quando o homem passou a fabricar, por meios técnicos, um número cada vez maior e mais diversificado de produtos. A mais-valia tornou-se um objetivo cada vez mais a ser perseguido. O aparecimento do modo de produção industrial significou o divórcio definitivo das relações do Homem com a Natureza. A magnitude da separação foi tão grande que as gerações das últimas décadas do século XX e dos primeiros anos do século XXI encontram-se em meio a problemas ambientais, originados em suas amplas e complexas atividades laborais. Estes argumentos podem ser validados, não só pela observação das implicações da destruição da camada de ozônio, o efeito estufa, a chuva ácida, a contaminação da água, a poluição sonora e visual e suas perversas conseqüências, entre outras, mas, em particular, pelos problemas ambientais ocasionados pelo resíduo / lixo. Como já foi acentuado, o cotidiano da humanidade foi transformado e organizado com base em objetivos da indústria e de suas tecnologias, que mediante o bom emprego de estratégias de persuasão criam necessidades, incutem gostos e induzem ao consumo, para 40 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) atender aos interesses da produção de mercadorias e serviços e da acumulação do lucro. Todavia, ao lado de usufruir benefícios a sociedade, vive, de maneira acentuada, o dilema das alterações negativas na qualidade do ambiente, cujas soluções, do ponto de vista corretivo, dependem de grandes somas financeiras em curto prazo e do ponto de vista preventivo, constitui-se em uma discussão que envolve condutas motivadas por necessidades e interesses, muitas vezes contraditórios. Efetivamente, não podemos refutar a idéia, também aludida, de que estamos sacrificando a maioria dos indivíduos, para satisfazer um pequeno grupo de privilegiados e suas extravagâncias, tais como os donos das grandes corporações industriais, comerciais, financeiras e agropecuárias. Ainda que tais circunstâncias estejam presentes, pressupõe-se que as formas de produção, organização e uso do espaço geográfico de maneira a atender o interesse de todos, têm chances de acontecer, quando houver, não só o conhecimento de regras e preceitos éticos ambientais, mas, sobretudo quando se desenvolver uma efetiva percepção da necessidade espontânea de praticá-los. Como se isso não bastasse, observa-se que a tentativa de minimizar os problemas ambientais é estabelecida por meio de consensos em torno da ordem ambiental internacional. Tais consensos são deliberados em conferências e acordos, geralmente entre os países mais industrializados, cujas propostas são de difícil viabilização prática, nas economias pobres, e nem sempre atingem o âmago da questão e o interesse das maiorias. Verifica-se, também, pelo menos na realidade brasileira, que as políticas públicas ambientais seguem, mais ou menos, de cima para baixo, o caminhar das iniciativas que ocorrem em nível federal, estadual e, depois, municipal. Estas, por sua vez, freqüentemente obedecem a ditames internacionais que embutem valores da sociedade moderna, em especial, quanto ao manejo e gerenciamento do resíduo/lixo e ao monitoramento ou mitigação dos problemas por ele acarretados. Resíduo/lixo A problemática do resíduo / lixo é compartilhada por profissionais de diferentes áreas e, portanto, sua abordagem e fundamentação comportam múltiplos ângulos e dizem respeito a realidades espaciais e socioeconômicas que abrangem diversas escalas geográficas. Existem idéias que tentam conciliar desenvolvimento com proteção ambiental. Outras buscam encontrar alternativas sobre a continuidade do aumento do uso de energia ou a tolerância dos problemas ambientais. Há, também, as que se preocupam em interromper o dano ao ambiente pela mudança do comportamento humano. Esta, a nosso ver, é a que melhor resultado poderá proporcionar para elevar as condições sócio-ambientais no planeta. Constatamos, entretanto que os interesses de produzir mercadorias, acumular bens, lucro e riqueza material prosseguem acima de qualquer dilema ambiental. Porém, o procedimento que acabamos de mencionar, em nossa opinião, poderá sofrer mudanças se considerarmos que os dados relativos à classificação, a geração, a composição, a destinação e os impactos do resíduo/lixo sinalizaram que tais objetos e rejeitos podem ser Ambientes estudos de Geografia 41 avaliados, como um dos maiores problemas urbanos deste século. O acréscimo da produção, para atender as demandas provocadas pelo aumento da população e do consumo, considera-se como o principal motivo da degradação ambiental nas cidades. Mas não é só isso. A tecnologia tem contribuído para que se introduza algo mais que a sim0ples adaptação do homem ao meio: a “inovação pela inovação”, as “sofisticações” encontradas em muitos ambientes, mormente, nos de luxo (BRANCO, 1987, p. 2). A questão do resíduo/lixo também está relacionada à cultura do consumo que atende às metas e os interesses de crescimento constante do MPCC. Desse modo, modificação técnica e tecnológica, assim como a simples maquiagem dos produtos, são concebidas com vistas a chamar a atenção, proporcionar conforto e praticidade. Mas, ao mesmo tempo, aumenta o consumo, a quantidade de produtos descartáveis e não degradáveis e, por conseguinte, o volume de resíduo/lixo. O advento das embalagens do tipo one way, longa vida, PET, entre outras, ofereceu novas alternativas de produto e consumo que ajudados pelos recursos de marketing contribuem para manter a cultura do consumo. Isso significa que a produção de resíduo/lixo da maneira como se apresenta, não é resultante somente do atendimento das necessidades básicas de consumo de bens e serviços, mas, ao contrário, de um processo complexo e gigantesco que a induz a consumir cotidiana e permanentemente, abarcando pessoas de diferenciadas condições socioeconômicas, faixas etárias e grau educacional. O desafio é perceber e depois compreender a roda viva, o círculo vicioso e o mundo da fantasia que vive (FIALCOFF, 2001 p. 1). Cumpre salientar que, apesar de existir um grande potencial de reciclagem no resíduo/lixo, assim como vantagens técnicas, econômicas e ambientais (KIEHL, 1985; D’ALMEIDA; VILHENA, 2000), os agentes públicos e privados, infelizmente, não têm manifestado interesse efetivo nesse assunto, o que, sem dúvida, constitui um agravante para a questão ambiental. A questão dos resíduos sólidos permanece como um setor dos serviços públicos esquecido, que somente ganha destaque em momentos críticos. Referente aos dados quantitativos do resíduo/lixo, constata-se em nível nacional que, enquanto a população aumentou em 18% entre 1970 e 1990, a geração desses detritos cresceu em 25%, um crescimento real de 7% (LIXO, 2001). Pelo que se observa, a quantidade desses restos continuou crescendo nos anos de 1990 e prossegue de forma semelhante no decorrer desta década de 2000, salvo pequenas quedas derivadas da crise econômica atual que restringiu o consumo. “Entre abril e julho, a geração diária de lixo doméstico na cidade de São Paulo caiu de 12.000 toneladas para 10.000 [...] É mais um sinal da crise” (ATÉ, 2003). Quanto à destinação final há uma nítida diferença em relação aos critérios que prevalecem entre os países ricos. Uns priorizam a alternativa do aterro sanitário, (o caso dos EUA) outros a incineração e reaproveitamento de energia (o caso da Europa Ocidental). As percentagens de reciclagem e compostagem, ainda que em níveis diferenciados, também são bastante razoáveis entre eles. Nos países pobres, a maior parte do resíduo/lixo tem o lixão, e outras formas precárias como alternativa de destinação. As atividades de reciclagem e compostagem (aproveitamento da matéria orgânica), apesar de apresentarem inúmeras vantagens, ainda são ineficientes; limitam-se a um número muito reduzido de municípios 42 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) que, na melhor das hipóteses só executam a triagem de alguns materiais inorgânicos. Ainda com relação aos impactos ambientais, o resíduo/lixo, manuseado ou disposto incorretamente, torna-se um agente poluidor, capaz de atingir regiões fisicamente distintas da biosfera como a litosfera, a hidrosfera, a atmosfera e os seres vivos que a habitam. Este problema não é diferente no caso do Brasil e, em particular, na unidade de maior riqueza econômica, o Estado de São Paulo, em que, grande parte do resíduo/lixo de natureza doméstica tem destinação incorreta (BERRÍOS, 1991 e 1997). O caso de Ribeirão Preto: áreas receptoras de resíduo /lixo O levantamento dos dados e outras informações efetuadas para a elaboração da nossa dissertação permitiu a identificação e qualificação os locais para a disposição final dos resíduos e seu comportamento diante do processo de urbanização, bem como dos impactos ambientais. Mostrou que as áreas utilizadas para acomodar o resíduo/lixo municipal, até o início da década de 1970, que se encontravam dentro do perímetro urbano, não apresentam indícios que possam confirmar a existência de impactos considerados adversos ou negativos à qualidade de vida da população nos dias de hoje. Vale ressalvar que, provavelmente, durante a implantação, operação e até a desativação final desses depósitos, ocorreram impactos tanto sobre o meio biótico (flora, fauna) como sobre o antrópico (moradores) de magnitude e importância em diferentes escalas. As informações recolhidas, a partir de depoimentos de ex-funcionários do serviço de limpeza, confirmados por antigos moradores, possibilitaram localizar espacialmente, com o uso do mapa, os depósitos da década de 1920 em diante. Os locais onde despejou resíduo/lixo, entre 1920 e 1978, transformaram-se em setores residenciais e comerciais, sob considerável densidade populacional. O espaço físico, onde funcionou um lixão durante a década de 1920, também era conhecido, na época, por ‘botafogo’ em razão de atearem fogo nos montes de detritos que iam se formando; nas últimas décadas, passou a ser chamado de ‘centro velho’ ou ‘baixada’. Seus limites situam-se praticamente na várzea do córrego Ribeirão Preto, que corresponde, hoje, à áreas compreendida entre a pista que margeia o Mercado Municipal até a rua Saldanha Marinho, a partir da rua Mariana Junqueira até a rua São Sebastião, mais ou menos. Presumivelmente, a quantidade de resíduo/lixo que se depositava nesta área não era considerável, pois, diversas casas e salões comerciais já ocupavam as suas imediações, conforme ainda hoje pode ser constatado, por meio de inscrições feitas nas fachadas de alguns prédios erguidos na época. Além disso, até bem pouco tempo, o consumo limitava-se aos artigos básicos, na maioria das vezes produzidos em casa; os restos orgânicos eram destinados para alimentar animais e aves domésticas e, praticamente não existiam materiais inorgânicos ou embalagens, uma vez que, quase tudo era vendido a granel ou as pessoas utilizavam vasilhas, vasilhames ou sacolas ‘tipo feira’, para fazer compras de itens complementares. O lixão da década de 1940 funcionou na área, hoje formada pela rotatória Amim Calil, que liga importantes artérias do sistema viário como a avenida Francisco Junqueira, a Ambientes estudos de Geografia 43 avenida Costa e Silva e a Via Norte. Permite o acesso indireto a todos os cantos da cidade e acesso direto ao centro e a bairros tradicionais como a Vila Tibério, o Ipiranga e os Campos Elíseos, que, em virtude do aumento populacional e predial, quase não têm espaços vazios. Nos anos de 1950 e 1960 funcionaram vários depósitos de lixo ao mesmo tempo: nas glebas onde situam o bosque e Zoológico Municipal Fábio Barreto e em terrenos dos bairros, Monte Alegre, Alto do Ipiranga e Jardim Marchesi. Estes locais foram urbanizados seguindo mais ou menos o modelo empregado nos bairros citados anteriormente. Ressaltese que, nessa época, de acordo com os depoentes, no Zoológico também funcionavam as cocheiras, ou seja, locais onde se guardavam as carroças coletoras de resíduo/lixo e alojavam os animais que as puxavam. Cumpre salientar que, a década de 1960 é considerada por antigos funcionários da Prefeitura como a fase de transição no sistema de coleta e transporte dos detritos. Aos poucos, as carroças foram substituídas pelos caminhões. Falam que as carroças passaram a atender as ruas mais afastadas da área central. No que se refere ao acondicionamento e a apresentação desses materiais para coleta, os moradores valiam-se de latas com capacidade para dezoito litros, mais ou menos, que originalmente serviram para envasar produtos de consumo (óleo vegetal, gordura animal etc.). Os trabalhadores que faziam a coleta despejavam o conteúdo do recipiente no compartimento de recebimento de resíduo/lixo do veículo utilizado para a coleta e devolviam a lata ao morador. Em meados de 1984, a lata deixou de ser usada em virtude de acidentes com os funcionários do serviço de coleta (rebarbas perfuro cortantes na abertura do recebimento dos recipientes), mau cheiro resultante da higienização precária das latas e outros inconvenientes de ordem operacional. O acondicionamento passou a ser feito por meio de saco e sacola plástica e dura até hoje (2002). Na década de 1960, destinava-se parte da fração orgânica ao Zoológico para a alimentação das aves e dos bichos e aos chacareiros que utilizavam-na como esterco nas plantações. Pode-se deduzir que, a pouca variedade dos materiais componentes do resíduo/ lixo, há quase 42 anos, era um fator que contribuía para diminuir as chances de contaminação da fração orgânica possibilitando então, maior amplitude e diversificação de uso do composto. O Lixão da ex-Fepasa, operado na década de 1970, está sob um trecho de terra, cujo entorno foi urbanizado no início da década de 1990 e integra uma macro zona, a zona de urbanização restrita que é composta por áreas frágeis e vulneráveis à ocupação intensa, segundo o Plano Diretor do município. Já o Lixão de Serrana e o aterro que passaram a existir nos finais das décadas de 1970 e 1980, respectivamente, localizam-se na chamada zona de expansão urbana, situada entre a zona urbana e a zona rural, porém muito próximos da linha que delimita o perímetro urbano. Nas imediações do Lixão de Serrana, foram construídos novos bairros residenciais e construções particulares destinadas ao uso para lazer (Parque dos Servidores e Recreio Internacional) e quatro empresas, uma do setor industrial e três do setor de serviços, funcionam nas suas vizinhanças. O aterro em operação, desde 1990, está localizado na altura do km 0 + 500 metros da SP 322 –Rodovia Mário Donegá (Ribeirão Preto-Pradópolis), zona sudoeste do município 44 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) de Ribeirão Preto, medindo 216.000 m2 com área edificada de 170 m². Situa-se na direção de um dos eixos de expansão urbana e no entorno existem diversas chácaras que pertencem ao cinturão verde do município. A área original foi encerrada em meados de novembro de 2000. Estima-se que, a vida útil da área de expansão, em operação atinja até o final de 2006. No começo das atividades, esse aterro não era classificado como sanitário, mas ‘aterro controlado’, levando cinco anos mais ou menos, para receber as obras finais de adequação sanitária. Mesmo assim, conforme será relatado mais adiante, sua operação carece de maior rigor, no que diz respeito aos aspectos normativos e, principalmente, aos cuidados em relação ao ambiente. Por essa razão neste trabalho deixamos de enquadrá-lo como aterro sanitário, mas simplesmente aterro ou aterro controlado. Vale lembrar que, a partir de 1970, tem sido cada vez menor o prazo para esgotamento dos depósitos de resíduo/lixo. A vida útil dos terrenos, em condições de uso normais, não passa de dez anos, mais ou menos. Sistema de limpeza urbana - SLU Este sistema é parte integrante do Plano Diretor do município e prevê os serviços básicos de coleta e transporte de resíduo / lixo domiciliar, público, especial, como também a destinação final, o tratamento e a comercialização dos produtos e subprodutos, compostos ou recicláveis. Também se constatou que o gerenciamento desses serviços obedece a um modelo de característica convencional. O tratamento do resíduo/lixo que também é entendido como processamento (segregação, reciclagem e compostagem) de materiais, limita-se à triagem e revenda da fração inorgânica separada para a reciclagem, cujo resultado (cerca de 2% do total), pode ser considerado pouco, sob o ponto de vista ideal. Vale considerar que o SLU não conta com um banco de dados centralizado e integrado que contemple aspectos quantitativos, qualitativos, socioeconômicos e ambientais, com abrangência temporal e espacial, relativos à geração, fontes geradoras, composição, transporte e destinação final, porém, considerando que a atenção devotada à questão do resíduos/lixo é recente, tal omissão é compreensível. Isso propiciaria e facilitaria, entre outras providências, a elaboração de diagnósticos e prognósticos periódicos de desempenho e a atualização dos programas e metas que lhe dão sustentação. Parte dos dados quantitativos da geração está na Secretaria de Infra-estrutura e parte está no Departamento de Água e Esgotos de Ribeirão Preto (autarquia gerenciadora do SLU), o que pode ser indicativo da existência de falta de sintonia entre os órgãos. Quanto aos catadores autônomos de rua, sua atividade não foi disciplinada no SLU e, por esta razão, deixou de ser aqui analisada. Mas, cabe ressaltar o extraordinário papel que essas pessoas desempenham em favor da limpeza urbana e do ambiente por meio da recolha de materiais potencialmente recicláveis diretamente nas ruas e fontes geradoras. Sua participação no processo de reciclagem do resíduo/lixo, isto é, como agentes da cadeia produtiva de objetos reciclados deve ser oficialmente reconhecida, apoiada e desenvolvida. Também deve ser destacado que o sistema não possui normas, nem antevê campanhas ou novos programas sistemáticos de parcerias, voltados à sensibilização e conscientização da população, no sentido de manter a cidade limpa e de diminuir a geração dos detritos, Ambientes estudos de Geografia 45 conforme sugerem D’Almeida e Vilhena (2000), entre outros. Aliás, a eficiência do sistema tem relação direta com o grau de adesão da população a ele, pois o contrário propicia atitudes de descarte para fora do sistema (ruas, praças, terrenos vazios, caçambas de entulho, mananciais etc.). O mesmo pode ser observado em relação à falta de controle de algumas atividades que também manipulam resíduo/lixo, como as pequenas oficinas de consertos e reparos automotivos e as firmas ou agentes autônomos que prestam serviço de coleta de entulhos e outros detritos. No primeiro caso, tudo indica que o resíduo/lixo gerado, muitas vezes perigoso, é apresentado para a coleta domiciliar regular; na segunda hipótese, existe a possibilidade de que parte dos detritos, de composição nem sempre conhecida, seja depositada inadequadamente em áreas impróprias e causar problemas sanitários e ambientais diversos. Outra questão ainda não reconhecida e integrada no SLU refere-se ao lixo tóxico e ao lixo radiativo, sendo que ambos requerem coleta especial: trata-se, no primeiro caso, de lâmpadas fluorescentes, remédios, venenos, tintas, solventes, herbicidas e embalagens de agrotóxicos etc., gerados por fontes diversas; o segundo compreende resíduos e utensílios, utilizados em laboratórios, serviços clínicos e hospitais para tratamento de algumas doenças. O sistema de limpeza também não exige a padronização visual da frota de veículos, tampouco o uso de uniformes pelos funcionários. Esta decisão, pelo que observamos, fica a critério da empresa contratada que usa as cores de sua conveniência. Cabe ainda ressaltar que a taxa de limpeza citada no artigo 80 do Plano Diretor, não é cobrada da forma prevista neste dispositivo legal. Aterro de resíduo/lixo O método empregado para a destinação final dos detritos é o do aterro que, apesar de se constituir em um equipamento construído sob critérios de engenharia e normas próprias, apresenta diversas deficiências. Nesse particular, foram constatados problemas de ordem sanitária como presença de vetores de doenças (urubus e gaivotas) ou ambiental, como a emanação de gases e odores, de ordem econômica, como a depreciação de imóveis lindeiros -prejuízos à estética e à paisagem local. questão que faz parte do impacto de vizinhança. Do ponto de vista operacional, entre as falhas apontadas estão as seguintes: a) carência de métodos seguros para minimizar a influência das águas de chuvas que aceleram a geração de percolado, na parte concluída do aterro; b) falta de cobertura impermeável no topo do aterro, por exemplo, que contribuiria para agilizar as condições de estabilidade geotécnica dos maciços de resíduo/lixo; c) ausência de diques de proteção visual e acústica; d) incapacidade técnica do sistema de drenagem de águas pluviais (canaletes ‘meia cana’) e de captação de chorume (tanque de acumulação), para atender à demanda nos períodos de chuva intensa; e) cortina vegetal insuficiente (feita de eucaliptos adultos, faltam árvores e arbustos de pequeno e médio porte), para cumprir as finalidades a que se propõem; f) empreendimento inadequado para tratar e aproveitar o biogás resultante do processo. Os dados também demonstraram que os resíduos não são inspecionados na entrada 46 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) do aterro, o que pressupõe a ausência de controle de resíduos perigosos ou inertes e da composição física do material recebido. Verificou-se ainda que a disposição de objetos de outras fontes (cemitério, indústria de alimentos, sucatas, pneus, lodo de estação de tratamento de esgotos etc.) é feita na forma de co-disposição, o que leva supor que não há sistema de zoneamento na disposição dos diferentes tipos de resíduos. Comparando as condições de funcionamento do aterro com o check- list, proposto pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental para apurar o Índice de Qualidade de Aterros de Resíduos -IQR (D’ALMEIDA; VILHENA, 2000), chegou-se ao índice 7,0 que expressa condições controladas para o aterro, ou seja, um IQR intermediário entre inadequada (até o índice 6,0) e adequada (índice entre 8,0 e 10,0). Impactos ambientais Os impactos de maior significação foram provocados pela disposição imprópria de resíduo/lixo nas áreas pertencentes ao Lixão da ex-Fepasa e ao Lixão de Serrana. Neste particular, a elaboração de um diagnóstico de natureza técnico-ambiental ampla e detalhada, não fez parte dos objetivos da nossa investigação. Porém, algumas práticas de caráter técnico e sanitário, utilizadas por outros pesquisadores, foram observadas, como referência para avaliar os problemas que se apresentam. No lixão do leito ferroviário da ex-Fepasa, onde se encontram parcialmente instalados os conjuntos habitacionais Jardim das Palmeiras 2 e Jardim Juliana, -construções que nunca deveram ser implantadas sobre esses locais-, mas, ante os fatos consumados, era mister e obrigação métodos e técnicas de gestão e gerenciamento do resíduo/lixo deveriam ter sido implementadas previamente, de maneira a minimizar eventuais impactos ambientais instalados ou potenciais, conforme recomendação de D’Almeida e Vilhena (2000). Os autores antes mencionados alertam que o processo de estabilização física, química e biológica de um lixão leva, entre dez a quinze anos (pode chegar a trinta anos) para que, posteriormente, seja destinado a um uso compatível com tais terrenos. Entre as providências que devem ser adotadas em relação à área, por sugestão da mesma fonte, levantaram-se as seguintes: a) drenagem de biogás e percolado da massa de resíduo / lixo; b) coleta e tratamento de biogás e percolado; c) monitorização geotécnica e ambiental e projeto paisagístico e de uso futuro da área (atender a requisitos de isolar o resíduo/lixo do ambiente; impedir a infiltração de água de chuva, para evitar o aumento do volume de percolado e a saída não controlada do biogás). A partir das considerações já relatadas, podemos inferir que os procedimentos de implantação, operação e encerramento do Lixão da ex-Fepasa não foram precedidos dos cuidados técnico-ambientais recomendados ou por normas técnicas e leis. Em relação a tais problemas, os dados levantados confirmaram que o Lixão da exFepasa, depois de desativado, provocou a exalação de gases, odores, poluição do solo, depreciação de imóveis vizinhos, comprometimento de moradias (recalque no solo, rachaduras nas paredes), construídas indevidamente sobre o maciço de resíduo/lixo. Ambientes estudos de Geografia 47 A lista dos impactos é grande, a Prefeitura ainda não se propôs a avaliá-los detalhadamente, visando eliminá-los ou circunscrevê-los a limites seguros e aceitáveis. Até o momento, o governo municipal limitou-se a instalar drenos para captação de gases, cuja eficiência parece duvidosa; demolir algumas casas, transferir moradores que tiveram suas casas afetadas e plantar eucaliptos nas laterais do antigo lixão, no trecho entre o Jardim Juliana e o Parque dos Servidores. É importante acrescentar que o topo da área está encerrado com material aparentemente inerte, coberto por vegetação rasteira e contém depressões no solo que indicam processo de estabilização da massa de detritos (situação em julho de 2002). No que diz respeito ao Lixão de Serrana, a pluma de poluição resultante do chorume atingiu a água subterrânea, mas o acatamento e a implementação das recomendações técnicas sugeridas no relatório elaborado por Costa e Ferreira (1997) e pelos técnicos do Ministério Público do Estado de São Paulo, para resolução do problema, dependem da Prefeitura. Vale registrar que, além de contaminar esse importante recurso hídrico, o lixão em referência, em condições análogas ao Lixão da ex-Fepasa, também provocou impactos ambientais negativos no seu entorno, ou seja, a depreciação de imóveis lindeiros e prejuízos à estética e à paisagem local. Entretanto, se considerarmos o tempo entre o encerramento das operações de despejo de resíduo/lixo (1990), a contratação dos estudos (1995) e as recomendações formuladas no relatório (1997), pode-se deduzir que a falta de ênfase ou agilidade na implementação das providências, talvez motivada pelos altos custos da regularização, não só retardarão a solução, mas poderão ocasionar a necessidade de reavaliar a eficácia dos estudos apresentados em face da dinâmica do impacto. Com este argumento, contudo, não estamos confirmando os resultados da investigação, até porque, como foi mencionado antes, a análise técnica desse assunto afasta-se do objetivo deste trabalho. Compete, ainda, observar que os problemas pontuais acarretados pelo Lixão da exFepasa incentivaram o exercício da cidadania por uma parcela dos moradores; no entanto, a poluição da água subterrânea pelo Lixão de Serrana não ocasionou idêntica mobilização, embora seja um fenômeno que afetasse um recurso natural de interesse da população. Os dados levantados, todavia, assinalam que a mitigação dos impactos já citados depara-se com obstáculos técnicos e burocráticos que parecem vir de encontro com a lentidão e, provavelmente, o desinteresse do poder público em equacionar, em definitivo, o problema; enquanto, a poluição continua a provocar seus efeitos negativos ao ambiente (situação em dezembro de 2002). Desse modo, pensamos que não só as deficiências operacionais observadas no gerenciamento do aterro, mas, especificamente, os impactos ambientais, provocados pelos lixões (ex-Fepasa e Serrana), são exemplos que poderão servir de conteúdo ao embasamento e à preparação de um programa que fixe ou aumente os conhecimentos dos atores sociais e políticos e estabeleça novos procedimentos para essa realidade. E, com apoio em fundamentos ecológicos e de planejamento, ter a capacidade de colaborar com a consignação de um novo modelo de relações da sociedade com a natureza, a partir da qual passe a existir uma nova consciência sobre o ambiente. Para atingir este escopo, entendemos que o programa 48 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) citado, não pode ser concretizado isoladamente, mas, a partir de uma agenda formulada pela sociedade, sem tendências ou condicionamentos, respeitando-se as dificuldades, limitações, potencialidades e conflitos que essa tarefa implica. Trata-se, a nosso ver, de um trabalho árduo, multidisciplinar, permeado de muita articulação, discussão e, sobretudo, respeito aos pontos de vista eventualmente contrários dos participantes. A propósito, relacionamos alguns assuntos que poderiam ser considerados como pauta inicial da agenda, ou seja: a finitude dos elementos naturais; a dependência da sociedade à Natureza e o custo benefício do modelo de produção de consumo em vigor. Legislação municipal A Lei Complementar n° 501/95, de 31.10.1995 instituiu o primeiro Plano Diretor do município (RIBEIRÃO PRETO, 1995). As leis que integram este plano tais como o Código do Meio Ambiente, Plano Viário, Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, Plano de Saneamento Básico, Código de Obras e a Lei do Mobiliário Urbano foram encaminhadas em dezembro de 2001 a Câmara Municipal e somente em junho de 2002, é que essa casa legislativa começou a divulgar o chamamento das audiências públicas para discutir e, depois, votar, esses expedientes legais. Em Ribeirão Preto, os assuntos relativos ao resíduo/lixo foram abordados na legislação ordinária, a partir da década de 1960 e somente na década de 1990 passaram a constar da Lei Orgânica, promulgada no dia cinco de abril de 1990 e no primeiro Plano Diretor de 31 de outubro de 1995 (artigo 84 da Lei Complementar n.º 501). A análise das leis mostra que através de um prisma legal muitos procedimentos operacionais e administrativos foram estabelecidos, mas, na prática poucos são executados e a maioria não está contemplada no Plano Diretor. Esses documentos jurídicos definem a abrangência, as responsabilidades e fixam parâmetros para o Sistema de Limpeza Urbana, que se constitui de serviços meramente sanitários e de limpeza em si que abrangem, varrição, capina e manutenção de vias e logradouros públicos, a coleta, a remoção, o tratamento e a destinação final do resíduo / lixo, por meio de técnicas convencionais, conforme foi visto anteriormente. Vale destacar que no artigo 78, do Plano Diretor, talvez como reflexo do problema ambiental, ocasionado pelo Lixão de Serrana, o legislador incluiu um tópico que solicita atenção especial para os possíveis riscos de contaminação a que o lençol d’água subterrâneo está sujeito. Também cumpre ressaltar que, embora reconheça “os agravos à saúde individual e coletiva, ao bem-estar público e ao meio ambiente”, o Plano Diretor apenas cita, genericamente, a necessidade do aproveitamento de objetos inorgânicos, como matéria prima reciclável e os de matéria orgânica, como fertilizante a ser aplicado nas lavouras. No que se refere às questões relativas à organização espacial e ambiental da parcela do espaço geográfico ocupado pelo município, também, estão previstas na Carta Ambiental de Ribeirão Preto, editada em 1996 e reeditada em 2002 (RIBEIRÃO PRETO, 1996 e 2002), ilustrações dos projetos executados, em execução ou a executar. Pode-se dizer que o docu- Ambientes estudos de Geografia 49 mento retrata a visão que a administração municipal tem sobre questões ambientais como um todo. A Carta também admite que os problemas do ambiente têm relação direta com a industrialização, as atividades agrícolas e a urbanização. Fatores estes que, conforme vimos em outra parte deste trabalho, dão sustentação ao modelo de produção e consumo capitalista. Considerações finais Concluindo, podemos constatar que emergem como evidentes as diversas formas e graus com que o MPCC articula e organiza o espaço geográfico em nível mundial. Entre as modalidades citamos: concentração demográfica e financeira; intensificação de fluxos de pessoas e mercadorias; ampliação das infra-estruturas de geração de energia, de comunicação de dados e transportes; relações socioeconômicas e tecnológicas desiguais. A velocidade que imprime à produção e ao consumo ocasiona e intensifica a produção de resíduo/lixo. Constatamos, também, que o empenho exagerado das pessoas e organizações que controlam o MPCC em obter lucro e acumular riqueza material, contrasta com as dificuldades que demonstram em estabelecer consensos, executar propostas e medidas, colocadas nas leis e normas e nas Conferências ou rodadas de organizações supranacionais, como a Organização das Nações Unidas. Verifica-se ainda que, os dados sobre a problemática do resíduo / lixo, serviram para alertar a sociedade, seus agentes públicos e privados, bem como os meios acadêmicos para a necessidade de reconhecer o MPCC, os conceitos e as categorias que definem as expressões educação ambiental, desenvolvimento sustentável, produção limpa e princípio poluidor pagador para além dos interesses econômico-financeiros. Quanto às áreas receptoras de resíduo/lixo no município de Ribeirão Preto, todas elas podem ser caracterizadas por incluir a modalidade do aterramento dos resíduos, nem sempre constituindo aterros sanitários. Em geral essas áreas são incorporadas mais cedo que tarde pela expansão urbana. O programa de triagem de materiais inorgânicos potencialmente recicláveis (papel, papelão, vidro, lata etc.), por sua vez, é insuficiente. Também não há providências a fim de aproveitar os altos percentuais de matéria orgânica (restos vegetais, animais e minerais) que são descartados (mais de 50%). Já, o Sistema de Limpeza Urbana executa serviços básicos, apoiados em modelos de característica convencional, não possuindo programas ou parcerias que sensibilizem e conscientizem a população, no sentido de manter a cidade limpa e diminuir a geração de resíduo/lixo. Além disso, o banco de dados do SLU encontra-se diluído entre órgãos da administração direta e as informações são insuficientes para facilitar aos gerenciadores do sistema a elaboração de diagnósticos e prognósticos periódicos de desempenho. Isso prejudica a atualização de programas que não só dêem sustentação, mas também que se destinem a eliminar deficiências operacionais das atividades que lhe são competentes. A não inserção dos catadores autônomos no sistema, em nossa opinião, não só impede o reconhecimento e a ampliação desta importante e estratégica atividade para a economia e 50 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) o ambiente, mas também, evita uma alternativa de inclusão social das pessoas simples que estão fora do mercado de trabalho formal. Agora, em relação à disposição incorreta de resíduo/lixo, tanto no caso do Lixão da ex-Fepasa, quanto no Lixão de Serrana, conclui-se que a administração municipal, ao implantar e fazer funcionar esses depósitos, contrariou normas e orientações técnico-ambientais, como também, ao tolerar ou retardar a solução dos impactos ambientais pertinentes a eles, agiu em desacordo com os interesses coletivos, condutas não condizentes com as funções dos cargos dos seus agentes públicos e, portanto, passíveis de responsabilização legal. Com relação à legislação municipal promulgada no período de 1961 a 2001, verificouse que muitas normas, caso fossem acatadas pelo Poder Executivo, ou fiscalizadas quanto a sua efetivação preveniriam, em muito, o descarte e a disposição indevida do resíduo/ lixo e seus impactos ambientais. A Carta Ambiental, por sua vez, constitui-se, em nossa opinião, num importante documento de gestão urbana cuja implementação, encontra respaldo nos instrumentos legais existentes. Esses diplomas jurídicos poderão fornecer valiosa contribuição na implementação da agenda do programa sugerido anteriormente a fim de sensibilizar os moradores, agentes sociais e políticos, assim como impor providências ante a questão ambiental do resíduo/lixo. Referências ATÉ o lixo. Veja, São Paulo, 06 ago. 2003 BERRÍOS, Manuel Rolando. Resíduos sólidos urbanos e impacto ambiental na sua disposição final. In: SIMPÓSIO DE GEOGRAFIA FÍSICA APLICADA, 5., 1991. Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 1991. ______. Técnicas de amostragem de resíduos sólidos. In: MAIA, N. ; MARTOS, H. (Coord.) Indicadores ambientais. Sorocaba: os autores, 1997. BRANCO, Samuel M. Elementos de ciência do ambiente. 2. ed. São Paulo: CETESB/ ASCETESB,1987. COSTA, João A.; FERREIRA, Justo C. Lixão de Serrana: caracterização do problema ambiental e proposição de soluções. Ribeirão Preto: UNAERP, 1997. D’ALMEIDA, Maria Luíza; VILHENA, André. Lixo municipal: manual de gerenciamento integrado. 2.ed. 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Zonas ambientais, recursos naturais e fatores impactantes ou de risco ambiental. Ribeirão Preto (Município): SMPGA, 2002. TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1987. AGRICULTURA FAMILIAR NO RIO GRANDE DO SUL: PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS PRODUTORES DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS-RS Rosane BALSAN Lucia Helena de Oliveira GERARDI Introdução As transformações que têm ocorrido na estrutura agrária brasileira de modo geral e em particular no Rio Grande do Sul, desencadeiam processos agrícolas diferenciados e acentuaram, muitas vezes, formas diversas de produção e de condições de vida dos agricultores familiares. Identificar alternativas para as Unidades de Produção Familiar, que desejam manter o equilíbrio racional do ambiente de produção e da renda justa, capaz de permitir, além da sobrevivência, a realização social e econômica, caracterizou-se como uma possibilidade deste trabalho. Para isto, o estudo foi centrado no sistema produtivo e suas inter-relações, chegando a sugerir a oportunidade da reorientação das atividades agropecuárias e nãoagrícolas geradoras de ações de mudança com equilíbrio como, por exemplo, o suprimento das necessidades de determinados nichos de mercados. O trabalho de investigação objetivou traçar um perfil das Unidades de Produção Familiar do 20 Distrito do município de São Francisco de Assis/RS (Vila Toroquá), tendo em vista sugerir alternativas e práticas que levassem a sustentabilidade, mudando os processos produtivos e alcançando o desenvolvimento socioeconômico. Os processos de exclusão, cada vez mais intensos, forçam as Unidades de Produção Familiar a buscarem alternativas para seu desenvolvimento. Contudo, o desafio de um desenvolvimento sustentável exige o apoio de políticas públicas principalmente por que, no caso dos produtores familiares, suas condições de investimento são geralmente precárias. Na tentativa de oferecer uma contribuição aos estudos sobre agricultura familiar, buscou-se detalhar a situação de uma área onde “ilhas de agricultores familiares” coexistem com diferenças tanto físicas e naturais, quanto culturais, constituindo-se em uma excelente área-laboratório para questões rurais brasileiras. Para lograr êxito, o trabalho é estruturado a partir de uma prévia seleção de indicadores do perfil socioeconômico das Unidades de Produção Familiar, que submetidos à técnica de análise estatística básica, buscam identificar o seu comportamento. Por fim, o trabalho destaca, em suas considerações finais, alguns aspectos referentes às questões envolvendo mudanças e o estabelecimento do equilíbrio socioambiental na área investigada. A pesquisa teve como preocupação conhecer a realidade, observá-la e analisar suas múltiplas facetas de forma clara e objetiva, para entender os aspectos sociais, econômicos e 54 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) culturais da agricultura familiar. Reconhecer seus mecanismos e suas inter-relações, mais do que ser gratificante ao pesquisador, constitui-se na contribuição da ciência para a sociedade em defesa de sua promoção social. O convívio estabelecido, por algum tempo, com os produtores foi frutífero, pois muitas informações, entendimentos e análises só se tornaram possíveis por meio dele. Deseja-se que este estudo possa ser útil ao planejamento municipal local, que apresenta dados escassos sobre a área em estudo até o presente momento. A área e as bases metodológicas do estudo O desenvolvimento rural apresenta-se heterogêneo no espaço agrícola do Estado do Rio Grande do Sul, concentrando-se em poucas regiões. Sabe-se que neste Estado existem regiões concentradoras de desenvolvimento com municípios que se destacam. Mas este não é o caso de São Francisco de Assis, um município com áreas frágeis, degradadas e que poderia retomar parte de seu crescimento econômico com a adoção de uma série de medidas, principalmente no âmbito da agricultura familiar. Tal situação justificou a escolha deste município para objeto de estudo. Dentro do município, procurou-se delimitar uma área que concentrasse tanto a agricultura familiar, quanto problemas econômicos e ambientais, cujo estudo poderia indicar novos direcionamentos em benefício da população local. O 20 Distrito-Vila Toroquá, mostrou-se o laboratório ideal para esta pesquisa, tendo, por isso sido escolhido. O município de São Francisco de Assis/RS1, localiza-se na região Oeste do Rio Grande do Sul e sua divisão interna está constituída por cinco distritos assim denominados: 10 distrito: Sede; 20 distrito: Toroquá; 30 distrito: Boa Vista; 40 distrito: Beluno e 50 distrito: Vila Kraemer. (Figura 1). A área de estudo deste trabalho, é composta pelas localidades de Bom Retiro, Buricaci, Mocambo, Passo do Banhado, Passo do Leão, Perseverança, Pitangueira, Rincão dos Dornelles, Rincão dos Salbegos, São Tomé, e Vila Toroquá. A origem predominante da população do 20 Distrito, é a italiana, como se constata em redações escritas por filhos de agricultores: [...] Meus antepassados moram aqui à (sic) décadas, pois os tataravós da minha mãe vieram da Itália junto com os imigrantes para trabalhar (colonizar) e morar neste lugar que nem nome tinha. [...]2 [...] Contam algumas pessoas mais idosas que aqui vivem, que o nome “Toroquá” foi dado a esta localidade pelo seguinte fato: Dizem que um velho italiano havia perdido um touro neste cerro que aqui há, e um dia de tanto procurá-lo, encontrou-o e gritou bem alto “Toro Quá”, que queria dizer: “O Touro está aqui” [...]3 Entretanto, se a origem dos habitantes é predominantemente italiana, a do nome da O município de São Francisco de Assis foi fundado em 4 de janeiro de 1884, e a divisão distrital se iniciou em 7 de julho de 1885, com três distritos, Em 1890 foi criado o 40 Distrito e em 1912 o 50 Distrito. 2 Denize. Trabalho de português. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 8a série da Escola João Octávio Nogueira Leiria 3 Marcieli. Redação. São Francisco de Assis, 2001 1 Ambientes estudos de Geografia 55 Figura 1 localidade – Toroquá - gera controvérsias: enquanto uns dizem ser de origem italiana, outros afirmam ser um vocábulo de origem indígena, significando toca dos tatus. Profundas reflexões têm sido elaboradas em torno das alternativas da agricultura, tendo como base o desenvolvimento rural, no qual alguns autores salientam o “desenvolvimento rural sustentável”. Entretanto, inúmeros questionamentos surgem, indagando até que ponto se pode falar em sustentabilidade se a renda agrícola é cada vez menos suficiente para manter a família rural no campo, além de termos, no cenário rural, disparidades de desenvolvimento e crescimento econômico. O desenvolvimento sustentável é uma noção política e geográfica, sendo que os principais empecilhos à agricultura são de natureza político-social: de um lado, se coloca a maioria da população com pouco acesso aos recursos políticos e econômicos, (principalmente os agricultores familiares) e do outro, estão os grandes proprietários, que determinam 56 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) as regras do sistema. A agricultura brasileira vem, progressivamente, sendo realizada do ponto de vista empresarial, o que implica alteração dos processos produtivos que, entretanto, não atinge igualmente todos os produtores, produtos ou regiões geográficas, como ensina Silva (1982). Por outro lado, esta modernização não deve ser de modo algum confundida com o desenvolvimento rural, que teria, como complemento, proporcionar melhoria de condição de vida da população rural (GERARDI, 1980). Este processo desigual acaba por excluir número cada vez mais expressivo de produtores rurais que não conseguem se manter produtivos e economicamente viáveis, principalmente em áreas marginalizadas. Os agricultores familiares demonstram atitudes de coragem em frente a situações políticas e econômicas que geram a reprodução da miséria. Percorrendo alguns municípios do sudoeste do Rio Grande do Sul, verifica-se o nível de decadência em que vivem os agricultores familiares, cujas atividades não suprem nem mesmo suas necessidades, permitindo-lhes apenas a subsistência, conseqüência e reflexo do modelo agrícola adotado. Com condições topográficas e pedológicas desfavoráveis, a concentração de unidades de produção familiar de baixa renda coloca a questão da sustentabilidade agrícola associada às alternativas de desenvolvimento com preservação do meio em que vivem. Nesta região, encontra-se o município de São Francisco de Assis e, neste, o 20 Distrito – Vila Toroquá - no qual foi localizada a pesquisa aqui relatada. Assim, procurou-se, com base no diagnóstico das condições locais (ambientais e socioeconômicas) construir cenários que possam apontar direções à melhoria da agricultura. São apresentadas alternativas, práticas de organização do trabalho e da produção que extrapolam os limites individuais e familiares, alcançando o nível coletivo e comunitário. As idéias que vêm ganhando espaço social, influência e novos adeptos parecem caminhar na direção de que é preciso devolver ao mundo rural uma outra dimensão, que o caracterizou durante séculos, antes da vigência do capitalismo industrial, qual seja, um locus de múltiplas atividades onde, ao lado da convivência produtiva com a natureza desenvolvemse novas atividades não agrícolas (SCHNEIDER; NAVARRO, 1999). Nessa perspectiva, observa-se um “novo” mundo rural, onde novas alternativas vêm sendo valorizadas, tais como: produtos agrícolas diferenciados: frutos silvestres, fruticultura de mesa; fabricação de produtos na unidade produtiva para venda direta; agroturismo; cultivos emergentes como flores exóticas; plantas medicinais; enfim, atividades voltadas para o melhoramento do emprego e da renda das propriedades familiares. Para realização desta pesquisa, inicialmente, partiu-se de uma ampla revisão bibliográfica sobre a temática em tela, revisitando-se as matrizes teóricas que, formam as bases das questões conceituais deste trabalho. No presente estudo, entendemos, produção familiar em oposição à produção patronal, ou seja, aquela que apresenta as seguintes características: a) trabalho e gestão intimamente relacionados; (b) direção do processo produtivo assegurada diretamente pelos proprietários; (c) ênfase na diversificação; (d) trabalho assalariado complementar; (e) decisões imediatas, adequadas ao alto grau de imprevisibilidade no processo produtivo; (f) tomada de decisões Ambientes estudos de Geografia 57 “in loco”, condicionada pelas especificidades do processo produtivo e (g) ênfase no uso de insumos internos (FAO INCRA, 1994).4 Considerando que um levantamento total das unidades de produção familiar seria difícil, pela sua complexidade, optou-se por estabelecer um perfil do distrito por meio da escolha de 51 agricultores. Como unidade básica de informação, tomou-se a Unidade de Produção Familiar, entendendo-a como estabelecimento que apresenta como base social o trabalho familiar. Para a conclusão do trabalho de campo foram realizadas sete visitas ao Distrito. O pequeno número de entrevistas realizadas é justificado pela homogeneidade das informações, considerando-se desnecessário um número maior para traçar o perfil. Paralelamente, realizou-se a complementação de dados na sede do município para uma melhor compreensão da realidade em estudo. A sétima saída de campo teve como objetivo resgatar algumas informações na EMATER, na Secretaria de Agricultura e Secretaria do Turismo do Município. Além das visitas para realização das entrevistas, foram feitas três visitas de retorno para coleta de dados na sede do município ou em alguma propriedade cuja entrevista tivesse deixado alguma dúvida. A agricultura familiar do município foi caracterizada, com informações socioeconômicas da área, obtidas das entrevistas, dos Censos do IBGE (1990), do relatório anual da EMATER5 (1999) e de informações diretas Secretaria municipal da agricultura e Secretaria municipal de turismo. Consolidadas essas informações, analisaram-se os dados, representando-os por meio de gráficos, quadros e tabelas. Perfil socioeconômico das unidades de produção familiar do 2º Distrito, Vila Toroquá – São Francisco de Assis - RS Organização das unidades de produção As propriedades entrevistadas, num total de cinqüenta e uma, todas de base familiar, localizam-se em diversas localidades do 2º Distrito, Vila Toroquá. As distâncias das propriedades em relação à sede do município de São Francisco de Assis são variáveis, indo de 6 a 30 Km. A amostra, embora não probabilística, procurou abranger e mapear unidades de produção familiar com distâncias variáveis em relação à sede do Município no intuito de verificar até que ponto fatores como a localização e a distância interferem nas diferentes atividades agrícolas e não-agrícolas das unidades de produção familiar, numa área e para A discussão teórico-semântica sobre produção familiar, campesinato, pequena produção, produção de subsistência, tem consumido centenas de páginas e não será tratada no escopo do presente trabalho. 5 A EMATER/RS vem atuando desde março de 1977 e assumiu a prestação de serviços de assistência técnica e extensão rural oficial no Estado do Rio Grande do Sul vinculada ao Governo do Estado pela Secretaria da Agricultura e Abastecimento, atua em 352 municípios e mantém 52 postos de classificação de produtos vegetais (EMATER/RS, 1997). Salienta-se que um dos postos localiza-se no município de São Francisco de Assis, RS. Ela procura agir por meio de ações desenvolvidas dentro da proposta de desenvolvimento sustentável e perspectivas de inovações, entretanto, de forma pouco abrangente, por envolver uma quantidade pequena de agricultores. 4 58 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) produtos ainda pouco afetados pelo processo de globalização. Os agricultores das Unidades de Produção Familiar, entrevistados na área de estudo, eram proprietários da terra. Na sua maioria receberam parte da sua propriedade por herança e, outros, como no caso dos proprietários da localidade de Perseverança, a conseguiram por meio de ocupação. Deve-se destacar que o fato de serem proprietários das suas terras é importante para eles, ou melhor, é o “seu orgulho”. Até mesmo aqueles que legalizaram as terras, há pouco tempo, se expressavam com convicção, de que agora são “donos de suas terras”. No entanto, observou-se que, mesmo sendo proprietários de suas áreas, algumas Unidades de Produção Familiar (29,41%) procura aumentar a renda através de parcerias, a maioria para desenvolvimento da agricultura. Quanto às formas de pagamento, nas parcerias, verificamos que 60% são feitas em percentagem do produto ou da venda. A área utilizada em parceria para atividade de cultivo oscila entre dois a 48 hectares, enquanto para a pecuária, mesmo sendo pouco freqüente varia de 30 a 200 hectares.Quanto ao número de pessoas que integram o núcleo familiar, verificou-se que, em 39 das 51 propriedades entrevistadas, o total de membros da família não ultrapassa a 4 pessoas, valor surpreendente na zona rural, cujas famílias costumam ser muito numerosas, mas que pode ser explicado pela saída de muitos membros adultos que não encontram, pela exigüidade da área, espaço de trabalho na propriedade. A noção de unidade de produção familiar, durante muito tempo, esteve relacionada à dimensão física, permanecendo a idéia de uma área pequena, com baixa produção. Atualmente, sabe-se que a questão da dimensão das propriedades, tanto na agricultura, quanto na pecuária, não é tão relevante. A representação econômica das unidades produtivas de pequeno porte na agricultura está muito mais ligada à possibilidade de adoção de inovações tecnológicas, à localização e à qualidade do solo, do que a área inicial do estabelecimento (VEIGA, 1995). Assim, quanto ao tamanho identificou-se que as propriedades com área entre 10 a 30 hectares representam 60,78% das amostradas. A estrutura fundiária sofreu algumas alterações nos últimos dez anos: 15,69% dos entrevistados declararam a diminuição da área de suas propriedades, 27,45% informaram que suas propriedades tiveram acréscimos de área, e 56,86% das propriedades visitadas mantiveram inalterada sua área; quanto aos motivos da fragmentação, prevalecem as divisões por herança e por motivos econômicos. Quanto à utilização das terras, observou-se o predomínio da pecuária, uma vez que ela ocupa 57,08% do total da área. A agricultura é também expressiva, ocupando 33.77%. O restante da área é ocupada por mata nativa (6,44%) e implantada (0,22%) e áreas inaproveitáveis (2,50%). Percebe-se que os agricultores familiares entrevistados direcionam suas atividades a uma dualidade - agricultura e pecuária. Tal fato pode ser explicado por diversos fatores: o clima, o tipo de solo, a topografia, o preço de oferta e demanda dos produtos. Assim, a prática da agricultura e da pecuária, simultaneamente, busca a otimização do processo produtivo, racionalizando, cada vez mais, o consumo de produtos e reduzindo os gastos. Ambientes estudos de Geografia 59 Infra-estrutura De maneira geral, predominam as benfeitorias de madeira, fato que está relacionado ao custo e, muitas vezes, à disponibilidade de matéria-prima no local que além do uso próprio, muitas vezes propicia ao proprietário a exploração comercial. Destaca-se a presença de uma serraria na área em estudo. O padrão das benfeitorias, na maioria das propriedades, demonstra o poder aquisitivo de cada família, pois, quando o agricultor apresenta melhores condições econômicas, procura constituir uma casa de alvenaria. Apesar da área em estudo ser bastante bem servida por rios6, a água destes não é utilizada para o consumo humano, pois além da contaminação por agrotóxicos e fertilizantes, recebem também os resíduos, animais, humanos e domésticos. A água dos rios é utilizada na irrigação de hortaliças, na maioria consumidas cruas, na psicultura, na dessendetação de animais, e na irrigação do arroz. Entretanto, o problema da água não está na disponibilidade e sim na infra-estrutura, que necessitaria de investimentos para a construção de mais poços artesianos e instalação de tabulações para distribuição. Quanto à qualidade da água, notou-se que os agricultores são conscientes de que mesmo classificando a água como “satisfatória”, em geral, nunca realizaram sua análise química. Apesar de descreverem a água de consumo como boa, essa afirmação vem acrescida de observações como: “boa, mas nunca foi realizada análise”, ‘boa, meio salobra” o que demonstra que ela não possui, realmente, o padrão adequado. Pode-se afirmar que a qualidade da água, citada pelos entrevistados, tem um valor relativo, uma vez que a sua caracterização como boa não se prende a nenhum dado cientificamente comprovado. A água para consumo humano vem, na maior parte, de poços rasos (cacimba) ou de fontes naturais consumida sem prévia ou com simples desinfecção. Constatou-se que 36,84% dos entrevistados não possuem fossa cloacal, e mesmo os esgotos domésticos (restos de comida, sabão, detergentes, águas de lavagem) apresentam, em alguns casos, destino a céu aberto. Pode-se concluir, pois, quanto ao padrão de vida, a maioria dos produtores familiares do 20 Distrito, moram em casas de madeiras, mas sem esgoto e com abastecimento de água para consumo, precário quanto à qualidade. O padrão de vida reflete a renda, ou seja, o poder de barganha de cada Unidade de Produção Familiar. Ainda em termos de infra-estrutura, a situação de certa forma, caracteriza-se pelo abandono do poder público. Se houvesse uma maior participação do poder público, o problema da distribuição e uso dos recursos hídricos talvez pudesse ser resolvido a contento, como no caso da localidade da Vila Toroquá, que dispõe de recursos naturais de grande significado paisagístico, compondo cenários que poderiam propiciar o desenvolvimento de atividades turísticas e de esportes aquáticos, constituindo-se em fonte de renda alternativa 6 A área em estudo é drenada pelos rios Toroquá, ao norte, arroio Piquiri a leste, arroio Jaguari-mirim a oeste e rio Jaguari, ao sul. Na parte central, estão as drenagens: Lajeado Seco, Arroio Inhandiju, Sanga do Areião, Sanga do Buricaci ou Salso, Sanga Buricaci, Sanga do Noé, Sanga Funda e Sanga do Paulo. 60 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) e desenvolvimento para a região. Algumas Unidades de Produção Familiar apesar de possuírem recursos paisagísticos, não os exploram devido a barreiras econômicas e culturais (Gerardi, 1980) que se colocam como entrave ao desenvolvimento rural, incluindo, além destas, a barreira política. A manutenção das pessoas no meio rural ocorrerá se forem tomadas medidas voltadas ao desenvolvimento do Distrito como um todo. Para isto são necessárias boas estradas, telefonia, infra-estrutura para água e esgoto, eletrificação, enfim, requisitos básicos essenciais para ocorrer, o que se pode denominar apenas como uma condição digna de sobrevivência no meio rural. O uso do solo e a produção agropecuária O 2o Distrito, Vila Toroquá, apresenta aspectos fisiográficos geomorfologicamente associados ao rebordo ao topo do planalto. Com altitudes variando de 102 a 352 metros. Os solos deste distrito diferenciam-se conforme as características do substrato geológico e do relevo na área de encosta. As vertentes apresentam declividade elevada, com um substrato de rochas vulcânicas, gerando um solo pedregoso, que apresenta espessura variável, textura argilo-arenosa, com horizonte orgânico de 60 cm de espessura7. A inclinação das vertentes e a grande pedregosidade no solo dificultam a mecanização em algumas áreas, como é o caso das localidades de Vila Toroquá, Rincão dos Salbegos e Rincão dos Dornelles. Nas áreas onde o relevo é menos acidentado, com substrato predominante de rochas sedimentares da Formação Rosário do Sul, representadas por arenitos finos com coesão média a baixa e rochas sedimentares cenozóicas com baixa coesão (VEIGA; MEDEIROS; SUERTEGARAY, 1987), forma-se um solo com textura silte-areia fina, com baixo teor de material orgânico e muito suscetível aos processos de erosão, gerando sulcos e ravinas. As atividades de rizicultura associam-se às áreas de várzeas dos rios Jaguari-Mirim, arroio Piquiri e, principalmente, junto ao rio Jaguari. Nestas áreas, os solos caracterizam-se por serem hidromórficos, desenvolvidos pelos sedimentos recentes depositados pelos rios. Principalmente na encosta, mesmo em pequenas propriedades, o solo varia conforme a inclinação da vertente, e também o material, produto de alteração. Nas vertentes muito inclinadas, os processos erosivos impedem o desenvolvimento de um perfil espesso de solo, resultando em solo pedregosos. Nas áreas onde a vertente é menos inclinada, os processos de intemperismo têm o tempo necessário para o desenvolvimento do perfil. De qualquer modo, são grandes as limitações ao aproveitamento agrícola dos solos e grande, também, o risco de sua degradação o que recomendaria o uso de estratégias de produção conservacionistas. Mesmo sendo a agroecologia difundida como estratégia de desenvolvimento rural 7 Conforme a descrição feita por Prof. Dr. Luis Eduardo de Souza Robaina da Universidade Federal de Santa Maria na visita de campo realizada em 26 de janeiro de 2001. Ambientes estudos de Geografia 61 sustentável, buscando a manutenção da produtividade agrícola com o mínimo possível de impactos ambientais e com retornos econômicos e financeiros satisfatórios, a maioria dos agricultores das Unidades de Produção Familiar não adota os sistemas alternativos; uns porque não acreditam que seja possíveis produzir sem agrotóxicos, e outros pela falta de mercado. A opinião dos entrevistados se divide entre aqueles que não consideram a agricultura ecológica como alternativa viável e aqueles que consideram a possibilidade de a praticar mas não praticam. Somadas as respostas dos que não consideram a produção orgânica economicamente viável (9) aos que não a vêem como alternativa (12), teríamos que a maioria dos entrevistados que tem uma opinião (41,18%) não está propensa a praticá-la. Notou-se que a adoção de produzir agroecologicamente depende, primeiramente, do interesse do agricultor familiar nos benefícios da agricultura sustentável. Outros fatores também foram apontados como importantes para promover esse tipo de agricultura, tais como a facilidade de linhas de crédito, mercados, tecnologias apropriadas, assim como a facilidade no acesso a terra, à água e aos recursos naturais. Entretanto, constatou-se que a proposição e a estratégia agroecológicas são ainda frágeis e se fundam em critérios fortemente culturais e técnico-econômicos e muito pouco em critérios sociopolíticos (ALMEIDA, 1997). A agricultura é base da economia da área pesquisada e responsável pelas relações de produção e reprodução do espaço. Os principais produtos agrícolas, de acordo com a importância econômica, distinguiam-se nas diferentes paisagens rurais da área: enquanto para algumas Unidades de Produção Familiar, a cultura mais importante era a do fumo, para outras, era o arroz, o milho, o aipim, a batata doce. Esta variedade devia-se, à topografia, e, ao tipo do solo, bastante variado na área. Havia, no entanto, algumas exceções: para alguns, os principais produtos rentáveis eram as hortaliças e as frutas. No primeiro caso, estão os agricultores que produzem com o uso de estufas; no segundo, aqueles que produzem frutas nos pomares. De maneira geral, ocorria um predomínio das culturas temporárias, mas alguns cultivos permanentes e pastagens também são comuns na área. Uma cultura bastante difundida é a do fumo, em geral o de estufa. A produção primária é destinada para as empresas do complexo agroindustrial fumageiro de Santa Cruz do Sul/RS.8 da qual dependem os agricultores familiares. Os sistemas de cultivo dividem-se entre convencional e direto, dependendo do tipo de cultura, relevo e solo. O sistema convencional ainda é predominante (49,02% do total de respostas), e o sistema de plantio direto é menos presente (11,76%). Alguns agricultores já demonstram as vantagens do método de plantio direto como uma das formas de prevenir a erosão. O tipo de solo e relevo se refletem no uso de sistemas de cultivo e no uso de mecanização. O uso de tração mecânica ocorre em áreas de topografia suave e, geralmente, no cultivo de arroz e pecuária. Entretanto a maioria dos equipamentos são antigos, que precisam 8 Destaca-se que um dos produtores (Clenio Bataglin) recebeu mérito de produção em qualidade da empresa Souza Cruz, pela segunda vez consecutiva. 62 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ser reformados, principalmente os tratores e as colhetadeiras. Já os equipamentos para o uso de agrotóxicos são recentes. A criação de animais de pequeno porte é bastante comum na área, servindo tanto para consumo na unidade de produção - carne e derivados (leite, queijos, manteiga, ovos, banha, salame e outros) -, quanto para servir como força de trabalho, no caso do rebanho bovino e eqüino, uma vez que a tração animal, em algumas áreas, é largamente utilizada nas tarefas agrícolas e no transporte, dada a movimentação do relevo, com áreas de expressiva declividade. Todas as Unidades de Produção Familiar apresentaram produção pecuária, embora enfrentassem problemas principalmente com a comercialização, correndo diversos riscos ora com os atravessadores, ora com as “empresas fantasmas” e outras vezes com os cheques sem fundo como relata SARTORI (1998), a partir da fala do agricultor José Olmiro Gindri. Apesar de todos esses riscos, a produção mantém-se, seja para consumo, complementação de renda ou como atividade econômica predominante. Outro problema sério que estamos enfrentando na pecuária é a indústria do estelionato. É uma coisa de louco o que tem de estelionatário na pecuária. Você vende e não te pagam. Dão cheque sem fundo, ou de contas que estão encerradas. É impressionante o que a gente tem tido de problema. (SARTORI, 1998, p.349) As propriedades entrevistadas criam aves, bovinos, peixes, suínos, ovinos, além de praticarem apicultura. Esse conjunto diversificado de animais, além do abastecimento das unidades de produção familiar, tem também finalidade comercial, ajudando na manutenção das atividades na propriedade. Destacam-se comercialmente os bovinos e os ovinos, porém, o excedente e os produtos derivados de outras espécies (ovos, mel, etc) também eram dirigidos ao comércio. É importante destacar que os agricultores, muitas vezes, são obrigados a vender cabeças do rebanho para cobrir outras despesas. Em relação aos eqüinos, sua finalidade era apenas para a “lida” do campo, sendo bastante rara sua venda. Os suínos destinavam-se mais para o consumo, geralmente abatidos na propriedade para suprir as necessidades do agricultor, com relação à carne, banha e subprodutos produzidos artesanalmente como o salame e a morcilha.9 Os peixes apareciam nas Unidades de Produção Familiar, em especial para o consumo, já existindo, contudo, o interesse pela comercialização, ocorrendo o mesmo com a apicultura. Embora a criação de ovinos fosse reduzida, era mantida para o consumo e comércio. O destino do rebanho era principalmente para a alimentação. Já a lã era vendida na cooperativa da cidade. Algumas pessoas também trabalhavam artesanalmente com a lã, tecendo o fio para confecção de tapetes, blusões e casacos. A tosquia das ovelhas era feita, em geral, pelo próprio agricultor em época adequada. O acesso ao mercado para as unidades amostradas depende de alguns fatores como 9 Expressão utilizada regionalmente para produto comestível feito à base de carne suína e sangue. Ambientes estudos de Geografia 63 tipo de produto e localização espacial. Assim, por exemplo, a produção de fumo destina-se parte à empresa Souza Cruz e parte à empresa Meridional de Tabacos Ltda, ambas de Santa Cruz do Sul -RS. Estas mantêm uma relação com o agricultor, na qual o produtor, além da compra de semente, faz todo o financiamento para a sua lavoura, comprando tudo de que necessita desde fertilizantes, acessórios de plantio, etc. diretamente e exclusivamente na indústria. É uma forma de controle e, ao mesmo tempo, de monopólio, ou seja, o agricultor está subordinado à empresa, tanto para produzir, quanto para comercializar. Os agricultores que produzem frutas, batata-doce, aipim e/ou feijão, entregam sua produção aos intermediários que a levam, geralmente, para a cidade de Uruguaiana, para ser comercializada em supermercados e feiras. Quem produz hortaliças e verduras, comercializaas diretamente na feira da cidade, nos mercados locais e, excepcionalmente, em sua própria propriedade, devido à distância da sede do município. Os produtores familiares, feirantes de hortifrutigranjeiros, vendem seu excedente em condições muito singulares. Sua capacidade produtiva é dada de acordo com a disponibilidade de terra e de braços familiares. (raramente com auxílio de mão-de-obra contratada e/ou temporária) “Como” e “para quem” é produzido são questões-chave que precisam ser levantadas para uma agricultura socialmente justa. Os agricultores da área referiram-se à falta de mercado no município, argumentando que o ideal para absorção de seus produtos seria a existência de uma fábrica de farinha de mandioca e de suco de laranja. Além de mudanças locais, apontam ainda as relativas às políticas agrárias, abrangendo mercados e preços e investimentos governamentais. Um exemplo citado é a comercialização do fumo, na qual o produtor recebe muito pouco pela matéria-prima que oferece ao setor industrial, sendo os preços mínimos, geralmente, menores que o custo de produção. Considerando a diversidade da produção, a possibilidade de desenvolvimento da agroindústria é bastante significativa no município e no Distrito, no qual localiza-se, uma das principais agroindústrias do município: a Agroindústria de Produtos “Nossa Casa”. Esta iniciou suas atividades em 1999, produzindo bolachas e, atualmente, produz cerca de 15 produtos que vão desde licores, bolachas, salgadinhos, cucas, pães, merengues, geléias até doces secos e em calda. No momento, os produtos mais importantes para esta agroindústria são o merengue e o salgadinho “QUERO MAIS”. Segundo relato de uma das sócias10, foram incansáveis na promoção dos produtos no comércio, o que resultou na colocação de seus produtos em mais de 40 pontos de comercialização, em São Francisco de Assis e em outros municípios como Nova Esperança do Sul, Jaguari e Rosário do Sul. Atualmente, a agroindústria já emprega mão-de-obra temporária e permanente e seus planos futuros são de expandir seu mercado principalmente para outros municípios. Outra agroindústria foi instalada recentemente nesse Distrito, na localidade de Perseverança, e tem como principal produto docinhos. (“Doces de Luizinha”-Unidade de beneficiamento de doce Luizinha). Os doces produzidos são diversos: figo em calda, laranja 10 Entrevista realizada em 06/07/00, com a proprietária da agroindústria. 64 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) azeda em calda, cocada silvestre, doce de cenoura, sequilho de laranja, geléia de amora, doce de leite em pasta etc., utilizando frutas produzidas localmente. Uma das agroindústrias optou pelo financiamento, ou seja, o Fundo Municipal da Agricultura. Este financia produtores com juros menores em relação à rede bancária e também propicia um prazo para pagar com determinado tempo de carência. Quanto ao PRONAF, uma das proprietárias argumentou sobre a burocracia, dizendo: “Como pessoa física não conseguimos. Para a própria empresa existe uma dificuldade muito grande porque o financiamento exige um projeto no qual tem que ter a certeza de colocação do produto” (informação verbal). Uma das proprietárias da agroindústria, também possui um atelier, visando o aumento da renda familiar. Ela repassa os retalhos a outras mulheres da sua localidade para confecção de colchas, tapetes, almofadas, entre outros. Além de empregar direta e indiretamente mão-de-obra. Além das agroindústrias diversas outras atividades não-agrícolas encontram-se na área em estudo entre elas, destacam-se os artesanatos de lã, plástico e retalhos de tecidos. Com a crescente e constante descapitalização da agricultura, as Unidades de Produção Familiar, tentam buscar formas alternativas de sobrevivência, ou seja, para auxiliar na renda familiar, tendo sido esta uma saída viável para muitas famílias. Também se encontram na área em estudo alguns comércios locais, conhecidos por “bolichos”, onde se vendem produtos geralmente não – perecíveis. Outro problema recente, enfrentado pelas proprietárias, referia-se à comercialização fora do município ou seja, era necessário o “selo sabor gaúcho”11. Apesar de todos os problemas com a comercialização dos produtos, a sua venda é a única forma de acesso ao mercado de bens e serviços, indispensáveis para os padrões atuais de vida. Desse modo, a justificativa principal para a adoção de novas estratégias produtivas – o que, em alguns casos, implica reconversão – está no aumento da competitividade. É preciso produzir não somente aquilo que é mais adequado às condições físicas regionais, mas o que é possível vender em condições mais vantajosas em termos de preço e lucro (BRUMER, 1999). Entre os benefícios destaca-se a geração de postos de trabalho, agregação de valor ä produção, geração de renda, desenvolvimento local e regional, diminuição do êxodo e melhoria da qualidade de vida da população rural. Para isso o programa conta com diversas ações e serviços: financiamento, formatação, nota do produtor, selo Sabor Gaúcho, legalização e comercialização. Trabalho O trabalho familiar, presença marcante no processo produtivo das unidades de produção, é representado, principalmente, pelos pais e filhos, todos em prol do objetivo comum, 11 O Programa da Agroindústria Familiar- Sabor Gaúcho visa melhorar as condições gerais de vida da população rural, através da implantação ou adequação de pequenas unidades agroindustriais, gerando oportunidades de trabalho e renda no interior do Estado. Ambientes estudos de Geografia 65 de satisfação das necessidades básicas da família, pois nenhum recebe salário. Observou-se, também, que o trabalho infantil está presente, assim, como o trabalho feminino, que apareceu tanto em atividades agrícolas como não-agrícolas. De acordo com os agricultores familiares, o tempo gasto com as atividades agrícolas na propriedade depende da estação do ano da atividade desenvolvida. Assim, na época da colheita do fumo, por exemplo, o número de horas de trabalho aumenta. Em termos de média, o tempo dispensado com as atividades agrícolas da propriedade, no inverno, é de seis a oito horas diárias (60,78% das respostas) e no verão, varia, havendo agricultores que trabalham de 6 a 8 horas (23,53%), outros de 9 a 11 horas (25,49%) e de 12 a 14 horas por dia (19,61%). A produção de fumo demanda muita mão-de-obra, desde a produção da muda até o plantio definitivo. As práticas utilizadas seguem as recomendações das indústrias fumageiras que estabelecem o padrão tecnológico de produção empregado, cuja alteração é praticamente impossível. Na área rural, no decorrer da internacionalização da economia local, as multinacionais passaram a ampliar o número de pequenos produtores integrados, impondo-lhes o seu padrão tecnológico como é o caso da cultura de fumo. A atividade agrícola é uma atividade que necessita de permanente atendimento, porém, em algumas épocas, a demanda de mão-de-obra diminui e os agricultores procuram serviços alternativos nesses períodos, entendendo por serviços alternativos, os trabalhos de cortar lenha, roçar, arrumar e/ou fazer cerca, ajeitar o chiqueiro, fazer horta, limpar o potreiro, fazer uma encerra12, ou uma mangueira13 etc. Alguns dos agricultores dedicam-se mais à pecuária nessa época e outros trabalham, temporariamente, em outras propriedades. No período de maior trabalho, ou seja, nos chamados “picos”, a maioria dos agricultores (cerca de 63%) aumentam as horas de trabalho em suas atividades rurais, complementando ou não suas necessidades com a agregação de outros membros da família, contratando mão-de-obra ou trocando dias de serviço com vizinhos e parentes. Porém, como destaca Neves (1995, p. 74), O trabalho familiar pode estar inviabilizado e substituído por trabalhadores assalariados temporários em virtude de determinações do ciclo de vida da família, fato comum nas unidades de produção cujos proprietários têm filhos pequenos ou são pessoas idosas ou mulheres solteiras ou viúvas. O período de menos trabalho é compreendido entre os meses de junho e julho, podendo chegar até agosto, no qual fatores metereológicos como: baixas temperaturas, vento, geadas, nevoeiro, dificultam o trabalho. O tipo de força de trabalho auxiliar utilizado em geral é animal, sendo o boi predo- 12 13 Encerra- expressão utilizada para representar um chiqueiro para suínos. Utilizada para a pecuária. 66 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) minante nos serviços de transporte e preparação da terra, principalmente nas culturas de fumo, aipim, batata-doce e soja, nas quais também são presenças marcantes as trilhadeiras e carroças. Entretanto, parte do distrito (Mocambo, Piquiri, Passo do Banhado), utiliza força mecânica, representada pelos tratores. A diferenciação de uso de força de tração animal e mecânica no 2º Distrito, Vila Toroquá, ocorrem por uma série de fatores, dentre os quais destacam-se o relevo tipo de solo e poder aquisitivo da unidade de produção familiar. A topografia plana em partes do distrito e as várzeas, onde se cultiva o arroz, permitem a mecanização intensiva. As unidades de produção familiares exploradas por agricultores que utilizam tração animal estão, em geral, em áreas que apresentam topografia acidentada, com predominância de solos pedregosos. Trata-se de agricultores que, provavelmente, não se mecanizaram em função do pequeno tamanho da, superfície agrícola disponível, das características topográficas e pedológicas desfavoráveis e, por conseqüência, pelas dificuldades de acesso ao crédito rural. Assistência técnica à unidade de produção familiar e o associativismo dos produtores A assistência técnica pode ser considerada pouco eficaz na área pois muitas das unidades de produção familiar ainda não recebem nenhum tipo de assistência. Um dos fatores que contribui para isso é grande extensão do Distrito, porém, não seria o principal, pois, como relatou um agricultor: eles vêm no vizinho e, nunca chegaram à casa dele. Às vezes, a assistência é direcionada às unidades de produção familiar que são consideradas modelos ou aos amigos, familiares e ou conhecidos. Nas respostas, ficou comprovado que, em algumas localidades, a assistência foi menos presente que em outras em razão, talvez, da diferenciação das culturas desenvolvidas ou de questões políticas. A assistência técnica é fornecida por diferentes órgãos, destacando-se nas entrevistas realizadas a Empresa Souza Cruz, devido ao número de plantadores de fumo, em seguida a EMATER e, por último, a Secretaria Municipal de Agricultura que eventualmente, trabalham em parcerias em prol desenvolvimento do setor rural do distrito. (Programa Troca-Troca, por exemplo). A EMATER, na opinião dos agricultores, quando aparece no interior, dá assistência a poucos produtores, mas continua distante da maioria. É possível que haja boa vontade dos técnicos, mas parece que o número deles em atividade é pequeno, além da falta de recursos financeiros. Outras entidades, como a Agrotop (Empresa Particular de Assesoria), as EscolasPólos e a Cooperativa Assisense também prestam assistência técnica. A visita de um agrônomo geralmente ocorre nas propriedades em que acontece financiamento ou onde estão sendo desenvolvidos projetos. Observou-se que a visita e/ou procura por um profissional agrônomo é reduzida, pois metade dos entrevistados nunca procurou e/ou receberam a visita de um agrônomo, assim a falha também é dos próprios agricultores. O restante, 23,53% receberam e/ou procuram há menos de um ano e 17,65% (não têm contato com agrônomos há mais de 3 anos). Ambientes estudos de Geografia 67 Com relação às políticas públicas, 33 agricultores foram e são beneficiados por elas e o programa que mais beneficiou esses agricultores foi o Troca-Troca, por ser menos burocratizado que os outros. Este consiste como uma oportunidade de subsídio de sementes à agricultura familiar. Os agricultores adquirem o produto e, além de pagar mais barato, podem produzir sua própria semente para o próximo ano. Para cada quilo de semente adquirido existe a proporção de troca, dependendo do tipo de semente. Outro programa é particular da Empresa Souza Cruz, no qual a relação é direta entre produtor e empresa porque estas têm interesse em que o produtor alcance um produto de qualidade para reverter em maiores lucros. Quanto ao financiamento agrícola, alguns agricultores se manifestaram, com medo de endividamento, porém evidenciou-se que 67,35% dos agricultores em estudo utilizaram algum tipo de financiamento entre eles: o Troca-Troca (42,55%) o Pronaf e suas categorias (Pronafinho, Pronaf/Custeio) 27,66% e das Empresas de fumo (Empresa Souza Cruz e Empresa Universal Ltda.) 25,53%. Com menores proporções utilizaram o FEAPER (Fundo Estadual de Desenvolvimento e Apoio aos Pequenos Estabelecimentos Rurais ) 4.26%. O associativismo também é um traço marcante na produção familiar, seja aquele voltado para a agregação de valor ou comercialização da produção, seja o associativismo cultural/religioso. Estas formas de organização representam como o agricultor familiar está integrado à sociedade. • Cooperativas Todos os entrevistados eram sócios da única cooperativa do município (Cooperativa Mista Assisense), instituição exercendo liderança entre produtores, cuja função é a armazenagem e industrialização da produção. Além da cooperativa do município, alguns proprietários eram sócios de cooperativas de municípios vizinhos, fato decorrente não só da proximidade de onde residem, como também de elas, muitas vezes, apresentarem preços mais satisfatórios. A Cooperativa Agropecuária Mista Assissense associa 4.910 produtores de arroz, soja, milho, trigo, sorgo, feijão, azevém e lã. A região serrana, a leste do município, onde está a área de estudo, é ocupada por minifundiários, em geral de ascendência italiana, que possuem em média 25 hectares. Apesar de somar 70 por cento dos associados, o que eles produzem de milho, soja e feijão só garante a subsistência da família, ou seja, seu volume de produção, é insignificante, quando comparado ao dos arrozeiros, cerca de 30 por cento dos associados e que se concentram no sul do município, na planície irrigada, por onde se estendem suas lavouras de mais de 500 hectares (SARTORI et al., 1988). Assim, os agricultores da área estudada pouco representam para esta cooperativa, quer pela quantidade de produto entregue, quer porque muitos dos sócios entregam seus produtos em outras cooperativas de cidades vizinhas ou para empresas específicas, como no caso do fumo e da laranja. • Sindicato rural 68 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Todos os agricultores entrevistados eram sócios do sindicato dos trabalhadores rurais, cuja importância está unicamente na assistência médica e odontológica dispensada aos produtores e seus familiares. • Associação de moradores A maioria dos proprietários (80,39%) eram sócios das associações de moradores14. Nestes grupos organizados são discutidos inúmeros problemas enfrentados pelos produtores, tanto de ordem tecnológica, voltados à questão da produção agropecuária quanto relativos ao desenvolvimento rural. • Centro de tradição gaúcha (CTG) Outra forma de organização dos agricultores familiares, na área em estudo, se dá por meio dos CTGs. Estes representam um lugar de encontros, de entretenimento cultural, social e político. Na maioria das localidades os agricultores entrevistados mantêm os hábitos gaúchos tradicionalistas, cultuados como um símbolo do estado e representados nos CTGs, desde 1948, quando foi fundado o primeiro núcleo (COSTA, 1998). • Igreja/Clube15 A igreja, em geral católica, algumas evangélicas, assim como os clubes são marcos em cada localidade e pontos de referência para os encontros nos domingos. Uma filha de agricultor deu o seguinte depoimento sobre os encontros sociais da sua comunidade: Nos fins de semana as pessoas se reúnem, principalmente os homens, no clube, para jogar bocha, baralho, beberem e jogarem futebol. Nos domingos, escutam o terço na igreja. De três a quatro vezes por ano, sai festa na Igreja, vem gente de todo lado para comerem e beberem. No clube às vezes sai baile com músicas gaúchas.16 Nas palavras, de outra filha de agricultor pôde-se sentir a importância do lazer para a comunidade. Para as moças e rapazes se conhecerem e acharem uma pessoa com quem possam se casar, a diretoria da comunidade contrata artistas e fazem bailes e festas, assim todos da comunidade e de comunidades vizinhas se divertem.17 Associação Comunitária Perseverança; Associação Comunitária Passo do Leão; Associação Comunitária Rincão dos Salbegos e Trombine; Associação Comunitária Rincão dos Dornelles; Associação Comunitária dos Moradores de Toroquá e Encruzilhada; Associação dos Moradores de Vassoura; Associação Comunitária Nossa Sra. Fátima do Inhandiju; Associação dos Moradores de Timbaúva e Buricaci; Associação dos Moradores “Nossa Casa”, Grupo de Produtores Monte Carlo. A associação “Nossa Casa” diferencia-se do conjunto, pois foi criada em função da agroindústria de origem familiar. 15 Clube é o nome dado pelos moradores ao salão anexo à igreja. 16 Caroline Brandolff Stivanin. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 7a série da Escola Estadual de de 10 Grau João Octavio Leiria. 14 Ambientes estudos de Geografia 69 As relações com o meio ambiente Atualmente, a preocupação com o meio ambiente no meio rural é cada vez mais notável e uma das questões mais candentes é a relativa ao destino do lixo. Com relação a este assunto, o agricultor local pode até ter consciência, mas mostra atitudes inadequadas, talvez pelo fato de não haver coleta no meio rural. Assim, joga-se todo e qualquer material muitas vezes em lugar impróprio, como pode ser constato no flagrante obtido no trabalho de campo. Os agricultores familiares geralmente utilizam a técnica de queimar o lixo ou colocá-lo em um “peralzinho”18, como eles dizem, ou fica em qualquer lugar, sem destino. Porém, percebeu-se nesses agricultores, o despontar de uma consciência com respeito ao lixo orgânico que pode ser aproveitado. Notou-se uma preocupação maior dos produtores fumicultores em relação às embalagens dos agrotóxicos, reflexo das exigências das empresas relacionadas ao ramo. A Empresa Souza Cruz exige dos agricultores um lugar específico para armazenagem dos produtos e das embalagens vazias. Entretanto, o acúmulo de embalagens está preocupando os agricultores, pois a empresa havia se proposto recolhê-las e até o presente momento tal coleta não aconteceu. Fertilizantes, agrotóxicos, sementes geneticamente melhoradas fazem parte do rol de agrotecnologias que complementam o padrão tecnológico atual. A utilização de agrotóxicos é fator que interfere no meio ambiente. E, segundo a pesquisa, constata-se que seu uso, por parte dos agricultores vem crescendo, pois quase 50 % deles informou que tem mantido o volume utilizado, enquanto outros 25% disseram que tem aumentado a utilização. A intensificação da agricultura brasileira, traduzida pelo emprego excessivo de insumos externos, sem uma utilização eficiente, tem levado a uma decadência ambiental dos sistemas agrícolas e ao empobrecimento da base de recursos responsável pela sua renovabilidade no tempo e no espaço e, dentro do atual contexto ambiental global, ao empobrecimento da base de recursos naturais não-renováveis (FRANCISCO, 1998). Há relatos dos agricultores de envenenamento de si ou de membros familiares ou vizinhos, por falta de cuidados. Embora a maioria dos agricultores esteja consciente de que os agrotóxicos são nocivos à saúde, afirmam que quase não usam equipamentos de proteção para a aplicação e, quando ocasionalmente os usam a utilização se dá de forma incompleta ou inadequada. Ocorre um maior cuidado entre os produtores de fumo, pois a própria empresa controla a venda dos agrotóxicos e os equipamentos de uso e proteção, uma vez que a produção de fumo exige uma quantidade considerável de agrotóxicos para garantir qualidade, compatível com os padrões exigidos pelo mercado internacional. Alguns dos agricultores da área em estudo utilizaram a técnica “float” que permite Mirian Cristiane M. Parize. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 7a série da Escola Estadual de de 10 Grau João Octavio Leiria. 18 Fundo de vale, baixada. 17 70 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) menor uso de agrotóxicos na fumicultura. Essa técnica consiste na produção de mudas de fumo sob cobertura plástica, com substrato de bandejas flutuantes em uma lâmina de água. São poucas as Unidades de Produção Familiar que não utilizaram agrotóxicos, 8,84% o que demonstra a dependência de insumos químicos como fertilizantes, adubos, inseticidas, pesticidas, etc., todos de elevados preços, aplicados em produtos que valem geralmente menos que eles. A utilização de agrotóxicos ocorre em geral por conta própria, com a participação da própria mão-de-obra familiar. Segundo os agricultores entrevistados 31,37% deles não utilizaram nenhuma orientação técnica para a aplicação dos agrotóxicos, e apenas 9,80% leram a bula e/ou o manual. Isso demonstra que o produtor, baseando-se na sua experiência ou na dos mais idosos e vizinhos, não dá crédito à possibilidade de ser intoxicado ao manusear inadequadamente o produto, ou incorrer em erros de dosagem do tipo que podem causar conseqüências nefastas para o homem e desastrosas para o meio ambiente. Diferente do que ocorre em outras áreas do município de São Francisco de Assis, os problemas de erosão existentes no 2o Distrito são mínimos e os agricultores procuram combatê-los por meio de pastagem, reflorestamento, atulhamento e até desvio do escoamento. Um outro problema ambiental diagnosticado refere-se à prática, ainda comum na região, de queimadas na preparação da área para plantio. Isso torna-se mais grave nas áreas de encosta, junto às vertentes com alta declividade, pois facilita o desenvolvimento dos processos de erosão física e biológica do solo. O desmatamento da vegetação ciliar foi um outro problema verificado. Essa ação compromete os cursos d’água, pois aumenta o assoreamento do canal e a erosão das margens. A retirada da vegetação nas encostas, além de provocar uma maior instabilidade com relação aos processos erosivos, provoca o desaparecimento de fontes d’água que vão sustentar os pequenos arroios, causando uma grande diminuição das reservas de água superficial e subterrânea. Com relação às águas subterrâneas, altamente utilizadas para o abastecimento domiciliar, correm sérios riscos de contaminação porque os poços observados não apresentam técnicas adequadas na sua construção e manutenção. Portanto, a poluição dos aqüíferos é um risco sério a que está sujeito o 2o Distrito do município de São Francisco de Assis. Levantadas estas questões, conclui-se, concordando com Altieri (2000) que a facilidade do acesso, pelo agricultor, à terra, à água, aos recursos naturais, bem como a linhas de crédito, mercados e tecnologias apropriadas, é fundamental para assegurar o desenvolvimento sustentável. A trajetória da unidade de produção familiar e os objetivos do agricultor O tempo de moradia na localidade das entrevistas variou de um a 70 anos, mas, em geral, as pessoas que ainda moravam nessa localidade, aí tinham nascido. Considerando os dados da tabela 25, tem-se que as maiores parte dos amostrados, 56,86% dos proprietários, residiam na localidade há mais de 24 anos e que, em muitos casos, era a segunda geração no mesmo local, mostrando o processo de reprodução da produção familiar. Ambientes estudos de Geografia 71 Da percepção dos proprietários, quanto às mudanças ocorridas no distrito e nas suas propriedades, destacam-se aquelas ligadas à infra-estrutura (51,56%), diminuição no número de moradores (6,25%) crise econômica (6,25%), diminuição da fertilidade da terra (4,69%). Os reflexos da crise econômica são sentidos no próprio êxodo rural e este se reflete na produção; o esgotamento da terra é um dos fatores que também se destaca nas modificações que ocorreram nos últimos 30 anos, fruto de um processo de manejo inadequado, em que o próprio agricultor não apresenta, na maioria dos casos, condições de recuperação ou de prevenção. Quanto ao êxodo rural Sartori et al. (1998, p.362), usando as palavras de um entrevistado, enfatizam: Na verdade não tem ninguém mais morando nessas serras, isso aqui está virando um asilo de velhos. Você chega e só vê aposentado, ganhando esse salariozinho de miséria, plantando uma coisinha ou outra. Já faz um tempinho que isso começou. Hoje não tem mais ninguém para trabalhar, enquanto antes era fácil juntar uns dez ou doze homens para a triagem. Hoje não se arruma mais peão, porque ninguém mais quer trabalhar no campo. As mudanças na infra-estrutura são notáveis nas estradas, eletrificação rural, educação e nas próprias benfeitorias das casas. Essas mudanças são sentidas e passadas de geração em geração como é descrita por um filho de agricultor: [...] as famílias que ali viviam tinham que ir para a lavoura ajudar os pais nas plantações, a palavra “lavoura” não é a palavra certa para isto, na verdade eles tinham que ir para o cerro, no caminho para o cerro eles cruzavam sangas, matos fechados, corriam riscos de serem picados por cobras e demais animais, mas eles tinham que ir pois era daquelas plantações como aipim, batata, feijão que sua família se alimentava. A educação é, talvez, o melhor exemplo de mudança no Distrito19. Em 1926, o 2o Distrito recebia um único professor para “dar instrução a alunos pobres”, como reza o termo de compromisso por ele assinado: Aos dez dias do mês de fevereiro de mil novecentos e vinte e seis, compareceu no Gabinete Intendencial, o cidadão José Rodrigues Montanho, professor particular, no lugar denominado Durasnal, 2o districto deste município, para prestar compromisso de dar instrução a alunos pobres, sujeitando a fiscalização do Inspetor Escolar e as Regulamentações correspondentes, percebendo a subvenção municipal de oitenta mil réis mensaes; prestou o compromisso. (Fonte: Termo de compromissos dos funcionário-Pref. Munic. de S.Fco. de Assis). Além disso, antigamente algumas coisas eram mais difíceis, como é o caso da acessibilidade às escolas conforme relatado por uma filha de agricultor: Antigamente, no 2o Distrito, Passo do Leão eles tinham que ir a escola a pé ou a cavalo muitos não podiam estudar, compravam livros e cadernos 19 Atualmente as escolas pólos do Distrito são duas: Escola Estadual de 1º Grau Incompleto São Conrado e a escola Estadual de 10 Grau João Octavio Leiria. 72 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) para estudar em casa, para ir à cidade eles tinham que andar quilômetros e quilômetros para chegar onde o ônibus passava, não havia estradas para passar um carro, nem mesmo às vezes carretas puxadas a boi era difícil. Hoje já tem uma estrada boa, o ônibus para ir a cidade passa três vezes por semana, veio mais verbas para a alimentação, limpeza e material escolar para a escola onde moro. A luz de antigamente era de lampiões e velas, agora é luz elétrica.20 Apesar dos esforços em oferecer instrução básica no próprio distrito, a população diminuiu, sendo o principal motivo a saída dos filhos para estudar e/ou trabalhar. Os “sonhos”, ou seja, os objetivos dos agricultores familiares são diversos, porém percebeu-se que eles têm vontade de implantar, por meio de atividades agrícolas e nãoagrícolas, seus objetivos futuros na perspectiva de um desenvolvimento rural. As atividades mais citadas foram: investimento na pecuária (aumentar o número efetivo por cabeças), melhoria na moradia, investimentos na piscicultura, aumentar a área de terras, aumentar a área de plantio com culturas, comprar equipamentos agrícolas e poço artesiano. Notou-se, também, que alguns têm um objetivo específico como: reflorestamento, turismo rural, fábrica de farinha de mandioca, difusão da olericultura. Esses objetivos parecem óbvios, no entanto, é por meio deles que se deve pensar em alternativas econômicas e sustentáveis para essas Unidades de Produção Familiar. Identificou-se, também, que, para as mulheres, os objetivos são diferentes, ou seja, são metas mais simples de serem alcançadas como: adquirir uma televisão, máquina de lavar roupa e melhoria no conforto e/ou bem-estar e na infra-estrutura da casa. Por mais que a mulher rural venha participando cada vez mais da busca de um desenvolvimento rural, ela apresenta um grande apego em relação ao lar. Considerações finais A respeito da agricultura familiar em uma área conhecida como de agricultura e pecuária tradicional, tendo respaldo nos pressupostos teóricos, nas considerações a respeito do perfil das Unidades de Produção Familiar da região de estudo e da metodologia utilizada, conclui-se que alguns problemas emergem, tais como: fixação da mão-de-obra no campo; ampliação e busca de novos mercados para a colocação do produto; gerência e administração dos negócios da Unidade de Produção. No momento este Distrito exibe sistemas de produção cujo aprendizado passa por herança, gerando produtos como fumo, aipim, batata-doce, feijão, entre outros. Além destes, ocorrem culturas típicas da região Oeste do Rio Grande do Sul, como arroz e bovinos de corte, que dependem de vários fatores como, por exemplo, espaço físico apropriado. A agroindústria rural coloca-se como alternativa para aproveitar as potencialidades 20 Tacieli Cristiane Contena Tolfo. São Francisco de Assis, 2000. Aluna da 7a série da Escola Estadual de de 10 Grau João Octavio Leiria. Ambientes estudos de Geografia 73 existentes em cada realidade, promovendo o seu desenvolvimento. Constatou-se, na pesquisa de campo, que algumas Unidades de Produção Familiar já enfrentam “novas” alternativa em termos de cultivo como fruticultura e horticultura e a agroindústria de doces, biscoitos, bolachas, apresenta como capacidade de adaptação e de diversificação produtiva dos produtores, com possibilidade de explorar economicamente determinados nichos de mercados. Desta forma, observou-se uma certa diferenciação entre os produtores familiares. Outra alternativa refere-se a atividades como turismo cultural e turismo ecológico. Entretanto não bastam os recursos naturais; é necessária a capacitação das Unidades de Produção Familiar para criação e gestão de produtos turísticos. A partir desse trabalho, que traça o perfil socioeconômico e mostra as alternativas de desenvolvimento, um estudo de mercado deveria avaliar a viabilidade para implantação de um novo ciclo econômico a partir do aproveitamento industrial da produção agrícola do Distrito como uma proposta para fortalecer as Unidades de Produção Familiar. Fumo, laranja, aipim, batata são alguns dos produtos de maior potencial no momento, podendo ser transformados nas unidades familiares agregando valor. Atividades não-agrícolas, como o turismo, poderiam ser pensadas como alternativas de trabalho e renda. A busca de um novo perfil socioeconômico para a 2o Distrito, trará um aumento de renda local, gerará novos empregos, incrementará a circulação de mercadorias e fortalecerá a ocupação da mão-de-obra ociosa, além do que acarretará aumento de produção. Entretanto sua concretização depende essencialmente, de decisão política e de apoio financeiro. É nesse contexto que as políticas para agricultura familiar devem se concentrar, tendo como perspectiva promover o desenvolvimento rural, incrementando tecnologias adequadas aos tipos de produtores familiares. Faz-se necessário propiciar o desenvolvimento sustentável à agricultura familiar, considerando que ela é a base de sustentação das economias urbanas, e de produtos para os mercados citadinos. Desta forma, abordar o termo “desenvolvimento sustentável” é bastante complexo, mas pode se apresentar como uma meta para as atividades agrícolas e não-agrícolas, ou seja, uma alternativa possível para a área em estudo. Necessita-se, primeiramente fornecer “novos” rumos ao desenvolvimento rural para posteriormente, com o decorrer do tempo, torna-lo economicamente sustentável. Referências ALMEIDA, J. A problemática do desenvolvimento sustentável. In: BECKER, D. F. (Org.). Desenvolvimento sustentável: Necessidade e/ou possibilidade? 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Esse autor afirma que: [...] ‘o homem está destruindo a natureza’; ao mesmo tempo que se evoca o exemplo das comunidades indígenas como modelo e paradigma da relação homem-natureza. E aqui cabe a interrogação: não são os indígenas homens? Se o são, e essa é verdade inquestionável pelo menos para biologia, de que tipo de homem estamos falando quando se afirma que ‘o homem está destruindo a natureza’ ? Claro que quando se trata dos indígenas está-se falando de uma outra sociedade - de uma outra organização social, de uma outra cultura. Ora, se isto é verdadeiro, não são os homens enquanto categoria genérica que estão destruindo a natureza, mas sim o homem sob determinadas formas de organização, no seio de uma cultura. Diante da reflexão do referido autor, é necessário ressaltar que o homem dito “civilizado” e o indígena utilizam os recursos naturais, porém em escalas espaciais e intensidades de deterioração distintas. Pois o primeiro reclama por recursos para a satisfação de suas necessidades, sem levar em consideração as formas de apropriação dos bens naturais; já o segundo utiliza práticas que garantam sua subsistência. É pertinente lembrar que a ação do homem ocidental possui raízes históricas, já que os europeus instituíram a cultura de exploração no “Velho Mundo” expandindo-a para as colônias, para atingir apogeu econômico e subjugar os povos colonizados. Portanto, a idéia de exploração e a busca de recursos perduram até os dias atuais, mas com novos objetivos, como o de alcançar melhor qualidade de vida e maior comodidade. Dessa forma ao se explorar esses recursos, são desencadeados alguns processos que causam danos ao homem e como conseqüência a pobreza, o crescimento acelerado da população, que sempre conectados, deixam de ser um prejuízo local e passam a ser global. Haja vista a atual tendência para uma economia cada vez mais globalizada, que causa mudanças intensas e gera novos caminhos para humanidade percorrer trazendo problemas em vários setores, sejam eles: econômicos, sociais, políticos e ambientais. 76 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) O que sugere analisar os problemas de ordem ambiental na forma integrada, já que existem estudos diagnosticando que as queimadas locais afetam a camada de ozônio em escala planetária (KIRCHHOFF, 1992). Portanto, ao se trabalhar a questão ambiental é preciso envolver os diversos fatores que compõem a ocupação do espaço, pois só assim se obterá uma análise síntese e uma real investigação de cunho geográfico. Ressalta-se a postura do geógrafo quanto aos interesses ambientais. E para tanto, recorre-se a Monteiro (1981, p. 3) ao refletir sobre esse papel: [...] numa época de grandes preocupações ‘ecológicas’, de desperdícios de recursos naturais básicos, de degradação da qualidade ambiental não deixa de ser melancólico que nos venhamos preocupando em formar uma nova categoria acadêmica de ‘profissionais’ especializados nos problemas ambientais. Mesmo admitindo o caráter interdisciplinar do problema não deixa de ser lamentável que o ‘geógrafo’, por negligência, troca ou abandono voluntário, se veja marginalizado, ou mesmo alijado, do tratamento de um assunto que já foi uma das pedras de toque do seu campo de estudo. Diante da questão levantada, nota-se que o geógrafo por omissão frente à problemática ambiental vem sendo subtraído dessa temática, perdendo seu espaço de atuação. Vale ressaltar que a comunidade geográfica segue certas tendências temáticas e de atuação, as quais enfocam o ambientalismo, o desenvolvimentismo e a justiça social. E para os geógrafos que seguem a linha ambiental é necessário aliar os recursos naturais às atividades econômicas intrínsecas ao processo de urbanização. Portanto a ciência geográfica que tem como objeto de estudo a organização do espaço, se preocupa pela forma com que este vem se definindo e se integrando, apontando como caminho o planejamento territorial dos municípios, para minimizar seus problemas sócio-ambientais. O enfoque para a cidade de Rio Claro é bastante pertinente quando se sabe que seus recursos hídricos se encontram em condições de degradação, com alguns vestígios de mata ciliar, assoreamento e despejo de esgotos doméstico e industrial em suas águas. Compartilha-se com Viadana (1992, p.26) quando diz textualmente: A urbanização e a industrialização sem planejamento especial e adequado à região de Rio Claro, somadas às crescentes pressões demográficas e ao predomínio da monocultura canavieira equipada, que progride por todas as direções da área drenada pelo Corumbataí, podem ser responsáveis pelos desequilíbrios ecológicos, neste setor da média Depressão Periférica Paulista. Com essa afirmação, o autor destaca que as atividades sócio-econômicas vinculadas ao processo de urbanização refletem diretamente sobre a qualidade de vida da população e consequente degradação ambiental. Como por exemplo, no processo de urbanização, a ocupação das várzeas dos rios para construção de núcleos habitacionais compromete a segurança dos moradores, pois poderão ser alagadas na época das cheias. Nota-se assim que os planos terão papel fundamental para a adequação dos usos antrópicos às condições naturais locais. Assim o planejamento ambiental deve enfocar as relações humanas, econômicas e ambientais para que seja eficaz e associe os princípios da recuperação, preservação e Ambientes estudos de Geografia 77 conservação no manejo das cidades às complexas relações com os ecossistemas “naturais”. Considerando esses aspectos, o perfil geo-ambiental serve de subsídio ao planejamento territorial e conseqüente minimização desses impactos ambientais e também, como instrumento preventivo aos usos futuros desse espaço. Esse instrumento técnico de informação possibilita o entendimento da distribuição desses elementos no espaço e como uns interferem sobre os outros e fornece alguns componentes necessários para planejar a ocupação racional do território. Igualmente importantes são os interesses locais, regionais e globais estarem apoiados em objetivos maiores e mais abrangentes que perpassem os interesses econômicos e a visão utilitarista, alcançando um novo significado, na qual se considere a Terra a morada do homem. Objetivos da pesquisa: Objetivos principais: O presente estudo teve como escopo a aplicação técnica dos perfis geo-ambientais em setores da cidade de Rio Claro com enfoque para avaliação, diagnóstico e subsídio para o planejamento territorial-ambiental desse ecossistema urbano. A utilização dos perfis geo-ambientais possibilitou uma análise-síntese para estudos locais e regionais, através das representações temática, sintética e integrada da topografia, pedologia, geologia, ocupação do solo e precipitação pluvial como condicionantes ambientais, que permitiram descrever as diferentes paisagens e sua correspondente qualidade no sítio urbano de Rio Claro. Objetivos secundários: Essa pesquisa teve interesse em investigar a conexão entre os geo-elementos para compreensão dos problemas que afetam a área e as condições ecológicas atuais do ecossistema urbano. Permitiu identificar os fatores que produzem alterações ambientais na cidade e reavaliar seus usos sociais. Através da análise dos perfis refletiu-se sobre os atuais usos do solo em zonas urbanas e próximas da cidade e forneceu uma visão integrada dos componentes que constituem esses ecossistemas, para contribuir nos planejamentos territoriais-ambientais que poderão se apoiar no saber gerado por esta aplicação técnica. Pois essa linguagem gráfica traduz as condições ambientais desse ecossistema. Técnica da pesquisa e materiais 78 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Alguns trabalhos foram realizados utilizando a referida técnica, entre eles: 1 - Perfil Geológico e Fitogeográfico através do Estado do Paraná Maack (1950) elaborou um perfil fitogeográfico do estado do Paraná, onde foi cartografado a geologia, a cobertura vegetal, dados pluviométricos e a geomorfologia, associados à sua espacialização ao longo de um trajeto percorrido. 2 - Inter-relação fito-fisiográfica no centro-leste de Goiás Neste estudo realizado por Braun (1971) foi elaborado um perfil de inter-relação fitofisiográfica no Centro-Leste de Goiás com o objetivo de representar unidades de cobertura vegetal associadas à topografia, pedologia e geologia da área de estudo, sem preocupação escalar. 3 - Perfil Fitoecológico do estado de Sergipe O perfil fitoecológico elaborado por Troppmair (1971) é uma técnica aplicada em geobiocenoses terrestres, a fim de cartografar os elementos fisiográficos e biológicos e a distribuição espacial (solos, rios, precipitação pluvial, umidade e duração da seca). 4 - As regiões vegetais da encosta oriental dos Andes e de matas tucumano-bolivianas Em trabalho de Hueck (1972) elaborou-se um perfil através de um corte transversal dos Andes para apresentar a estratificação altitudinal das comunidades florestais da encosta oriental dessa cordilheira e da região de matas tucumano-bolivianas, no noroeste da Argentina. O objetivo foi caracterizar a vegetação dividindo-a por unidades, estabelecidas a partir das correlações entre os geo-elementos cartografados: topografia (altitude) e dados climáticos (precipitação, período de estação seca, aumento de formações de nuvens). 5 - Perfis fito-topográficos do Município de Uberlândia – MG Schneider (1982) elaborou quatro perfis fito-topográficos para caracterizar a vegetação do município de Uberlândia, tomando como geo-elementos a vegetação e morfometria do território, com as respectivas localidades (área urbana, córregos, ribeirões etc.). Este perfil revelou a grande diferença nas condições naturais existente entre os setores norte e sul do município, resultando em paisagens com formações vegetais naturais individualizadas. 6- Perfil Fitoecológico do Estado do Paraná A proposta de Troppmair (1990) foi de caracterizar, através do perfil, as grandes unidades paisagísticas ou compartimentações geomorfológicas do Estado do Paraná, integrante da Região Sul e do Planalto meridional. Foram levantados os componentes (topografia, regiões geográficas, localidades, distância percorrida, vegetação original e uso atual do solo) e a distribuição espacial aliada aos processos ecológicos, para uma interpretação conjunta dos perfis traçados no norte, centro e sul do estado. 7- Perfil Ictiobiogeográfico de segmento do médio e baixo curso do Ribeirão Claro (SP) A proposta dos perfis aplicados para ecossistema aquático, (VIADANA; TROPPMAIR, 1989; VIADANA, 1992) foi a de cartografar alguns elementos como gradiente, extensão, largura, profundidade, padronagem, soleira, fundo, temperatura, pH, transparência, uso das margens, impactos e número de espécies de peixes da bacia hidrográfica do Corumbataí, localizada no estado de São Paulo, completados pela distribuição da ictiofauna local. Ambientes estudos de Geografia 79 Para se elaborar um perfil, Libault (1975) sugere algumas etapas para se obter representações combinadas. Primeiro se constrói um perfil altimétrico, marcando as altitudes sobre a linha hipsométrica; em seguida, o outro perfil será elaborado utilizando-se o dado topográfico, escolhendo uma escala onde os fenômenos possam ser representados de forma expressiva. Na proposta de Troppmair (1989), sobre perfis geo-ambientais, segue-se uma explicação detalhada da mesma que pode ser aplicada para estudos em ecossistemas aquáticos e terrestres, com necessidade de se representar variáveis que permitem dar, de forma sintética, as condições da área de estudo. Isso requer a inclusão da representação do trecho do mapa topográfico onde é feito o perfil altimétrico, posteriormente lançados os dados das temperaturas média, máxima e mínima; precipitação pluvial média; tipos de solo; excesso ou deficiência de água no solo (no caso de ecossistema terrestre); período favorável para a flora e fauna e demais fatores de importância. Na elaboração dos perfis geo-ambientais aplicados em Rio Claro foram escolhidos três setores da cidade de Rio Claro que pudessem ser investigados a partir da correlação dos subsistemas naturais (terra, água, ar) e os antrópicos. Com essa finalidade foram privilegiadas as áreas setentrional, central e meridional da cidade, para observação da ação antrópica sobre os seus componentes paisagísticos. Para efeito desta publicação optou-se por exemplificar a aplicação da técnica apenas no setor setentrional da cidade de Rio Claro. A distância percorrida, transversal ao curso do rio, foi de 9.000 metros, que possibilitou a partir da variação da paisagem a delimitação em zonas fisiográficas acompanhando as coordenadas UTM. Representou-se também parte da bacia do rio Corumbataí, como elemento integrante dessa paisagem. A escolha pela escala local possibilitou uma descrição e análise geo-ambiental mais detalhada da área estudada. Estabelecidas essas condições, foram levantados os materiais cartográficos composto por carta topográfica e geológica na escala de 1: 20.000 (COTTAS, 1983); carta pedológica de 1:100.000 (Quadrícula São Carlos SF.23-Y-A-I); dados de precipitação pluvial coletados do Atlas Climático de Rio Claro elaborado no Departamento de Geografia do IGCE da UNESP (Campus de Rio Claro). Em trabalho de campo foram levantados os dados de uso e ocupação do solo e registro fotográfico. Convém lembrar que foi necessária uma adequação da escala da carta pedológica de 1:100.000 para escala de 1:20.000, resultando na generalização das diferentes classes de solos. O uso e ocupação do solo serviram como parâmetro para se estabelecer as unidades fisiográficas. Posteriormente essas informações foram representadas em transectos para composição dos perfis, nos quais foram tratados no Software AUTOCAD. Interpretação de perfil geo-ambiental em setor município de Rio Claro Para análise dos perfis geo-ambientais em setores do município de Rio Claro fez-se necessário consultar alguns trabalhos realizados sobre essa localidade, entre eles: Cottas (1983), Sanches (1967), Penteado (1981), Troppmair (1976), Viadana (1996), Grillo e Brino 80 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) (1994), Tavares (et al, 1995), Pinto (1993), Machado (et al, 1989) entre outros. Este município, pertence ao estado de São Paulo, localiza-se na média Depressão Periférica Paulista, uma das quatro grandes províncias geormorfológicas em que se subdivide o estado: a Planície Costeira, o Planalto Cristalino, a Depressão Periférica e o Planalto Ocidental Paulista. A Depressão Periférica possui paisagem monótona com relevo pouco movimentado e interflúvios subtabulares, as vertentes são convexas no alto e côncavas no sopé atingindo altitudes entre 550 e 650 metros. É drenado pela bacia hidrográfica “[...] do rio Corumbataí e tem como tributários o Ribeirão Claro, Passa-Cinco e Rio da Cabeça, que constituem uma bacia hidrográfica que alimenta o rio Piracicaba – o mais significativo afluente da margem direita do Tietê - integrando-se este, ao sistema do rio Paraná” (VIADANA, 1985, p.2). A região de Rio Claro, conforme a classificação de Koeppen, se insere no clima do tipo Cwa, mesotérmico de inverno seco entre março e setembro sendo o verão chuvoso nos meses de outubro a fevereiro. O perfil traçado está localizado em setor norte da cidade, no sentido W-E com coordenadas UTM entre 233 a 241; 7.523 a 7.524. O trajeto percorrido, com extensão de 9.000 m, permitiu o registro de uma paisagem diversificada, que possibilitou delimitá-la em três unidades distintas, são elas: rural/urbana, urbana e reflorestamento (Fig.1). A unidade fisiográfica rural/urbana, topograficamente localizada entre 550 e 560 m de altitude, é formada por terrenos suavemente ondulados e drenados pela bacia hidrográfica do rio Corumbataí. Esse recurso hídrico apresenta vales com fundo amplo e achatado, entulhados por sedimentos aluviais que constituem os solos hidromorfos. Esses solos estão assentados sobre a Formação Corumbataí juntamente com o podzólico vermelho/amarelo, considerado argissolo pela EMBRAPA (1999). Segundo Sanches (1967, p. 48) nesta área: [...] predominam até meia encosta dos interflúvios do rio Corumbataí e seus afluentes, terrenos da formação Corumbataí pertencente ao grupo Estrada Nova, compostos de siltitos, argilitos, calcários dolomitos e sílex. A espessura desses sedimentos, de idade permiana, é de várias dezenas de metros. Pelo fato deste grupo geológico conter calcário, siltito e argilito, possui grande significado econômico para o município. A presença de argila nos solos das várzeas e nas baixadas da periferia urbana explica o desenvolvimento da atividade de sua extração para a produção de telhas, tijolos e cerâmica. A argila se constitui num dos recursos minerais de maior importância para economia da região, pois Rio Claro integra um importante pólo cerâmico juntamente com os municípios de Santa Gertrudes, Limeira, Araras e Cordeirópolis. No entanto, essa atividade causa impactos ambientais com ulcerações no tecido ecológico e transforma a paisagem. Esses impactos são: a alteração da flora local, assoreamento dos cursos fluviais e desencadeamento de processos erosivos que contribuem para o surgimento de voçorocas. Essas mudanças, ao longo dos anos, poderão provocar o desaparecimento de pequenos cursos fluviais e a ocupação desses espaços por espécies vegetais diferenciadas numa nova adaptação ao solo ali formado. Alguns projetos vem sendo desenvolvidos a fim de buscar alternativas para uso Figura 1- Perfil Geo-Ambiental em Setor Norte da Cidade de Rio Claro (SP) Ambientes estudos de Geografia 81 82 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) desse recurso de forma menos impactante e de meios de recuperar essas áreas. Assim os pesquisadores poderão contribuir para alcançar soluções de integração sócio-econômica com a natureza. Ainda nesta unidade verifica-se a precipitação pluvial média anual de 1.420 a 1.460 mm. Ao ocorrer o transbordamento do leito fluvial no verão, as lagoas marginais (meandros abandonados) e várzeas, são abastecidas servindo de habitat para reprodução e maturação de determinadas espécies da comunidade íctia (VIADANA, 1996). Existem áreas dessa unidade que sofreram o desmatamento ciliar para penetração de cultivo, ocupação por pastos e eucaliptos. Observam-se também alguns indivíduos arbóreosarbustivos e a presença de pequenas propriedades rurais com predomínio de chácaras. Como já foi visto, as áreas em que se verificam atividades antrópicas, como extração de argila, cultivo agrícola, pastagem para gado, entre outras, tornam o ambiente suscetível a intensos impactos. O mesmo ocorre com instalação de núcleos habitacionais em áreas de média declividade, lixiviando os solos arenosos e argilosos que desencadeiam processos erosivos, desestabilizando inclusive a estrutura das casas. Dentro desse mesmo processo as planícies aluviais acabam por receber boa parte do escoamento superficial servindo de áreas de deposição de sedimentos, alterando a dinâmica fluvial. Assim também, com a subida do nível da água dos cursos fluviais em períodos anômalos de chuva, podem inundar áreas cultivadas, reduzir a disponibilidade de água potável e acarretar destruição de construções com prejuízo de vidas humanas e de animais domésticos. Essas áreas consideradas de risco são frutos da segregação espacial, que segundo Casseti (1995, p. 87): [...] o processo de ocupação e transformação das vertentes no sistema de produção capitalista, que é uma relação homem-meio, encontra-se subordinada às relações homem-homem, que tem na relação de propriedade das forças produtivas a categoria principal. Se tal relação de propriedade do capitalismo separa os homens em classes (proletariado e burguesia) e o espaço é “mercadoria” torna-se evidente que as diferenciações espaciais resultam do próprio poder de compra. Diante disso, enquanto se destinam as melhores condições topográficas (de relevo) aqueles que detêm o capital, sobram as áreas de risco aos desvalidos e marginais de elite econômica. Compartilha-se com o citado autor, quando enfatiza que o poder aquisitivo somado à especulação imobiliária determina a localização da moradia, pois a população de baixa renda tende a se concentrar nas áreas periféricas, como é o caso da expansão urbana em Rio Claro na vertente do rio Corumbataí. Essas áreas são caracterizadas por ruas sem capeamento asfáltico, com solo exposto pela ausência de cobertura vegetal, que em época de chuvas intensas, sofrem movimentos de massa, desestabilizando a estrutura das casas de auto-construção ocasionando seu desabamento. Igualmente impactante é a presença de esgoto clandestino, lixo, entulho de construção civil que poluem os corpos de água superficial e os aqüíferos e os processos erosivos das vertentes acabam provocando a sedimentação fluvial. No que se refere ao tratamento de esgoto da cidade observa-se neste setor uma Estação de Tratamento de Esgoto. Entretanto, Rio Claro ainda enfrenta grandes desafios para poder solucionar a questão, já que o maior volume dos esgotos doméstico e industrial continua Ambientes estudos de Geografia 83 sendo lançado no rio Corumbataí. Os impactos revelados nessa primeira análise justificam o fato das águas do rio Corumbataí ficarem comprometidas para o abastecimento de ¼ da população urbana do município, pois se tornam poluídas, barrentas, com caudal volumoso, afetando inclusive o provimento de outras cidades, como Piracicaba que tem seu abastecimento urbano proveniente desse curso hídrico. Portanto a análise desta primeira unidade do perfil permitiu a síntese estabelecendo um conhecimento integrado dos problemas geo-ambientais que afetam a área. Propiciou ainda uma maior visibilidade dos problemas de abastecimento de água enfrentados por Rio Claro e região. A segunda unidade delimitada foi a zona urbana, com topografia entre 600 a 630 m de altitude, com terrenos planos, ocupando o interflúvio dos rios Corumbataí e Ribeirão Claro. Essa área, devido a sua planura e impermeabilização asfáltica do solo, dificulta o escoamento superficial gerando bolsões de água nos vales existentes na cidade. Isso revela que as alternativas de construção de galerias pluviais e canalização dos córregos com o objetivo de aumentar a velocidade do fluxo d’água das chuvas para evitar riscos de inundação, estão longe de ser uma solução eficaz para os problemas. Os grandes volumes de chuvas comprometem a qualidade da água não só para uso da comunidade local, mas também regional, pois acabam carreando para os cursos hídricos todo tipo de lixo, esgotos clandestinos e agrotóxicos. Diante desse embate o Consórcio Intermunicipal das bacias dos rios Piracicaba e Capivari, constituído em 1989 com a participação de vários municípios tem o papel de somar esforços numa mesma direção, ou seja, melhorar o uso das águas e propor ações visando o saneamento para preservar esses mananciais. A criação do Comitê das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí em 1993 também teve o intuito de alcançar esses objetivos, promovendo o gerenciamento descentralizado e participativo, integrado aos recursos hídricos, seguindo princípios como a cobrança e racionalização da utilização da água. Porém cabe ressaltar que após mais de uma década poucas ações foram efetivamente realizadas no que concerne à recuperação das áreas estudadas neste trabalho e que estão dentro da área contemplada pelo Consórcio. Isso prova que os resultados ainda não ganharam a visibilidade desejada e que muito ainda se tem a fazer para recuperar essas áreas. No que tange a pedologia da área estudada, é constituída por latossolo vermelho/ amarelo sobre a Formação Rio Claro, na qual acima de 630 metros ocorrem arenitos eólicos da formação Botucatu-Pirambóia, do grupo São Bento, de idade mesozóica que junto com o arenito Bauru, forneceram os sedimentos para essa formação litológica. Devido a exposição do solo arenoso provocada pela remoção da cobertura vegetal para construção das edificações ocorre a lixiviação e o intenso assoreamento dos mananciais hídricos. Soma-se a isso a enorme quantidade de lixo que é depositada em locais irregulares contribuindo para a contaminação de lençóis freáticos pelo chorume. Portanto o uso do solo e o planejamento urbano devem estar necessariamente atrelados ao conhecimento litológico e edáfico da área para que se respeite a estrutura e compactação desses elementos. Outro processo a ser observado é o clima em setor urbano, que no perfil indica uma 84 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) curva da precipitação pluvial média anual entre 1.480 a 1.540 mm sendo mais acentuada que na periferia que é de 1.420 a 1.460 mm, podendo ser explicada pelo fenômeno de ilha de calor. Em estudo sobre Rio Claro, Tavares (et al, 1995) constataram que essa alteração do clima urbano é gerada pelos usos específicos do solo, das funções tipicamente urbanas e fluxos de veículos automotores. Lombardo (1985) relata que a formação da ilha de calor na metrópole paulistana se dá pelas atividades antrópicas como pavimentação; alteração da cobertura vegetal aliada as edificações e emissão de gases tóxicos pelas indústrias. Portanto o clima urbano é caraterizado pelo aumento de 1o a 2oC comparado a periferia e nas grandes metrópoles pode ultrapassar 3o C. (TROPPMAIR, 1989). Dessa forma, verifica-se que as diferenças de temperatura e precipitação pluvial entre as áreas centrais, periféricas e rurais adjacentes decorrem da variação do uso do solo e das funções específicas que nelas se desenvolvem. Uma das maneiras de minimizar a formação da ilha de calor é planejar o replantio de vegetação adequada para as vias públicas e espaços livres, que interferirá de modo positivo na qualidade de vida urbana. Em estudo sobre áreas verdes Troppmair (1976) constatou que Rio Claro possui índice de 2,8 m2 de área verde/habitante, indicando ser este valor insuficiente. Ainda na unidade urbana há a presença do Distrito Industrial, que outrora ocupava área periférica e com o passar dos anos foi densamente povoada, devido à especulação imobiliária, com a presença de residências de classe média e média baixa. Em direção a periferia, observa-se a segregação sócio-espacial com a presença de casas mais modestas. A deposição de lixo nos terrenos baldios juntamente com as indústrias pode contaminar os lençol freático. Outro fator observado é a forte erosão do solo. Revela-se, portanto que o meio físico e o social se entrelaçam numa relação contraditória, onde o homem apropria-se da natureza para organizar-se social e territorialmente. A terceira unidade fisiográfica observada foi a do reflorestamento, nas adjacências do Ribeirão Claro com topografia entre 580 e 630 m de altitude que se caracteriza por uma inclinação da vertente mais abrupta que a do Corumbataí e que possui em seu vale solos hidromorfos, assentados sobre a Formação Corumbataí. O latossolo vermelho/amarelo aparece mais à leste da cidade sobre a Formação Rio Claro. As Formações Rio Claro, Botucatu-Pirambóia e Bauru, através de processos pedogenéticos, originaram o latossolo vermelho/amarelo que possui uma estrutura com mais de três metros, onde a textura arenosa predomina. É pobre em matéria orgânica, consequentemente pouco adequado para a agricultura, traduzindo a sua utilização na forma de pastagens e de reflorestamentos. Essas condições afetam diretamente o microclima local, tendo temperatura e precipitação pluvial específicas, de acordo com o tipo de cobertura vegetal. Nessas áreas a curva da precipitação pluvial está entre 1.460 a 1.520 mm, sendo maior que na periferia rural/ urbana e menor que no setor urbano do Distrito Industrial. Ainda nessa unidade existem áreas de cultivo permanente, como eucalipto, e cultivo temporário, como o milho e cana-de-açúcar. Apresenta matas ciliares degradadas e pastagem Ambientes estudos de Geografia 85 com gramíneas, utilizadas para a alimentação de gado, cuja sedentação é provida pelos seus cursos d’água. Essa área é inadequada para expansão urbana, porém verifica-se o avanço da construção de moradias em setores de reflorestamento, de várzeas e de matas ciliares, que se dá com o próprio aval do poder público, como no caso do Projeto Pé-no-Chão do bairro Mãe Preta. Essa ocupação da encosta do Ribeirão Claro representa uma ameaça para os ecossistemas reflorestados, de mata ciliar e também para o aquático. Embora em trabalho de campo observou-se a existência de peixes nos cursos d’água, isto pode não se manter por muito tempo, pois são volumosos os esgotos doméstico e industrial que fluem para o mesmo, somado ao escoamento de agrotóxicos das áreas cultivadas, refletirão na extinção de espécies íctias. Isso demonstra também grave problema de saúde pública que vem sendo gerado, pois ¾ da população urbana consome essa água e também utilizam-na para lazer. As tentativas de recomposição vegetal dessas áreas são ainda muito incipientes frente à problemática. Essa situação é alarmante e pode-se concluir que tem havido pouco interesse por parte da população e dos poderes públicos em conservar ou promover melhor manutenção dos recursos naturais. Pois através da análise do material cartográfico produzido e do trabalho de campo, percebeu-se que há várias irregularidades no uso do solo urbano, como por exemplo, expansão urbana com loteamento da várzea do Ribeirão Claro, promovendo o desmatamento ciliar. A falta de fiscalização é também um fator agravante para atitudes como lançamento de lixo em áreas impróprias e a realização de pesca predatória em época de piracema. Diante desses fatos é urgente um melhor planejamento da área investigada, que segundo Branski (apud FADINI, 1998) para se obter um eficaz planejamento ambiental de uma bacia hidrográfica deve-se considerar os aspectos físicos, número da população local e as atividades sócio-econômicas desenvolvidas. No caso de Rio Claro, deve-se enfatizar a importância que representam os recursos naturais num planejamento integrado da bacia hidrográfica do rio Corumbataí. No presente estudo as dimensões físicas e sócio-econômicas analisadas, se restringiram a determinado setor da cidade, mas que de modo indireto atende aos princípios de um melhor planejamento ambiental da bacia hidrográfica como um todo. Isso permite se fazer alguns apontamentos de caminhos possíveis para minimizar os problemas que afetam essa área de estudo. Para minimizar os impactos ambientais verificados, a primeira diretriz a se seguir é a não ocupação das encostas e de planícies de inundação pela população local. Pois esta ocupação provoca remoção da cobertura vegetal e os solos expostos sofrerão processos erosivos, surgindo voçorocamento, sedimentação e conseqüente inundação das várzeas na época das cheias. O reflorestamento ciliar é o caminho de menor custo para recuperação dos recursos hídricos onde se obtém os seguintes benefícios: garantia da vazão contínua da água ao longo do rio; serve de filtro para o escoamento de agrotóxicos; constitui uma barreira para o carreamento dos sedimentos evitando seu assoreamento e protege a ictiofauna local. No caso da área urbana é interessante que haja espaços sem pavimentação para que se tenha maior absorção das águas pluviais, seja através das áreas verdes ou de vias públicas 86 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) arborizadas. A expansão de áreas verdes na cidade de Rio Claro também ajudaria a regular a temperatura local para torná-la mais amena. Obras de engenharia como canalização de córregos e galerias pluviais ainda não é o suficiente para amenizar os riscos de inundação das várzeas, pois essas áreas já estão densamente ocupadas. A construção de Estação de Tratamento de Esgoto também necessita do apoio de uma fiscalização maior, com aplicação de multas para as indústrias que lançam efluentes nos rios. A mesma fiscalização deve ser prevista no que se refere à deposição de lixo em áreas proibidas. Dessa forma, as diretrizes apresentadas, é apenas o início de uma reflexão sobre as várias medidas que devem ser tomadas sobre essa questão ampla e profunda. Vale ressaltar que a síntese realizada pela interpretação desse perfil propiciou uma integração dos diversos elementos geo-ambientais permitindo inclusive auxiliar no estabelecimento de um futuro planejamento territorial para a cidade de Rio Claro. Isto porque acaba por resultar numa melhoria da qualidade de vida da população de um modo geral. Referências BRAUN, O. P. G. Contribuição à Geomorfologia do Brasil Central. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, p. 03-35, 1971. CASSETI, V. Ambiente e apropriação do relevo. 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Uma Metodologia Alternativa na Interpretação de Hidrobioceno- 88 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ses., In: ENCUENTRO DE GEÓGRAFOS DE AMÉRICA LATINA, 2., Montevideo, 1989. Anais... Montevideo: Universidad de la Republica, 1989, p. 227-234. POPULAÇÃO E QUALIDADE DE VIDA URBANA EM SANTA MARIA (RS): ESTUDO DE CASO BAIRRO URLÂNDIA Vilma Dominga Monfardini FIGUEIREDO Odeibler Santo GUIDUGLI Introdução Na atualidade, qualidade de vida tem se tornado um tema relevante, especialmente, nas discussões acerca da vida nas cidades. Pensadas como espaço de uma vida ideal, hoje, aglomerações humanas, que chamamos de cidades representam um desafio para todos. Existe um desajuste muito grande entre as necessidades crescentes da população e os recursos disponíveis para a satisfação destas necessidades o que é crescentemente perceptivel. Isto pode ser verificado tanto nos países desenvolvidos quanto nos menos desenvolvidos. Porém, nos últimos, os problemas são mais graves, uma vez que o modelo de desenvolvimento econômico neles adotado não tem como principal preocupação a sociedade e a melhoria da qualidade de vida da população, mas sim a obtenção de vantagens econômicas às custas desta mesma população. Via de regra esta não é alvo de melhorias mas, converte-se apenas em uma peça em meio às mudanças que a marginalizam. Assim, nas últimas décadas, as áreas menos desenvolvidas do mundo e, em particular, as nações latino-americanas têm experimentado um rápido crescimento de suas populações urbanas sem a correspondente expansão da infra-estrutura e dos serviços essenciais à suas vidas. O resultado disto é que na prática, em todos os centros urbanos, independente de seu porte, têm surgido uma série de problemas caracterizados como indicadores de má qualidade de vida para a maioria da população. A realidade mostra que o crescimento rápido e desordenado das cidades não foi acompanhado de uma infra-estrutura básica e de outros pré-requisitos que possibilitassem uma melhoria da qualidade de vida em aspectos como: educação, saúde, alimentação, lazer, habitação, emprego, etc. Esta situação impede que haja uma forte coesão social, como seria o desejável. Juntando-se a isto, outros problemas relevantes e graves, como insegurança pessoal, marginalização, não participação nas tomadas de decisões, carências culturais, etc., vêm também aumentando e assumindo importância. E este grande número de problemas sociais vivenciados pelas populações citadinas que torna o estudo da qualidade de vida urbana um tema cada vez mais relevante para vários cientistas sociais. É este estudo que se realizou avaliando-se um bairro da cidade de Santa Maria – o bairro Urlândia, como área caracterizada pela diversidade ( Figura 1). 90 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Figura 1 - Localização do bairro Urlândia na cidade de Santa Maria (RS) Fonte: Prefeitura Municipal de Santa Maria. Secretaria de Planejamento. Adaptado – 1992 Mapa informativo e turístico de Santa Maria. Produção: Olinto J. Kuhn. Santa Maria – RS. 1996. Org.: FIGUEIREDO, V. D. M. Desenho: Silvana Fernandes Neto Ambientes estudos de Geografia 91 A qualidade de vida, devido à sua complexidade e às dimensões que envolve, tem tido diferentes interpretações. Dominantemente, ela tem sido entendida como nível de bem estar individual ou coletivo, determinado não apenas pela satisfação das necessidades básicas, mas também pela percepção do espaço onde se vive. Constata-se que a satisfação dos desejos e aspirações dos indivíduos está se tornando um aspecto em evidência no âmbito dos estudos de qualidade de vida. Também, cada vez mais, verifica-se que as pessoas querem mais que alimentação e habitação. Elas aspiram a uma vida integralmente melhor. Neste sentido, é necessário considerar não apenas aspectos materiais da vida. Assim, uma análise mais abrangente sobre a qualidade de vida não deve estar restrita apenas à avaliação de aspectos objetivos, devendo, portanto, incluir também aqueles denominados subjetivos. O tema da qualidade de vida é considerado complexo, multidimensional e interdisciplinar. Por isto tem gerado uma ampla gama de discussões em função da falta de unidade entre os pesquisadores quanto à sua definição e mensuração. A expressão “Qualidade de Vida”, enquanto conceito e organização emerge, na década de 50, nos países desenvolvidos e, somente na década de 70, nos menos desenvolvidas. Quanto às formas de sua mensuração, os primeiros estudos baseavam-se, dominantemente, em indicadores objetivos. Porém, transformações profundas que vêm ocorrendo na sociedade urbana da atualidade estão evidenciando, cada vez mais, a importância do uso concomitante de indicadores objetivos e subjetivos nas metodologias adotadas. Considerando-se estas questões, a pesquisa desenvolvida teve dois objetivos gerais. O primeiro constituído pelo próprio envolvimento com a literatura sobre o tema: qualidade de vida, que é ainda escassa na Geografia e, em sua maior parte, estrangeira. O segundo envolve a questão da qualidade de vida da população residente num bairro periférico da cidade Santa Maria – o bairro Urlândia –, localizado a sudoeste da área central e considerado um dos bairros mais problemáticos da cidade. Como objetivos específicos, buscou-se, identificar a realidade socioeconômica do bairro, considerado uma área deprimida, caracterizando, objetiva e subjetivamente, as variáveis definidoras dos problemas detectados. As variáveis identificadas para o bairro e consideradas relevantes foram: escolaridade, renda, emprego, habitação, saúde, segurança, infra-estrutura e saneamento básico, questões ambientais, nível de satisfação, participação e aspirações da população. Estas variáveis foram consideradas segundo suas diferentes formas de mensuração, tendo sido utilizado como critério de avaliação, os atributos bom ou ruim. Assim, este trabalho é o resultado da observação e mensuração das precárias condições de vida a que está submetida uma população de 9.702 habitantes (1996), que habita uma área periférica da cidade de Santa Maria. A problemática desta pesquisa foi analisada através das seguintes relações hipotéticas: existem evidências de que há uma relação entre o nível de renda, a educação, a qualidade de vida e a distribuição espacial das famílias que têm origem na própria localidade; há também evidências de que estejam ocorrendo mudanças socioeconômicas na população, mudanças estas resultantes da evolução da estrutura urbana e do processo histórico da ocupação espacial das diferentes vilas. 92 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Referencial teórico Os estudos sobre qualidade de vida constituem-se numa preocupação mais antiga nos países desenvolvidos porém, são mais recentes nos menos desenvolvidos. Qualquer teriam sidos os termos utilizados para denominá-la “Qualidade de vida”, não como expressão, mas como realidade, sempre acompanhou a história humana. Contudo, enquanto conceito e sua organização, emerge apenas na década de 50, inicialmente nos países desenvolvidos, enquanto nos menos desenvolvidos, as primeiras atenções voltadas para a temática datam da década de 70. Segundo Oliveira (1979), os primeiros estudos relativos à qualidade de vida originaram-se na Europa, em meados do século XIX. Estes estudos foram realizados por integrantes da chamada escola de economia política, que se interessavam pelas condições de vida das classes trabalhadoras européias. Diáz (1985), destacou que os primeiros estudos sobre qualidade de vida tiveram início no final do século XIX (1884) e inicio do século XX, sendo que a maioria deles o associava ao nível de consumo em termos de bens e serviços utilizados por uma dada população. Em seus estudos Calderón e Jiménez (1996), indicaram a década de 50 como o marco de introdução do tema no mundo político pelas Nações Unidas. e na opinião de Sandroni (1989), foi com o avanço do movimento ecológico ocorrido na década de 60 que o questionamento acerca da qualidade de vida nos países industrializados ganhou força. Nos países menos desenvolvidos, as primeiras preocupações surgiram somente na década de 70 e, os estudos realizados demonstraram que, na América Latina, coube ao Brasil o pioneirismo sobre o tema. Isto pode ser comprovado através do trabalho realizado por Souza (1972) sobre o uso do tempo como medida da qualidade de vida. A partir deste trabalho, outros surgiram no Brasil, na Venezuela, Argentina, México, Chile, etc. Como foi referido anteriormente, é do conhecimento dos pesquisadores que se dedicam aos estudos sobre qualidade de vida que o tema é complexo, multidimensional e interdisciplinar, e que vem sendo interpretado de diferentes formas em função da formação de cada pesquisador. Isto faz com que, ainda hoje, não exista uma definição precisa de seu significado, daí as diferentes abordagens conceituais sobre o tema. Há pesquisadores que estabelecem relações entre qualidade de vida e saúde, Cordeiro (1981), Gallopin (1982), Abaleron (1996). Outros entre qualidade de vida e qualidade ambiental, como Guimarães (1984), Troppmair (1992), Sanches e Borja (1993), Herculano (2000). Outros ainda, estabelecem relações entre qualidade de vida e desenvolvimento, como Crocker (1993). No entanto, existe um ponto em comum entre os diferentes autores: a relação da qualidade de vida com a questão das necessidades básicas da população. De modo geral, é esta visão a considerada pela maioria dos pesquisadores. Outra questão que se destaca nos estudos sobre qualidade de vida envolve a forma de sua mensuração pois não existe ainda, um acordo sobre os tipos de indicadores a serem usados, ou, sobre o critério a ser incorporado em escala particular de estudo. Até meados da década de 70, os estudos sobre qualidade de vida baseavam-se, exclusivamente, na dimensão objetiva (quantitativa) que consequentemente se apoiavam em dados estatísticos. Porém, diversos estudiosos começaram a questionar esta metodologia até então adotada Ambientes estudos de Geografia 93 para estudar o tema. Assim, a partir da década de 80, passaram a incorporar outra dimensão em seus estudos – a subjetiva (qualitativa), que se baseia na percepção das pessoas sobre o mundo que as envolve, o que implica uma escala de valores bastante diversa e expressa de forma, as vezes, subjetiva. Entretanto, a polêmica ainda continua pois nem todos os pesquisadores adotam a mesma postura. Há os que se apoiam exclusivamente nas análises objetivas (dimensão material da qualidade de vida), como: Soares, Silva e Abdo (1984); Caiado (1997); Almeida (1997); Azzoni (1999); etc. Há ainda aqueles que apoiam seus estudos nas análises subjetivas (aspirações da população) como: Shin et al. (1992); Farias (1997); Mansilla (1997); etc. Há ainda, aqueles que se apoiam em ambas as dimensões, o que é o mais indicado nestes estudos, como: Abaleron (1986/87); Rogerson (1989), Sanches e Borja (1993); Borsdorf (1999), Herculano (2000); etc. Metodologia A área estudada foi o bairro Urlândia, localizado a sudoeste da cidade de Santa Maria, limitando-se ao norte com o bairro Medianeira, ao sul com o Tomazzetti, a leste com o Tomazzetti e o Medianeira e, a oeste com o Arroio Cadena e as áreas militares, cuja história foi iniciada em 1953, continuando em aberto até hoje. O conjunto é constituído por uma periferia da cidade, caracterizada por apresentar muitos problemas (ambientais e de topografia – terrenos sujeitos a inundações, muitos destes, localizados às margens de córregos -, de infra-estrutura e saneamento básico -, violência, insegurança, marginalização, falta de participação na tomada de decisões, etc. Tais problemas não afetam somente as pessoas que residem no local, mas refletem-se sobre a cidade como um todo. Como o referido bairro é uma unidade espacial micro para o qual os dados representavam um desafio, foi necessário a realização de pesquisa de campo, visando à geração de dados primários. Isto porque os dados secundários existentes não permitiam efetuar uma avaliação completa, considerando-se os objetivos da pesquisa, conforme o proposto . A partir de um levantamento realizado junto ao IBGE de Santa Maria, verificou-se que no bairro existiam 2.580 residências distribuídas através de 07 vilas, um parque residencial e uma área sem denominação. O número de residências de cada vila foi identificado através da contagem direta o que mostrou os seguintes totais: 63 na vila Alegria, 160 na vila Formosa, 128 na vila Goiânia, 415 na vila Santos, 80 na vila São Pedro, 328 na vila Tropical, 1.119 na vila Urlândia, 152 no Parque Residencial San Carlos e 135 na área “sem denominação”. Assim, após o conhecimento direto da área de estudo, de sua delimitação e identificação das residências, foi organizado o instrumento a ser aplicado para avaliação – um questionário ajustado à técnica survey. Cabe destacar que os aspectos que se desejava pesquisar relacionavam-se às características da população e da habitação; condições de infra-estrutura e de serviços e nível de satisfação com os mesmos; problemas ambientais; grau de convivência e participação comunitária; imagem dos moradores sobre o centro da cidade e percepção acerca dos diferentes problemas. Como o tema da pesquisa envolvia questões objetivas e subjetivas, o questionário 94 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) foi elaborado com questões abertas e fechadas, portanto, misto. No conjunto o questionário constou de 34 questões, algumas subdivididas, o que resultou num número maior de informações coletadas. A partir destes dados buscou-se identificar a qualidade de vida dos moradores do bairro. O trabalho de campo foi executado através da aplicação de questionário e, por amostragem. O tamanho da amostra trabalhada foi baseada na tabela de Krejcie e Morgan (1970, apud GERARDI; SILVA, 1981), de modo que, de um total de 2.580 domicílios, o tamanho da amostra trabalhada foi de 335 unidades domiciliares, o equivalente a 13 % do total dos domicílios. Entretanto, considerando-se que o bairro é composto por várias vilas, a distribuição espacial destas vilas foi considerada. Assim, as unidades amostrais foram distribuídas proporcionalmente ao número de domicílios de cada unidade territorial, ou seja, de cada vila. Optou-se pela amostragem sistemática e, as entrevistas foram realizadas obedecendo a um intervalo de 08 domicílios e, respondidas pelos chefes de domicílios. Resultados da pesquisa de campo A pesquisa realizada no bairro Urlândia teve como objetivo principal: obter mais e melhor conhecimento sobre a vida dos moradores do bairro, bem como sobre a forma como percebem os problemas nele existentes. Desta forma, tendo em vista a natureza dos aspectos mensurados adotou-se os critérios de análise quantitativos e qualitativos. De uma maneira geral, os dados evidenciaram grandes diferenciações socioeconômicas e espaciais como fruto da ação individual, privada e pública, que em conjunto, revelaram aspectos negativos da qualidade de vida da população do bairro estudado, bem como aqueles positivos. A seguir são apresentados os resultados da pesquisa. Características dos chefes de domicílios e das habitações Com relação a este aspecto, procurou-se conhecer as características demográficas, sociais e econômicas dos moradores. Para tanto levantou-se informações sobre: sexo, idade, escolaridade, ocupação, renda familiar, condição da moradia e nível de satisfação com a mesma, procedência dos entrevistados e motivação para residir em Santa Maria. De um total de 335 chefes de domicílios entrevistados, 273 eram homens (81,49%) e, 62 eram mulheres (18,51%). Estes dados demonstraram que no bairro estudado o homem ainda tem um papel bastante significativo na manutenção da família. Com relação à estrutura etária , os resultados mostraram que a maioria estava situada entre 20 e 59 anos de idade, totalizando 78,21%. Isto é um indicativo de que daqui a mais ou menos duas décadas haverá, desde que não ocorram modificações significativas, um número expressivo de idosos chefiando domicílios e vivendo neste bairro. O nível de escolaridade que é considerado um importante indicador da qualidade de vida da população, mostrou-se muito baixo entre os entrevistados . Dos 335 entrevistados, 60,0% não haviam completado o 1º grau, e 14,62% eram analfabetos, o que, conjuntamente, Ambientes estudos de Geografia 95 totaliza 74,62%. Esta situação traz conseqüências para as questões do trabalho, do rendimento e, consequentemente, é fator determinante das precárias condições de vida. A ocupação dos chefes de domicílios reflete o baixo nível de escolaridade, pois as ocupações dominantes entre os entrevistados estão ligadas à construção civil, à função de motorista e a serviços domésticos no caso das mulheres. Estas ocupações, por sua vez, repercutem na renda das pessoas que se mostrou relativamente baixa entre os entrevistados. Assim, 46,26% deles viviam com renda de até 2 ½ salários mínimos, e apenas 20,29% desfrutavam de renda superior a 5 salários mínimos. Constatou-se, assim, que há uma estreita ligação, entre, nível de renda, nível de escolaridade e tipo de ocupação dos entrevistados, o que repercute na qualidade de vida. Com relação a condição de moradia a pesquisa mostrou que a maioria é composta de proprietários (83,88%) e, que estavam satisfeitos com as mesmas. Isto pelo fato de não ter que pagar aluguel, justificativa considerada muito válida diante da situação econômica de grande parcela deles. Quanto a origem dos chefes de domicílios, observou-se que 55,52% eram naturais de Santa Maria, e 42,08% de outros municípios. Apenas 2,38% eram originários de outros estados. Desta forma, os migrantes no bairro correspondiam a 44,48% do total dos entrevistados sendo que a maioria deles vieram residir em Santa Maria por questões ligadas ao trabalho. Ao se indagar se gostavam do lugar onde moravam, 89,25% responderam que sim, no entanto, 59,98% mudariam para outro local se pudessem. Grau de convivência no bairro O grau de convivência no bairro foi analisado com base em questões como: Conhece as pessoas do quarteirão? Mora próximo à parentes? Como você classifica sua relação com a vizinhança? Qual o lazer da família nos finais de semana? Considera que existe integração na comunidade? Participa de Associação de Moradores? Os resultados revelaram que 70,74% dos entrevistados moravam próximos a parentes. Este era um dos motivos que fazia com que as pessoas gostassem de morar no local onde viviam. Do total, 88,65% responderam que conheciam as pessoas do quarteirão. Quanto à relação com os vizinhos, 93,73% responderam que era boa e/ou ótima. Quando indagados sobre a existência ou não de integração na comunidade da qual faziam parte, 49,85% dos entrevistados responderam que não havia destacando como motivos principais o individualismo das pessoas e a falta de preocupação com os problemas que diziam respeito à comunidade A participação em associação de moradores é uma forma da pessoa dispor-se a trabalhar com e pelo conjunto. Os resultados mostraram que ela é muito pequena. Do total, somente 64 (19,10%) afirmaram que participavam. Isto demonstrou a falta de espírito de luta na busca por melhores condições de vida e, de certa forma justifica, a existência de tantas carências no bairro. Uma coletividade mais integrada e ativa teria as condições de alterar esta situação. Quanto ao lazer praticado pela família nos finais de semana, os dados mostraram que as modalidades que assumiram maior relevância foram: assistir TV (27,46%), visitar 96 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) parentes (16,11%) e, ficar em casa (13,43%). Na realidade o primeiro e o terceiro são similares. Ambos significam a imobilidade e a segregação. Acredita-se que, a situação de lazer, esteja vinculada à renda das famílias o que não permite que usufruam daquelas formas que demandam despesas extras. Como conseqüência, o lazer não extrapola o meio em que vivem. Esta constatação representa um dado relevante, uma vez que esta dimensão é componente importante da qualidade de vida Apreciação sobre a Infra-estrutura e serviços existentes no bairro A multiplicação de novos espaços ocupados nas periferias faz com que surjam vários problemas ligados a infra-estrutura e aos serviços pois, a tendência geral é de que eles sejam implantados a partir da área central para as periferias. A avaliação que se desenvolveu buscou identificar as condições de infra-estrutura e dos serviços colocados ao alcance dos moradores. Procurou-se também, conhecer a opinião dos entrevistados a respeito dos mesmos. Neste aspecto foram avaliados os serviços de saúde, iluminação pública, energia elétrica, sistema de telefonia, coleta de lixo e comércio. A saúde é considerada um importante indicador da qualidade de vida de uma população. No entanto, nem sempre, todas as pessoas se beneficiam da mesma forma destes serviços a ela vinculados, o que gera satisfação por parte de algumas e insatisfação para outras. De uma maneira geral, a maior parte dos entrevistados (63,88%), buscavam atendimento junto aos postos de saúde municipal localizados em bairros próximos, como os Medianeira, Tomazzetti; ou então, no Hospital Universitário de Santa Maria (6,86%) e no Sus (6,26%). Os resultados mostraram o predomínio da assistência médica gratuita, com um nível de satisfação bem elevado pois, 84,77% dos entrevistados consideravam-se satisfeitos e ou muito satisfeitos com os serviços utilizados. A questão da segurança foi também um aspecto avaliado. Os resultados mostraram que, neste aspecto, a insatisfação é muito grande, pois, 69,05% consideravam-se insatisfeitos e ou, muito insatisfeitos. As razões para esta insatisfação é que raramente passava uma viatura da Brigada Militar para fazer o patrulhamento ou então, só apareciam quando solicitada a sua presença face à uma ocorrência. Quando questionados sobre os problemas que mais afetavam suas seguranças, 44,80 % dos moradores responderam: roubo em residências; 29,22% problemas de drogas; 5,19% afirmaram que não existiam problemas, 1,73% que não sabiam e, os 9,10% restantes, destacaram a existência de outros problemas. Quanto aos serviços de iluminação pública, grande parte dos entrevistados manifestaram-se bastante insatisfeitos, com um percentual de 45,06% de insatisfação. Entre as razões para esta insatisfação estava: a inexistência de iluminação pública em algumas ruas, a grande distância entre uma luminária e outra, a demora na reposição das lâmpadas queimadas ou quebradas e o mau funcionamento das mesmas. Deve-se considerar que a iluminação pública se constitui num elemento de grande relevância para a questão da segurança das pessoas. Um lugar bem iluminado fica menos sujeito à violência do que um lugar carente de iluminação. No que diz respeito aos serviços de energia elétrica e de telefonia existe entre os entrevistados um nível de satisfação bastante elevado, visto que não apresentam grandes Ambientes estudos de Geografia 97 problemas. Relativo a energia elétrica, 73,70% dos entrevistados consideravam-se satisfeitos e ou muito satisfeitos devido os bons serviços prestados pela Cia responsável, ou seja, rapidez com que são executados quando ocorre algum problema e o fato de raramente faltar luz. Com relação aos serviços de telefonia, constatou-se que, 60,50% dos moradores possuíam telefone com predomínio do convencional (68,47 %) e, o nível de satisfação entre eles com os serviços era de 78,31%, como resultado do bom atendimento proporcionado pelas empresas responsáveis. Ao considerar a distribuição espacial dos telefones públicos no bairro, evidenciou-se que eles eram pouco numerosos, não ultrapassando a 20 aparelhos instalados. As atividades comerciais existentes no bairro, são pouco expressivas. O maior destaque envolve os mercados, bares e armazéns. Registrou-se também, a presença de padarias, fruteiras (mercado de frutas), açougues e uma farmácia. Constatou-se que o comércio se restringe aos gêneros de primeira necessidade. Mesmo assim, o nível de satisfação dos entrevistados com este serviço mostrou-se satisfatório com um percentual de 71,32 de satisfeitos. Quando se considerou a questão do saneamento básico no bairro (rede de água, esgoto doméstico e pluvial e, coleta de lixo) constatou-se que o problema mais crítico era o de esgoto. A prova disto é que ele se constituiu numa das principais queixas dos entrevistados. Grande parte do esgoto do bairro não é canalizado, sendo muito freqüente correr a céu aberto, principalmente nas áreas mais pobres. Quando foram consideradas a rede de água e a coleta de lixo, os entrevistados mostraram-se satisfeitos com os serviços. A questão ambiental no bairro Na pesquisa de campo buscou-se também avaliar os problemas ambientais mais relevantes no bairro, visto que, esta questão é um importante critério para se avaliar a qualidade de vida de uma comunidade. Vários pesquisadores trataram deste tema, evidenciando sua importância. Dentre eles, destacaram-se: Sanches e Borja (1993); Geisse e Arenas (1996); Carvalho (1997); Herculano (2000); etc. Ao abordar esta questão, Sanches e Borja (1993) afirmaram que se podia aceitar como premissa que uma boa qualidade ambiental favorece uma melhor qualidade de vida. Para Geisse e Arenas (1996), a qualidade ambiental é importante elemento da qualidade de vida, uma vez que só se pode falar nela quando se convive num ambiente saudável e livre de qualquer tipo de poluição. Neste sentido Carvalho (1997) considerou que existe estreita ligação entre saúde, questão ambiental e qualidade de vida. Herculano (2000), ao tratar do tema, destacou a importância da análise da questão ambiental na avaliação da qualidade de vida, uma vez que a primeira está integrada à segunda. De uma maneira geral, para estes autores, as condições apresentadas pelo meio estão vinculadas aos níveis de saúde e, o conjunto serve como caracterizador da qualidade de vida. Na análise desenvolvida indagou-se sobre os problemas ambientais mais comuns no bairro, segundo a opinião dos entrevistados, bem como a percepção deles acerca destes problemas. Pôde-se constatar que o maior ênfase recaiu sobre aqueles já conhecidos como mais graves no ambiente urbano: presença de esgoto a céu aberto, proliferação de animais e insetos nocivos à saúde, buracos nas ruas e mau cheiro. Quanto a percepção dos entrevistados acerca dos problemas ambientais, constatou-se que, as pessoas que apresentaram 98 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) percepção mais negativa foram aquelas que moravam nas vilas que apresentavam as piores condições de infra-estrutura. Serviços que o poder público tem oferecido à população do bairro Com esta questão, pôde-se conhecer a opinião dos entrevistados sobre aquilo que o governo municipal oferecia à população. A maioria deles, ou seja, 75,22%, respondeu que o poder público não tem oferecido nada ou quase nada. Segundo eles, no bairro há sérios problemas de esgoto, precária iluminação pública, a maioria das ruas não é calçada e aquelas que o são, não são conservadas, e, havia falta de segurança, dentre outros. Também dentre os entrevistados (24,78%), reconheceram que o poder público tem investido em canalização de esgoto, iluminação pública, coleta de lixo, calçamento de ruas, limpeza de bueiros e escolas. Quando se considerou a opinião dos entrevistados com relação aos serviços que poderiam ser prestados pelo poder público, evidenciou-se que aqueles mais desejados eram: implantação da rede de esgoto em todas as ruas, calçamento de todas as ruas, melhoria da iluminação pública e implantação de um posto de saúde no bairro. Estas opiniões totalizaram 82,39%. Relacionamento da população do bairro com o centro da cidade Residir em um bairro não significa nele permanecer segregado. Também o centro de cidades representam áreas de atração. Com esta questão buscou-se identificar as relações que os entrevistados desenvolviam com o centro da cidade e qual era a imagem que eles tinham dele. Constatou-se que 95,52% dos entrevistados freqüentavam o centro da cidade, o que pode ser explicado pelas necessidades pessoais e pelo fato de o centro não estar excessivamente distante. Entre as razões pelo qual freqüentavam o centro da cidade, o maior destaque recaiu nas razões: fazer compras e efetuar pagamentos (50,14%) e para trabalhar (17,91%), sendo que as demais razões assumiram menor importância. Ao se perguntar aos entrevistados o que o centro da cidade representava para eles, foram obtidas respostas muito diversificadas. As que assumiram maior relevância foram: lugar de comércio; opção para fazer compras e pagar contas; centro de prestação de serviços; ideal para passear e, onde se encontrava aquilo que não tinham no bairro. A análise geral das respostas evidenciou que a maioria dos entrevistados visualizava o centro da cidade, dominantemente, como um local de comércio e de prestação de serviços. Na verdade esta tem sido a função principal do centro da cidade de Santa Maria e, é desta forma que a população do bairro o percebe. Considerações finais Através desta pesquisa pôde-se concluir que o processo de ocupação acelerado do Ambientes estudos de Geografia 99 espaço urbano de Santa Maria deu origem a periferias, dentre as quais se encontra o bairro Urlândia, que se caracteriza pela falta de infra-estrutura e de serviços essenciais à vida da população. Esta dinâmica de urbanização tem como efeitos a produção de espaços segregados e degradados, com sérias conseqüências para a qualidade de vida de seus habitantes, que passam a ocupar áreas impróprias para a habitação. Assim, os resultados registrados reforçam os problemas já conhecidos que caracterizam este espaço periférico confirmando os níveis de exclusão e de precariedade a que está submetida uma boa parcela da população, especialmente, quando se tratam das condições de acesso ou não aos serviços públicos e da exposição aos riscos ambientais. De uma maneira geral percebeu-se que, os moradores tinham consciência dos problemas que os afetavam, não escondendo seu descontentamento com a situação. Mesmo assim, constatou-se que um número significativo de entrevistados (89,25%) afirmou gostar do lugar onde viviam, no entanto mais da metade (59,98%) mudaria para outro lugar se pudesse, o que demonstrou uma certa contradição. Convém destacar que, a escolha de um lugar para morar nem sempre significa a vontade efetiva de nele morar. Na maioria das vezes, ela está ligada à condição socioeconômica. Assim, uma vez morando em determinado lugar, gostar ou não dele depende de uma série de fatores: a relação que é estabelecida com a vizinhança, a proximidade dos familiares, o sentimento de segurança, a existência de infra-estrutura e de serviços básicos, etc. Outra questão marcante na análise dos resultados foi a pequena participação dos entrevistados em associação de moradores, o que levou a dedução de que existia pouca motivação e interesse num engajamento em formas de organização coletiva com a finalidade de colaborar e de reivindicar melhorias para o bairro e para as pessoas. Os dados mostraram também que havia falta de integração na comunidade. Isto levava a não participação dos moradores em práticas comunitárias que poderiam beneficiá-los. Assim, a situação de exclusão e precariedade que marca o bairro e que faz com que a qualidade de vida da população não seja boa resulta não apenas das formas de atuação do poder local mas, também, da falta de iniciativas da população. Se ela não se dispõe a participar de ações conjuntas que reforçariam reivindicações a fim de melhorar sua qualidade de vida, torna-se devedora nos projetos de melhorias coletivas. Afim de contemplar a espacialização da qualidade de vida no bairro, apresenta-se como conclusão uma tabela resumo exibindo as vilas que apresentaram os melhores e os piores indicadores de qualidade de vida. Convém salientar que as vilas consideradas como possuidoras dos melhores indicadores foram aquelas que apresentaram percentuais mais elevados nos diversos aspectos considerados, e, como possuidoras dos piores aquelas que apresentaram os percentuais mais baixos. Assim, através dos 22 indicadores apresentados na tabela 1, evidenciou-se que, quanto aos melhores níveis dos diferentes indicadores, as vilas que mais se destacaram foram.: Residencial San Carlos e a área “sem denominação”, que registraram 9 vezes, e Alegria e São Pedro, com 7 vezes. Porém, quando os piores indicadores foram considerados, as vilas Urlândia e Santos é que se destacaram, registrando 8 vezes. Tabela 1 – Vilas do bairro Urlândia que apresentaram os melhores 100 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) e os piores indicadores de qualidade de vida Fonte: Pesquisa de campo Org.: Autor Quando foram considerados os indicadores objetivos, as melhores condições foram encontradas nas vilas Formosa , “sem denominação”, Alegria e Goiânia, enquanto as piores foram observadas nas vilas Urlândia e Santos. Com relação aos indicadores subjetivos, a pesquisa mostrou que os melhores indicadores apareceram no Residencial San Carlos e nas vilas Tropical e sem denominação. Os piores foram registrados nas vilas Alegria e São Pedro. Do ponto de vista objetivo, a análise dos resultados da pesquisa permitiu comprovar Ambientes estudos de Geografia 101 a coerência com a realidade que se conhece do bairro. O mesmo não ocorreu com os indicadores subjetivos, dos quais não se tinha uma projeção prévia dos resultados finais, pelo fato das pessoas perceberem as questões que as envolviam, de forma muito diferenciada. Este procedimento caminhou de uma identificação específica de diferentes variáveis para uma avaliação onde, de forma associada, foram caracterizadas as diferentes vilas. Isto mostrou também os graus de associação entre diferentes variáveis caracterizadoras de qualidade. Qualidade de vida não corresponde à privação ou ao benefício de um indicador, mas, sim a uma conjugação de vários deles. O resultado da pesquisa demonstrou que a qualidade de vida da população do bairro é bastante heterogênea. De uma maneira geral ela pode ser caracterizada como má, principalmente quando são consideradas variáveis como: nível de escolaridade, renda, emprego, condições de infra-estrutura e saneamento básico, problemas ambientais, integração com a comunidade e participação em associações de moradores. Porém, quando as vilas foram analisadas isoladamente, constatou-se que nem todas podiam ser assim caracterizadas, pois existiam algumas que detinham melhores condições do que outras. Para que ocorra melhoria da qualidade de vida das populações que habitam áreas periféricas é necessário que as administrações locais reconheçam a existência delas e assumam suas responsabilidades pelas mesmas. É preciso igualmente que as políticas públicas, sejam elas nacionais, estaduais ou locais, forneçam para estas áreas o mesmo tratamento que é dado para as áreas mais centrais da cidade. Como um aspecto muito relevante, talvez o mais relevante deles consista na tomada de consciência e na busca da real cidadania por parte dos moradores, através do conhecimento adequado da situação no qual vivem e da participação em associações comunitárias buscando aquilo que desejam. Referências ABALERON, C. A. Condicionantes objetivos y percepción subjetiva de calidad de vida en areas centrales y barrios o vecindarios. Revista de Geografia, São Paulo, n. 5/6, p. 103142, 1986/1987. ______; ACEVEDO, S. E; PARONZINI, J. D. Calidad de vida y vivienda precaria em clima frío: Triangulación Metodológica en Bariloche, Argentina. Revista de Geografia, São Paulo, v. 13, p. 51-75, 1996. ALMEIDA, C. A. A qualidade de vida no estado do Rio de Janeiro. Niterói, EDUFF, 1997. 127p. AZZONI, C. A. Quão grande é exagerado? Dinâmica populacional, eficiência econômica e qualidade de vida na cidade de São Paulo. Revista EURE, Santiago, v. 25, n. 76, dec. 1999. BORSDORF, A. 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DESCONSTRUÇÃO DO LUGAR O aterro da praia da frente do centro histórico de São Sebastião (SP) José FRANCISCO Pompeu Figueiredo de CARVALHO [...] o homem jamais pode prever a totalidade de uma ação técnica. A história mostra que toda aplicação técnica, em suas origens, apresenta efeitos (imprevisíveis e secundários) muito mais desastrosos do que a situação anterior ...(ELLUL, 1968, p. 108) Introdução Este trabalho apresenta para discussão o conceito de “desconstrução”, como um instrumento analítico que facilita desvelar formas de trabalhar o espaço. Essa palavra, com recorte físico-espacial, carrega a afirmação de que o espaço está em constante transformação. Não há construção sem destruição. Apresenta como estudo de caso o processo de desconstrução da “praia de São Sebastião”, conhecida como a “praia da frente”, junto ao centro histórico da cidade de São Sebastião, no litoral norte paulista. O tema surge a partir de nossa participação no “Concurso Público Nacional de Idéias para a Implantação de uma Marina e Revitalização Urbana do Centro Histórico da Cidade de São Sebastião”. Apesar da região ser conhecida por nós, foi só com olhar mais atento, e com função precípua de conhecer esse espaço para poder trabalhá-lo, é que fomos a ela e começamos, então, a efetivamente entendê-la. No desenrolar dos trabalhos identificou-se a área, objeto do concurso, como sendo um acrescido de marinha da mesma forma que quase toda a área do porto de São Sebastião. Como o centro de São Sebastião e a área portuária da cidade puderam “ganhar terreno” em tão pouco tempo? Em que condições isso se realizou, e por que o estado de abandono atual desses espaços? Da paisagem ao espaço ou da natureza a natureza segunda O trabalho é, ao mesmo tempo, o elemento formador do homem e transformador da natureza. Por ele, então, passamos do espaço natural para o espaço transformado ou, simplesmente, da paisagem ao espaço. A formação do homem está ligada tanto ao espaço natural quanto ao transformado. 106 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) O trabalho das mãos na paisagem-natureza inaugura a grande caminhada, cada vez mais presente, da “construção”, ao mesmo tempo, do humano e do espaço. Pode-se indagar, na medida em que o que se constrói, ao menos em termos espaciais, nada mais é do que a modificação do espaço existente, se não se trata, então, do que chamamos desconstrução. Somos talhados para a desconstrução espacial e, de tão imbricados estamos com ela, que podemos afirmar não saber fazer nada que não seja desconstruir. Nos parece que a história humana é “feita“ a partir do trabalho incessante do homem no meio ambiente. “Classicamente” o início da História é considerado como sendo a partir de uma ação ou ato simbólico nesse meio, quando se deixa documentado, por ele, o trabalho social. É incorporado ao meio através do papiro, na madeira, à argila, à pedra etc.. Pode-se perguntar porque só agora, pela sua destruição, dá-se conta da importância desse meio ambiente? Com a desconstrução juntamos o meio ambiente ao homem, e vice-versa, ambos na sua interdependência. Na sociedade atual, onde o modo capitalista de produção é dominante, produz-se de tudo e tudo o que se produz, direta ou indiretamente, é espaço. Lefèbvre assim se manifesta: “Produzir, afinal de contas, hoje, não é produzir isto ou aquilo, coisas ou obras, é produzir espaço [...]. A mercadoria (o mercado mundial) ocupará o espaço inteiro” (LEFÈBVRE, 1974, p. 253). Não paramos, então, de produzir espaço. Ele é a grande mercadoria. Nesse sentido representa, sobretudo, um “contrato espacial”, pois está totalmente subjugado na produção de mercadorias a ponto dele próprio tornar-se não só mais uma delas, mas a síntese de toda mercadoria. Se o espaço é a grande mercadoria, a força-de-trabalho que o “esculpe” não poderia deixar de ser a mercadoria por excelência! O trabalho do homem, inicialmente na natureza primeira e em seguida, e por causa dele próprio, num processo contínuo e ininterrupto, criando a natureza segunda, é sinônimo de desconstrução. Cabe assinalar ainda, na desconstrução espacial, o papel importante e fundamental desempenhado pela técnica. As diversas técnicas aí aplicadas podem significar diferentes estágios de complexidade na desconstrução espacial. O conceito de desconstrução A desconstrução espacial pode ser entendida de duas maneiras. Primeiramente como sendo o processo de transformação constante a que o espaço existente está antropicamente submetido - e não poderia ser de outra maneira - seja ele natural ou artificial, e, como outra forma de entendimento, a tarefa ou o esforço de se entender o papel do espaço - ao que chamaríamos de desconstrução espacial também - na análise da evolução e desenvolvimento da humanidade. As duas formas de entendimento da desconstrução se completam, e se somam para formarem um todo maior de preocupação e de possibilidade do conhecimento dos espaços social e natural-transformado. Pode-se dizer que a primeira forma se aproxima mais da compreensão do quotidiano, do espaço físico a nível prático, operativo e instrumental. Já a Ambientes estudos de Geografia 107 outra forma significa um esforço teórico de investigação histórica. Assim, prática e teoria somadas compondo referencial ao espaço e as suas transformações e evolução, ao que podemos chamar de praxis espacial, ou, com a desconstrução, uma prática consciente da intervenção do homem na natureza. O conceito “desconstrução” possui uma grande potencialidade por possibilitar resgatar a totalidade-essência da construção. Ao construir, se destrói uma natureza, natural ou artificial, geralmente, várias vezes desconstruída. A instância da destruição é, no entanto, negligenciada, com pouco peso nas decisões, alienando-se de todas as implicações do processo de construção. A evolução deste rico conceito vai de Marx e Engels à contemporaneidade do filósofo Jacques Derrida, do arquiteto italiano Paolo Portoghesi, do arquiteto catalão Antoni Gaudí e do brasileiro João Filgueiras Lima. Esses três arquitetos, de renome internacional, propõem, claramente, a integração da edificação com o meio ambiente do entorno. Para Marx e Engels (1972) o homem produz (novas) necessidades, como primeiro fato histórico, que são supridas pelo trabalho aplicado na natureza, transformando-a e a ele próprio. Podemos considerar essa “transformação” com o mesmo significado de desconstrução. A própria consciência humana estaria relacionada ao que estava próximo “à mão”, para ser tocada, como já a lembrar o trabalho, quando diz: “Minha consciência é minha relação com aquilo que me rodeia” (MARX; ENGELS, 1972, p. 63, grifado por Marx nos manuscritos). Se toda transformação espacial é, em última análise, desconstrução, podese considerá-la como síntese do espaço em movimento, como evolução, capacitando sua análise, pelas partes que a completam. Entre sociedade e natureza, em desconstrução, as mediações mudam, dialeticamente, na medida que ambos se transformam, se condicionam e interagem. A alienação tende a crescer porque os meios passam a fim e cria-se uma razão instrumental, que passa a ter crescente autonomia relativa. Tende-se a esquecê-los tão logo se satisfaz ao utilizá-los. A mão, ícone do trabalho e da técnica, estende-se com a ferramenta e também com a necessidade de maior conhecimento pela possibilidade de continuar transformando a natureza. Este passa a ser o mais amplo dos meios de se relacionar com o espaço, num processo incessante de desconstrução. O devir é aumentar a capacidade de desconstruir o espaço, pelo uso da técnica, portanto, reduzindo a existência humana a um pragmatismo utilitário. A ferramenta como extensão do corpo aliena-se do mesmo na medida que avança a divisão do trabalho. Fabricam-se ferramentas para uso de outros e apropriação do seu trabalho e mais-trabalho. A ferramenta, o corpo e o espaço passam a ser mediações de exploração entre os homens. Construções e destruições, ou sejam a desconstrução do mundo, têm ônus e bônus distribuídos desigualmente entre os homens. É necessário conscientizar-se da destruição dos espaços, não se omitindo de responsabilidades. Ao se falar de construção fala-se de desconstrução, resgatando a totalidade destruição-construção da ação antrópica com todas as suas vicissitudes. O novo conhecimento espacial que se deseja através do conceito de desconstrução impõe uma nova consciência social. E essa nova consciência pode começar a vir através de uma nova prática espacial. Na produção do espaço destrói-se primeiro para em seguida construir, completando a desconstrução. A desconstrução é o processo completo da intervenção espacial, aí incluído 108 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) também o produto acabado. Dessa forma o conceito de desconstrução é mais amplo que o de construção e devemos considerar, então, que não existe construção, mas sim a desconstrução espacial. Assim a desconstrução, além de abarcar as implicações decorrentes das modificações no espaço previamente existente, contém também os “imperativos” da nova construção e seus impactos atuais e futuros. Nela conseguimos apreender, então, toda a dinâmica da produção espacial. O escopo principal do nosso trabalho é colocar em evidência, pela sua importância e singularidade, a “unidade do homem e da natureza” (MARX; ENGELS, 1972, p. 57), ou a “natureza única” (MARX; ENGELS, 1972; GOMES, 1990), onde o homem se mescla com a natureza e se desenvolve, nas suas necessidades, a partir da desconstrução que ele pratica. O homem precisa ter como objetivo maior, inter-relacionar-se em harmonia com a natureza única, cultural, devendo, portanto, ele próprio praticar, uma “desconstrução mínima”. A questão, então, é saber de que maneira podemos modificar o espaço de tal forma que tenhamos o mínimo de alterações. Aprendemos com a natureza, ela é nosso modelo e guia e temos a tarefa precípua de conservá-la, entendendo as suas leis, pois elas são imutáveis diante da ação humana. A questão da desconstrução espacial O termo desconstrução ajuda a nos tornar conscientes e responsáveis pela “destruição”, pela perda do bem preterido, pelo impacto ambiental e pelo aumento do conhecimento que temos do espaço. Tanto o espaço “natural” quanto o “transformado” vivem ambos em desconstrução permanente. A preocupação com a desconstrução espacial deve existir, inicialmente, não só como postura dos agentes envolvidos, todos buscando a harmonia com o espaço existente, mas como direito de fato da sociedade. Esse pressuposto de ação pode levar a uma mudança qualitativa na projetação espacial, enquanto processo maior, obtido por uma somatória de intervenções portadoras de preocupação com a desconstrução espacial. No fundo o que se advoga é que o interesse nos projetos de intervenção espacial possa vir a partir da própria prática projetual em si, e o que ela pode acarretar em termos de preservação da riqueza estética da paisagem, e não a partir da constatação de erros sucessivos que cometemos ao destruir nossas paisagens. Como num processo dialético, uma sucessão quantitativa de eventos levando a uma mudança qualitativa no ato de projetar. Nós não projetamos a paisagem, até hoje, ou raramente fazemos isso. Ela é fruto de “prolongamentos” pontuais, parciais e sucessivos dos “espaços” que a compõem. Nossa consciência dela se dá em nível mais micro de que macro. A necessidade de uma consciência coletiva da paisagem, e de sua continuidade como garantia de qualidade de vida, nos faz desembocar na desconstrução. Cabe a nós saber aplicar convenientemente na paisagem, uma desconstrução melhor adequada. O novo espaço é ocupado, construído, destruído, transformado, habitado, “salpicado de verde”, sempre trazendo algo de novo e de diferente como o motor das “construções”. O acontecer contínuo entre o existente e o novo, chamamos de espaço desconstruído. Não se trata de novo tipo de espaço, mas de começar a entender o espaço que nos cerca a todos, de uma maneira mais abrangente. A desconstrução então pode ser entendida Ambientes estudos de Geografia 109 como uma forma plena e consciente de “trabalhar o espaço”, superando mesmo a divisão rural-urbana preconizada por Marx e Engels (1972, p. 95). Qualquer quinhão de espaço natural ou artificial a ser transformado deve ser trabalhado a partir de projetos executivos detalhados, de tal sorte que nada, ou quase nada, escape à análise e não se descaracterize o lugar. É fundamental que tenhamos consciência, sobretudo das conseqüências quanto a não conservação do meio ambiente, dos atos que nele praticamos. Sempre se desconstrói o existente. O novo é o espaço da pseudoconcreticidade se o entendermos como o único alavancador do desenvolvimento urbano. Precisamos “destruílo”, enquanto tal, e inaugurarmos a concreticidade do espaço desconstruído. Portanto a desconstrução precisa deixar de ser abstrata ou pseudoconcreta para passar a ser concreta. Pela explicitação da desconstrução, do abstrato ao concreto, como ensejado por Kosik (1995, p. 37). Entre o antigo e o novo podemos ter três formas de intervenção no espaço: reabilitação (sem desconstrução alguma), renovação (com desconstrução mínima) e destruição (com desconstrução máxima). Evitando-se a desconstrução máxima a reabilitação/renovação de espaços estaria presente, mantendo-se parte da história viva do espaço-paisagem do homem. A hipótese que levantamos é que, nas intervenções espaciais, há uma desconstrução muitas vezes, freqüentemente mesmo, alienada, desnecessária e abusiva, normalmente atendendo à rentabilidade econômica, num arranjo espacial duvidoso. Os espaços para serem adaptados devem ser convenientemente planejados e projetados. Nos desenhos, os traços originais do espaço existente devem ser mantidos, como que a marcar e garantir a documentação da evolução espacial, o que vale dizer, não só pouco desconstruir, mas deixando assinalado o que deve permanecer. Os projetos arquitetônicos devem “pousar no solo”, isto é, relacionar-se criativamente com as peculiaridades dos objetos naturais existentes, por exemplo, o verde e a água devem fazer parte e penetrar os novos espaços. Além disso, o ambiente construído resultante deve ter garantido sua organicidade e integração com o entorno. Entendemos a desconstrução do espaço como possibilidade prática, que se nos apresenta, de intervenção espacial com preocupações socialmente engajadas. A cada intervenção cabe a “descoberta” consciente sobre o que mudar e de que maneira fazê-lo, mas deve-se atentar, sobretudo, para o que conservar. O novo espaço deve ser organizado a ponto de garantir uma continuidade sem rupturas absolutas. Assim a desconstrução mínima pode ser entendida como equilíbrio do movimento espacial? Leonardo Boff (2001) num interessante artigo publicado na Folha de S. Paulo, intitulado “Paz como equilíbrio do movimento”, nos faz pensar na dinâmica e metamorfose do espaço. Para ele equilíbrio é a justa medida entre o mais e o menos, [...] é o ótimo relativo. [...] Possui equilíbrio o movimento que se realiza dentro da justa medida e não é excessivo ou insuficiente. A paz é esse ponto de equilíbrio sutil e sempre em construção. [...] A justa medida é a capacidade de usar potencialidades naturais, sociais e pessoais de tal forma que elas possam durar o mais possível e possam, sem perda, se reproduzir. (BOFF, 2001, p.3) Termina seu artigo deixando antever que a crise atual é causada pelo pouco equilíbrio 110 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) e pelo excesso de movimento. As transformações, ou os movimentos incessantes a que o espaço está submetido, a ponto de perder-se a história espacial, são fruto da velocidade de acontecimentos a que nós nos submetemos. O que está mudando, além da velocidade da mudança (LE CORBUSIER , 1972, p. 5 e VIRILIO; LOTRINGER, 1984, p. 49), é o espaço que a acompanha. Destruímos por destruir nossos espaços, mas, obviamente, para ganhar outro uso com o “novo espaço” que se mostra. Muitas vezes deixa-se de discutir se mesmo uma “carcaça” do anterior não merecia ficar de pé. Se o movimento gera a vida a partir de seu equilíbrio, que papel tem o espaço para sua constituição? O espaço, como a matéria e a energia, faz parte intrínseca da vida: sem ele ela não ocorreria. Acreditamos que a desconstrução mínima, isto é, aquela que preserva ao máximo o espaço existente dando suporte à vida que aí se desenrola, numa perspectiva de animação da história social, pode ser entendida como equilíbrio do movimento espacial. E que ela possa “durar o mais possível”. A desconstrução da orla Sebastianense a partir da construção do porto de São Sebastião O processo de urbanização brasileiro é marcado desde os primórdios pela utilização de suas fronteiras-d’água marítimas. O litoral norte do estado de São Paulo não foge a esta regra. O local escolhido para a fundação da cidade de São Sebastião – um pequeno “promontório”, era um ponto estratégico numa fronteira-d’água. Da praia se avistava toda a ilha da frente e a parte norte e boa parte do sul do canal de São Sebastião. Estava abrigada pelo morro do Araçá do vento que sopra intensamente do sul e se defendia contra possíveis invasores. Isso pode ser constatado no trabalho de Almeida (1959) onde se mostra o papel importante do porto para a província, a tal ponto do vilarejo ser alvo de ataques por grupos de piratas. Até a terceira década do século passado a cidade ainda tinha seus traços coloniais preservados, numa imagem bucólica e bela que agradava bastante a todos os visitantes, sobretudo a partir do cenário composto com a ilha da frente, não por acaso chamada de bela. Chama-nos a atenção um fato bastante curioso levantado pelo Relatório da Comissão Geográfica e Geológica (CGG, 1919 ): a rua da praia, em São Sebastião, só possui edificações de frente para o mar, talvez como forma de garantir que nenhum obstáculo dificulte a vista da exuberante paisagem, além do que, era ali que paravam as embarcações. Por outro lado na Ilhabela inúmeros trechos da rua da orla possuem edificações de ambos os lados. O fato, talvez, mais significativo da importância da praia da frente, onde deverá ser feito o dique de contenção do aterro, foi sua influência no traçado das ruas pioneiras, sobretudo as ruas Expedicionários Brasileiros e Antonio Cândido (CGG, 1919, p. 7). As ruas iniciais do povoado tinham seu traçado acompanhando a linha d´água, descrevendo elas também, sinuosidade semelhante: como se elas fossem um prolongamento do movimento e do desenho da água do mar na praia. De um lado, internamente, a concavidade Ambientes estudos de Geografia 111 propiciava o juntamento do povo e do outro, externamente, a convexidade – como que os desafiando pela amplitude e, talvez, pelo desconhecido - os impelia na direção das águas, ao mar (TUAN,1980, p. 131). Ainda hoje, em São Sebastião, sente-se a importância desse “desenho em curva” das ruas, tornando o simples caminhar por elas bastante agradável não só pela expectativa do inesperado visualmente, mas pela ausência de longas perspectivas. Mais adiante, naquele mesmo Relatório, o articulista qualifica a vista da orla da praia “tudo enfeixando o mar, que no centro da paisagem causa a impressão de um grande lago entre montanhas” (CGG, 1919, p. 7). “A praia era muito bonita e chegava até o prédio da cadeia: o processo de assoreamento da praia da cidade começa com a construção que foi feito lá atrás”, como nos disse um habitante local referindo-se as sucessivas obras do porto comercial de São Sebastião. O cenário natural que envolve a área central da cidade merece cuidados especiais pois, pode-se constatar, foi e continua sendo objeto de transformações tanto no mar quanto em terra. Não adianta afirmar que “São Sebastião é um dos lugares mais belos do mundo” (PMSS, 1998), se não há ações que possam sustentar tal atributo e garantir só as transformações mínimas que se fizerem efetivamente necessárias. Desnecessário dizer da importância de se desenvolver cientificamente os conhecimentos espaciais sobre esse lugar. Embora ainda exuberante e bela a paisagem local, a população de São Sebastião lastima hoje sua degradação, sobretudo, junto à área central da cidade. Ainda o Relatório de 1919 mostra que, como não havia um local próprio para atracação de barcos regulares de passageiros, estes fundeavam ao largo do canal (há relato de um muro, longe da costa, que servia de atracadouro) e os passageiros eram transportados nos braços de “carregadores”. Isto demonstra uma relativa satisfação com relação à função portuária, em se tratando de área de porto natural, mas sem cais interligado à terra firme. A região é procurada, inicialmente, pelas suas características geográficas naturais: sua paisagem é significativamente marcante. A aldeia e o porto, talvez para os indígenas, eram entendidos de forma una, mas ampla: porção de terra em pequeno promontório que os impelia ao mar, junto a águas calmas, proteção contra os ventos, proximidade com a ilha, panorama agradável além de situar-se junto a dois cursos d’água. Esse bucolismo o caiçara herda do indígena, ou, melhor dizendo, ele, o caiçara, se forma junto a essa paisagem numa estreita relação com o ambiente. Pode-se afirmar que o mar, a terra e o caiçara são uma só coisa. Ele tem um pé na terra e outro no barco. O início da vila e até as primeiras décadas do século passado, está mais dentro do que chamamos de “desconstrução engajada do espaço natural”. Esse espaço se vale de uma “técnica” que convive perfeitamente com o meio natural. Mas, atualmente, sua zona costeira está totalmente tecnicizada de tal sorte que se descola do espaço natural, atendendo mais às influências externas da economia do que às necessidades locais. Assim, os interesses de acúmulo de capital é que comandam o desenvolvimento local, desfigurando e descaracterizando o espaço do caiçara. O bucolismo de outrora poderia ainda existir, sobretudo se o projeto de fronteirad’água - o porto, cais propriamente dito, pátios e acessos – tivesse seguido procedimentos da desconstrução espacial. Nessa linha de raciocínio a “ponte” de acesso ao cais nunca poderia 112 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ter sido enrocada e, sim, deveria ter usado métodos construtivos que garantissem a livre movimentação das águas e evitando ou minorando a sedimentação de partículas de areia em suspensão. Acreditamos que dessa forma o assoreamento da praia da frente teria sido, se não evitado, no mínimo reduzido a níveis de trabalhabilidade e de convívio satisfatórios. Tal relação com o espaço poderia, assim, ensejar mudanças e transformações elaboradas previamente e que, portanto, fosse do agrado da comunidade. O porto de São Sebastião é antigo e se vale das características geográficas propícias do canal onde está localizado. Com o crescimento e diversificação da demanda portuária esse espaço sofre transformações que produzem maior envolvimento técnico. Diversas obras pequenas são executadas e desaparecem com o tempo, em função de fatores sejam de falta de interesse em consolidá-las ou de conservação das mesmas ou, a nosso ver sobretudo, pela ausência de planejamento efetivo que pudesse garantir ampliações sucessivas, ensejadas não só pelo avanço técnico das embarcações, mas também como resposta técnica e espacial de ampliação de instalações portuárias. Ainda no século XIX o porto de São Sebastião chega a ser mais importante que Santos, talvez pelas características naturais do sítio. A estrada de ferro interligando São Paulo e Rio de Janeiro, e Santos a Jundiaí, vem marcar definitivamente até hoje a predominância do porto de Santos em detrimento do de São Sebastião. A capital do estado e seu porto Santos funcionam como irradiadores para o interland da província dos movimentos de importação/ exportação de mercadorias. Posteriormente inúmeras ligações rodoviárias a partir de São Paulo selaram em definitivo o papel de principal porto do Estado. Apesar dessa preponderância, uma crise do porto de Santos abre a possibilidade de se ampliar o porto de São Sebastião a partir de 1925. Examinando-se um desenho, em perspectiva de vôo de pássaro, e fotos de execução do projeto original do porto de São Sebastião, em 1940 (SVOP, 1941, p. 12 e 116), percebe-se que o que se tinha em mente, era a criação de duas baías delimitadas pelo cais, pelo acesso a ele e pela praia da frente, funcionando como um conjunto agradável a ser utilizado tanto por embarcações quanto por banhistas. Agrega-se, então, ao espaço natural alguns objetos técnicos necessários ao aprimoramento da função portuária, sem, no entanto, propiciar uma desconstrução sensível do espaço local. Tal intenção, acaba por se viabilizar às avessas: no lugar das baías temos uma ampliação portuária através de aterros ao mar. Alarga-se, sobremaneira, a faixa de acesso ao porto através dos acrescidos de marinha, com o intuito não só de se apropriar de área assoreada, cuja formação é causada pela própria obra, mas também de aumentar a área do retroporto. A parte interna do cais passa a ser assoreada exatamente pelo impedimento da livre movimentação das águas e a conseqüente diminuição da energia que é representada pelo acesso enrocado. Apesar da não existência até hoje de estudos mais acurados, é Silva (1975, p. 21) quem vai assinalar, nesse contexto de assoreamento local, a contra-corrente do rio Juqueriquerê. Para evitar o assoreamento no porto São Sebastião, na parte interna do cais, foi construído, então, ao norte, uma ponta enrocada, o que pode ter contribuído, ainda mais, para o aumento do assoreamento da praia da frente. Trata-se, tal ponta, do enrocamento Fonte: SVOP, 1941, p. 71, 12 e 116. O projeto da Comissão dos Portos já previa a desconstrução total da baía do Araçá, com “projeto de desenvolvimento”. Ao sul da planta nota-se a ponta do Araçá, na base do morro do Araçá QUADRO 1 - Porto de São Sebastião: planta do projeto, perspectiva em vôo de pássaro e cópia de foto da execução Ambientes estudos de Geografia 113 114 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) definidor da pequena baía do atracamento das balsas, junto à parte interna do cais original. O projeto inicial do porto se desfigura e inaugura, na sua continuidade, uma política de aterro da orla. Tal política deve ser ratificada e incrementada com a chegada da Petrobras. A chegada da Petrobras A Petrobras foi autorizada a instalar a partir de 1961, na margem oeste do canal de São Sebastião, um terminal de carga e descarga de petróleo e derivados. Na realidade a Petrobras já se encontrava em São Sebastião desde 1957, pelo menos, quando operava transbordo de petróleo, na entrada do canal, de navios grandes para menores que pudessem atracar no porto de Santos. Com o funcionamento do Tebar - Terminal Marítimo Almirante Barroso, ela passa a ter ganho de economia por deixar de pagar duas taxas em portos diferentes, além de se situar numa cidade de menor porte, onde seu mando político pode se desenvolver com maior proeminência. A Petrobras entra, então, para ficar e para dar as cartas! A preponderância da Petrobras pode ser justificada institucionalmente, pois a administração do porto é concessão outorgada pelo governo federal ao estadual, e ainda mais, num período de ditadura militar. Portanto, como organismo federal, suas políticas com relação ao destino do espaço do porto local são “predominantes”. Lembremos que o estado de São Paulo, como poder concedido, deve submeter ao governo federal seus planos de expansão portuária, conforme prescrição legal. Após instalar-se no município passou a ser a mais importante “autoridade” local. Tudo no município gira no seu entorno e nada acontece sem seu aval, pode-se admitir. Alguns prefeitos e vereadores da cidade foram funcionários da Petrobras. O espaço local passa, então, a ser “gerido” por quem mais detinha o poder. O plano de expansão do porto vira refém da Petrobras, da sua areia argilosa do fundo do canal e do produto dos desmanches de morros, para expandir a área física portuária através dos acrescidos de marinha. Não sobra um quinhão sequer de área em terra. Tudo deve ser conseguido ao mar, a um custo proibitivo. Os diversos projetos de expansão do porto, no geral são em acrescidos de marinha. A Petrobras chegou a começar a furar rocha da serra do Mar para a armazenagem de petróleo em São Sebastião (YABIKU, 1994, p. 27), oferecendo as pedras das cavernas para enrocamento de expansão do porto. Apesar desse plano de armazenamento de GLP – gás liquefeito de petróleo não ter ido adiante, fruto de intensa movimentação popular na época, ele encontra-se aprovado pelo Consema (antes da existência da legislação que institui a obrigatoriedade dos Eia-Rima) e representa um “trunfo na manga do colete” da Petrobras. Acredita-se que essa política não deva mudar, pois, até recentemente, no site da Petrobras (2001) veiculado pela internet, há a informação que a companhia ainda pretende armazenar GLP em cavernas na cidade de São Sebastião. Quando a Petrobras anuncia seu desejo de aumento de calado do seu cais, surge o momento que a autoridade portuária não podia “ignorar”. Ambientes estudos de Geografia 115 O aterro da Praia da Frente Em 1973, a Petrobras já tinha dragado a entrada sul do canal. Agora ela necessitava aumentar o calado de dois dos seus berços de atracação de navios no Tebar, PP2 no pier norte e PP3 no pier sul, para, mantendo a profundidade adequada, poder receber petroleiros de última geração. Os berços de atracação a terem seus calados aumentados estão situados ambos no lado oeste da área do cais, local esse de menor profundidade por situar-se em porção mais próxima da borda continental. O Departamento Hidroviário - DH da Secretaria de Transportes do Estado de São Paulo, como autoridade aortuária, há tempos pretendia expandir a área do Porto de São Sebastião, cais e área de retroporto, atendendo a possível aumento de demanda portuária por indústrias do Vale do Paraíba. Para tanto se pensa em aterrar toda a baía do Araçá. Tal ato foi evitado pela Secretaria de Meio Ambiente com base na recém legislação ambiental que instituiu os Eia-Rima (ofício SMA. 581/87 de 17 ago. 1987 do secretário do Meio Ambiente endereçado ao diretor do Departamento Hidroviário da Secretaria de Transportes do Estado). Ao pedido de aterro total da baía, que foi negado pela Secretaria de Meio Ambiente segue-se outro, menos ambicioso, que é aceito em parte, pois nele se deixava de aterrar toda a baía. Parece-nos que, nesse sentido, há um acordo tático entre a Petrobras e o Governo do Estado de São Paulo: a parte do aterro que não se viabiliza na baía do Araçá é compensado com o aterro da praia da frente. Um convênio é assinado pactuando-se direitos e obrigações (5 set. 1988). Em entrevista com Alfredo Mariano Bricks (29 jun. 1999) ele nos informa que as autoridades do porto Dersa – São Sebastião, nome atual do porto de São Sebastião, não estão mais interessadas no crescimento físico da área portuária: “Temos área mais do que o suficiente para o desenvolvimento portuário”. Tal afirmação é importante e faz-nos pensar que, face à magnitude das áreas de aterro, proposta pela autoridade portuária e negada pela Secretaria do Meio Ambiente, sua efetiva utilização como área retroportuária seja um pretexto. Essas afirmações deixam antever que apesar da “insistência” da parte do Governo do Estado de São Paulo para que se concretizassem os aterros com o material da Petrobras, essas novas áreas foram produzidas por interesse próprio da Petrobras. Além disso, em documento recente da Dersa – Desenvolvimento Rodoviário S.A., atual autoridade portuária, há a afirmação de que os aterros em frente à cidade teriam sido executados também por mando da Petrobras. Vejamos: O diretor do DH entrou em contato com a Diretoria da Petrobras e, na época, conseguiu parar o processo de licitação da dragagem, do transporte e lançamento do material. Atrasou o início de serviço em mais de um ano, até reiniciar o processo por parte do Estado, para fazer o aterro e refazer a licitação. Para a Petrobras baixou o custo da dragagem e o porto ganhou área praticamente pronta, sem despesa nenhuma, tendo custos somente com o transporte e espalhamento do material do morro [...] praticamente um terço do valor da obra. Primeiro foi feito o enrocamento e depois começou o lançamento, que foi na área sul do porto e em três áreas em frente à cidade, mais para atender o volume mínimo que a Petrobras precisaria. Teria que haver uma área para receber um mínimo de volume a ser dragado 116 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) QUADRO 2. O aterro da praia da frente: a construção do dique de contenção. A desconstrução máxima e total da praia da frente está quase completa! O episódio não pode ser evitado pela sociedade organizada de São Sebastião, tal a arrogância dos dirigentes da Petrobras e da Dersa. Mas o fato fica mais grave ainda quando sabemos que na área retroportuária havia espaço para absorver todo o material dragado. Fotografia: STÉFANO, R. L., 1999. e, como houve problema com o meio ambiente, de se aterrar a baía toda, a opção foi usar a parte da frente da cidade, mas não para funcionar como área portuária (BRICKS, 1994, grifo nosso). Chega-se a afirmar na época que teria havido uma invenção do retroporto única e exclusivamente para servir como local de bota-fora do material de dragagem do canal, e que o desmanche do morro do Tebar somente foi viabilizado para construir o dique de contenção desse material (MRÓZ, 1987). Considerações finais Foi um choque. Onde há pouco ela estava, já não estava mais. Ou talvez ainda estivesse, mas irreconhecível, lentamente mastigada pelas mandíbulas de um monstro deformante chamado tempo. [...] Tempo Presente ou Tempo Moderno [...]. O choque foi tão terrível que a própria memória do rosto amado parecia estar sendo corroída, a olhos vistos, por varíola, lepra e cupim. Não suportei a visão por mais tempo e fugi daquele lugar, como quem se arrancasse fisicamente de um pesadelo paralisante (PIGNATARI, 1987). As transformações paisagísticas das duas comunidades, indígena e caiçara, sobre o meio natural foram na direção da sua preservação, se comparadas às dos outros atores, inseridas num contexto de reprodução, através da renovação e transformação do ambiente paisagístico. Pode-se afirmar, portanto, que essas comunidades são desconstrutoras naturais Ambientes estudos de Geografia 117 tendo em vista que impactam, mas não degradam o meio ambiente. As investidas na direção de projetos de ações antrópicas, seja para evitar o assoreamento da orla ou para se aprender a conviver com ele, após a consolidação das obras portuárias, como por exemplo a definição de área de mangue com plantio de vegetação junto a foz do córrego do Outeiro, não foram encontradas. Ao contrário, constata-se, além do fraco assoreamento natural causado pela contra-corrente marítima que carrega detritos do rio Juqueriquerê, o assoreamento causado pela ação antrópica das sucessivas obras do porto de São Sebastião, este, sim, significativo. A construção do porto favorece - e mesmo acelera - o assoreamento a partir do “bloqueio” que a ponte de acesso significa para as correntes marítimas. Portanto, o porto é duplamente negativo para a utilização da praia: seja pela existência do acesso a ele, seja pelo assoreamento causado. Ambos causaram o desaparecimento da praia: como se o porto roubasse, aos poucos, a praia da frente! A linha da costa, assim, passa a ter novo desenho, um novo perfil, seja pela ação antrópica propriamente dita da construção do porto (desconstrução direta), seja pelo assoreamento provocado por estas ações (desconstrução indireta). O desorganizado e autoritário processo decisório, liderado pelo Governo do Estado de São Paulo e pela Petrobras, viabilizou o aterro da praia. A população sebastianense e os visitantes da cidade perdem um patrimônio inestimável e insubstituível com a desconstrução total da praia da frente do seu centro histórico. Nas sessões de Audiência Pública (1998) para debate do projeto da Marina, a ser talvez construída na área onde fora a praia da frente, foram trazidos para discussão diversos assuntos, alguns com informações contraditórias, faltando ainda uma avaliação concreta da desconstrução espacial que ocorreu. Na realidade o que prevaleceu foi o pseudo-concreto, para usar a expressão do Kosik. A marina (ou o porto) significa o novo e é esse mesmo novo como pseudo-concreticidade que comanda o processo. A cidade ganhou uma área degradada, que ela não queria, e não sabe como fazer para que os responsáveis arquem com as conseqüências de uma solução efetiva. Referências ALMEIDA, Antonio Paulino. Memória histórica sobre São Sebastião. Revista de História. São Paulo, v.19, p. 1-232, 1959. AUDIÊNCIA pública sobre a idéia da Marina e da revitalização do centro histórico de São Sebastião. São Sebastião, Sindicato dos Petroleiros, 1998. 1 cassete sonoro (6h e meia). BOFF, Leonardo. Paz como equilíbrio do movimento, Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 118 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) QUADRO 3. Vista aérea do conjunto das áreas aterradas na orla de São Sebastião O que fora uma ponte de acesso ao porto, em 1940, hoje é um grande espaço conquistado ao mar sem utilização alguma e desfigurando a cidade. Neste quadro ainda se nota a antiga “linha da praia” como a separar a mancha urbana, dos terrenos acrescidos de marinha. Fonte: PMSS/IAB-SP, Concurso da Marina, 1998. set. 2001. Opinião, Caderno A, p. 3. BRICKS, Alfredo Mariano. Alfredo Mariano Bricks, fiscal das obras do aterro da Autoridade do Porto de São Sebastião: depoimentos [25 set. 1998 e 26 jul. 1999]. Entrevistador José Francisco. São Sebastião, 1998-1999. 2 cassetes sonoros (120 min), estéreo. BRICKS, Alfredo Mariano. Momento histórico: depoimentos, Documentos em Síntese, São Paulo, ano 3, n. 11, p. 46, set. 1994. COMMISSÃO GEOGRÁPHICA E GEOLÓGICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Exploração do Rio Juqueryquerê. 2. ed. São Paulo, 1919. ELLUL, Jacques. A Técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1968. GOMES, Horieste. A Produção do espaço geográfico no capitalismo. São Paulo: Contexto, 1990. Ambientes estudos de Geografia 119 KOSIK, Karel. A Dialética do Concreto. São Paulo, Paz e Terra, 1968. LE CORBUSIER - Manière de penser l’urbanisme. Paris: Éditions Gonthier, 1972. LEFÈBVRE, Henri. La Production de l’Espace, Paris: Éditions Anthropos, 1974. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’ Idéologie Allemande. Paris: Éditions Sociales, 1972. MRÓZ, Marco Antonio. O xeque-mate da “rainha”, Folha de S. Paulo. São Paulo, 26 ago 1987. Caderno Cidades, p.2. PETROBRAS - Petróleo Brasileiro S/A, Transporte e armazenamento [GLP]. Disponível em: <http://www.petrobras.com.br/faq3.htm>; <http://www.petrobras.com.br/portugue/ oportuni/parceria/opopar08.htm> Acesso em: 28 nov. 2001. SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado dos Negócios da Viação e Obras Públicas do Estado de São Paulo. Obras de melhoramentos dos Portos de São Sebastião e Ubatuba. São Paulo, 1941. SÃO SEBASTIÃO. Prefeitura Municipal. Concurso público nacional de idéias para a implantação de uma marina e revitalização do centro histórico da cidade de São Sebastião: Regulamento, termo de referência, programa básico para a marina pública de São Sebastião, fotos da Área, planta cadastral e de localização, adendos 1, 2 e 3 de esclarecimentos aos concorrentes e atas da Comissão Julgadora. São Sebastião, 1998. Convênio com o Instituto de Arquitetos do Brasil. Fotocopiado. SILVA, Armando Corrêa da. O Litoral Norte do Estado de São Paulo: formação de uma região periférica, São Paulo: Instituto de Geografia da USP, 1975. STÉFANO, Roberto Luiz. Roberto Luiz Stégfano, fiscal do serviço do desmonte do morro e da dragagem, engenheiro da Petrobras: depoimento [30 jul. 1999]. Entrevistador José Francisco. São Sebastião, Tebar, 1998. 1 cassete sonoro (60 min), estéreo. TUAN, Yi-Fu. Topofilia, um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. VIRILIO, Paul; LOTRINGER, Sylvere. Guerra Pura, a militarização do cotidiano, São Paulo: Brasiliense, 1984. YABIKU, Luiza. A Cidade e o Porto de São Sebastião. Documentos em Síntese, São Paulo, ano 3, n. 11, p. 24-30, jun. 1994. MODELAGEM DE PARÂMETROS MORFOMÉTRICOS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS EM SISTEMAS DE INFORMAÇÃO GEOGRÁFICA Francisco Roberto Brandão FERREIRA Marcos César FERREIRA Introdução Novas tecnologias desenvolvidas e aperfeiçoadas principalmente após a II guerra mundial, dentre elas, o sensoriamento remoto e o geoprocessamento, permitiram o mapeamento da superfície da terra, até então realizado através de mapas, utilizando imagens totais ou parciais da superfície terrestre. As imagens de satélites têm seu devido valor enquanto representação, pois mostram informações sobre diferentes aspectos do planeta, e assumem papel importante enquanto instrumental técnico na análise de formas e processos que dão a fisionomia da superfície da Terra. Elas constituem tecnologia de fundamental importância para mapeamentos e análises espaço-temporal de processos. Isto é possível, porque se obtêm imagens em tempo cada vez mais curto e com resoluções espaciais que permitem também a análise de maior detalhe. No entanto, a interpretação de imagens, necessita de um conhecimento aprofundado do objeto de análise. Isto não significa dizer que as imagens substituem o trabalho de campo. Associado à interpretação de imagens têm-se também outro instrumental de análise articulado, ao que se denomina geoprocessamento. Dentro da composição da técnica do geoprocessamento incluem-se outros sistemas, que permitem o armazenamento e a manipulação de dados georeferenciados, como os sistemas de informação geográfica (SIG). Estes sistemas permitem o armazenamento de dados espacializados; a elaboração de planos de informações, ou seja, os mapeamentos; a obtenção a partir do cruzamento desses planos de informações em mapeamentos derivados, além da quantificação de área e volume e a formulação de modelos tridimensionais do terreno. Os SIG são concebidos para a coleta, armazenamento e análise de objetos e fenômenos, onde a localização geográfica é característica mais importante para a análise, conforme menciona Tomlin (1990) ao definir tipos de escalas de análises em SIG. Enquanto o tratamento e a análise dos dados referenciados a uma localização geográfica são aptidões relevantes dos SIG, o poder do sistema é mais aparente quando a quantidade de dados envolvida é muito grande para ser processada manualmente. Com o exposto pretende-se atingir neste estudo, uma ampliação da teoria geográfica, onde a técnica seja um instrumental articulado a um método de análise. Sendo assim, este trabalho visa oferecer uma perspectiva de estudo dos aspectos da geomorfologia fluvial, desenvolvendo e testando procedimentos de parâmetros morfométricos de bacias hidrográficas, tendo como principal agente executor, os meios e avanços tecnológicos por quais passam 122 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) as ciências de um modo geral, utilizando para isto, os sistemas de informação geográfica. Revisão da literatura A bacia hidrográfica é entendida como um sistema aberto e complexo, cujo fluxo aparece com uma resposta aos fatores que a controlam e se faz constituir-se, portanto, em um sistema aberto, por estar constantemente trocando matéria e energia com outros sistemas que compõe o seu ambiente. Sendo assim, uma bacia hidrográfica é controlada principalmente pelo fornecimento de matéria e energia dos sistemas externos de seu ambiente, quais sejam: o abiótico, o biótico e o antrópico. Alguns estudos geomorfológicos fluviais evidenciam a maneira determinística com a qual a rede de drenagem desenvolve uma resposta a erodibilidade do material e à força de erosão aplicada sobre a superfície da bacia fluvial. Os padrões de canais fluviais são variados e complexos, ocasionando ao sistema de drenagem uma subdivisão repetidamente a montante em canais cada vez menores. Os tributários de um sistema fluvial que emergem diretamente do subsolo e fluem para conjunção com outros, sem receber antes qualquer tributário, são os chamados curso de primeira ordem, anunciado por Strahler (1964). Outras condições foram apresentadas também por Strahler (1952), como a que ocorresse escoamento suficiente para permitir a erosão do material de sub-superfície da bacia de drenagem. Em conseqüência dessa situação, aflorou a questão das relações determinísticas, até então encobertas pela ausência de critérios mais exigentes no tocante à comprovação de esquemas teóricos. Na medida em que o baixo grau de certeza das relações determinísticas era revelado mediante os resultados das investigações empíricas, chegava-se ao confronto das posturas determinística e probabilística. Por sua vez, os bancos de dados em SIG se preocupam com a modelagem de dados, o qual passa pelas seguintes etapas: identificação dos dados relevantes; coleta de dados sobre fenômenos identificados; correção dos erros introduzidos durante a coleta; espacialização e armazenamento dos dados. A partir do armazenamento desenvolve-se a aplicação desejada, bem como, pode-se alimentar o banco de dados à medida que seja necessário. A realidade colocada em ambiente computacional pode ser um dado geográfico que está contido no espaço, com coordenadas e características que localizam as entidades. Tais entidades não podem ser subdivididas em unidades menores, pois a divisibilidade em componentes distintos se dá apenas em função da escala. Segundo Câmara; Medeiros (1998a), o objeto é a representação física da entidade e, desta maneira, a realidade espacial pode ser descrita por objetos estáticos, ou os geoobjetos e, por campos contínuos, ou os geocampos. Essa descrição se torna primordial, pois dela deriva toda a complexidade de manipulação dos dados espaciais. Segundo Medeiros; Pires (1998), a fase de análise concentra-se principalmente na modelagem de dados e de processos. Desta forma, como afirma Batty; Xie (1994), a Ambientes estudos de Geografia 123 modelagem de processos em SIG se preocupa com a construção de modelos matemáticos que descrevem as operações que envolvem a representação dos dados armazenados e inclui a simulação de fenômenos naturais. A modelagem de processos e a simulação numérica variam de acordo com o domínio da aplicação, extensão e escala do fenômeno observado. Com uma tendência mais hidrológica, Thieken et al (1999) obtiveram resoluções apropriadas de MDT usados para resultados geomorfológicos com entrada de parâmetros para modelos hidrológicos, aplicados para a questão de divisores de bacias hidrográficas por uma rede de canais e pequenas sub-bacias. O estudo revela que, dados de elevação com diferentes resoluções divergem enormemente da paisagem representada, incluindo os parâmetros tais como: declividade, direção de fluxo e rede de canais. A contribuição da terceira dimensão controla a extensão da bacia hidrográfica configurada e determina a densidade de drenagem. A topografia e a geomorfologia foram usadas para explicar diferenças na simulação de escoamento superficial. Moore et al. (1992) descreveram dados de elevações, estrutura de MDT e a análise de dados de modelo digital para a hidrologia, geomorfologia e aplicações biológicas, haja vista a topografia e a captação da bacia hidrográfica terem um maior impacto na hidrologia, na geomorfologia, bem como nos processos biológicos ativos na paisagem. Alguns modelos hidrológicos que fazem uso da representação digital da topografia foram também considerados. Frankenberger et al. (1999) aplicaram um modelo de balanço da água que simula a hidrologia da bacia hidrográfica com a declividade do solo. O modelo combina elevação, solo e paisagem usando os dados em ambiente SIG e produz a distribuição espacial do solo, evapotranspiração, saturação, escoamento superficial e delimitação da bacia hidrográfica. Este modelo foi aplicado numa bacia hidrográfica no estado americano de Nova York, onde fluxos hidrográficos e composição do solo foram comparados aos modelos tradicionalmente aplicados. Ferreira (1997) fez avaliação do uso de MDT na estimativa de parâmetros de enchentes para bacias hidrográficas sem dados hidrológicos disponíveis. Aplicou em 66 bacias situadas no estado de São Paulo e coletou dados sobre vazão média específica anual e dados provenientes do modelo digital de terreno, gerados para as respectivas bacias. Usou a análise de correlação entre os parâmetros hidrológicos e os altimétricos e mostrou que é possível utilizar amplitude altimétrica e o desvio padrão das altitudes do MDT como indicadores de enchentes em bacias desprovidas de dados sobre vazão fluvial. Características gerais da área de estudo A área de estudo possui aproximadamente 200 km² e compreende um conjunto de 20 sub-bacias hidrográficas amostrais pertencente ao alto curso da bacia do rio Corumbataí, a qual drena os municípios de Analândia, Corumbataí e Rio Claro no estado de São Paulo, e está localizada entre os paralelos 22° 05’ e 22° 30’ de latitude sul e, entre os meridianos 47°30’ e 47°50’ de longitude oeste. 124 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Com a calha do rio principal da bacia do alto Corumbataí orientada no sentido geral norte-sul, e com drenagem nas áreas urbanas de Analândia e Corumbataí, esta bacia ocupa terras da chamada depressão periférica paulista, caracterizada pelo predomínio de topografia ondulada e relativamente acidentada com altitude máxima de 1050 metros e mínima de 650 metros, com presenças de colinas amplas e médias, separadas por vales e com predomínio de declividade entre 5% e 20% relacionadas com os relevos ondulados aos forte ondulados (KOFFLER; DAROS, 1993). A bacia do rio Corumbataí ocupa uma área de geologia complexa e está localizada na bacia sedimentar do Paraná, sendo encontradas litologias provenientes do Cenozóico, Mesozóico e do Paleozóico. Essa presença de substrato com diferentes litologias são conseqüências da diversidade de resistência em relação à erosão fluvial. Oliveira; Prado (1984) descrevem os principais solos que ocorrem na região da seguinte maneira: Predomina o tipo Latossolo, ácido e de baixa fertilidade e caracterizado pelo desenvolvimento do perfil pedológico, no entanto, são solos consistentes, formando massa pedológica constituída por sesquióxidos de ferro, argila e outros minerais primários de pouca resistência ao intemperismo e, em geral deficientes em nutrientes devido à baixa atividade das argilas silicatadas e dos óxidos de ferro. Os mesmos autores confirmam que os Latossolos que surgem na bacia apresentam-se sob área de relevo suave ondulado ou plano, com grande profundidade e com forte drenagem interna. Predomina principalmente o Latossolo vermelho-amarelo, vindo em seguida o Latossolo roxo, o qual se apresenta com boa fertilidade. Os solos Litólicos ocupam área em torno de 30% da bacia estudada. São solos que tem como principal característica à pequena espessura de “solum”, inferior a 40 cm e ausência do horizonte diagnóstico de sub-superfície. Esses solos se apresentam em relevo acidentado, o que os tornam quase inviável para a sua utilização agrícola mecanizada, além de serem também bastante limitado para atividade agrícola tradicional. Penteado (1968) afirma que a cobertura vegetal primitiva das matas, que recobriu os solos de terra roxa formados a partir das rochas básicas e os solos podzolizados de siltitos do topo das colinas, foi quase que totalmente modificado e, que também, quase nada mais resta do revestimento natural dos cerrados e campos das partes mais elevadas do relevo tabular em latossolos formados de arenitos. Atualmente se percebe que a paisagem é marcada pela transformação do uso do solo de propriedades agropastoris em agrupamentos de campos de cultivo, pastagem e loteamento de chácaras que se estendem ao longo das rodovias, onde predominam as pastagens, vindo logo a seguir a plantação de cana-de-açúcar, e bem menos significativas, outras plantações que ocupam espaças manchas na região como a silvicultura e a citricultura. O clima da bacia do rio Corumbataí em seu alto curso é do tipo Cwa (conforme classificação climática de Köppen), subtropical, com duas estações bem definidas, isto é, seco no inverno e chuvoso no verão. O período seco estende-se pelos meses de março a setembro com 20% das precipitações locais, correspondendo às médias de 250 mm. O mês de setembro apresenta os mais Ambientes estudos de Geografia 125 elevados valores de precipitação (cerca de 45mm) e os meses mais secos são julho e agosto (com precipitações inferiores a 25mm). Por sua vez, o período chuvoso prolonga-se dos meses de outubro a fevereiro e sofre influência da massa tropical, com 80% das precipitações anuais, onde atingem valores de 1200 mm. Do ponto de vista térmico, a área em estudo apresenta médias entre 18° e 21° C, conforme dados fornecidos pelo DAEE (Departamento de Águas e Energia) nas estações Analândia e Corumbataí. Metodologia Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizou-se aleatoriamente um conjunto de 20 sub-bacias amostrais1 localizadas no alto curso da bacia hidrográfica do rio Corumbataí, nos municípios de Analândia, Corumbataí e Rio Claro no estado de São Paulo. Utilizou-se a toponímia presente na carta topográfica, onde no caso da inexistência desta na carta, atribuiuse o nome da fazenda ou propriedade agrária mais significante inserida no contexto da bacia. Material Como produto de documentação cartográfica foram utilizadas as cartas: topográfica do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) na escala 1:50.000, referente à folha SF-23-Y-A-I-2, quadrícula Corumbataí, ano 1969; geológica do estado de São Paulo da SAA (Secretaria de Agricultura e Abastecimento) na escala 1:50.000, referente à folha SF-23-Y-A-I-2, quadrícula de Corumbataí, ano 1984; pedológica semidetalhada do estado de São Paulo do IAC (Instituto Agronômico de Campinas) na escala 1:100.000, referente à folha SF-23-Y-A-I, quadrícula de São Carlos, ano 1981. Os equipamentos utilizados foram: Sistema de entrada de dados: Software AutoCAD R-14, desenvolvido pela Autodesk Incorporation, ano 1997; Sistema de integração de dados: SIG Idrisi 32, desenvolvido pelo Laboratório da Clark University, ano 1999; Sistema de integração de dados: Statistica for Windows R-6.0, desenvolvido pela StatSoft Incorporation, ano 1996; Sistema de integração de dados Surfer 7.0, desenvolvido por Golden Software Incorporation, ano 1999; Método 1 Relação da toponímia das 20 Sub-bacias amostrais: 1-Pedra Vermelha; 2-Santo Urbano; 3-Do Soares; 4-Das taipas; 5-Ragaso; 6-Emboabas; 7-Monte Alegre; 8-Da Barra; 9-Do Retiro; 10-Da Ponte Funda; 11-Alto Corumbataí; 12-Santa Terezinha; 13-São Francisco; 14-Nova América; 15-Capim Fino; 16-Serrinha de Baixo; 17-Santa Julieta; 18-Da Graminha; 19-Deescaroçador; 20-Cuscuzeiro. 126 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) O primeiro procedimento foi à definição dos parâmetros morfométricos a serem trabalhados, para logo após digitalizar as curvas de nível com eqüidistâncias de 20 metros, os divisores das bacias e a rede de drenagem hierarquizada segundo Strahler (1964) das 20 sub-bacias amostrais. O passo seguinte foi exportar para o SIG Idrisi 32 e processar a metodologia para o cálculo dos parâmetros morfométricos de acordo com as relações algébricas pertinentes a cada parâmetro, conforme a Figura 1, obedecendo aos comandos de módulo, sub-módulo, função e sub-função em ambiente SIG, de acordo com a Figura 2. Figura 1 - Síntese das relações algébricas que definem os parâmetros morfométricos Outra questão que merece comentário, quanto a sua confecção, é o MDT (modelo digital do terreno), que segundo Câmara; Medeiros (1998b) representa quantitativamente as grandezas que variam continuamente no espaço e que descrevem a superfície real, de maneira que todo o conjunto simule de modo ideal o comportamento da superfície original, Ambientes estudos de Geografia 127 e no caso específico deste trabalho está associado a altimetria. Neste caso, foi utilizada como representação do MDT a grade regular, onde a mesma possui uma representação matricial e cada elemento da matriz se associa a um valor numérico. A geração da grade foi realizada através do uso do interpolador de superfície intracontorno do Idrisi 32. Figura 2 - Resumo do procedimento metodológico dos parâmetros morfométricos para a operação de análise espacial no SIG O momento seguinte se caracteriza pela espacialização das sub-bacias hidrográficas na base cartográfica para cada índice morfométrico trabalhado, a partir do banco de dados existente em formato dbf4, cujo mesmo foi processado no SIG Idrisi 32, onde se utilizou a função básica do módulo denominada Database Workshop. A partir de então, desenvolve-se o processo de classificação por agrupamento (cluster 128 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) analysis) no software Statistica for Windows R-6.0 das sub-bacias hidrográficas, processo este que se baseia na identificação dos elementos que estão mais próximos entre si. Desta forma, a partir do momento que se trabalha com distâncias ou valores de similaridade os elementos mais próximos serão aqueles que apresentarem o menor valor, enquanto que na condição de aplicar-se a correlação, os mais próximos serão identificados pelos maiores valores. Resultados Disponibiliza-se aqui os resultados obtidos quanto à questão da produção de mapas através do uso do SIG, onde se evidencia a forma digital para obtenção dos valores dos parâmetros morfométricos trabalhados, exemplificados pela sub-bacia nº 8 denominada “Da Barra”. Antes de qualquer geração de mapas no formato matricial (o que caracteriza os SIG), foi confeccionado o mapa topográfico em formato vetorial, sendo definido cotas altimétricas eqüidistantes de 20 metros, com variação de 600 a 880 metros. Após o processamento da conversão da linha correspondente ao canal principal, do formato vetorial para o formato matricial, foi gerado o mapa do parâmetro morfométrico comprimento do canal principal, onde o mesmo evidencia o trajeto do referido canal. Convém mencionar que para esta aplicação todos os mapas digitais possuem resolução definida de 5 metros. A Tabela 1 mostra os valores extraídos a partir do perímetro da linha do canal principal. Observa-se que junto à categoria 1 tem-se o valor 4270, o que corresponde à quantidade de lados existentes ao longo do perímetro. Aplicando-se a seguinte fórmula: Onde “Npx” corresponde ao número de pixels e “S” a quantidade de lados (sides), obtêm-se então resultado igual a 10665, ou seja, 10.66 km. Convém informar que todas as categorias denominadas pelo número zero que constam nas tabelas 1, 2, 3, 4 e 5 representam porções neutras do objeto de estudo do referido mapa. Tabela 1: Módulo resultado do comprimento do canal principal da sub-bacia n° 8 (da Barra). CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOS VALOR CALCULADO 0 11170 27915 1 4270 10665 Para a determinação do cálculo do parâmetro morfométrico comprimento médio dos canais de cada ordem é necessário que se tenha efetivamente os valores de todos os comprimentos dos canais separados por cada ordem, para daí então, aplicarmos à fórmula Ambientes estudos de Geografia 129 demonstrada no parâmetro anterior. Para a sua definição, utilizou-se o mesmo raciocínio quando do cálculo do comprimento do canal principal, o que originou os canais de 1ª, 2ª e 3ª ordens, respectivamente com os valores calculados de 31240, 8255 e 6845, conforme mostra a Tabela 2. O divisor da bacia origina, além da área da bacia, também o seu perímetro, onde o mesmo vai influenciar diretamente quando da definição dos parâmetros morfométricos índice de circularidade e forma da bacia. Desta forma, o mapa matricial produzido do divisor da sub-bacia n° 8 gerou duas tabelas: a primeira refere-se ao perímetro e, a segunda, a área. Tabela 2: Módulo resultado do comprimento de canais de cada ordem da sub-bacia n° 8 (da Barra). CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOSVALOR CALCULADO 0 1 2 3 25354 12500 3306 2742 63375 31240 8255 6845 A Tabela 3 mostra a definição dos valores do perímetro da sub-bacia n° 8 (da Barra), com sua leitura realizada diretamente por quantidade de lados e valor calculado. Tabela 3: Módulo resultado do perímetro da sub-bacia n° 8 (da Barra) CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOS VALOR CALCULADO 0 1 13192 6292 32970 15720 Por sua vez, a Tabela 4 indica o valor da área da sub-bacia n° 8 (da Barra), extraído diretamente do mapa divisor da bacia, o qual corresponde a 28.11 km². Tabela 4: Módulo resultado da área da sub-bacia n° 8 (da Barra) CATEGORIA KM² 0 45.78 1 28.11 A leitura e o processamento realizado sobre a linha reta em ambiente SIG, orienta para a obtenção do comprimento da sub-bacia a qual se evidencia junto a Tabela 5 com a quantidade de 5368 lados computados, que após a transformação em km, a partir do enten- 130 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) dimento metodológico do referido parâmetro morfométrico, originou o valor calculado de 13410, isto é, 13.41 km. Tabela 5: Módulo resultado do comprimento da sub-bacia n° 8 (da Barra). CATEGORIA QUANTIDADE DE LADOS VALOR CALCULADO 0 1 12268 5368 30660 13410 A partir do armazenamento de dados de altimetria com produção do mapa topográfico foi possível realizar a representação matricial e gerar o MDT da sub-bacia n° 8 (da Barra) com sua respectiva rede de drenagem. Análise de agrupamento Na elaboração e construção de um mapa a partir de dados estatísticos torna-se necessário realizar a divisão de um conjunto de informações em classes ou grupos. A partir da aplicação de técnicas estatísticas, realiza-se o agrupamento dos dados, para daí então, realizar o mapeamento desses dados. Segundo Gerardi; Silva (1981) a seleção de intervalos de classe é de fundamental importância para a análise de dados em grande escala, porque podem ocorrer diversas interpretações dos mesmos dados originais, se por ventura, diferentes intervalos de classe são utilizados, isto é, o autor de um determinado mapa pode influenciar a interpretação de um fenômeno cuja perspectiva espacial é mostrada no mapa. Para este trabalho, realizou-se o agrupamento dos dados das 20 sub-bacias hidrográficas amostrais, levando-se em considerando os critérios de semelhança ou proximidade e reciprocidade, e percebeu-se a seguinte situação: dois grandes blocos se constituíram a partir da seqüência de agrupamento. O primeiro bloco, composto por 9 sub-bacias hidrográficas, ficou assim definido: sub-bacias n°s 20 (Cuscuzeiro), 14 (Nova América), 10 (da Ponte Funda), 18 (da Graminha), 15 (Capim Fino), 19 (Descaroçador), 11 (Alto Corumbataí), 9 (do Retiro) e 8 (da Barra). Por sua vez, o segundo bloco integrado por 11 sub-bacias hidrográficas ficou assim constituído: sub-bacias n°s 6 (Emboabas), 13 (São Francisco), 3 (do Soares), 16 (Serrinha de Baixo), 17 (Santa Julieta), 5 (Ragaso), 7 (Monte Alegre), 2 (Santo Urbano), 12 (Santa Terezinha), 4 (das taipas) e 1 (Pedra Vermelha). Esta distribuição em dois grandes blocos distintos pode ser observada na Figura 3. Figura 3 - Diagrama árvore de ligação das 20 sub-bacias amostrais Ambientes estudos de Geografia 131 Com base na Tabela 6 que mostra a relação da distribuição da perda de detalhes e quantidade de classificação a partir do agrupamento das sub-bacias amostrais e levando- se em consideração as ligações dos elementos feitas pelo corte dos degraus mostrados na Figura 4, definiu-se por 60% de perda de detalhe para as sub-bacias hidrográficas, tendo como conseqüência à formação de 7 classes assim constituídas: Classe 1: Sub-bacia n° 20 (Cuscuzeiro). Classe 2: Sub-bacias n°s 14 (Nova América) e 10 (da Ponte Funda). Classe 3: Sub-bacias n°s 18 (da Graminha) e 15 (Capim Fino). Classe 4: Sub-bacias n°s 19 (Descaroçador), 11 (Alto Corumbataí), 9 (do Retiro) e 8 (da Barra). Classe 5: Sub-bacias n°s 6 (Emboabas), 13 (São Francisco) e 3 (do Soares). Classe 6: Sub-bacias n°s 16 (Serrinha de Baixo), 17 (Santa Julieta), 5 (Ragaso), 7 (Monte Alegre) e 2 (Santo Urbano). Classe 7: Sub-bacias n°s 12 (Santa Terezinha), 4 (das Taipas) e 1 (Pedra Vermelha). Tabela 6: Distribuição da perda de detalhe e quantidade de classes 132 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) a partir do agrupamento das sub-bacias amostrais PERDA DE DETALHE (%) QUANTIDADE DE CLASSES 90 80 70 60 50 40 30 20 2 4 5 7 9 12 17 18 É importante ressaltar que ao se realizar o processo da técnica de classificação, automaticamente generaliza-se às informações, entretanto, quando se trabalha com um número relativamente grande de amostra, essa generalização se torna importante para o processo de agrupamento, tendo apenas a preocupação de se identificar claramente os objetivos, pois é de fundamental importância a escolha do número de classes, que se torna uma função do número de observações, para daí então se aplicar o percentual correto de perda de detalhe para o que se pretende. Figura 4. Diagrama de ligações através de degraus das 20 sub-bacias amostrais Ambientes estudos de Geografia 133 Considerações finais O desenvolvimento de técnicas de geoprocessamento é visto de grande importância para o estudo da morfometria fluvial, pois tais estudos quantitativos fornecem situações concretas de interpretação. De fato, o comportamento hidrológico das rochas, a dissecação do relevo, os grandes grupos de solos, podem ser descritos acirradamente através dos inúmeros índices morfométricos existentes na literatura geomorfológica. É importante também, dar precisão à descrição das redes hidrográficas a fim de que possam ser feitas comparações entre uma rede e outra, e também, de que as variações entre redes possam ser correlacionadas com outras variáveis geográficas. Graças ao desenvolvimento de numerosas técnicas e teorias se consegue a simulação e mesmo a previsão do comportamento das redes de drenagem, onde se incluem variáveis como: comprimento dos canais, densidade de drenagem, freqüência de canais de 1ª ordem, coeficiente de manutenção, amplitude altimétrica, índice de rugosidade e ordem da bacia hidrográfica. Algumas operações, aplicadas a determinadas variáveis, são tão versáteis quanto outras não mencionadas, porém todas oferecem bons resultados. Para isto, existe a percepção do profissional que elabora o trabalho com objetividade e a participação efetiva da natureza. A caracterização do meio físico das sub-bacias hidrográficas constitui importante informação para o planejamento geográfico e geomorfológico da área de estudo. Sendo assim, propicia ao planejador estabelecer critérios de agrupamento de classes, para em seguida, estender e aplicar para toda a área da bacia do rio Corumbataí. Referências BATTY, M.; XIE, Y. 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CONDIÇÕES CLIMÁTICAS E INCIDÊNCIA DE PRAGAS E DOENÇAS NA CULTURA DE CITROS NAS PRINCIPAIS REGIÕES PRODUTORAS DO ESTADO DE SÃO PAULO Adriana Rosa BIERAS Maria Juraci Zani dos SANTOS Introdução O clima é considerado o elemento condicionador da dinâmica do meio ambiente, pois como fornecedor de calor e umidade, tem influência direta tanto nos processos de ordem física, como por exemplo os geomorfológicos e a formação dos solos, quanto nos de ordem biológica como o crescimento, desenvolvimento e distribuição de plantas e animais, assim como na sociedade e em suas diversas atividades, constituindo-se portanto em um recurso essencial para a humanidade. Para a agricultura ele é considerado a variável mais importante, sendo que seus elementos constituintes ( temperatura, precipitação, radiação solar, ventos, pressão atmosférica ) exercem influência sobre todos os estágios da produção agrícola, incluindo a preparação da terra, semeadura, crescimento e desenvolvimento das plantas cultivadas, colheita, armazenagem, transporte e comercialização. Estas influências, quando saem da normalidade, causam as chamadas adversidades climáticas, expressas pela geada, seca, granizo, ventos de alta velocidade, veranicos, as quais provocam efeitos críticos para o desenvolvimento das culturas. Além de estarem sujeitas às variações do clima, que é muito dinâmico em todas as escalas temporais, as plantas estão sujeitas ao ataque de pragas e doenças que são responsáveis por significativas quedas na produção, como afirma Nakano (1991, p.558) que “ uma praga pode comprometer não somente a safra pendente como também as futuras, chegando ao extremo de destruir totalmente uma cultura”. Segundo Ayoade (1986), a natureza periódica ou sazonal das perdas de muitas lavouras sugerem que as condições climáticas desempenham importante papel em relação à incidência de pragas e doenças, pois as epidemias são muitas vezes dependentes do clima, tanto em termos de condições climáticas locais favoráveis ao seu crescimento e desenvolvimento, como em termos de ventos predominantes que ajudam a transportar os germes e esporos para outras áreas. Também alguns vírus causadores de doenças são transmitidos ou difundidos por insetos, de modo que as condições climáticas favoráveis à propagação desses vetores são as que facilitam a transmissão de tais doenças. Neste sentido, considerando a cultura de citros no Estado de São Paulo, procurou-se analisar a influência dos elementos climáticos precipitação, temperatura e umidade relativa na incidência do “ácaro de leprose” (Brevipalpus phoenicis), considerado como uma das 136 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) principais pragas da citricultura, e do “cancro cítrico”, que representa uma das doenças cítricas mais graves na atualidade devido às perdas na produção causadas por ela. De acordo com o Fundo de Defesa da Citricultura (2000a) o Estado de São Paulo é responsável por 87,7% da produção nacional de citros, contando com um parque citrícola composto par mais de 300 municípios, abrangendo uma área aproximada de 6 milhões de hectares, representando o terceiro produto agrícola do Estado em relação à área plantada (INSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA, 2000). Dentro deste contexto os municípios de Bebedouro e Limeira representam dois dos principias produtores cítricos do Estado. Assim, procurou-se estudar o comportamento climático de ambos os municípios, a fim de verificar em qual deles as características climáticas são mais favoráveis à incidência do ácaro da leprose e do cancro cítrico, haja visto estarem localizados em regiões do Estado com características climáticas locais distintas. Para a análise do comportamento climático dos municípios estudados utilizou-se médias mensais de temperatura, precipitação e umidade relativa para a série temporal de 1982 a 1999. Os dados climáticos referentes ao município de Limeira foram fornecidos pela Seção de Climatologia Agrícola do Instituto Agronômico de Campinas, pertencentes à Estação Meteorológica localizada no município de Cordeirópolis sob as coordenadas geográficas 22°32’S e 47°27’W a 638m de altitude. Para Bebedouro, os dados foram fornecidos pela Estação Experimental de Citricultura de Bebedouro ( 20°58’18”S e 48°28’11”W a 600m) e pela Estação Agroclimatológica do Departamento de Ciências Exatas da FCAV / UNESP / Jaboticabal (21°15’22”S e 48°18’58”W a 595m de altitude). Na caracterização climática dos municípios o programa Excel-97 possibilitou o tratamento estatístico dos dados e sua representação gráfica. Para a complementação desta caracterização, empregou-se o cálculo do balanço hídrico, cujo programa computacional foi desenvolvido por Sentelhas et al. (1993), baseado em Thornthwaite; Mather (1955), o qual possibilita conhecer, entre outras variáveis, a disponibilidade de água no solo, indicando os períodos de excedente e deficiência hídrica ao longo do ano. Tendo conhecimento das características climáticas favoráveis à incidência da praga e da doença em questão, passou-se em seguida à comparação com o comportamento dos elementos do clima durante a série temporal considerada, para ambos os municípios, com a finalidade de verificar as condições climáticas mais favoráveis à tais incidências. Caracterização climática dos municípios de Limeira e Bebedouro (SP) Como bem salienta Nimer (1979), a caracterização e a compreensão climática de uma região não depende apenas da circulação atmosférica reinante sobre ela, mas sim da interação desta com os fatores geográficos como latitude, continentalidade/maritimidade e formas de relevo, mostrando assim, a variabilidade espacial do clima regional. Pela sua posição e combinação geral dos fatores geográficos, o Estado de São Paulo é envolvido pelas principais correntes de circulação atmosféricas da América do Sul – as massas de ar Tropical Atlântica, Tropical Continental e Polar Atlântica são complementadas Ambientes estudos de Geografia 137 pela Equatorial Continental oriunda da Amazônia Ocidental. Utilizando-se da classificação climática de Monteiro (1973), representada na figura 1, a qual baseia-se no índice de participação das massas de ar e da articulação destas com as faixas zonais do clima, observa-se que os dois municípios estudados encontram-se inseridos na unidade climática V- CentroNorte , porém, em sub-unidades diferentes que se distinguem pela relação do clima com a morfologia regional. Esta unidade compreende um setor do espaço paulista individualizado pelo ritmo da circulação atmosférica que se justapõe às diversificações de relevo, sendo que sua característica climática fundamental é a existência de um período seco muito nítido onde a freqüência da chuva diminui consideravelmente no sentido dos paralelos, culminado no setor norte, o qual constitui-se a área de inverno mais nitidamente seco do Estado (SANTOS,1996). Pertencendo à região central do Estado, o município de Limeira encontra-se localizado na borda inferior da sub-unidade “a” da classificação de Monteiro (1973), a qual é marcada por reduzida nebulosidade e moderada umidade. O período de outono-inverno, caracteristicamente frio e seco, é marcado pela maior atuação da massa Polar Atlântica condicionando esta época do ano à um tempo estável com temperaturas relativamente baixas, sendo que a chuva e o grau de resfriamento dependem dos mecanismos de pulsação da Frente Polar, que é a responsável por eventuais precipitações ocorridas nesta época. Já no período da primavera-verão a atuação da massa Polar Atlântica é menor, estando deslocada mais para o sul, proporcionando assim o domínio da massa Tropical Atlântica, de característica úmida e quente, caracterizando este período do ano como úmido e com temperatura elevada (MONTEIRO, 1973). Localizado na porção nordeste do Estado, o município de Bebedouro, assim como toda esta região, está sob o domínio do sistema de circulação atmosférica regional marcado pela atuação das massas Tropical Atlântica, Equatorial Continental e Polar Atlântica, caracterizando o tipo de clima da região, considerada a mais seca do Estado. Na classificação de Monteiro (1973) este município encontra-se inserido na sub-unidade “c”, onde a característica principal é a existência de um período seco muito nítido durante o outono-inverno, onde são registrados habitualmente cerca de 100 a 200mm de chuva, concentrados em apenas 10 a 15 dias, sendo que no trimestre de inverno os índices são inferiores à 50mm concentrados em apenas 5 dias, em decorrência da atuação da Frente Polar ser mais fraca nesta região do Estado. O período da primavera-verão é marcado pela atuação da massa Tropical Atlântica oriunda do leste e nordeste do Estado, de característica quente e úmida, e da massa Equatorial Continental oriunda de ondas de noroeste, proporcionando tempo quente e chuvas freqüentes durante sua atuação; assim, este período do ano é marcado por temperaturas elevadas e por cerca de 70 a 80% das chuvas caídas na região, cujos índices são, inclusive, maiores do que os registrados nas outras duas sub-unidades da unidade climática V – Centro-Norte. 138 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Figura 1 – Esquema representativo das feições climáticas individualizadas no território paulista dentro das células climáticas e das articulações destas nas faixas zonais (Seg. MONTEIRO, 1973) Ambientes estudos de Geografia 139 Cancro cítrico e ácaro da Leprose O cancro cítrico foi detectado pela primeira vez no Brasil em 1957, no município paulista de Presidente Prudente, trazido pela importação de material vegetal contaminado vindo da Ásia. Constitui-se numa doença causada pela bactéria Xanthomonas axonopodis pv. citri , que ataca ramos, folhas e frutos provocando lesões parecidas com verrugas, as quais impedem o crescimento adequado da planta. A bactéria penetra na planta através de aberturas naturais existentes em seu tecido e, principalmente, através de ferimentos provocados por materiais utilizados na colheita como escadas e caixas, o que faz do homem o seu maior agente de disseminação. Até o momento é uma doença ainda sem cura, sendo que a única forma de combatêla é através da erradicação das plantas contaminadas o que, evidentemente, afeta de forma negativa o volume da produção citrícola. Neste sentido, a prevenção é a melhor forma de impedir que a doença ataque um pomar, sendo esta baseada principalmente na inspeção constante e periódica das áreas cultivadas, no uso de manejos agrícolas que garantam a sanidade destas áreas, e na desinfecção de todo material de colheita, a fim de evitar a transmissão da doença de um pomar para outro. As condições climáticas favoráveis à proliferação da bactéria causadora do cancro cítrico são altas temperaturas associadas à presença de umidade. Por isso os cuidados com a prevenção devem ser redobrados a partir da primavera, quando tais condições passam a predominar. Melo e Antunes (1979) apresentaram um zoneamento climático visando a exclusão do cancro cítrico no Estado de São Paulo baseado nos parâmetros temperatura e precipitação, como sendo os dois principais fatores que condicionam o desenvolvimento da doença. Assim, a umidade foi representada através da deficiência hídrica (Da), que indica se as chuvas foram suficientes para atender à demanda hídrica da planta ou se houve falta ou excesso. Quando Da =0mm as condições de umidade são consideradas ótimas para o desenvolvimento da doença, pois não há falta de água; com Da entre 0 e 60mm as condições hídricas são favoráveis ao desenvolvimento do cancro cítrico; com Da entre 60 e 200mm há restrições para o desenvolvimento da doença, pois já começa a tornar-se uma deficiência elevada; e com Da acima de 200mm as condições de umidade são desfavoráveis ao desenvolvimento da doença e também à própria cultura de citros. Em relação à temperatura, duas variáveis são consideradas pelo zoneamento: a temperatura média anual (Ta) e a temperatura média do período chuvoso (T 10-3 ), correspondente aos meses de outubro à março. Adotou-se Ta = 20°C como limite de temperatura abaixo da qual torna-se difícil o desenvolvimento da bactéria causadora da doença. As temperaturas favoráveis à ela estão entre 25° e 30°C, sendo indispensável a existência simultânea de umidade favorável, por isso foi adotado o cálculo da temperatura média do período chuvoso. A década de 90 foi marcada por uma intensificação no número de focos de cancro cítrico no estado de São Paulo, principalmente na região noroeste, sendo o ano de 1999 o que registrou a maior incidência da doença até então. De acordo com as estatísticas do Fundecitrus (2000a) foram registrados 4180 focos da doença em 132 municípios, sendo atingidas e erradicadas cerca de 1milhão e 800 mil plantas, o que implicou em grande prejuízo para 140 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) os citricultores e, num âmbito geral, em queda no volume da produção, pois o replantio em áreas erradicadas é proibido durante o período de dois anos a fim de se evitar a ressurgência da doença; sem contar que um pomar começa a produzir frutos a partir do terceiro ano após o plantio. Um novo levantamento realizado no ano seguinte mostrou a diminuição de mais de 50% da incidência da doença apesar de novos focos terem sido encontrados. A região noroeste do Estado, embora ainda sendo a região mais atingida pela doença, contou com apenas 1,65% de talhões contaminados contra 4,30% em 1999. Os índices mais baixos foram registrados nas regiões norte (0,12%) e sul onde nenhum caso foi registrado. A importância em estudar o ácaro da leprose Brevipalpus phoenicis (Geijskes, 1939) consiste no fato deste ser considerado uma praga-chave, ou seja, uma praga perene na citricultura, e por ser o transmissor do vírus causador da leprose, a qual consiste numa grave doença cítrica que provoca queda prematura de folhas e frutos, além da perda de peso da ordem de 5 a 8 gr/fruto, implicando em redução drástica da produção e prejuízos para a comercialização da fruta, uma vez que esta é feita com base no peso. A única forma de se evitar e combater a leprose é através da eliminação de seu vetor, por isso, de acordo com o FUNDECITRUS (2000b), o ácaro da leprose é uma das pragas que mais tem contribuído para o aumento no custo da produção citrícola, estimando-se que mais de US$ 70 milhões são gastos todos os anos na compra de acaricidas. De acordo com Oliveira (1986), o ácaro Brevipalpus phoenicis (Geijskes, 1939) foi descrito pela primeira vez na Holanda em 1939, porém, acha-se distribuído por diversos países, principalmente nos tropicais, sendo sua constatação mais extrema ao norte na Holanda, e ao sul na Argentina. Pertencente à família Tenuipalpidae, ele apresenta uma morfologia achatada, quatro pares de pernas e coloração avermelhada com manchas escuras no dorso, com o adulto medindo em torno de 0,280mm de comprimento e 0,128mm de largura. Durante o seu ciclo biológico passa pelas fases de ovo, larva, protoninfa, deutoninfa e adulto, sendo que sua reprodução se dá principalmente de forma assexuada, por partenogênese, ou seja, a fêmea realiza a postura dos ovos que dão origem à novas formas sem a necessidade do macho. O ácaro Brevipalpus phoenicis (Geijskes, 1939) é polífago, quer dizer, alimentase, além dos citros, de diferentes espécies vegetais tanto cultivadas como florestais e em ervas daninhas. Nas plantas cítricas ele se abriga preferivelmente em frutos, principalmente nos localizados no interior da planta, buscando pequenas reentrâncias onde tenta se proteger de inimigos naturais e de pulverizações para seu controle. Segundo Gillham (1968), Smith (1975) e Reis e Souza (1986) o elemento climático temperatura exerce influência principalmente em relação à duração do ciclo de vida havendo, na grande maioria dos casos, uma relação direta entre o aumento da temperatura e diminuição do período de duração do ciclo de vida de ácaros e insetos. No caso do ácaro da leprose, um estudo realizado por Chiavegato (1986) sob temperatura de 20°C e 30°C mostrou que a temperatura mais elevada favorece o desenvolvimento mais rápido do ácaro em todas as fases de seu ciclo biológico, nestas condições térmicas o período de incubação do ovo apresenta duração média de 5,2 dias a 30°C contra 16,3 dias a 20°C, sendo que o ciclo completo ocorre em 14,3 dias a 30°C contra 43,4 dias a 20°C. Constatou-se também uma duração mais curta do ciclo de vida do ácaro quando este se desenvolve sobre o fruto Ambientes estudos de Geografia 141 do que sobre a folha. Apesar do ácaro da leprose estar presente nos pomares paulistas durante todo o ano, é no inverno que ocorrem os maiores picos populacionais, devido às condições de baixa umidade, características deste período do ano. Oliveira (1986) estudando a flutuação populacional deste ácaro em citros demonstrou que os níveis populacionais elevam-se a partir dos meses de março-abril, período em que normalmente começam a diminuir as precipitações, atingindo os níveis mais altos a partir de julho, com o máximo nos meses de setembro-outubro, decrescendo gradativamente com o início das chuvas. A disseminação do ácaro da leprose se dá através de três formas principais: aquisição de mudas infestadas, trânsito de material de colheita e de veículos nos pomares e através de ventos de mais de 60km/hora. Seu controle se dá de forma direta através da aplicação de acaricida, porém, outras medidas auxiliares devem ser adotadas a fim de reduzir a infestação e a disseminação do ácaro, tais como: eliminação de plantas hospedeiras, evitar plantio intercalar, poda e erradicação de plantas doentes, uso de cerca-viva e quebra-ventos, e principalmente a inspeção periódica dos pomar. Comportamento climático do município de Bebedouro (SP) Com relação à temperatura, a média registrada para o período estudado foi de 23,1°C, sendo os anos de 1994-99 que registraram as temperaturas mais elevadas da série. O comportamento das médias anuais apresentou-se relativamente constante, com maior oscilação durante os anos de 1989 a 94 (Figura 2). Quanto ao comportamento mensal, o mês de fevereiro registra as temperaturas mais altas, média de 25,2°C, e julho as menos elevadas com média de 19,7°C (Figura 3). Tal distribuição evidencia bem o regime térmico predominante nesta região, com média na primavera-verão de 24,9°C e inverno pouco rigoroso com média de 20,5°C. Figura 2 – Temperatura média anual do município de Bebedouro (SP) para os anos de 1982 a 1999 ºC 142 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Figura 3 – Temperatura média mensal do município de Bebedouro (SP) para os anos de 1982 a 1999 ºC No que diz respeito à influência da temperatura na incidência do ácaro da leprose, a literatura mostra que esta incidência está mais associada ao fator umidade do que ao fator temperatura. Com relação ao cancro cítrico, comparando com as exigências térmicas da bactéria causadora da doença (Xantomonas axonopodis pv. citri) a qual tem seu desenvolvimento favorecido durante a primavera-verão sob temperaturas entre 25-30°C e concomitante presença de umidade, verificou-se que tais condições são registradas em Bebedouro durante o primeiro e último trimestre do ano apresentando, portanto, condições térmicas favoráveis ao desenvolvimento da doença. Com relação à variável climática precipitação, durante a série temporal foi registrada precipitação média de 1497,6 mm, sendo o ano de 1983 o mais chuvoso com total anual de 2367,9 mm, e o ano de 1987 o que registrou menor índice pluviométrico da série, 1108,2 mm. Dos dezoito anos de observação, onze registraram precipitação abaixo da média, sendo que destes onze, seis ocorreram somente na década de 90 (1993-97 e 1999), o que pode ser observado na figura 4. As precipitações mais altas da série ocorridas respectivamente nos anos de 1983, 1992, 1982 e 1993 estando associadas à ocorrência, em tais anos, do fenômeno El Niño, o qual provoca aumento no índice pluviométrico devido às mudanças na circulação atmosférica geradas pelo aquecimento das águas oceânicas. A distribuição mensal da precipitação, caracteriza bem o regime climático descrito por Monteiro (1973) predominante nesta região do Estado, onde há a ocorrência de um período seco muito nítido durante o outono-inverno. A soma das médias mensais da precipitação deste período é de 222,9 mm, ou seja, menor que a média dos meses de janeiro (280,2 mm) e fevereiro (240,2 mm) considerados como os mais chuvosos da série, respectivamente. Observando o balanço hídrico calculado para o município de Bebedouro (Figura 5), constata-se um acentuado período de deficiência hídrica que vai do mês de abril à setembro totalizando 76,9 mm, sendo que o armazenamento mensal de água no solo ficou abaixo da capacidade praticamente o ano todo ( abril à novembro), com armazenamento mais baixo registrado no mês de setembro (21,0 mm). Ambientes estudos de Geografia 143 Figura 4 – Precipitação anual do município de Bebedouro (SP) para os anos de 1982 a 1999 Figura 5 – Representação do balanço hídrico no município de Bebedouro (SP) para os anos de 1982 a 1999 Com relação à umidade relativa, a média anual registrada para a série foi de 70%, considerado um índice médio de umidade, de acordo com Pedelaborde (1980). O ano de 1983 registrou a umidade relativa média anual mais alta da série ( 77%) e o ano de 1994 a mais baixa (65%). Dos quinze anos de observação, sete apresentaram umidade relativa acima da média, sete abaixo e um ano coincidiu com a média, podendo dizer que esta variável climática apresentou uma distribuição equilibrada ao longo da série (Figura 6). Chama a atenção os altos índices registrados nos anos de 1982 (74%) e 1983 (77%) em relação aos demais, explicados pela ocorrência do fenômeno El Niño, o qual provoca aumento da precipitação, exercendo influência positiva sobre a umidade relativa. Quanto à análise mensal desta variável, o mês de janeiro registra a média mensal mais alta do ano (80%) e 144 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) agosto a mais baixa (55%). Ao longo do ano as médias mensais mais altas concentram-se durante o verão e outono, com os meses de junho à novembro representando um período mais seco (Figura 7). Figura 6 – Umidade relativa média anual do município de Bebedouro (SP) para os anos de 1982 a 1999 Figura 7 – Umidade relativa média mensal do município de Bebedouro (SP) para os anos de 1982 a 1999 Assim, o comportamento da precipitação e da umidade relativa em Bebedouro mostrase favorável à incidência do ácaro da leprose o qual, alcança níveis populacionais mais altos a partir do inverno, com picos durante os meses de julho a outubro, quando a quantidade de precipitação é bem reduzida em relação aos demais meses. Com relação ao cancro cítrico, de acordo com o zoneamento climático de Melo e Antunes (1979), o comportamento hídri- Ambientes estudos de Geografia 145 co de Bebedouro apresenta-se pouco favorável ao desenvolvimento da bactéria causadora da doença, enquadrando-se na faixa de deficiência hídrica entre 60 a 200mm, considerada relativamente alta, apresentando restrições ao desenvolvimento da doença. Comportamento climático do município de Limeira (SP) Durante a série temporal considerada o município registrou temperatura média anual de 21,2°C (1,9°C mais baixa que a média de Bebedouro), sendo o ano de 1984 o que apresentou a média mais alta 21,9°C e 1989 a menos elevada 20,4°C. De um modo geral, o comportamento das médias anuais ao longo da série mostrou-se relativamente pouco variável, podendo ser destacados dois períodos distintos: o primeiro referente aos anos de 1989 a 93, onde todas as temperaturas registradas ficaram abaixo da média da série; e outro referente aos anos subseqüentes onde, no geral, foram registradas as temperaturas mais altas da série, ficando todas acima da média (Figura 8). Com relação ao comportamento mensal da temperatura, os meses mais quentes da série foram fevereiro 24°C e janeiro 23,9°C, sendo o mês de junho o que registrou a média menos elevada 17,6°C. As temperaturas mais baixas predominantes no período do ºC outono-inverno são decorrentes da maior atuação da massa Polar Atlântica, nesta época do ano (Figura 9). ºC 146 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Figura 8 – Temperatura média anual do município de Limeira (SP) para os anos de 1982 a 1999 Figura 9 – Temperatura média mensal do município de Limeira (SP) para os anos de 1982 a 1999 Na análise da variável climática precipitação, a média registrada no município foi de 1468,2 mm, sendo o ano de 1983 o mais chuvoso da série com total de 2286,7 mm, e o ano de 1984 o menos chuvoso registrando 1046,7 mm. A distribuição dos totais anuais (Figura 10) mostra que, dos dezoito anos considerados, doze registraram precipitação abaixo do total médio e seis acima; destes seis, quatro foram durante a década de 90. Comportamento semelhante também foi observado para o município de Bebedouro, onde mais da metade dos anos apresentaram precipitação abaixo da média, porém, a maioria deles durante a década de 90. Com relação à distribuição mensal da precipitação, as médias mais altas foram registradas no primeiro e no último trimestre do ano, sendo o mês de janeiro o mais chuvoso com média de 252,4 mm. De abril à setembro, durante o outono-inverno, as médias mensais são mais baixas, sendo o mês de junho o que registrou menor quantidade de chuva no ano, 26,3 mm. Figura 10 – Precipitação anual do município de Limeira (SP) para os anos de 1982 a 1999 O balanço hídrico calculado para Limeira (Figura 11) registrou deficiência hídrica em apenas dois meses do ano (julho e agosto) perfazendo um total de 14,6 mm, sendo que o armazenamento mensal de água no solo ficou abaixo da capacidade durante os meses de julho à agosto, com armazenamento mais baixo registrado neste último mês (55,24 mm). Considerando a variável climática umidade relativa, durante a série temporal analisada, registrou-se média anual de 74,7%. A média mais baixa ocorreu no ano de 1989 (65,4%) e a mais alta em 1998 (81,6%). Pelo comportamento das médias anuais pode-se dizer que, no geral, a década de 80 apresentou umidade relativa média mais baixa que a década de 90, 71,5% contra 77,3% respectivamente (Figura 12). Quanto ao comportamento das médias mensais (Figura 13) observou-se que estas apresentaram-se mais baixas durante os meses Ambientes estudos de Geografia 147 de julho a novembro com média para estes meses de 70,4%, sendo a umidade relativa média mais baixa registrada no mês de agosto (67,9%). É durante este período do ano que ocorre o aumento da população do ácaro da leprose, devido às condições de precipitação e umidade relativa reduzidas. Considerando a 148 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) disponibilidade hídrica anual, Limeira apresenta condições favoráveis ao cancro cítrico em decorrência da baixa deficiência hídrica total anual registrada. Figura 11 – Representação do balanço hídrico do município de Limeira (SP) para os anos de 1982 a 1999 Figura 12 – Umidade relativa média anual do município de Limeira (SP) para os anos de 1982 a 1999 Figura 13 – Umidade relativa média mensal do município de Limeira (SP) para os anos de 1982 a 1999 Considerações finais No contexto geral, com relação à temperatura, em ambos os municípios a década de 90 registrou as temperaturas mais elevadas da série, sendo que o período de 1989 a 94 foi o que apresentou a maior oscilação em relação às médias anuais, e em Limeira foi o período das mais baixas temperaturas da série. Dos dezoito anos correspondentes à série temporal analisada, doze registraram precipitação abaixo da média, nos dois municípios. Em Limeira a década de 90 apresentou-se mais chuvosa que a de 80, ocorrendo o inverso para o município de Bebedouro, onde a década de 80 foi mais chuvosa. A distribuição anual da umidade relativa ao longo da série temporal apresentou-se mais equilibrada no município de Bebedouro. Em Limeira a década de 80 registrou umidade relativa mais baixa que a de 90. Considerando o comportamento mensal destas variáveis climáticas para os dois Ambientes estudos de Geografia 149 municípios, elas expressam bem o regime climático predominante em cada região descrito por Monteiro (1973). Apesar da estação seca corresponder ao mesmo período do ano para ambos, em Limeira ela é menos acentuada que em Bebedouro. Sendo assim, em relação ao ácaro da leprose, sabe-se que a presença de uma estação seca durante o inverno em ambos os municípios é propícia à sua incidência, porém, no município de Bebedouro esta característica climática é mais acentuada, tanto em relação à umidade relativa mais baixa quanto à quantidade de precipitação (que em alguns meses chega a ser ausente) sendo, portanto, mais favorável à incidência desta praga do que o município de Limeira. Da mesma forma, com relação ao cancro cítrico, comparando suas exigências climáticas com as características climáticas dos municípios estudados, pode-se dizer que Bebedouro é mais favorável à sua incidência do que Limeira pois, mesmo apresentando deficiência hídrica anual desfavorável, a temperatura registrada no período chuvosos é elevada, representando assim as condições ideais para o desenvolvimento da doença. É importante salientar que tendo ou não condições ambientais favoráveis à estas ou à outras pragas e doenças, a sanidade do pomar depende também da adoção de práticas de manejo que proporcionem a limpeza das áreas cultivadas tais como: capinas, apanha de frutos caídos, corte e destruição dos despojos da planta, entre outras, gerando assim condições para um bom desenvolvimento da cultura e proporcionando, ao mesmo tempo, condições adversas ao ciclo de vida de pragas e doenças. Aliado à isso, a inspeção constante do pomar é importantíssima para garantir sua sanidade, permitindo que as medidas de controle sejam tomadas rapidamente, antes do avanço da incidência. O fato das condições climáticas exercerem papel significativo na incidência de pragas, tanto em relação ao seu desenvolvimento quanto à sua disseminação, faz com que o clima seja considerado um elemento importante na ajuda ao controle fitossanitário. Como salienta Gillham (1968) e Ayoade (1986), o conhecimento do microclima de uma lavoura é fundamental no controle de pragas e doenças, pois através dele pode-se aplicar práticas agrícolas que ofereçam um ambiente desfavorável à elas. O conhecimento das características climáticas de uma localidade também auxilia na previsão de tais incidências, como mostra Smith (1975) citando métodos de previsão de doenças baseados em dados de temperatura e umidade. Neste sentido, os estudos sobre comportamento climático e sua influência na agricultura podem trazer importantes contribuições para a previsão e conseqüente prevenção da incidência de pragas e doenças agrícolas, representando campo aberto e amplo para novas pesquisas. Referências AYOADE, J. O. Introdução à Climatologia para os Trópicos. Tradução Maria Juraci Zani dos Santos. São Paulo: Difel. 1986. CHIAVEGATO, L. G. Biologia do ácaro Brevipalpus phoenicis em citros. Pesquisa Agropecuária Brasileira. 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No que chamou de “significado fraco”, a ideologia se refere aos sistemas de crenças políticas, ou seja: “um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos” (BOBBIO et al, 1992, p.585). Ao seu turno, o “significado forte” tem sua origem no conceito de ideologia proposto por Marx, onde se procura expressar uma falsa consciência das relações de domínio entre as classes. Se no primeiro significado a ideologia aparece como um conceito “neutro”, que prescinde do caráter eventual e mistificante das crenças políticas, agora já tem a conotação negativa, mostrando precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política. É o próprio Bobbio et al (1992, p.585-593) quem atenta para a evolução que o “significado forte” de ideologia teve, propondo a reformulação do conceito marxista de falsa consciência e do nexo entre falsidade e função social da ideologia, que nela está presente. O entendimento da “falsidade” da ideologia, como uma “falsa representação”, implica na aceitação de que uma crença ideológica é falsa porque não corresponde aos fatos. É necessário que se distinga, portanto, o fenômeno objetivo concreto da forma sob a qual o percebemos. Esta idéia está presente também em Marx e Engels (1989, p.21), quando afirmam que: Não partimos do que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital (MARX E ENGELS, 1989, p.21). Esta formulação evidencia que as imagens e as representações que os homens fazem da situação social e de si próprios são determinadas pelo processo real da vida em que operam. E, por outro lado, evidencia também uma falsa representação que não corresponde à realidade. No que diz respeito ao espaço urbano, a ideologia enquanto falsa representação 1 Tese de doutorado orientada pela Profª Drª Silvana Maria Pintaudi 152 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) está presente nas concepções acerca da realidade social, que são transpostas para as formas produzidas, e as acompanham de modo a agir sobre a representação que delas se faz. É preciso reconhecer que não se trata de um propósito explícito das formas, mas sim de um resultado do processo de produção determinado por relações de produção específicas. Neste sentido, as representações que povoam as obras humanas não são sempre o resultado da intenção explícita da sua mente mas, na maioria das vezes, espelham mesmo as representações que os homens fazem de si e da situação social em que vivem na sociedade. Com relação à produção simbólica, que em muito se aproxima da produção do espaço urbano no que diz respeito às formas, sobretudo às formas arquitetônicas, ainda que não se manifeste diretamente sobre este tema, a análise que Bordieu (1992) apresenta é bastante elucidativa do papel da ideologia. Já Miceli (1992), na própria introdução da obra de Bordieu (1992), esclarece este papel. Partindo da noção de prática em geral, no sentido que lhe atribuiu Althusser (1966, apud MICELI, 1992), ou seja, todo processo de transformação de uma determinada matéria-prima em um outro produto, também específico, ocorre por intermédio de um determinado trabalho humano que se utiliza de determinados meios de produção. Seguindo, a prática política passa a ser entendida como o processo de transformação de relações sociais dadas, em novas relações sociais produzidas pelo emprego de certos instrumentos políticos. Por outro lado, a prática ideológica seria a transformação de uma “consciência”, em uma nova “consciência” produzida mediante a reflexão da consciência sobre si mesma. O relacionamento entre a prática política e a prática ideológica será feito por intermédio do discurso que, nessa direção, constitui o instrumento de expressão e transformação da prática política, enquanto as ideologias seriam as formas de produção política. Se a produção é sempre uma produção para alguém, então é lícito dizer, no entendimento althusseriano, que a demanda de produção que provém das relações sociais será determinante não só do produto, mas também do próprio modo pelo qual o produto será consumido. A prática ideológica constitui, nesta corrente, um modo pelo qual se reformula a demanda social, tarefa esta realizada mediante um discurso, neste sentido, um discurso que dissimula e encobre. Segundo sumaria Miceli (1992): A ideologia constitui uma prática no sentido estrito de que transforma as relações sociais entre os homens (matéria-prima do trabalho ideológico) em um discurso (enquanto sistema articulado), seja sob a forma de um mito [...], seja sob a forma de um sistema. As práticas ideológicas que ‘funcionam produzindo a resposta à sua própria demanda – isto é, produzindo um produto sob a forma de um discurso, têm por função a transformação das relações sociais dentro da prática social, de tal modo que a estrutura global desta não se modifique’ (MICELI, 1992, p.46). No entanto, Bordieu (1992) confere, na maior parte de seu trabalho, um alcance muito mais restrito para a ideologia. Para ele, trata-se de um termo reservado para referir as produções eruditas de um corpo de agentes profissionais. A preocupação maior do autor é mesmo a de analisar a distinção entre os esquemas geradores das práticas, e as representações que envolvem estas práticas. E é por este caminho que se locomove. Todavia, não é apenas isto, pois será capaz de localizar o trabalho de transformação das relações sociais em ideologias além dos discursos, mas presente também na etiqueta, nos signos de respeito Ambientes estudos de Geografia 153 e em outros atos da vida cotidiana, ou seja, em todos aqueles atos em que a educação e as estratégias de inculcação reduzem ao automatismo. Portanto, não só o discurso deve ser considerado, nem se deve conferir a ele um poder maior do que o que se pode conferir às outras práticas sociais. Para concluir com Bordieu (1992), podemos seguir a seguinte linha de raciocínio, proposta por Miceli (1992): A inteligibilidade das práticas, dos rituais, é condição necessária para a compreensão do discurso mítico; vale dizer, o discurso enquanto opus operatum encobre por meio de suas significações reificadas o momento constitutivo da prática. Sendo o que são, vale dizer, produto de práticas, os sistemas simbólicos ‘só podem preencher suas funções práticas na medida em que envolvem princípios que não são apenas coerentes, mas também práticos, no sentido de cômodos, quer dizer, imediatamente passíveis de controle e de manipulação porque obedecem a uma lógica pobre e econômica’ (MICELI, 1992, p.50). Portanto, fica evidente a necessidade de se levar em conta, quando da análise do discurso, as condições sociais de produção e de utilização dos discursos, vale dizer, as determinações sociais que não se manifestam de pronto nos próprios discursos e documentos com que lida o observador. Relegar estas determinações equivale a incorrer em erro de leitura, que torna incapaz o deciframento das significações sociais reificadas. Por isso a lição de Bordieu é pertinente, no sentido de reconduzir o estudo dos sistemas simbólicos às suas bases propriamente sociais, ou, dito de outro modo, “às práticas com que os agentes afirmam seu código comum de significações presentes nos objetos, instrumentos e agentes mítica e ritualmente qualificados” (MICELI, 1992, p.51) As considerações analisadas até aqui apontam sempre no sentido de que é preciso distinguir com exatidão a realidade, e aquilo por intermédio do que ela nos é comunicada. A diferença entre estes dois momentos poderá ser verificada tanto na produção do objeto, já ele prenhe de significados, quanto no consumo, igualmente marcado pelas determinações a que se está exposto na sociedade. Tal distinção é necessária no campo da produção do espaço urbano, para tornar evidente a que agentes se vinculam as propostas e as concepções sobre esse espaço. Mais do que uma intenção própria do sujeito que produz ou do que consome, a ideologia aparece como uma falsidade produzida pelo próprio sistema de relações existentes na sociedade, em que a luta entre classes e setores de classes aparece sempre camuflada sob distintas estratégias e apropriações. E estas considerações se aproximam mais ainda do objeto de estudo deste trabalho, qual seja, o processo de revalorização do centro de São Paulo, quando relacionamos as noções de ideologia e de discurso sobre bens simbólicos, em geral, à produção arquitetônica, em específico. Não que a re-produção do espaço, a qual se fez referência na primeira parte, se restrinja unicamente a estes objetos, mas principalmente porque será por meio dos objetos arquitetônicos e sua organização no espaço, que poderemos analisar a paisagem da cidade. Ou seja, em última análise, por intermédio da forma, da fisionomia e da estrutura urbana a eles associados, ou ainda, do espaço urbano produzido e consumido por uma dada sociedade. A Semiologia aparece então como uma fonte de esclarecimentos, isto se a considerarmos, conforme Eco (1992), como a ciência que estuda todos os fenômenos de cultura como se 154 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) fossem sistemas de signos (e não a ciência dos sistemas de signos reconhecidos como tais), ou seja, considerando que a cultura seja essencialmente comunicação. Neste sentido a arquitetura desafia a Semiologia, porque, pelo menos aparentemente, os objetos arquitetônicos não comunicam, ou não são concebidos, explicitamente para a comunicação, senão que para a funcionalidade. Esclarece Eco (1992): Ninguém duvida que um teto sirva fundamentalmente para cobrir e um copo, para recolher o líquido de modo que seja fácil, depois, enguli-lo. Essa constatação é tão imediata e indiscutível que poderia parecer peregrino querer ver a todo o custo como ato de comunicação algo que, ao contrário, se caracteriza tão bem, e sem problemas, como possibilidade de função (ECO, 1992, p. 188). No entanto, a relação que se mantém com o objeto arquitetônico nos mostra que a arquitetura é fruída por nós como fato de comunicação, sem que isto implique na perda da funcionalidade a ela associada. Isto por que a codificação dos elementos arquitetônicos, que faz com que possamos associar um modelo abstrato à realização de uma determinada idéia (a idéia de uma determinada caverna pode ser substituída por uma idéia de caverna, qual um modelo, uma estrutura que não existe concretamente mas que serve de base para reconhecer certo contexto de fenômenos como caverna), gera um código icônico, que tornase, este sim, objeto de comunicação. O uso se converte, deste modo, em um signo daquele uso. E é por causa desta possibilidade que os objetos arquitetônicos não denotam apenas uma função, mas remetem também a uma certa concepção, ou seja, conotam uma ideologia que presidiu à operação do arquiteto. É importante observar que a função não deriva diretamente da forma, nem o contrário. Isto torna impossível a produção de uma função nova a partir de uma forma desconhecida, assim como também não se poderá dar forma a uma nova função. Vale dizer que a função de uma nova forma (ou a forma de uma nova função) tem que se apoiar nos processos de codificação já existentes. E isto é deveras importante quando se trata da reconversão de usos de edifícios, por exemplo, em que a adaptação de formas e funções não podem se dar ao acaso, pois partem de materialidades existentes. Um objeto que pretenda promover uma nova função poderá conter em si mesmo, na sua forma, as indicações para decodificar a função inédita, apenas com a condição de que se apóie em elementos de códigos precedentes, isto é, deformando progressivamente funções já conhecidas. Caso contrário, o objeto arquitetônico passa de objeto funcional a obra de arte: forma ambígua que pode ser interpretada à luz de códigos diferentes (ECO, 1992, p.201). No entanto, não podemos vislumbrar na arquitetura apenas um sistema de regras retóricas que pretendem dar ao usuário aquilo que ele já espera. A arquitetura pode ser também uma operação que se dirige às pessoas para satisfazer suas exigências e fazer com que vivam de um modo determinado, ou seja, pode-se entendê-la enquanto comunicação de massa. E ainda, seguindo além, a arquitetura também é informação que comunica uma ideologia, porque ao mesmo tempo em que informa as funções que promove e denota, também é capaz de explicitar o modo pelo qual as promove e as denota. É, portanto, uma mensagem auto-significante capaz de conotar as intenções arquitetônicas do remetente. Ambientes estudos de Geografia 155 A influência italiana na arquitetura de São Paulo São Paulo foi reconstruída a partir de 1871, logo após a chegada das ferrovias que alteraram as rotas comerciais brasileiras. O capitalismo propiciado pela agricultura do café e toda riqueza correlata foi o grande impulsionador da renovação que a cidade assistiu. Foi a época em que surgiram os grandes negócios, o comércio mais refinado das lojas e das confeitarias luxuosas, foi quando surgiram também os grandes empreendimentos imobiliários. Em 1875 a cidade contava com menos de três mil prédios. Já em 1886, quando Ramos de Azevedo iniciou sua atividade em São Paulo, a cidade contava com cerca de sete mil prédios. Neste ponto há que se destacar que a imagem de São Paulo devida a Ramos de Azevedo não deve ser buscada apenas nos dias atuais quando suas obras se confundem no emaranhado de prédios existentes, mas fundamentalmente neste momento em que a cidade se afirma, justamente quando se afirma também sua identidade cultural, fortemente influenciada pelo estilo arquitetônico. A marca de Ramos de Azevedo foi firmemente plantada na cidade em reconstrução, com o destaque dado pela imponência do estilo de Ramos de Azevedo. Em 1900 o número de prédios já chegava a vinte e um mil, para alcançar trinta e duas mil construções em 1910. Não se trata apenas de uma evolução numérica mas de uma verdadeira mudança qualitativa, pois as novas construções surgiram em substituição das velhas obras de taipa de pilão. Aliado a este processo de substituição das construções estavam os novos prédios que surgiram para abrigar o crescente contingente populacional que aumentava significativamente. As relações da época mostravam uma sociedade paulista emergente e competitiva com relação aos cariocas até então dominantes no cenário nacional. O enriquecimento desta sociedade propiciou o capital capaz de financiar construções que copiavam estilos e técnicas importadas. Os arquitetos, engenheiros, mestres-de-obras e outros trabalhadores eram recrutados entre os imigrantes ou buscados diretamente na Europa para reproduzirem os padrões vigentes. O crescimento, como se disse, passou a contar não só com o aspecto quantitativo, mas também com o elemento qualitativo na definição arquitetônica. No dizer de Lemos (1987, p.74) “era a consciência da modernidade que arribara”. No afã de substituir a mentalidade “caipira” várias soluções foram sendo alinhadas. A variedade passou a compor o cenário sem repetições, mas, ao mesmo tempo, homogeneizado pelas mesmas regras de composição, pelos mesmos ritmos das envazaduras que ganhavam predomínio sobre os cheios das alvenarias, as mesmas platibandas, os mesmos gabaritos reguladores. Era o ecletismo. (LEMOS, 1987, p.74) Os minuciosos detalhes da arquitetura das construções que foram surgindo em São Paulo, e que permitem uma classificação mais detalhada dos estilos seguidos pelos construtores não serão analisados neste estudo. Tal refinamento permite identificar quase que prédio a prédio a origem da influência seguida e recompor a evolução cronológica dos diferentes estilos em voga. Contudo, fugiria em demasia ao objeto do trabalho, visto que é suficiente insistir na grande influência italiana ainda viva na arquitetura paulistana de modo genérico, independentemente das especificidades possíveis de serem identificadas. Há uma contribuição incontestável na construção da cidade de São Paulo que é devida 156 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) aos imigrantes italianos. De fato, no final do século XIX e também no início do século XX a presença dos italianos em São Paulo foi marcante não apenas na arquitetura, mas na própria construção do que seria uma identidade paulistana. A carga da cultura que traziam logo foi impregnando o espaço que construíram, de maneira que a influência que exerceram trouxe junto a cultura italiana que aqui ganhou expressão. Assim, cabe falar em uma influência italiana na arquitetura paulistana, que tem maior significado do que falar de uma influência de italianos neste setor, pois reflete não apenas a contribuição dos imigrantes, mas além disto, da sua história e cultura precedentes. Na paisagem deixaram marcas indeléveis desta influência e mostras ímpares das relações sociais que ocorreram naqueles tempos. De 1800 até a metade do século XIX a cidade de São Paulo havia se desenvolvido muito pouco, como se tem insistido em afirmar, sendo que algum surto realmente importante começou a ser notado verdadeiramente a partir de 1870. A cidade começava a ampliar seus limites e ia se renovando, lentamente, no princípio, e com mais vigor depois de 1885. É preciso não esquecer que o ano de 1874 marca o início da imigração regular de trabalhadores italianos para o Brasil, principalmente vindos para São Paulo. Até aqui a cidade fora sendo construída sob a nítida lógica portuguesa, que se deixava guiar pela natureza do local e a seguia. “A simplicidade das técnicas denunciava, assim, claramente, o primitivismo tecnológico de nossa sociedade colonial: abundância de mão-de-obra determinada pela existência de trabalho escravo, mas ausência de aperfeiçoamentos” (REIS FILHO, 1997, p.26). No entanto, a marca mais profunda foi mesmo dada pelo estilo italiano das construções, devido à imagem que os imigrantes, aqui construtores, traziam das ruas, das fachadas e do casario italiano. Mais precisamente se pode dizer que as imagens remetem mesmo às construções italianas do período neoclássico. Um exame mais minucioso aponta ainda para um refinamento capaz de distinguir diferentes influências dentro deste período, como bem lembram Salmoni e Debenedetti (1981), que apontam para a existência de três grupos individualizados na influência italiana. Primeiro o das construções realizadas pelos alemães com base na influência neoclássica italiana; depois o das obras de Bezzi, Pucci e aqueles que por eles foram influenciados; por fim o das construções modestas, mas não menos importantes dos mestres-de-obras italianos, que aqui chegaram depois de 1880. O neoclássico a que aqui nos reportamos difere daquele que foi trazido ao Brasil por influência do traslado da Corte Portuguesa em 1808. Aquele, cuja maior influência se pode sentir no período imperial, foi mais forte no Rio de Janeiro e em outras cidades onde a Missão Artística Francesa de 1816 exerceu maior domínio. O neoclássico ortodoxo, como lembra Lemos (1979), foi aquele depurado na França de Napoleão que ordena composições arquitetônicas simétricas e extremamente contidas, onde os frontispícios eram divididos em grandes painéis delimitados por pilastras e cimalhas, acolhendo envasaduras bem ritmadas e todo o conjunto coordenado visualmente pelo centro de interesse maior que era o frontão triangular diretamente filiado aos tímpanos gregos (LEMOS, 1979, p.81). Como é sabido, a esta época, o desenvolvimento em São Paulo era por demais Ambientes estudos de Geografia 157 incipiente para poder sustentar o florescimento de um estilo desta ordem. Ainda presa às construções de taipa só conheceu um desenvolvimento significativo com a riqueza advinda do café, já bem mais tarde do que no Rio de Janeiro. Com efeito, apesar da nítida influência italiana, o primeiro neoclássico em São Paulo deve ser atribuído realmente aos alemães, o que se justifica pela presença de engenheiros e arquitetos desta origem que aqui moravam e se dedicavam a construir para as famílias dos grandes fazendeiros na cidade. A colônia alemã já era numerosa desde antes da vinda sistemática de italianos para o Brasil. Entre os nomes de maior destaque nesta época se pode citar Puttkamer, Häussler, Ploy, Vilbeft, Behmer, entre tantos outros. Ao tempo em que deixaram a Alemanha a influência da arquitetura renascentista italiana e a gótica francesa certamente ainda não haviam aflorado, mantendo vivo o gosto pelo neoclassicismo ainda por mais tempo. É de se supor que esta influência perdurou ainda o Brasil, enquanto na própria Itália já houvesse sido superado. Enquanto na Itália o ecletismo histórico românico substituía totalmente o neoclassicismo também os imigrantes italianos continuavam a reproduzir aqui projetos com base naquela influência tardia. Assim foi a obra de Tommaso Gaudenzio Bezzi, que projetou o monumento comemorativo da independência do Brasil, no Ipiranga. Este monumento serve inclusive para explicar o aparecimento de muitas construções posteriores em São Paulo, feitas sob a influência mais específica do estilo coríntio e de outras ordens, constituindo assim um modelo distinto daquele neoclassicismo trazido pelos alemães. Também participa deste grupo Luigi Pucci, que ficou encarregado da obra do Museu do Ipiranga, de Bezzi, e também de inúmeros outros projetos sob a mesma orientação estilística. Também se destacam neste grupo Giulio Micheli, Bianchi Betoldi, Bertolotti e Cláudio Rossi. As casas construídas pelos próprios imigrantes parecem ter sido o primeiro sinal de uma importante conquista na nova terra. Por intermédio dela os recém chegados podiam experimentar um sentimento de vínculo mais estreito com o Brasil, ao mesmo tempo em que repetiam as técnicas e o estilo que traziam na lembrança. A quantidade e o ritmo das construções atesta a importância deste grupo na formação da cidade. Como bem notaram Salamoni e Debenedetti (1981) os documentos no Arquivo Histórico de São Paulo atestam um pequeno número de pedidos de construções entre 1870 e 1873, guardados em um único volume; para o ano de 1888 existem três volumes e já para 1897 é possível contar quarenta e sete volumes. A mesma progressão é sentida quanto aos nomes dos requerentes: enquanto nos primeiros pedidos ainda é freqüente a influência alemã depois os nomes italianos começam a aparecer em maior profusão até serem a maioria nos documentos arquivados de 1897. Os italianos que haviam chegado primeiro já exercem profissões como de pedreiros e mestres e por fim se auto-promovem a construtores e arquitetos. Cada vez mais os italianos são chamados para atuarem, primeiro em pequenos consertos e depois como construtores de edifícios importantes (LEMOS, 1979, p.59). No entanto, cabe salientar, que as casinhas construídas pelos mestres-de-obras cumpriram um importante plano social, considerando a imensa massa de operários que começou a fazer parte da sociedade de então. Cabe a estes pequenos mestres o mérito de terem construído um tipo de casa mais evoluído do que o existente, já que agora se utilizava a alvenaria e que cumprem as condições mínimas de habitação. 158 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Entretanto, apesar da grande profusão de mestres-de-obras, construtores e arquitetos de origem italiana há que se reconhecer a limitação destes empreendimentos seja quanto a capacidade profissional ou financeira dos empreendimentos. Além das casinhas para operários executaram obras de importância maior, mas sempre com as limitações impostas a estrutura dos empreendimentos. Neste sentido a figura de Ramos de Azevedo apareceu como um importante marco, uma vez que pode demonstrar uma grande capacidade para organizar e manter uma poderosa empresa construtora. A importância de seu escritório já tem sido sobejamente enaltecida neste trabalho, em função da importância que exerceu na produção da cidade de São Paulo do final do século XIX e início do século XX. Mas também com Ramos de Azevedo poderemos notar uma expressiva influência dos imigrantes italianos graças a participação intensa deste grupo junto ao Liceu de Artes e Ofícios coordenado por Ramos de Azevedo. Ao mesmo tempo em que levou para o corpo docente do Liceu um número significativo de italianos, também os recrutou para atuarem como seus colaboradores. Esta participação é ainda mais importante quando se observa por informações recorrentes que era fato comum o titular do escritório indicar as linhas gerais de uma obra, permitindo muitas liberdades aos seus colaboradores. Em 1896 quando abriu o seu Escritório Técnico, Ramos de Azevedo chamou para tomar parte do empreendimento Domiziano Rossi, recém chegado ao Brasil, vindo de uma formação em Gênova. Em várias obras, a partir daí, se pode notar a influência do estilo que Rossi proclamava também nas cátedras que lecionava na Escola Politécnica e no Liceu, onde também foi introduzido por Ramos de Azevedo. Aos poucos também no Brasil o estilo neoclássico foi sendo ultrapassado, de modo que se pode afirmar que por volta de 1910-1915 já estava superado. A influência de revistas como Artista Moderno, Monitor e Facciate Moderne traziam para nossas terras as influências que estavam emergindo na França e também na Itália. Muitas obras em estilo Art Noveau devem ter contado com a colaboração da divulgação propiciada por estas revistas. Construções como a do Palácio das Indústrias atestam a influência destas inovações mesmo na obra de seguidores do neoclassicismo como Domiziano Rossi. Depois de 1900 a difusão do estilo arquitetônico contou com a colaboração da profusão de construções que eram necessárias naquela época para atender a grande demanda. O crescimento vertiginoso da população aliado a um afluxo de riquezas que impulsionou o comércio e a indústria em São Paulo obrigava a construção rápida de edifícios de toda ordem. Os nomes dos italianos imigrantes continuam ligados às transformações ocorridas neste período, sobretudo entre 1900 e 1920. Giulio Micheli, Giuseppe Chiappori e Giuseppe Battista Bianchi são os expoentes maiores desta época, graças à atividade laboriosa de seus escritórios. Já entre 1920 e 1930 houve uma sensível diminuição na imigração de italianos para o Brasil, até mesmo por conta da política fascista. O estilo floreal é que impera como dominante na arquitetura, dando vazão ao oferecimento do ferro e do cimento que acontecia. A partir daí a influência se deve não mais a uma arquitetura italiana como dissemos até então, mas a uma arquitetura de italianos, posto que fundada não em um estilo de vida e em um período histórico em que a Itália se destacou, mas sim em uma produção desenvolvida por italianos. Os novos fundamentos desta arquitetura estão alicerçados em uma cultura humanística que é Ambientes estudos de Geografia 159 comum a diversos países, manifestada aqui por italianos, mas também por outros imigrantes. A arquitetura moderna contará com a influência de italianos como Marcello Piacentini, Rino Levi, Daniele Calabi, Lina Bo Bardi e Giancarlo Palanti, cujas construções refletem as tendências por que passou a arquitetura paulistana. Na verdade a grande influência italiana foi mesmo marcante naquele período do final do século XIX e início do século XX, onde o ritmo das construções e a quantidade vertiginosa exigida para suprir as necessidades locais provocaram a afirmação de um estilo. Foi assim que o neoclassicismo se implantou definitivamente na identidade paulistana, suplantando qualquer outra tendência em evolução ou em formação naquele momento. Mesmo a linha barroca da influência colonizadora não pode sustentar a continuidade de um estilo local. Assim, a expressão neoclássica sufocou qualquer influência que pudesse ter expressado com maior exatidão a organização social, as necessidades climáticas ou mesmo a operosidade artística já existentes no país. O grande número das construções originadas no estrangeiro, sobretudo na Itália, é que conduziu o imaginário e a identidade de São Paulo, sendo capaz de se firmar como um estilo característico e marcante, cuja influência e sentida até o presente. Ramos de Azevedo e Prestes Maia na formação da identidade do centro de São Paulo Mesmo sendo cuidadoso com a consideração que se fará aos bens culturais arquitetônicos, é impossível não registrar aqui uma ressalva importante. Ao apontar apenas as grandes obras e seus autores diretos está se deixando de fazer referência explícita a todos aqueles anônimos que foram compulsoriamente submetidos ao trabalho na realização destas obras. Não se resgata a memória dos operários da construção, dos artífices que estiveram presentes em todo o processo e que foram, diretamente responsáveis pela produção material da obra que representará o trabalho alienado. Entretanto, se tem a plena consciência de que a cidade foi produzida por estes trabalhadores, submetidos às relações sociais que lhes conferia apenas o caráter subsidiário no processo e que, por este fato mesmo, retrata a própria barbárie que representa a dominação de uma classe sobre outra na sociedade. Ao se exaltar os grandes mitos, os grandes engenheiros e arquitetos que construíram São Paulo não se quer deixar de fazer uma importante alusão aos trabalhadores explorados na construção da cidade, trabalhadores das obras que edificaram os prédios e monumentos que representam as idéias e a vontade dos dominantes. Ao lado desta São Paulo monumental que ficou registrada nas obras arquitetônicas preservadas existiu também uma outra, com menos glamour , com menos imponência. No entanto é preciso deixar claro que estas duas faces da sociedade são necessariamente complementares e que foi justamente a existência dos pequenos industriais, comerciantes e trabalhadores que garantiu uma acumulação que tornou possível aos dominantes a construção da sua cidade. O centro histórico que sobrevive na memória e na representação simbólica de São Paulo é, na verdade, um resultado da segregação sócio-espacial que ocorre na cidade. A permanência deste centro como representativo da memória da cidade, em detrimento de outros lugares de memória, torna a imagem do centro uma idéia universal e abstrata da pró- 160 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) pria cidade e seus valores. A imagem dos demais lugares sucumbe enquanto representação da imagem da cidade, pois prevalece o centro como a referência oficial da cidade. Trata-se, pois, de contar uma história dos vencedores, não como opção única e obrigatória, mas sim como explicação bastante e suficiente para demonstrar a lógica da produção do espaço pela ótica dominante. Do conhecimento de seus meandros é que pode brotar a possibilidade de entendimento para a construção de um outro futuro. O caráter do centro de São Paulo e sua identidade foram sendo construídos paulatinamente ao longo do tempo. No entanto, é inegável a força que alguns elementos inseridos na paisagem exerceram na composição desta identidade. É claro que se está levando em conta a advertência de Santos (1986): O espaço não pode ser estudado como se os objetos materiais que formam a paisagem trouxessem neles mesmos sua própria explicação. Isso seria adotar uma metodologia puramente formal, espacista, ignorando os processos que ocasionaram as formas. [...] As formas em si mesmas, isto é, os objetos geográficos, deixaram de ter um papel exclusivamente funcional. As coisas nascem já prenhes de simbolismo, de representatividade, de uma intencionalidade destinadas a impor a idéia de um conteúdo e de um valor que, em realidade, eles não têm. Seu significado é deformado pela sua aparência (SANTOS, 1986, p.40-1). De qualquer modo, a imagem pública de uma cidade, que ajuda a construir a sua identidade, se estabelece a partir dos elementos físicos existentes. Não se está aqui aderindo, de pleno, aos pressupostos da Escola de Chicago, ainda que se faça referência à importância dos elementos considerados por Lynch (1960), sobretudo aqueles aos quais chamou de elementos marcantes, e também as vias, os limites, os bairros e os cruzamentos. Na configuração do centro de São Paulo, assumimos como importante o papel exercido por duas ordens de fatores: o plano viário e as formas da arquitetura. No primeiro caso, porque as modificações preconizadas para o centro, de algum modo, sempre levam em conta a necessidade de chegar ao centro, circular pelo centro e conectar o centro com novas áreas urbanizadas. No segundo caso, porque a representação simbólica associada aos elementos marcantes da paisagem arquitetônica do centro são fundamentais para a formação da imagem do centro. Estes elementos são únicos e capazes de ensejar sua própria revalorização, como forma de garantir a preservação da memória e a capacidade de fazer emergir, da evocação de sua representação simbólica, formas próprias de apropriação do espaço urbano. O centro sempre foi profundamente alterado pelas transformações observadas em cada novo plano do sistema viário. Esquematicamente, pode-se afirmar que a lógica da circulação na cidade começa a ser alterada em 1911, a partir da articulação do centro com as outras áreas da cidade, como se contempla no “Diagrama da Rede Geral de Viação”, produzido por Victor da Silva, para a Diretoria de Obras do município. O diagrama era composto por um conjunto de ligações viárias que partiam radialmente do triângulo central na direção dos novos bairros que se formavam, como explica Grostein (1994). Atua ainda no papel desenvolvido durante as primeiras décadas do século, qual seja, o de criar um centro e estruturar a cidade. Foi em 1929, na gestão do prefeito José Pires do Rio, que o engenheiro Francisco Prestes Maia concebeu um Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo. Retomava as Ambientes estudos de Geografia 161 idéias de Ulhoa Cintra, apresentadas em 1924, de formar um Perímetro de Irradiação, ou seja, um conjunto de vias que permitisse circundar o centro novo e velho. O cruzamento do centro seria evitado pelas avenidas de irradiação. Os anos 40 representaram o período de construção deste plano, que consolidava uma estrutura urbana radiocêntrica. Porto (1992, p.147), afirma que em 1942 o trecho inicial do Perímetro de Irradiação, que é a avenida Ipiranga, já está concluído2. Será em 1945, quando Prestes Maia é o prefeito de São Paulo, que se colocará em prática o “Sistema Y”, introduzido pelo próprio Prestes Maia a partir de inovações no Plano de Avenidas. O conceito de ligação diametral foi introduzido no plano original, preconizando a travessia do centro por um “Y”, formado pelas avenidas Anhangabaú superior (atual 9 de Julho), Itororó (agora, 23 de Maio) e Anhangabaú inferior (hoje, avenida Prestes Maia), que atravessavam o centro no sentido norte-sul estabelecendo diametralmente a ligação entre as margens do rio Tietê e do rio Pinheiros. As avenidas planejadas por Prestes Maia criaram espaços novos no centro, eram amplas e arborizadas. Permitiram a instalação de edifícios residenciais em áreas agradáveis, escritórios novos e amplos que vieram a modernizar o uso e a ocupação do centro.3 Pouco tempo depois de concluído o perímetro de irradiação o crescimento observado no volume do tráfego de carros e ônibus demandava modificações novamente. Em 1954 define-se o traçado da Segunda Perimetral, que triplica a capacidade de circulação de veículos. O objetivo desta avenida é o de desviar as correntes diametrais e aumentar a velocidade de circulação. Buscava-se alterar o modelo geral de circulação, fugindo do esquema rádiocêntrico. Basicamente, até os anos 70, a lógica da circulação no centro foi implantada pelo “Plano de Avenidas” e seus corolários, ou seja, as avenidas radiais, perimetrais e o cruzamento diametral do centro no vale do Anhangabaú. Depois dos anos 70 Paulo Maluf, como Prefeito de São Paulo, em seu primeiro mandato (1969 – 1971), retomando a idéia de ligação leste-oeste, a implanta de forma desastrosa e agressiva para a cidade, e ao invés de impulsionar a requalificação da área central irá produzir justamente o contrário, sua deterioração. A construção do elevado Costa e Silva promoveu a deterioração das condições de vida da população em uma importante área da avenida São João. Também neste período, a implantação do Metrô irá provocar a reorganização do transporte público por ônibus e a instalação de novos terminais no centro. Novas correntes de circulação de usuários são formadas. A Praça da Sé é transformada e os calçadões são introduzidos para dinamizar a circulação pedestrianizada. Atualmente, aponta Grostein (1994), o congestionamento do centro já não é o mote das transformações exigidas. A necessidade agora é a de conjugar e equacionar os seguintes elementos: a acessibilidade aos setores de circulação restrita, as atividades econômicas do centro e as conquistas na melhoria da qualidade ambiental representada pelos calçadões. 2 3 Sobre a atuação de Prestes Maia, ver também: Campos Filho (1996), Prestes Maia (1942), TOLEDO (1996). A este respeito, veja-se, LEME, M. C. S. Prestes Maia no plano de avenidas: nasce a marginal tiétê. São Paulo: Pini, 1991. 162 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Por seu turno, o caráter dado ao centro pela arquitetura dos prédios públicos e das residências mais ilustres, terá a marca indelével de Francisco de Paula Ramos de Azevedo e seu escritório. Ramos de Azevedo estudou em Gand, na Bélgica, tendo cursado a Escola Especial de Engenharia e a Academia real de Belas Artes, no período de 1875 a 1878, sob a influência da Escola Politécnica de Paris, do ponto de vista do paradigma seguido. A escola de Gand observava o pragmatismo, o espírito cientificista e democrático. O principal mestre desta escola, no período em que Ramos de Azevedo estudou, foi o professor Adolphe Pauli que, prenunciando a formação profissional de Ramos de Azevedo, mostrava em seus trabalhos um arquiteto preocupado com os aspectos técnicos e construtivos, distributivos, de higiene e saneamento, bem como com as questões de conforto e bem-estar, estilísticas e formais. Carvalho (1996, 1998, 2000) aponta a trajetória profissional de Ramos de Azevedo, informando que após o período europeu, com 28 anos, em 1879, ele se estabelece em Campinas. Naquela cidade, erige a Catedral campineira (1883), elabora os projetos da Escola Ferreira Penteado (1880), do Matadouro Municipal (1885) e de diversas residências. Deixa presente nas formas destas construções o conhecimento trazido da profissionalização. Diz a autora: “nos projetos de Ramos de Azevedo não há nada que, deliberadamente, evoque a arquitetura tradicional brasileira, ao contrário” (CARVALHO, 1998, p.8). Em 1886 Ramos de Azevedo mudou-se para São Paulo, por influência do presidente da província, que o convidou para construir a sede do Tesouro Nacional, que foi o primeiro projeto do engenheiro-arquiteto em São Paulo, (construído entre 1886 e 1891). Seguiu-se o Quartel de Polícia, na Luz (1888); a Escola Normal Caetano de Campos (1890 – 94), e o Jardim de Infância (1896), na praça da República; a Secretaria da Agricultura (1896), no Pátio do Colégio; a Escola Prudente de Moraes (1893 – 95); o Hospital Militar, (1893); os Laboratórios Gerais da Politécnica (1895); o Liceu de Artes e Ofícios (1897 – 1900), na Luz; a Escola Modelo do Brás; o Teatro Municipal de São Paulo, (1903 – 11); o edifício Alexandre Mackenzie (Shopping Light); o prédio da agência central dos Correios (1924 – 29); e muitas residências. Os edifícios projetados e executados pelo escritório de Ramos de Azevedo têm características que os diferenciam das obras de outros arquitetos do período. Segundo Carvalho (1998): Existe um mesmo princípio norteador a dar coerência e unidade ao conjunto da obra. Construtivamente seus edifícios utilizam a alvenaria de tijolos armada. A organização do espaço será arranjada de acordo com o programa em pauta, atribuindo-se importância ao estabelecimento de áreas afins e sua separação, funcionamento e articulação (CARVALHO, 1998, p.9). Mais adiante, continua a autora: Se o edifício for público ou institucional, a feição guarda, invariavelmente, os traços da arquitetura clássica, em versões que variam entre contidas e austeras até aquelas mais livres e exuberantes, a depender de sua finalidade, respeitados cânones tais como os da simetria, harmonia, decoro, uso de ‘ordens’e modenatura. Quando se trata de um edifício residencial o arquiteto atua com maior liberdade formal e estilística, guardando, porém, Ambientes estudos de Geografia 163 profunda atenção para os aspectos de conforto, salubridade, iluminação, zoneamento das áreas e distribuição das praças (CARVALHO, 1998, p.9). Ramos de Azevedo não atuou sozinho. Com seu escritório, colaboraram diversos profissionais, com e sem formação superior. Destacam-se Ricardo Severo, Domizziano Rossi, Victor Dubugrass e Maximiliano Hehl, entre outros. Não havia uma orientação estilístico-formal por parte do titular. Obviamente que não se pode atribuir apenas a Ramos de Azevedo e seu escritório a responsabilidade pelas mudanças da arquitetura paulistana no período. Ramos de Azevedo e sua visão de mundo fazem parte de um espírito de época e de um contexto propício aos empreendimentos e empreendedores. É novamente Carvalho (1998, p.9) quem salienta que vivia-se um momento diferenciado na história brasileira. Com o fim do Império e, mais do que isto, com o fim do trabalho em regime escravo, tinha início o processo de imigração sistemática no país. O destaque de São Paulo na produção do café possibilitou a incursão em novas formas da economia, fora da base agrícola e escravocrata, possibilitando mudanças na divisão do trabalho. Na construção civil a mão-de-obra passa a ser recrutada entre italianos, alemães, poloneses e outros grupos de cultura diferente da portuguesa, há tanto tempo aclimatada por aqui. As mudanças sociais também propiciavam mudanças no campo cultural e suas manifestações, que se explicitavam por intermédio das diferentes apreensões e representações do mundo. A arquitetura proposta por Ramos de Azevedo forma um corpo de idéias em conformidade com uma das concepções arquitetônicas européias de seu tempo. Para ele, a “arte de construir” necessita de formas estáveis e estabelecidas. Suas obras vão recriar a paisagem urbana de São Paulo e lhe conferem uma nova referência, um novo conjunto de critérios para a cidade, de cunho erudito, clássico e disciplinado. O conservadorismo e a modernidade convivem em Ramos de Azevedo, sem conflitos. Ao propor uma arquitetura cujas características fazem parte de um repertório consagrado, que o costume e o uso reiterado estabeleceram como manifestações artísticas em si e de sucesso garantido, o arquiteto mostra a adesão à estabilidade que esta evoca. Promotor da modernização de São Paulo, Ramos de Azevedo saberia conduzir sua missão em bases seguras, não se deixando levar pelo espírito investigador das pesquisas ou aventureiro, de tendências não consolidadas (CARVALHO, 1998, p.12). No mesmo sentido, Souza (1998), também se expressa: O conjunto da obra arquitetônica de Ramos de Azevedo impôs uma nova face à cidade de São Paulo, definida pela imponência, elegância e sobriedade de seus edifícios públicos. Ao lado dos projetos de edifícios que definiram o padrão não só das construções públicas na cidade, como também a própria noção de espaço público, houve certa preocupação de Ramos de Azevedo com questões de ordem urbanística. Se, do ponto de vista exclusivamente arquitetônico, Ramos de Azevedo se destacou como revolucionário, do ponto de vista urbanístico ele se manteve atado a uma concepção idílica e comunitária dos espaços públicos, um Camilo Sitte brasileiro, talvez. (SOUZA, 1998, p.32). A produção de Ramos de Azevedo não tinha nada de excepcional no que diz respeito ao fato de seguir um modelo europeu, nem este fato constituía qualquer traição às suas ori- 164 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) gens nacionais. Toda a arquitetura ocidental é baseada na história, e vivíamos um momento em que apenas recentemente os arquitetos estavam tendo uma formação de nível superior, via de regra, no exterior. Ao retornarem, traziam consigo o “estilo” aprendido na escola e o implantavam, até como forma de buscar igualdade em nossa incipiente emergência. Nem por isso, no entanto, a arquitetura expressa por Ramos de Azevedo deixava de ser a transposição das idéias sobre a organização social, organização do trabalho, enfim, expressavam as relações sociais presentes naquele tempo. São padrões que respondem às necessidades da modernização que se experimenta. O que havia mudado em São Paulo não era apenas o material de construção (os tijolos substituindo a taipa de pilão). Tratou-se mesmo de uma mudança de método, que separa profundamente a cidade colonial e o entreposto rural, da cidade industrial que está se formando. A mudança na paisagem é radical. A cidade passa a ser marcada pelos signos deste novo tempo. A obra de Ramos de Azevedo é o retrato perfeito desta sociedade. A monumentalidade erudita, a necessidade de afastamento para a contemplação, a funcionalidade da obra e do entorno deixam claros os sinais preconizados pela arquitetura utilizada. O espaço funciona como o repositório das criações materiais que refletem o que se passa na sociedade, mas não apenas isso, pois a permanência destas obras influencia a formação do espaço a ser construído, por força da representação que produzem nas consciências. Assim, a influência da arquitetura e de um estilo não se extingue na obra construída. Ultrapassa a intenção proposta pelo criador e atinge a todos pelo simbolismo presente na forma, na estrutura e na função. Conclusão: centro histórico e conflito O crescimento das cidades, de um modo geral, ocorreu de maneira avassaladora desde a industrialização fazendo com que o tecido urbano fosse sendo redesenhado de uma maneira tão rápida que se tornou difícil manter intactas muitas áreas com valor histórico, cultural, artístico ou arquitetônico em muitos lugares. A necessidade de produzir novos espaços para moradia, para comércio, serviços e indústria se aliou à ganância para a obtenção de lucro, fazendo com que toda a área urbana passasse a ser objeto de disputa. O centro histórico não escapou ileso a esta sanha insaciável dos novos momentos sociais e econômicos experimentados, o quadro que se desenhou desde logo foi a contraposição do desejo de preservação dos lugares históricos com a intervenção de caráter modernizador da cidade. Tudo isto é próprio da dinâmica da cidade que faz com que a reorganização interna permanente do espaço seja uma necessidade sempre presente. Sempre que surge uma nova ordem econômica é necessária uma nova ordem espacial que lhe seja correlata e, sob esta argumentação, se busca a transformação da cidade existente por intermédio da transformação ou substituição dos edifícios. Assim se coloca o problema do conflito existente na cidade que contrapõe o centro histórico, da cidade existente e plasmada, contra as intervenções clamadas pelas mudanças. O espaço resultado deste embate é o fruto das relações sociais de produção que se verificam na sociedade em um dado momento, fazendo valer ora um ora outro argumento, produzindo uma cidade que será a resultante deste sistema de forças. Ambientes estudos de Geografia 165 Com a finalidade de estabelecer parâmetros para este conflito de interesses existe a imposição da norma legal. Pode-se dizer que em certo sentido toda a regulamentação urbanística visa justamente ajustar o embate entre estes dois opostos. A legislação que regulamenta a produção do espaço urbano não faz mais do que permitir a efetivação da adequação do espaço às novas realidades econômicas e sociais que surgem na sociedade. Daí a importância de que as leis reguladoras destes embates sejam elaboradas depois de uma ampla discussão e conscientização, sobretudo educadora, da importância do espaço preservado enquanto parte da história de uma sociedade. Como muito bem escreveu Campesino Fernández (1984). Un hombre sin memoria no existe, es un guiñapo fácil de manejar, uniforme e indiferenciado, sumiso. La capacidad de protesta y afirmación del ciudadano respecto a su patrimonio reside en su bagage cultural. No podemos negar nuestras raíces y existen múltiples razones para entender el por qué deliberadamente se pretende crear una sociedad sin memoria, sin identidad, sin personalidad (CAMPESINO FERNÁNDEZ, 1984, p.52).4 A alusão do Autor é endereçada diretamente às classes dominantes que não exitam em mascarar as históricas reminiscências do povo que remetem à sua própria identidade, de maneira a produzir uma sociedade sem apego ao seu passado, sem história e sem causas para lutar. Seria conveniente se o espaço não fosse ele próprio portador destas lembranças que em muitos casos remetem o presente rarefeito a um passado comum, capaz de identificar as pessoas como cidadãos que caminham na mesma direção. O patrimônio histórico não pode ser reduzido a um monumentalismo sem sentido. Sua real e verdadeira importância está na capacidade histórica e identitária que possui e, portanto, o centro histórico tem que ser visto como algo mais do que simplesmente uma obra de arquitetura singular e isolado. Até mesmo porque existe também importância na obra anônima que não se filia a uma determinada escola ou padrão, mas que igualmente tem valor por atestar sua integração econômica e social e compor no conjunto a cidade. Ao analisar o caso espanhol Trotiño Vinuesa (1992) aponta um movimento na evolução das idéias sobre a intervenção urbana que, até certo ponto, pode ser transposto para uma análise universal. O Autor identifica uma espécie de «movimento pendular» das idéias, que se verifica ou em direção a valorização da dimensão histórica ou das formas de intervenção, sendo que este movimento pode ser entendido a partir da evolução do pensamento científico e das mudanças sociais e culturais. O Autor atenta para o detalhe de que a conservação de um centro histórico significa o reconhecimento da existência de determinadas constantes morfológicas, tipológicas e estruturais no tecido urbano e que isto justifica a criação de instrumentos e programas de atuação capazes de proteger ou reconstruir a relação original existentes entre a população e o cenário físico, ou dito de outro modo, entre as exigências sociais e econômicas, que mudam constantemente, e o ambiente construído (TROTIÑO VINUESA, 1992, p.30-). Hoje é possível se ter a certeza de uma evolução das idéias acerca da valorização dos centros históricos que ultrapassou a consideração de singularidades arquitetônicas e avançou em direção às dimensões históricas, culturais, históricas e simbólicas do espaço. A consideração que valoriza apenas as visões «museísticas» do espaço está fadada a ver triunfar apenas o monumentalismo de obras desprovidas de sentido, motivo pelo qual se deve buscar uma concepção de valorização que leve em conta o centro histórico como uma 166 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) «realidade urbana viva e dinâmica que tem funções e significados específicos no marco da estrutura atual da cidade» (TROTIÑO VINUESA, 1992, p.39). O centro histórico constitui verdadeiramente um espaço simbólico onde se pode identificar e diferenciar as cidades pois guarda a memória coletiva, conta a história de uma sociedade e o espaço por ela produzido. Diante do inegável caráter monofuncional que caracteriza a maioria das centralidades existentes na cidade fora do centro, uma das características mais importantes do centro é justamente o caráter multifuncional que consegue manter. No centro convivem as atividades residenciais com as comerciais, religiosas, administrativas e tantas outras que existem na vida urbana. Ainda que do ponto de vista econômico possa existir uma perda do centro em relação à outras formas de centralidade não se pode deixar de reconhecer a grande riqueza que existe na multifuncionalidade associada ao centro. Deste modo o centro da cidade é considerado como um marco importante para a construção da própria cidadania, da identidade e historicidade da sociedade. Sendo assim, as políticas que propõem alguma forma de revalorização do centro se utilizam em grande medida do reforço desta dimensão cultural e simbólica existente. Diante da tensão permanente que existe entre as mudanças sociais e os processos de adaptação da estrutura formal da cidade é preciso conduzir a dinâmica urbana de forma a tornar possível a captação das mudanças sem a destruição pura e simples do passado. No mesmo sentido, é preciso que os defensores do centro não façam desta luta uma luta isolada, pois é importante que conduzam esta busca como parte integrante de um processo que busca a recuperação geral da cidade e a diminuição das injustiças existentes. Ainda seguindo Trotiño Vinuesa (1992, p.44) se verifica que o Autor aponta alguns suportes nos quais se embasar para realizar uma análise geográfica dos centros históricos. O suporte metodológico deve observar os seguintes pilares: a) perspectiva histórica, com o fim de interpretar a dinâmica do centro, permitindo a análise das transformações necessárias; b) visão dinâmica da realidade urbana, que contemple a dimensão espacial dos processos econômicos e sociais; c) valorização da herança histórica e cultural da cidade do passado, que permita o entendimento da cidade enquanto memória coletiva e possibilite a adoção de políticas adequadas ao presente e respeitosas do passado; d) consideração do centro histórico como uma realidade viva e parte integrante da cidade atual, onde se verifique a ocorrência das rupturas e dos equilíbrios das estruturas morfológicas, sociais e econômicas.. De qualquer forma o conflito não se resolve com facilidade, ainda mais porque não aparece de forma explícita na sociedade. Os dominantes se utilizam de artifícios os mais diversos para fazer com que suas ações não denunciem o real interesse que têm. A revalorização do centro aparece sempre como um movimento de defesa e proteção do patrimônio, e muito bem se adecua ao discurso que se contrapõe às mudanças que alteram o tecido urbano comprometendo sua historicidade. No entanto é preciso reconhecer que o uso ideológico deste argumento, que faz parecer que a preservação do centro histórico é um bem universal, para toda a sociedade,esconde interesses particulares, de uma classe dominante. Não se quer com isto denunciar toda a tentativa de preservação do patrimônio histórico como uma atitude que interessa somente à classe dominante. O que se quer é propiciar exatamente o contrário: que a revalorização do centro histórico possa ser apropriada por todos, ou pela grande maioria da sociedade, ou fazer, pelo menos, que este processo de conservação da Ambientes estudos de Geografia 167 cidade não seja usado como agente da exclusão social e espacial. No entanto o movimento de revalorização dos preços do solo na área central pode muito bem ser explicado pela necessidade que tem a classe dominante de se apropriar das elevadas rendas diferenciais de localização nos centros urbanos. Só que via de regra o mais interessante para o aproveitamento do valor imobiliário deste espaço melhor seria a construção nova sobre a terra arrasada do que o aproveitamento do velho estoque existente e deteriorado. Em outro sentido, quando a preservação pode representar em si uma valorização imobiliária pelo seu atributo simbólico, a mudança para usos mais competitivos e lucrativos é uma condição necessária para a revalorização. Assim o investidor capitalista imobiliário será favorável à conservação do patrimônio aqruitetônico enquanto lhe convier a valorização simbólica associada ao bem. A construção de um imaginário baseado na própria história da cidade e que tenha como substrato formal os edifícios do centro mais do que um resgate cultural pode representar também uma valorização imobiliária. Cabe à sociedade, sobretudo na representação que se atribui ao Estado, e não ao Governo, zelar para que a preservação do centro histórico não se caracterize apenas por uma valorização imobiliária a partir do aproveitamento de melhorias no patrimônio construído que, ao invés de resgatarem a imagem e a identidade da cidade para uma apropriação da cidadania, a resgatem para a apropriação privada de investidores. A possibilidade de apropriação privada dos investimentos, públicos ou não, na preservação do centro só é possível pela transformação da imagem da cidade em uma mercadoria. A imagem do centro reificada é que pode ser apropriada privadamente pelo lucro obtido na valorização imobiliária. Campesino Fernández (1984) também conclui que a mudança de usos do centro que faz surgir uma nova relação entre os aspectos formais-funcionais e residenciais é causa de valorização do centro. Porcessa-se uma transformação da estrutura econômica dos centros a partir da apropriação elitista dos espaços mais valorizados. O processo é indisfarssável: Si los cascos antiguos poseen declaración monumental la intervención reviste estrategias más civilizadas y culturalistas, reutilizando edificios catalogados como residencia de lujo, apartamentos o ‘casas antiguas’ para sectores sociales de rentas elevadas, estudios o gabinetes de trabajo de profesionales del terciario superior o cuaternario (CAMPESINO FERNÁNDEZ, 1984, p.57).4 O que se verifica mais comumente é que, dada a descaracterização funcional do centro original, na atualidade o centro é de todos, menos dos residentes. Concluindo, ainda com Campesino Fernández (1984, p.58), se pode verificar que sua análise segue também esta linha de raciocínio, uma vez que reconhece que após um período de depreciação do solo, verificado principalmente a partir dos anos 50 no caso de São Paulo, se verifica a degradação da área. No entanto novos usos propiciados originam a renovação, como uma postura radical de intervenção que procura eliminar os edifícios antigos construindo novas mercadorias. Não havendo alternativa se respeita os símbolos existentes no espaço e, mais 4 “Se os centros históricos possuem declaração monumental a intervenção comporta estratégias mais civilizadas e culturalistas, reutilizando edifícios catalogados como residência de luxo, apartamentos ou casas antigas para setores sociais de rendas elevadas, estúdios ou gabinetes de trabalho de profissionais do terciário superior ou quaternário.”. 168 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) do que isto, se procura uma valorização justamente a partir destes símbolos pela evocação do caráter identitário e imaginário que reportam. Entretanto, a rentabilidade do processo está apoiada na melhoria do status social da área e pressupõe, portanto, a expulsão dos residentes indesejáveis. Será a segregação socio-espacial que irá garantir uma apropriação monopolista do espaço central. Contrário a isso é que se preconiza para o centro uma recuperação integral, capaz de conferir ao centro seu valor de utilidade pública e não de consumo privado. A revalorização da forma como um valor em si não resgata mais do que valores estéticos, esvaziados de conteúdo, estes bens valem como redutos onde os valores subjetivos podem ser ideologicamente incoporados para reverterem em uma valorização objetiva do espaço. O centro deve estar submetido a critérios que garantam a apropriação por todos os cidadãos, aí então não haverá a injusta apropriação do espaço, ademais se for possível conseguir a recuperação de espaços vivos e vividos. Um dos mecanismos capazes de garantir este proceso será o controle democrático da gestão, que se apoie na divulgação de informações que despertem a consciência e a participação. Referências BOBBIO, N. et al. Dicionário de política. 4. ed., , Brasília: Edunb, 1992.v.1. BORDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. CAMPESINO FERNÁNDEZ, A. J.. Los centros históricos: análisis de su problemática. Norba Geografia, Cáceres, v. 5, p. 51-62, 1984. CAMPOS FILHO, C. M. Prestes Maia: um globalizador em seu tempo. Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 64, 1996. CARVALHO, M.C.W. Arquitetura de Ramos de Azevedo. 1996. 290f. 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Como objeto de minha análise escolhi os espaços construídos para o lazer (parques temáticos indoor e outdoor e parques aquáticos), que introduzem modelos de diversão, assim como acontece no setor produtivo, acabando com toda a espontaneidade dos encontros entre pessoas de diversos estratos sociais, diversas raças, credos, enfim encontro entre os diferentes. Esses espaços não propiciam o encontro, a conversa e portanto os espaços de vivência, seus proprietários aproveitam-se das fragilidades urbanas para veiculá-los como espaços seguros, limpos, confortáveis e portanto atraírem os citadinos. Mas percebemos que todo esse processo não acontece passivamente, existem as negatividades, as resistências que estão relacionadas ao espaço vivido, no qual comunidades ainda desfrutam de momentos em que o lazer e o trabalho aparecem como instâncias que não são se distinguem, que formam as verdadeiras relações sociais. A cidade: o espaço, o tempo e o lazer A cidade é o lugar privilegiado para a reprodução das relações de produção em seu âmbito político, econômico e social; ela é produto, condição e meio para que esse processo aconteça. Ela divide, mas ao mesmo tempo une os lugares, que se entrelaçam no contexto da produção e reprodução. A cidade, fruto do trabalho humano, é criação, é produto social e, portanto, historicamente produzida. Assim como outras mercadorias, é comercializada e apropriada de maneira particular, produzindo segregação. As relações existentes nas cidades, sem dúvida são as grandes responsáveis pelo modo 1 Tese de doutorado orientada pela Profª Drª Silvana Maria Paintaudi 172 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) de vida urbano, e os processos que nela acontecem extrapolam seus limites, pois interferem de forma integral em todos os espaços. Por exemplo, ao criar espaços segregados impõese aos citadinos a situação de ruptura do contato, portanto da transmissão de informações, mensagens, o que impede o desenvolvimento (qualitativo) dos indivíduos, aprisionando-os a tempos quantitativos, cujo lema é “tempo é dinheiro”. O tempo qualitativo está ligado ao espaço qualitativo, onde nós temos nossas ligações afetivas, onde nascemos, vivemos e morremos, enquanto que o tempo quantitativo está ligado ao espaço quantitativo, onde tudo é geometricamente traçado, onde o espaço é dos objetos e não dos homens2. Com a urbanização da sociedade e a aceleração dos ritmos, não é mais a “qualidade de vida” que interessa e sim a quantidade de vida, seu ritmo e a intensidade de suas experiências, o que dá a sensação de falta de tempo, que se prolonga nos momentos de lazer. Geralmente, a maioria da população que é submetida ao tempo quantitativo é excluída no espaço dos objetos, nas cidades. A produção invade as cidades, no âmbito do econômico, vinculada ao espaço fabril, captura o tempo e o espaço, em todas as suas dimensões, generalizando o mundo da mercadoria, transformando-os em mercadorias. Periferia, banlieue, ghetto, favela: é sempre a mesma história de destinar o menos urbano, o mais inacessível e desqualificado dos espaços às camadas mais populares, para evitar a convivência que ameaça valores imobiliários e de estabilidade social. Então a cidade, dentro deste sistema, se defende dela mesma, imaginando que finalmente possam existir espaços absolutamente imunes à pobreza e isentos de contradições e utopias de conversão final de todos os habitantes urbanos em clientes e consumidores. Em um primeiro momento, revela-se nas cidades a fragmentação do espaço, pois seu acesso é regulado pelo capital, ao mesmo tempo em que ocorre a hierarquização, para assegurar a reprodução das relações sociais de produção, que separando os espaços consegue descontextualizá-los até banalizá-los, fazendo com que a totalidade passe a ser vista como uma grande nebulosa. A divisão acontece, para que novamente os espaços possam ser articulados, seguindo os interesses capitalistas. A cidade se desarticula sob pressão das prioridades de circulação, explode em zonas monofuncionais que são separadas uma das outras no espaço e no tempo, que têm apenas vida intermitente, e que estão quase mortas fora de suas “praias” de atividade funcional. Deve-se programar os deslocamentos para o centro comercial, a zona industrial, a região das escolas, o complexo hospitalar, o parque de jogos, o centro administrativo, em função da lógica particular a cada um deles. Pois cada um se inscreve num tempo limitador, como também num espaço limitador. (CHESNEAUX, 1995, p.21) Nas grandes metrópoles esse processo é mais intenso que nas cidades interioranas, 2 Cela est allé si loin que l´on a pu dire que la représentation ainsi construite a substitué “à notre monde de qualités et de perceptions sensibles, monde dans lequel nous vivons, aimons et mourons, un autre monde : le monde de la quantité, de la géométrie réifiée, monde dans lequel, bien qu´il y ait place pour toute chose, il n´y en a pas pour l´homme.(LAUTIER, 1997, p. 182-183) Ambientes estudos de Geografia 173 onde as necessidades básicas de trabalho, de consumo, de lazer e religiosas acontecem em espaços muito próximos. A dispersão que existe nas grandes metrópoles faz com que os bairros sejam o lugar onde as relações de significado e, conseqüentemente, de pertencimento se processem mesmo assim, é nos bairros carentes que esse processo é mais notório, pois além do espaço público, que permanece como lugar de encontro, o espaço privado, o bar, a padaria, o circo, os pequenos parques de diversão permitem, graças aos valores cobrados, o acesso dessa população. As cidades são ao mesmo tempo lugar de integração e fragmentação, como diz Roncayolo, (1990, p. 79)3: A cidade ou o centro urbano, apresenta dois aspectos complementares: é sede de diferenças que se refletem no ordenamento interno e separam de maneira mais ou menos visível os grupos sociais, as funções, os usos do solo, é também sede de reunião, de convergências que dominam e anulam, enquanto seja possível, o efeito da distância. As metrópoles possuem, desta forma, ritmos diversos e dialéticos. Os bairros, principalmente os mais carentes, conservam os espaços públicos e privados, em alguns casos, como áreas de diversão, do lúdico. Não podemos, mesmo assim, generalizar essa perspectiva, pois em vários bairros tanto o espaço público quanto o privado são de difícil acesso, seja pela insegurança, seja em decorrência da questão financeira. Embora com valores mais baixos o preço pago pelas diversões atua como um obstáculo. Os bairros não são unidades desvinculadas do ritmo das cidades, estão ligados a elas e devem ser avaliados neste contexto. Assim, os espaços de lazer, sem dúvida, fazem parte do conjunto de potencialidades desses espaços, mas para se tornarem realidade devem ser conquistados, como diz Damiani, (1997, p.47): O lazer é, também, uma conquista. Nos espaços periféricos, mais populares, o caráter de conquista dos lugares de lazer é evidente. Dramática e coletivamente eles são conquistados, sendo expressões da identidade irredutível dos espaços empobrecidos, da ação solidária de homens, mulheres e, mesmo, das crianças- as ruas fechadas para a prática de esportes, os bares clandestinos e os campos de futebol nos conjuntos habitacionais programados, sem sua presença, as praças conquistadas, etc. A conquista do espaço denota um processo de resistência da sociedade que procura unir os espaços de seu cotidiano, aqueles com os quais estabelece uma relação de pertencimento. Contudo, esse processo supera muitas vezes a escala do vivido, para acontecer na escala das redes, que une os espaços segundo outros interesses que não estão ligados à comunidade do lugar, ao seu espaço e tempo da vida. As redes que se formam, apesar da dispersão no espaço unem os diversos momentos do cotidiano dos indivíduos, sendo responsáveis segundo Roncayolo (1990), pelo “metabolismo urbano”4. Unem o tempo de trabalho, o tempo da vida privada, o tempo livre, e são elas que recebem toda a codificação do mundial, transferindo para os lugares que deco3 La ciudad o el centro urbano presenta aspectos complementarios: es sede de diferencias que se reflejan en el ordenamiento interno y separan de manera más o menos visible los grupos sociales, las funciones, los usos del suelo; es también sede de reunión, de convergências que dominan y anulan, en quanto sea posible, los efectos de la distancia.(RONCAYOLO, 1990, p. 79) 174 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) dificam as informações, segundo seu momento de produção e reprodução. Neste sentido, observamos mudanças nítidas nos espaços, com ritmos diferentes, formando nas cidades, sob a aparência da reunião, uma desintegração e uma confusão “babélicas”5. Os ritmos urbanos que outrora acionavam a reprodução social, econômica e política, eram guiados pelos processos fabris; hoje passam por uma alteração, em que o tempo e o espaço são capturados pela reprodução das relações de produção em tempo integral, seja no trabalho, seja no tempo livre ou no tempo de lazer, que não deixam de ser administrados pela rede do capital. O capitalismo não subordinou apenas a si próprio, setores exteriores e anteriores: produziu setores novos transformando o que preexistia, revolvendo de cabo a rabo as organizações e as instituições correspondentes. É o que se passa com a “arte”, com o saber, com os “lazeres” com a realidade urbana e a realidade quotidiana. Este vasto processo, como sempre, reveste-se de aparências e mascara-se com ideologias. (LEFEBVRE,1973, p.97) A sociedade pós-industrial seria, na verdade, a sociedade urbana, a sociedade burocrática de consumo dirigido (LEFEBVRE, 1970, p.8), a qual cria a propagação de valores e formas de consumo típicas das cidades, e ao estender esses valores ao espaço como um todo, gera a sociedade urbana. O lazer na sociedade moderna também muda de sentido, de atividade espontânea, busca o original como parte do cotidiano, passa a ser cooptado pelo desenvolvimento da sociedade de consumo que tudo que toca transforma em mercadoria, tornando o homem elemento passivo. Tal fato significa que o lazer se torna uma nova necessidade. (CARLOS, 2001, p.25) Para tanto, deve acontecer e está acontecendo uma mudança cultural, mexendo com o modo de vida, com os valores. A necessidade de reprodução do capital, que produz o espaço e as relações sociais e culturais intrínsecas a ele, cria o consumo desses novos espaços. A necessidade de espaços privados de lazer é produzida pelo sistema, que pretere o espaço público6. Os espaços de lazer materializam as contradições existentes entre as classes sociais, visto que esses espaços são hierarquizados pela divisão de renda, principalmente quando os mesmos deixam de ser públicos, para se tornarem privados. Segundo Martins (1998, p. 659-726), nas diversas classes sociais os limites entre Il n´y aurait pas de système “urbain” de réseaux techniques pour supporter les échanges de produits, de personnes, d´informations et de signes- tout ce qui constitue le métabolisme urbain. (RONCAYOLO, 1990, p. 241) 5 Sucede, sin embargo, que llevando al límite la ilisión y la aprencia, esta instituición quiere hacerse cargo de la totalidad, cuando lo que hace es alentar las separaciones y solo las reúne en una confusión babélica. (LEFEBVRE, 1970, p. 69) 4 Ambientes estudos de Geografia 175 o público e o privado nunca foram os mesmos, ou seja, os ricos sempre contaram com o domínio de sua privacidade, tanto no que se refere ao espaço intra, como extra muros, enquanto que para os pobres o privado tinha uma conotação bastante restrita e a casa muitas vezes tornava-se a continuação da rua. Essa relação permanece até hoje, com algumas transformações. As classes de maior poder aquisitivo moram nas grandes cidades em condomínios fechados (horizontais e verticais). Esses espaços permitem aos moradores a ilusão de solidificar relações mais solidárias com seus vizinhos, os quais têm os mesmos padrões de vida e consumo que o seu. Porém, os moradores também se preocupam em proteger o seu espaço privado, construindo fortalezas que permitem o contato com vizinhos desde que esse seja previamente acordado. Segundo Carlos (1996, p.171), os condomínios fechados, bem como os bairros mais ricos, tentam resgatar a identidade entre os moradores, em um processo artificial. Nesses espaços existem duas atitudes. De um lado há a preocupação de se resgatar formas de vida tradicionais, chamadas de “mais humanas” por seus moradores, que privilegiam o encontro e a construção de um lugar de vida diferenciado; por isso, a preocupação de criação de uma comunidade solidária ligada ao verde e à natureza. De outro lado há aqueles que se mudam para esses locais e a primeira coisa que fazem é erguer muros altíssimos, são os chamados “intramuros” que se fecham em suas conchas, altamente protegidos tanto dos possíveis ladrões como de seus vizinhos. Reproduzem na “periferia rica” o mesmo comportamento que existe nos bairros centrais, pontuados por luxuosos apartamentos. Isto é não-vizinhança; estão abertos apenas a alguns amigos que desfrutam de sua confiança. (CARLOS, 1996, p. 71) Em decorrência da apropriação da terra, os menos abastados têm nas cidades os piores espaços. Para eles a rua não é apenas o lugar do trabalho, da circulação, mas em algumas cidades e bairros das grandes metrópoles ela também tem a função lúdica da festa, dos jogos, procissões, desfiles, entre outras atividades, como diz Gaviria (1971, p.142). Nestes bairros o contato entre os vizinhos é baseado nos encontros espontâneos, que podem acontecer a qualquer momento, pois independem de regras rigidamente firmadas. Nas grandes cidades, na maior parte de seus bairros, como escreve Chesneaux (1995, p. 26), que manifesta opinião semelhante a Jacobs, as ruas passaram a ser lugares vazios de 6 Nossa pesquisa tornou mostrou uma certa nostalgia da população com relação às praças, mas quando realmente elas saem dos projetos para se tornarem espaços reais, nas grandes metrópoles, seu uso efetivo pode não ser dos mais consideráveis. Isso talvez se deva à forma como são resolvidas e construídas, como pode ser constatado em Jacobs (2000, p. 14): “No East Harlem de Nova York há um conjunto habitacional com um gramado retangular bem destacado que se tornou alvo d ira dos moradores. Uma assistente social que está sempre no conjunto ficou abismada com o número de vezes que o assunto do gramado veio à baila, em geral gratuitamente, pelo que ela podia perceber, e com a intensidade com que os moradores o detestavam e exigiam que fosse retirado. Quando ela perguntava qual a causa disso, a resposta comum era: ‘Para que serve?’, ou ‘Quem foi que pediu o gramado?’ Por fim, certo dia uma moradora mais bem articulada que os outros disse o seguinte: ‘Ninguém se interessou em saber o que queríamos quando construíram este lugar. Eles demoliram nossas casas e nos puseram aqui e puseram nossos amigos em outro lugar. Perto daqui não há um único lugar para tomar um café, ou comprar um jornal, ou pedir emprestado alguns trocados. Ninguém se importou com o que precisávamos. Mas os poderosos nos dizem: ‘Que maravilha! Agora os pobres têm de tudo!’” 176 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) identidade, espaços reivindicados, mas pouco aproveitados, pois não são utilizados como deveriam, tornando-se até abandonados, fazendo com que os momentos de encontro coletivo se tornem raros, muitas vezes virtuais. As cidades sujeitas ao processo de especulação imobiliária, que impulsiona sua reconstrução contínua, e expulsa seus “usadores”, transformando espaços de vivência, fazem com que muitas praças, parques e ruas percam o significado, já que a vizinhança não tem com eles a relação de pertencimento, pois estão constantemente se mudando. O processo torna-se então argumento do poder público, que não consegue absorver as contradições e significados, recorrendo ao discurso da não utilização desses espaços, apesar dos pedidos feitos pela população. As ruas deveriam ser locais de contato entre a privacidade e a sociabilidade; contudo, nas grandes metrópoles elas se transformaram em espaços de fluxo, onde nem uma coisa nem outra acontece. Ainda existem em determinados bairros, nas cidades pequenas, as ruas que podem ser consideradas seguras, onde seus moradores atuam como co-proprietários das mesmas. Nesse caso, a identidade com o espaço cria uma espécie de monitoramento, no qual os moradores têm a função de controle e vigilância e a qualquer problema que acontece eles estão a postos para resolvê-lo, ou ao menos participar dele. Mas, a abrangência dessa participação não aparece em todos os espaços, nem no passado, nem atualmente, como foi notado por Jacobs (2000, p. 86) Sem dúvida, nem todas as calçadas têm essa vigilância, e esse é um dos problemas urbanos que o planejamento deveria corrigir. Calçadas pouco usadas não oferecem vigilância adequada para a educação das crianças. Nas grandes cidades, nos grandes bairros, ou nos grandes condomínios verticais e horizontais, as pessoas não se conhecem, não possuem grandes vínculos com o espaço, que se apresenta como um grande leque de opções, de oportunidades. As pessoas circulam por este espaço, mas não estabelecem compromissos, além dos relacionados com o consumo no espaço e do espaço, rompendo assim com o processo de co-propriedade, já que o espaço deixa de ser o espaço do vivido. A reconstrução constante da cidade faz com que o nível do vivido não consiga, mesmo que isso fosse possível alcançar as mudanças que ocorrem na escala do econômico: elas sempre se processam mais rapidamente, ocasionando a fragmentação das cidades, e, mais ainda dilacerando, o pertencer ao espaço. Nesse ritmo frenético da composição da cidade, o movimento de construção e reconstrução constante dá origem à justaposição, sobreposição, aproximação e distanciamento, ruptura e continuidade, nos diversos momentos. Mas, quando as formas dão indícios de hegemonia de um determinado momento, se avaliarmos o movimento integralmente, perceberemos as negatividades relacionadas aos resíduos referentes ao espaço do vivido. O espaço da festa programada por comunidades de um bairro, que resistem às mudanças da metrópole, é um exemplo, mesmo que tenha absorvido algumas transformações, pode ser considerado como negatividade do processo. A existência da festa ajuda a relativizar a massacrante tendência da sociedade à constituição do homogêneo enquanto estratégia de poder ou vinculada à tendência de se ignorarem os resíduos que emergem juntamente no cotidiano programado, onde é possível pensar que trabalho/festa não se Ambientes estudos de Geografia 177 separam, que o lazer, enquanto possibilidade de manifestação-realização de desejos, relativiza o lazer programado. (CARLOS, 2000, p.73) Quando falamos das transformações sofridas em relação à concepção original dessas festas, estamos relacionando principalmente a privatização de alguns espaços dentro delas, ou seja, a rua com suas barracas é de livre acesso ao público, mas existem também os lugares com mesas, onde se entra mediante a sua compra ou de um ingresso. Isso diferencia o público freqüentador, que teme ficar desprotegido nos lugares realmente públicos. Os espaços tornam-se perigosos para determinadas classes sociais, as relações sociais de produção diferenciam os indivíduos, criando desigualdades e a necessidade de espaços privados e específicos para o lazer. O espaço passa a ser produzido e consumido para o lazer, que materializa a divisão social do trabalho, não a restringindo à escala habitacional , mas prolongando-se nos espaços de consumo destinados ao tempo livre. Cria-se a necessidade que é absorvida pela classe média de sair no final de semana, sair do espaço cotidiano, para buscar o heterogêneo estabelecido, sem se quebrar o ritmo frenético dos grandes centros urbanos, procurando desmaterializar o real nos hiperespaços. As grandes metrópoles se tornam para a classe média e média alta lugar de passagem, em conseqüência da deterioração das condições ambientais, sociais, culturais7, aumento da violência, entre outros aspectos. Elas compartilham a necessidade de viver nas cidades, de estar incluídas na movimentação urbana, ao mesmo tempo, que querem evitar os inconvenientes gerados por ela. As saídas não podem ser muito prolongadas, tendo em vista que as obrigações laborais não permitem grandes afastamentos, por isso o ritmo do final de semana, um período de quarenta e oito horas, deve servir para múltiplos fins e assim ser considerado como tempo aproveitado com intensidade. Existe por parte desses indivíduos uma procura por lugares diferentes, ou ao menos que pareçam diferentes: a casa de campo ou na praia, a diversão e o consumo de espaços construídos especificamente para o consumo do lazer - parques de diversão, temáticos e aquáticos. Mas existem ainda os espaços residuais, aqueles que resistem ao domínio do movimento hegemônico atual. Assim não podemos comparar a praça e outros espaços públicos, que apesar de projetados principalmente para o lazer se transformam em espaços de representação8, espaços do vivido, pelo menos enquanto a reconstrução urbana não interfere no processo, com os espaços privados de lazer. Os grandes espaços de diversão, entre os quais podemos destacar os parques de diversão, temáticos (indoor e outdoor) e aquáticos, assim como outros espaços produzidos pelo lazer, são a passagem do espaço de consumo para o consumo do espaço, como diz Lefebvre: Os espaços de lazer constituem objeto de especulações gigantescas, mal 7 Como consecuencia del automóvil y del tamaño desmesurado de la información y del número de personas acumuladas, la ciudad comienza a deteriorarse. Sigue siendo lugar de producción, informacion, decisión y acumulación de capital, pero va perdiendo la calidad de la vida cotidiana de los que en ella residen, por lo que las classes dominanates tienden a salirse de ella hacia zonas suburbanas más cómodas o se ausentan en períodos cada vez más prolongados de las vacaciones, puentes, “curas sanitárias”, etc. (GAVIRIA, 1971, p. 166). 178 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) controladas e frequentemente auxiliadas pelo Estado (construtor de estradas de comunicação, aval direto ou indireto das operações financeiras, etc). O espaço é vendido a alto preço aos citadinos expulsos da cidade pelo tédio e pelo bulício. Férias, exílio, refúgio, este espaço reduz-se a propriedades visuais que depressa perde. Severamente hierarquizado, vai desde os locais para as multidões aos lugares de elite, das praias públicas ao Eden- Roc, etc. Os lazeres entram assim na divisão social do trabalho, não só porque o lazer permite a recuperação da força de trabalho, mas também porque passa a haver uma indústria dos lazeres, uma vasta comercialização dos espaços especializados, uma divisão do trabalho social projetada no território, e que entra na planificação global. (LEFEBVRE, 1973, p. 97) Assim como as indústrias, os poderes governamentais estão muito interessados na atração desses empreendimentos, grandes geradores de empregos e lucro. Para tanto, suprem suas necessidades de infra-estrutura e fecham os olhos para possíveis efeitos negativos oriundos dos processos de apropriação privada. A divisão social do trabalho, presente nos mais diversos lugares, configura-se no espaço que tem suas especificidades reforçadas ou criadas, sempre usando de muito apelo comercial, ou seja, os patrimônios naturais e culturais são super valorizados pela indústria do lazer, sendo transformados em espetáculo para o consumo dos voyeurs culturais9. Como diz Baudrillard (1995, p. 166), o lazer é repartido na sociedade com grandes desigualdades, selecionando os indivíduos e distinguindo-os culturalmente. Os espaços não possuidores de potencialidades para o lazer, para o ócio, podem ser produzidos, seja nos pequenos parques de diversão que circulam pelos bairros e pelas pequenas cidades, até os espaços mais especializados. Em um momento em que a natureza e as tradições culturais se tornam elementos raros nas cidades, os empreendedores podem reproduzi-los em espaços criados, valorizando esses aspectos e o próprio espaço, interferindo em toda configuração urbana, que por sua vez os determinam. As cidades que não produzem e não mantêm seus espaços públicos impulsionam a criação de áreas de simulação da convivência, da sociabilidade, ao mesmo tempo em que eliminam toda forma de possível organização social para contestação. Os lugares de centralidade, no sentido de espaços de reunião, de discussão, como diz Roncayolo (1990, p.102), são lugares de acumulação de valores simbólicos, que se perdem na cidade desorganizada publicamente. Os lugares produzidos passam a ser os determinadores da centralidade, provocando um movimento contrário a tudo que está relacionado à construção da cidadania, pois a cidade desta forma se torna o acúmulo de percepções individuais. E, os espaços de representação como campo de experimentação permitem que se exercitem habilidades, conhecimentos e interações previstas e imprevistas, constituem o teatro da vida; integram à vida por significações e sentidos. Considerando-se o âmbito do vivido, do existencial, quer seja no domínio público como no privado, quem usa o espaço pode também conceber. São os usadores, que conforme suas necessidades e desejos redefinem trajetos, projetos, porque podem abstrair a forma e produzir para si, apropriando-se! Mas não fazem livremente. Fazem-no enquanto pertencentes a uma sociedade. Fazem-no em grande medida sob coações. (SEABRA,, 2001, p.555) 9 Voyeur cultural: mera contemplação dos espaços culturais feita por pessoas, que não têm identidade com mesmos. (MENESES, 1999, p. 97) 8 Ambientes estudos de Geografia 179 Sem as ruas toda animação das cidades é bloqueada, contribuindo para que o movimento da vida leve mais um golpe, passando a ser lugar de transgressão, ao invés do lugar da informação, do jogo, do encontro, da identidade. Nos bairros periféricos a própria infraestrutura das ruas (SECCO; SQUEFF, 2001, p.86-93) faz com que o tráfico de veículos seja dificultado, o que poderia levar a sua ocupação efetiva pela população. Contudo, a segurança é um fator limitador. As gerações passadas tinham no espaço urbano um eixo de referência mais duradouro, enquanto que nos últimos tempos o ritmo que se estabelece em relação às mudanças bloqueia a relação de identidade. O permanente estágio de construção, símbolo do progresso das grandes cidades, permite poucas opções de convívio para os citadinos. As ruas, refúgio do sistema de produção coletivizada e apropriação privada, lugar onde o valor de uso realmente se sobrepõe ao valor de troca, e por isso mesmo representa um grande problema ao sistema, têm que ser suprimidas em suas formas, funções e estruturas iniciais e reais. Na verdade, as ruas tornam-se os espaços de fluxo dos automóveis. Aliás, os automóveis tornam-se os grandes lideres do espaço urbano, e seu fluxo direciona toda a vida pública das cidades. Segundo Jacobs (2000, p.6), “um número crescente de urbanistas e projetistas acabou acreditando que, se conseguirem solucionar os problemas de trânsito, terão solucionado o maior problema das cidades”. A reprodução das relações sociais de produção no modo de produção capitalista impulsiona a cidade para o esvaziamento, no que se refere à pratica social solidária. A vida social organizada em torno de pontos de centralidade tem esses pontos reconstruídos, em função da desintegração ocasionada pela produção do espaço mercadoria e, no âmbito do lazer, assim como nas esferas relacionadas à moradia, revela a face excludente desses espaços. “Quem não pode pagar pelo estádio, pela piscina, pela montanha, pelo ar puro, pela água, fica excluído do gozo desses bens que deveriam ser públicos porque essenciais.” (SANTOS, 1987, p.48) O poder público se exime, cada vez mais, de uma proposta séria, no que se refere aos espaços públicos. Esse tipo de preocupação não ocupa o rol de prioridades dos governos justamente por não ser interessante criar espaços de convivência onde os indivíduos possam alcançar a proposta de desenvolvimento integral em seu tempo livre. Ao contrário. A construção de espaços privados para o lazer recebe grandes estímulos, o que explica, entre outros fatores, o aumento considerável das propostas de construções neste sentido. O lazer enquanto esfera do cotidiano é normatizado, e o tempo livre é tempo ganho. Portanto, para se ter tempo livre é necessário economizarmos tempo na produção, na vida privada, no tempo imposto para circulação. O tempo do cotidiano é normatizado para a produção e reprodução, e o indivíduo, sem ter plena consciência do que se passa, mas inserido no sistema, revela seu aprisionamento ao tempo como objeto, pois não admite simplesmente deixá-lo passar, tem que “gastá-lo” fazendo algo que lhe dê prazer, de preferência consumindo. [...] as atividades que preenchem o tempo livre- o qual teoricamente se contrapõe ao trabalho- acabam refletindo diretamente um certo ritmo do trabalho. Além disso, no nosso sistema, a ocupação constante é um ideal de vida, o que justificaria a necessidade de preenchimento do tempo livre 180 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) com atividades, como se esse tempo não pudesse simplesmente deixar de ser ocupado.(PADILHA, 2000, p. 98) Desse modo existe a obrigação de se divertir, pois só assim se justifica o “tempo livre”, devendo estar tudo registrado nas fotografias e na compra de souvenirs, para que as lembranças possam reforçar, perante a sociedade, o consumo e o aproveitamento do tempo e do espaço. Nos parques de diversão, temáticos (indoor e outdoor) e aquáticos a relação de consumo é evidente. Tanto os filmes, as fotos, quanto os souvenirs podem ser comprados em suas dependências, aumentando a arrecadação. Na verdade, o seu interior é um grande centro de compras, pois estas se tornam o testemunho do conhecimento dos lugares, já que não existe a identidade do vivido. Criam-se as imagens do espaço que podem ser manipuladas, produzindo os símbolos do espaço, reproduzidos de acordo com os interesses individuais, na maioria das vezes relacionados à busca de status, ou ainda, à busca para “cura” das doenças causadas pela correria urbana; evidentemente são questionáveis os “poderes terapêuticos” desses espaços. Com os parques temáticos, o consumo do espaço voltado ao lazer se especializa, é programado e procura individualizar o consumidor, abastecendo-o através do consumo dirigido, agora sobre uma temática, que visa transportar os indivíduos ao imaginário, ao modelo de fantasia almejado. O imaginário, que era estimulado para o consumo das mercadorias, agora ele mesmo se tornou uma mercadoria. A cidade, inspiração desses lugares, cumpre sua missão de transformar a matéria em símbolo10. A própria cidade é um simulacro à medida que, como diz Lefebvre11, a cidade é o ato virtual do possível que incita o impossível, conduz ao inexistente, sendo que ela própria torna-se para os produtores do espaço o teatro da vida. A máquina imitativa faz com que tudo seja igual à realidade, que nesses casos é pura fantasia. Mas é importante que a fantasia não seja de todo desconhecida: os grandes empreendimentos de consumo do espaço, atrelados a grandes marcas, contribuem para isso, simulando a familiaridade. Nunca o chamado tempo livre foi tão controlado, sem que o indivíduo percebesse. A encenação é tão perfeita que, entre outras coisas, o controle também passa desapercebido. Todo o mundo de encantamento procura desvincular o indivíduo da coletividade, da totalidade, pretende, acima de tudo, colocá-lo como um náufrago em um mundo sem referências, cuja única saída acontece no consumo, na mercadoria. O espaço mercadoria tende a se homogeneizar, apagar as diferenças, contudo, como diz Lefebvre, (HARVEY, 1989, p. 216-217), são as lutas de classe que evidenciam as diferenças e elas, ao se manifestarem reforçam a necessidade das bases espaciais. Poderíamos ousar complementar essa análise ao adicionar o espaço do convívio, do lazer, elementos 10 11 Elle ( la ville) est une machine à transformer la matière en symboles. (DUVIGNAUD, 1997, p.14) Ainsi la ville est-elle du “virtuel-en-acte”, du possible Qui incite de l´impossible. (LEFEBVRE, 1998, p. 109) Ambientes estudos de Geografia 181 importantes nesta discussão. Ao produzir os espaços de lazer e desfigurar os espaços públicos de convívio, como as praças e ruas, que passam a ser elementos complementares da paisagem, espaços de fluxo dos carros, garante-se mais um passo em direção ao domínio do espaço mercadoria. As praças, ruas e parques públicos se colocam no caminho do capital, que precisa reproduzir-se destruindo velhos espaços, para a criação de novos; é preciso refazer a cidade todo o tempo, reproduzindo e produzindo o novo urbano. Antigos espaços passam a ser espaços da memória expostos no museu das grandes cidades, servindo à indústria da cultura. O velho centro é agora Centro Histórico e como tal insere-se como memória, nos circuitos da indústria da cultura e do turismo. Essa indústria encontrou “seus parceiros” na velha elite patrimonialista e no setor imobiliário que viam, a contra gosto, os novos usos que a “sociedade de massa” estava impondo aos velhos espaços citadinos. É por isso que, estrategicamente, as políticas urbanas aparecem como requalificadoras daqueles espaços e que pinçam aqui e ali “produtos-obras” da história urbana, para que, como coisas, esses produtos sejam transfigurados em objetos começando a integrar novos circuitos de valorização.(SEABRA, 2001, p. 550) Ao transformar praças em estacionamentos, o poder público e o capital acabam com a possibilidade de espaços de convívio, lugar onde era viável a discussão das diferenças existentes no espaço urbano, constituindo-se como um obstáculo para a segregação, Seabra (2001, p. 551) chama-os de espaços qualitativos residuais da metrópole. As praças, ruas e parques públicos, quando desvinculados da racionalidade produtivista e relacionados com a identidade construída pela comunidade, são os lugares onde as diferenças podem ser debatidas. Se esse processo é bloqueado nas cidades, acaba acarretando ampliação das contradições existentes, mascaradas pela suposta passividade. O lazer, mais institucionalizado, o da produção e conservação de grandes parques urbanos, por exemplo, consegue atingir diferentes camadas sociais. Esses parques não significam a anulação dessas diferenças sociais, não produzem um encontro real entre essas camadas sociais, mas definem diferentes usos, a partir dessas diferenças sociais. Definem múltiplos usos. É onde a classe média se exercita e se diverte. É onde, para as camadas mais populares, se produzem encontros de intensa significação, tempo e espaço dos encontros de migrantes, vindos, muitas vezes, da mesma região e dispersos no cotidiano das grandes cidades. É o lugar da paquera, da festa. Também da festa oficial e oficializada, dos programas culturais promovidos pelas autoridades políticas. Mas esses parques e as praças são também lugar dos “excluídos” e de atividades ilegais: tráfico de drogas, encontro de homossexuais e michês, lugar de repouso de mendigos, lugar de arregimentação de trabalhadores “desocupados”, potencialmente disponíveis, portanto, momento de circuito das migrações temporárias, etc. A significação social desses espaços é múltipla. E cada um tem uma peculiaridade, quase irredutível. Através desses espaços, cria-se um novo ponto de vista, que não prescinde dos outros –o das estratégias políticas e econômicas: é o da prática espacial, que chega ao limite de recuperar a ação e a consciência da ação individuais, como vida social, produzida socialmente. Uma certa apropriação concreta e prática de um tempo e espaço, em conflito com as coações. (DAMIANI, 1997, p. 50) 182 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) É a práxis do espaço socialmente construído, onde podemos encontrar proposições que podem nos conduzir à formação de indivíduos realmente inseridos em uma comunidade. Considerações finais Os espaços privados de lazer, tal como os estudamos, escondem sua verdadeira face, ou seja, correspondem ao trabalho socializado, que na maior parte das vezes impede o acesso daqueles que os construíram. O espaço é socialmente produzido para então ser consumido de forma privada. Esse processo faz com que o espaço se transforme em uma mercadoria, por sinal muito rara, principalmente nas áreas metropolitanas. Neste contexto, a valorização da mercadoria é óbvia, e não pode ser desperdiçada com usos que não lhe confiram ampliação do valor de troca. Os espaços públicos de lazer, portanto, são encarados como uma forma de investimento sem retorno e além do mais perigosos, pois podem proporcionar o espaço para a participação das comunidades. O lazer entendido como momento de encontro entre pessoas que mantêm relações pessoais é capturado e toda sua espontaneidade é normatizada, e o espaço então passa a ser vendido como mercadoria, pois as relações de troca suplantam o uso. Enquanto os espaços públicos eram majoritários, as resistências e as possibilidades, no que se refere à conquista do espaço, poderíamos dizer que eram quantitativamente maiores, porque davam a oportunidade de se formarem grupos estáveis. A relação estabelecida com o espaço, de identidade e pertencimento, demandava em questionamentos no que se referia à apropriação do espaço, ampliando as chances de surgirem possibilidades e negatividades do processo. A partir do momento em que o espaço urbano, como espaço de concretização do trabalho coletivo, entra como mercadoria no processo de valorização, adicionando valor às outras mercadorias, acelera-se o processo de implosão das cidades, com sua ininterrupta construção e reconstrução, que impede a formação das relações estáveis, e conseqüentemente da conquista do espaço, passando então a acontecer o consumo do espaço. A implosão, a fragmentação do espaço vivido, faz com que se opte pela uniformização como forma de segurança, decretando o apogeu dos espaços normatizados de lazer. O consumo do espaço implica na aceleração da modernidade, ou da suposta modernidade, já que o espaço deve conter a novidade como qualquer outra mercadoria, para que se acelere também seu processo de circulação, diminuindo quantitativamente os espaços, onde as possibilidades de rupturas e resistências poderiam vigorar. Os objetos passam a ter mais valor que as relações pessoais; no caso do lazer, os equipamentos, brinquedos, espaços são mais importantes que a convivência, que sua prática pode proporcionar. Aliás, a convivência e a sociabilidade nos grupos pode ter maior ou menor sucesso através da forma como os indivíduos se relacionam com a modernidade, se conseguem se estimular ou não com a adrenalina das atividades modernas do lazer normatizado, quantas vezes as freqüentam, quantos espaços desse tipo já conhecem. Brincar nas ruas não garante aceitação nos grupos de classe média e média alta; não conhecer nenhum dos espaços Ambientes estudos de Geografia 183 privados de lazer , então, é inadmissível, e as pessoas ficam constrangidas em admitir isso. Evidentemente, não são todos que permanecem alheios às mudanças urbanas, assim elas não se estabelecem sem conflitos, pois provocam a fragmentação do espaço, que se torna uma mercadoria rara, vendida em pedaços, cada vez menores, e com “funções” extremamente diversificadas e especializadas, ou seja, existe o espaço da moradia, do trabalho, do encontro, do lazer, entre outros, fazendo com que o cidadão perca a noção de conjunto. Mas mesmo nos espaços especializados, e ao mesmo tempo fragmentados, por mais que se procure implantar o homogêneo, convivem na área urbana os diversos tempos da produção, como se o lugar, através da força das comunidades, assegurasse na presença de seus referenciais no espaço, seus pontos de resistência. Referências BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: ELFOS, 1995. CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CARLOS, A. F.A. . O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. ______. “Novas” contradições do Espaço. 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Trata-se, em verdade, de um procedimento sistemático circunspeto; pois que os pesquisadores necessitarão respeitar os limites de uma análise, sobretudo, de discursos – detalhe crucial que deles exige certos cuidados e ponderações. A atenção para com a cena histórica (eventos de caráter social e político), para com a biografia (em se tratando do exame da obra de autores) e, especialmente, para com o conteúdo discursivo mesmo (modos de reflexão contidos em publicações diversas) são os critérios fundamentais na empresa analítica. Em Dissertação de Mestrado, recentemente defendida junto ao Programa de Pósgraduação em Geografia da UNESP, campus de Rio Claro, é explorada parte da produção científica de um eminente geógrafo brasileiro. Speridião Faissol – o autor cuja obra recebeu tratamento – merece atenção especial por ter devotado boa parte dela ao que se costuma denominar, simplificadamente, de “Geografia Quantitativa”. Para sermos mais justos e precisos, precisaríamos perceber esta “nova” Geografia em sentido mais amplificado, mais implicante. A verdade é que nos anos sessenta consubstancia-se, em essência, uma Geografia claramente neopositivista; fato que subentende características adicionais (conforme veremos a seguir). Faissol, então, veio a ser um representante, no contexto doméstico, do movimento renovador da ciência geográfica. E é por ter assimilado, discutido e feito propagar seus pressupostos e efeitos, que ele se converte em autor de atuação merecedora de uma pesquisa mais detida. Não duvidamos que ele foi um dos principais consolidadores de uma Geografia Neopositivista Brasileira e esperamos que isso possa ser deduzido com certa facilidade pelos leitores deste capítulo. 224 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Neopositivismo e reflexos na Geografia Antes de explorarmos a produção científica de Speridião Faissol – e as implicações epistemológicas a ela atreladas – cabe-nos qualificar (ainda que brevemente) a escola quantitativa e “teorética” da Geografia, bem como sua matriz filosófica. O Neopositivismo é uma filosofia que (como a própria expressão sugere) vem oxigenar a genuína doutrina positivista. É claro que ele acaba por trazer caracteres completamente novos, destoando, de certa forma, de seu ancestral. Tratemos, então, de expor seu perfil característico. Podemos dizer, sem grandes riscos, que o Neopositivismo assenta-se sobre um, por assim dizer, “tripé” (REIS JÚNIOR, 2003, p. 22); isto é, compreende, simultaneamente, elementos antigos (herdados/mantidos da filosofia positivista), reformulados (resultantes de aprimoramento/adaptação) e novos (configurando sua peculiaridade). É mais ou menos consensual a idéia de que ele tenha se estruturado nas primeiras décadas do século passado; muito em função das reuniões do chamado Círculo de Viena. Este, composto por eminentes lógicos, matemáticos e filósofos da ciência (Hahn, Neurath, Carnap, Wittgenstein, entre outros), interessou-se em redefinir parâmetros para estabelecer a fronteira entre a ciência e a não-ciência. Aos seus membros parecia imprescindível livrar o conhecimento científico de todo e qualquer vestígio de metafísica; de toda sorte de vagas impressões, em outras palavras. Para isso, o acolhimento da linguagem matemática foi irresistível. Nada mais óbvio do que impregnar o discurso com sentenças logicamente erigidas e passíveis de análise formal (segundo os critérios da sintaxe simbólica, está claro) para torna-lo manipulável ou operacional. Eis, então, que já conseguimos destacar dois elementos daquele tripé: o antigo é o monismo metodológico que se configura a partir do momento em que uma aproximação da Matemática passa a ser amplamente preconizada (fato que termina por expressar, indiretamente, uma aproximação analógica entre as ciências naturais – mais afeitas à matematização – e as humanas), enquanto o reformulado (ou “antigo renovado”) no Neopositivismo é precisamente este monismo auxiliado, agora, pela análise lógica ou pela abstração intrínseca às Matemáticas. Mas, como mencionamos, há ingredientes novos acrescidos à mistura filosófica. Um deles – o qual terá traduções nas várias ciências – é o fato do Neopositivismo aceitar o paradigma apriorista. E o curioso é que o viés apriorista foi claramente rejeitado pelo positivismo clássico, quando este insistia em desdenhar a relevância dos juízos ou sentenças estipuladas, hipoteticamente, como pontos de partida para construções explicativas posteriores. Se o positivismo genuíno vira as costas para o a priori, o Neopositivismo salienta sua potencialidade explanatória. Assim, o procedimento científico neopositivista parte do enunciado protocolar (justamente o dado apriorístico) para que, mensurando suas propriedades e desdobrando-o em enunciados outros, possa vir a atestar a validade de uma explanação terminal confrontando-a com aquilo que se “mediu” primeiramente. A verdade é que essas três qualidades da doutrina dão margem a uma série de pressuposições que se estabelecem como sendo inerentes a ela (se bem que, como podemos deduzir, em alguns aspectos, igualmente circunscritos pelo positivismo genitor). Sciacca (1968, p. 292) nos informa sobre os valores que são caros ao Neopositivismo: Ambientes estudos de Geografia 225 • só descartando a metafísica alcançamos o conhecimento científico; • o empirismo deve ser estendido a todo o domínio do pensamento; • todas as ciências são matematizáveis; • experiência e linguagem completam-se reciprocamente; • só tem sentido o que é fisicamente verificável (pelo princípio do “fisicalismo” a Física entrona-se como ciência modelo); • proposições que não se prestem à verificação e à mensuração são destituídas de sentido; • a ciência não estuda leis objetivas da natureza, mas somente os dados da experiência mediada pelos sentidos ou por instrumentos. E o viés neopositivista vai replicar-se no domínio das disciplinas ainda órfãs de um norte conceitual e metodológico bem sedimentado. Previsivelmente, aquelas que devotavam atenção às questões humanas e sociais perceberam a vantagem que havia em se mirar no próspero exemplo da Física (o principal tesouro do Neopositivismo): resultados práticos nos quesitos estruturação e predição. Uma Geografia Neopositivista irá começar a se delinear nos anos cinqüenta do passado século, estando esta forja muito vinculada à disseminação dos valores cientificistas. O acúmulo de dados dizendo respeito a uma sociedade crescentemente complexa exigia arsenal técnico capaz de dar conta dos processos de coleção e tratamento das informações. Daí que os recursos analíticos disponibilizados pela Matemática viram-se incorporados também pela “nova” Geografia; esta, agora, interessada em transcender as monografias paisagísticas, revertendo o jogo a favor de uma ciência mais funcional, assentada no paradigma hipotéticodedutivo e sobre um objeto mais bem precisado: as organizações espaciais. O sentido de ordem imerso em tais organizações, justificava a explanação por meio das tão desejadas teorias (um primeiro vestígio neopositivista), pela via dos modelos (que são proposições a priori – um segundo vestígio neopositivista, portanto) e com o auxílio explanatório da análise sistêmica (que nada mais significou do que a formalização de um rigorismo lingüístico – arrematando, assim, uma terceira herança neopositivista). No Brasil, a manifestação da Geografia Neopositivista pode ser observada a partir do final da década de sessenta. E são dois os núcleos que mais detidamente procuraram exercitar os préstimos de uma ciência – desde havia uma década – comprometida com a especulação teórica e sua funcionalidade pragmática: a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, São Paulo (na figura de um grupo de professores de seu Departamento de Geografia) e o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (mais especificamente pelos trabalhos desenvolvidos por grupo de geógrafos lotados no Rio de Janeiro). Foi nesta última instituição que Speridião Faissol se revelou expoente dentro de uma, por assim dizer, Geografia Neopositivista Brasileira. Estimando a relevância de Speridião Faissol Speridião Faissol, nascido no ano de 1923 (em Ituiutaba, Minas Gerais), ingressa no IBGE logo no final da década de quarenta. Já formado geógrafo – na então Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro – começa a atuar no referido Instituto (por recru- 226 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) tamento) pela via do CNG (Conselho Nacional de Geografia), órgão muito vinculado às questões do planejamento territorial, criado e bastante ativo durante o 2o Governo de Getúlio Vargas (1951-1954). O planejamento – imerso nas discussões prioritárias do urbano e do regional – é justamente o tema que mais vai estar presente na produção científica de Faissol. Contamos algumas dezenas de artigos dedicados à reflexão sobre ele (em seus aspectos metodológicos e técnicos, sobretudo). E esse interesse que se mantém ao longo de sua carreira (dos anos cinqüenta aos noventa), apesar de, em parte, estar respondendo ao que do geógrafo era demandado institucionalmente, vê-se impulsionado pelas reformulações conceituais na Geografia. Basta que reconheçamos: a empresa quantitativa, matematizante, que caracterizou em grande parte a saliência de uma Geografia Neopositivista, tornava possível (ou pelo menos mais facilitado) o registro sistemático de informações diversas em natureza, dimensão e escala. A operacionalidade dos dados, desejada pela esfera da tomada de decisão (governos e seus órgãos de assessoria), aproximou, naturalmente, planejamento e tecnicismo. Faissol percebeu que as circunstâncias pediam a ultrapassagem da fase monográfica da Geografia; entendeu que o contexto requeria a formulação de teorias sobre processos espaciais (o que, digamos aqui, não significava, na sua opinião, o abandono dos estudos de caso). Acatou os ditames vindos de fora e inconformou-se com o determinismo e o possibilismo, que, segundo os críticos, apenas constatavam realidades, entronizando as observações de campo (uma herança positivista que se encontrou reduzida na Nova Geografia; mais afeita às estatísticas e teorizações e, neste sentido, tributária de um Positivismo “renovado”). Entendeu que auxílios poderiam muito bem ser buscados em campos alheios: da Economia poderiam ser absorvidas teorias locacionais e das ciências matemáticas, métodos analíticos confeririam objetividade aos dados. Faissol incorporou muito bem a revolução quantitativa, ao sustentar que a precisão e a especificação, trazidas por ela, eram propriedades necessárias a qualquer ramo científico. Na verdade, conforme salientamos há pouco, Speridião Faissol foi o representante do IBGE que mais destacadamente produziu trabalhos acerca da renovação metodológica. Sem essa sua atuação, no sentido de esclarecer, didaticamente, o histórico, o significado e as potencialidades da Nova Geografia, a propagação do ideário, digamos, pró-quantificação dificilmente prosperaria anos seguidos. Faissol interagiu com um grande número de pesquisadores estrangeiros (Brian Berry e Peter Cole, por exemplo). Geógrafos esses que estiveram muito engajados na disseminação pedagógica de uma Geografia assentada sobre o paradigma da análise espacial. Não há dúvida, portanto, que muito de seu próprio engajamento foi conseqüência do convívio com autores-ícone na cena internacional. Produziu artigos em parceria com alguns deles e por isso, conscientemente ou não, acabou fazendo as vezes de representante-mor, em nosso país, da Geografia Quantitativa. Mas devemos ter claro o fato do geógrafo – tal como se espera, aliás, que aconteça com qualquer autor circunscrito por circunstância social, histórica – apresentar interesses diversificados na linha do tempo. Isto é, a par de ser possível abstrair, de fato, elementos de verificação contínua (e entre estes, os de natureza neopositivista), também há, imerso no Ambientes estudos de Geografia 227 discurso do autor, elementos transitórios. Pelo que se deduz, os últimos articulam-se com as contingências próprias do processo de transição contextual no cenário político brasileiro. Convencionamos chamar a diversificação em Faissol de “nuances”, enquanto às continuidades verificadas nos referimos como “centralidades”. Comentemos algumas. Durante um longo período (do início da década de cinqüenta até meados dos anos sessenta, mais ou menos), Faissol empenhou-se nos estudos regionais, mais especificamente na questão da colonização de áreas do Centro-Oeste brasileiro. A ocupação dessas regiões, é bem verdade, esteve justificada por toda uma ideologia nacionalista associada à segunda gestão de Vargas (1951-1954). Assim, a idéia de interiorização, no sentido de promover a ocupação de sítios ainda relegados, terminou por mobilizar um grande corpo de profissionais subjugados pelo poder executivo (e o IBGE se inclui aqui). Os trabalhos técnicos converteram-se, pois, em projetos de assentamento racionalizado, compreendendo inúmeras excursões para reconhecimento dos locais. Faissol fez levantamentos circunspetos, dando pareceres acerca do andamento (prosperidade/fracasso) de colônias de imigrantes europeus, por exemplo. Mas é no período que se inicia na segunda metade da década de cinqüenta (justamente com o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960) que o geógrafo vai começar a se aproximar de temáticas e técnicas que viriam a se mostrar como sua marca registrada. Um contexto de aceleração do desenvolvimento industrial, bem como de atração de capitais estrangeiros (características que denotaram a expansão capitalista sobre a América Latina e que vieram a se manifestar pela articulação governamental através de planos de ação), só fez favorecer a incorporação, por parte dos órgãos técnicos, de procedimentos metodológicos mais eficientes. Estamos falando de procedimentos estatísticos para o tratamento das informações. Num primeiro momento, previsivelmente precários; mas com a “solidariedade” de países avançados, aprimoraram-se. Eis, então, que Faissol vai estar se imbuindo da causa quantitativa gradativamente, até o momento em que (isto ocorre mais ao término da década de sessenta) se constitui num de seus principais divulgadores. A par da propagação metodológica com a qual colaborou decisivamente, também tratou de realizar trabalhos de aplicação das operações matematizantes em estudos de caso. Participou, portanto, de uma série de comissões de estudo (análises técnicas), vindo a ser grato aos ensinamentos/convivências com geógrafos já eminentes no trato teórico e quantitativo das áreas de interesse da Geografia. Admiravelmente, a partir dos anos oitenta, Faissol não deixará de abordar temas de cunho econômico (dívida externa), social (iniqüidade, pobreza) e política (regimes, doutrinas ideológicas). O geógrafo discutirá, com propriedade, programas econômicos estratégicos (seus efeitos espaciais) e – muito preocupado – os assuntos relacionados com o fenômeno da globalização, tais como a soberania das nações e as implicações territoriais de um rearranjo no sistema-mundo. Por isso, exatamente por ver-se imerso numa circunstância histórica movente e complexa, vai por reparo na situação brasileira, detectando obstáculos endógenos e analisando conjunturas em escalas superiores (explanação sobre a cena mundial e seus subsistemas). Em sua obra, uma preocupação dessa natureza adentra os anos noventa. Bem, a essa altura, estamos aptos a destacar, pela via da abstração, três elementos que constituiriam, pois, a transitoriedade ou as “nuances” em Faissol. São três momentos 228 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) sucessivos no tempo que se permitem verificar na forma de interesses circunstancias (como falamos, amarrados pelo cenário histórico); são eles: projetos de colonização; procedimentos matemático-estatísticos; e análise de conjunturas. Por outro lado – ou seja, a despeito dessas manifestações bem demarcáveis cronologicamente – também conseguimos perceber elementos, por assim dizer, “sedimentados” em sua produção científica. E o fato de haver a constância de alguns vieses caracterizadores seus, acaba fazendo-nos deduzir que as nuances, ainda assim, não evitaram que se consolidassem a partir delas certas peculiaridades mais extensas no tempo e, por conseguinte, presumivelmente sobrepostas (são as “centralidades”). A prática da quantificação começa a aparecer no conteúdo dos artigos de Speridião Faissol na última metade da década de sessenta e vai se estender nas seguintes três décadas. Trata-se do exercício de cálculos matriciais, da análise de fatores e da composição de “scores”. O interesse pela reflexão ponderada a propósito dos significados teóricos e pragmáticos advindos com a Nova Geografia e sua replicação no Brasil é uma característica igualmente manifesta no referido transcurso. Neste caso, Faissol tratava de explanar sobre o objeto da ciência geográfica, sobre a cautela nas operações de abstração (envolvidas na lida dos modelos matemáticos) e sobre as implicações filosóficas da quantificação (riscos explicativos; endossamento de uma ciência fisicista, refém de analogismos; etc.). Estas são, portanto, duas centralidades no geógrafo: a quantificação de dados e a discussão epistemológica/ metodológica. Mas há, todavia, outras duas. Faissol demonstrou tremenda familiaridade com o pensamento sistêmico. Não é estranho, assim, que o geógrafo tenha lançado mão das ferramentas conceituais que ele – em sua versão formalizada (entenda-se, travestido de Teoria dos Sistemas Gerais) – ofertou às ciências. Conceitos de “hierarquia”, “retroalimentação”, “estado estacionário”, “entropia”, os quais figuraram como redenção, como “assepsia” dos discursos científicos, estiveram invariavelmente presentes no discurso de Faissol, mesmo em se tratando de artigos em que discutiu globalização ou questões macroeconômicas, por exemplo. Um último elemento que nos chamou a atenção nas leituras – uma quarta centralidade – foi justamente o interesse pelo tema do planejamento; talvez, de todos, o elemento de maior longevidade. Desde os anos cinqüenta até os noventa, a temática da planificação pró-desenvolvimento foi recorrente. Faissol sempre fez questão de deixar clara sua preocupação com a fundamentação técnica dos projetos que visassem ao equacionamento das desigualdades regionais brasileiras. Essa fundamentação presumia, é claro, um papel decisivo a ser jogado pelos geógrafos e estes – preconizava – deveriam estar aptos a manejar instrumental de efeito organizacional: técnicas de coleta e análise de dados; métodos de correlação; ferramentas lingüísticas operacionais; etc. Sustentamos, por fim, que são quatro as centralidades em Faissol, quais sejam: a quantificação, a discussão metodológica (caracterizada pela recomendação da cautela), a linguagem sistêmica e o planejamento. Mas, para arrematar a presente seção, cabe-nos apontar qual(is) delas nos permite(m) vislumbrar o viés neopositivista no discurso do geógrafo. Vejamos. Comentamos, ainda que em linhas bem gerais, o fato da doutrina neopositivista ter elegido, como condição sine qua non, o recurso a um monismo fraseológico; isto é, a um Ambientes estudos de Geografia 229 molde lingüístico universal, pelo qual os enunciados e as sentenças pudessem alcançar o status de científicas. Bem, a linguagem sistêmica, tendo encontrado campo fértil primeiramente no campo da termodinâmica (ramo especializado da Física), estendeu-se, analogicamente, para o estudo dos organismos vivos; daí, não precisou saltar muitas fronteiras até atingir em cheio a Geografia dos anos sessenta (às voltas com uma formalização conceitual próspera). Não duvidamos, portanto, que um claro indício neopositivista em Faissol há de ser precisamente esse seu manejo consciente com a linguagem em sistemas. Mas uma tal aproximação das ciências naturais não se deu tão somente pelo usufruto do acervo conceitual empreendido inicialmente para elas (o modelo sistêmico). A prática da quantificação foi, em grande medida, uma conseqüência quase irresistível. Os recursos matemáticos de tratamento da informação (álgebra linear, geometrias espacial e analítica, métodos estatísticos variados, etc.) acabaram sendo incorporados como uma extensão natural do novo vínculo que a Geografia passou a cultivar com as ciências sistemáticas. Em outras palavras, a disciplina, uma vez comungando da linguagem científica, viu-se brindada por modernas técnicas operacionais de natureza matemática. Daí que a prática quantitativa é, sim, um indício neopositivista (dada a aproximação funcional das ciências que sugere e dada também a institucionalização do argumento lógico-simbólico no trato dos fenômenos). Este indício é, a exemplo do que acontece no caso do dialeto sistêmico, amplamente verificado na obra de Speridião Faissol e reflete, pois, um segundo vestígio neopositivista em seu discurso. Coleção de textualizações: uma panorâmica comentada Depois do sobrevôo rápido sobre o que entendemos ter sido a atuação científica de Speridião Faissol, resta-nos exemplificá-la por meio de textualizações abstraídas de alguns de seus artigos. Antes disso, permitam-nos destacar seis artigos em particular, os quais – nos parece – são os melhores veículos para que os leitores interessados possam perceber mais detidamente o pensamento geográfico de seu autor. Ademais, são excelentes provas do que acreditamos ser o principal predicado de Faissol: a fé ponderada numa Geografia que havia se remodelado. Todos foram publicados pela Revista Brasileira de Geografia (melhores identificações na seção de Referências Bibliográficas), clássico periódico do IBGE, no qual encontramos a maior parte da produção do autor. São eles: 1o) “As grandes cidades brasileiras: dimensões básicas de diferenciação e relações com o desenvolvimento econômico. Um estudo de análise fatorial”, de 1970 (onde podemos antever o duradouro interesse de Faissol em explanar sobre o tema urbano pela via da análise de fatores e demais técnicas quantificantes) ; o 2 ) “A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no Brasil”, também de 1970 (texto bastante didático e esclarecedor que escreveu junto com Marília V. Galvão, uma parceira freqüente) ; o 3 e 4o) “Teorização e quantificação na geografia”, de 1972 e 1978 (trata-se de dois artigos curiosamente homônimos que dão conta de discutir as implicações da renovação metodológica na Geografia, sendo que no segundo o autor vai 230 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) especificar técnicas matemáticas mais sofisticadas) ; e 5 e 6 ) “A geografia na década de 80; os velhos dilemas e as novas soluções”, de 1987 e “A geografia quantitativa no Brasil: como foi e o que foi?”, de 1989 (dois trabalhos nos quais Faissol esbanja coerência argumentativa e nos presenteia com sua apologia comedida da quantificação; na verdade, são uma prova de que o autor não deixou que suas convicções fossem maculadas pelo tempo). Comecemos, então, a exposição de textualizações, enquadrando-as em dois subgrupos específicos (o primeiro dizendo respeito às nuances e centralidades): o o Sendo a Amazônia muito grande para o volume de recursos que se pode mobilizar, a estratégia a seguir deverá ser a de formação ou expansão de pólos de crescimento, empresariais ou pólos de colonização; os primeiros de responsabilidade de empresas privadas devidamente assistidas e orientadas, e os segundos da responsabilidade também do poder público, como interessado na ocupação do território. (FAISSOL, 1967, p. 55, grifo nosso). Esta primeira textualização vem ilustrar bem um daqueles três elementos de transitoriedade (mais especificamente o inicial), exemplificando o contato que Faissol teve com o tema da colonização orientada (devidamente assistida por atores sociais diligentes). Reparemos na seguinte: Como esta economia mundial opera num sistema político que reitera e defende o modelo político de dominância econômica, somente uma revisão, em profundidade, dos conceitos e do consenso relativos a esta mesma economia mundial, seria capaz de alterar o quadro. Um quadro que precisa considerar a idéia de um mundo só, mas um mundo só de todos e não só dos países ricos. (FAISSOL, 1989a, p. 21, grifo nosso). Aqui, por sua vez, observamos a simpatia que teve, mais ao término de sua carreira, pela temática da globalização e suas contradições. Isso não significa – devemos frisar – que o geógrafo tenha exercitado um discurso político-ideológico combinado com a fraseologia tipicamente marxista. Ao contrário, Faissol apresenta certas reservas com relação ao pensamento geográfico questionador de estilo mais radical. Vejamos, agora, algo de centralidade: [cautela] se deve ter ao aplicar um modelo matemático abstrato a uma realidade empírica, na qual uma variada gama de fatores indeterminados pode perturbar a regularidade do modelo. (FAISSOL, 1973, p. 12, grifo nosso). Esta é uma breve amostra textual da consciência que Faissol cultivou das fragilidades inerentes às operações de abstração. No caso, o geógrafo comentava o fato da modelagem matemática não conseguir oferecer reproduções perfeitas e, indiferentes às contingências e à variável temporal, plenamente sintonizadas com a realidade da qual se extraem os elementos construtores do modelo. Ainda com respeito à centralidade do autor ligada às ponderações e cuidados meticulosos: [...] não é que não haja analogias entre processos físicos e humanos¤sociais como pretendem os positivistas¤newtonianos, mas sim que estas analogias Ambientes estudos de Geografia 231 não podem ser erigidas em modelos, sem discussão, [...] Na raiz de muitas críticas mais sérias à fase quantitativa da Geografia está esta questão. (FAISSOL, 1994, p. 33-34, grifo nosso). Já aqui Faissol lembra os riscos intrínsecos à empresa analógica. Aliás, não foram poucas as vezes em que ele sentenciou como perigosas as tentativas de adaptação de terminologias e ou métodos advindos das ciências naturais. Seria preciso sempre ponderar acerca da viabilidade lingüística dos conceitos imigrantes e, ao mesmo tempo, certificar-se da real relevância desses furtos metodológicos. Como sugerimos, duas centralidades bem evidentes na obra de geógrafo são o interesse pela prática (circunspeta) do planejamento e o amplo manuseio da linguagem sistêmica (verificado, sobretudo, pelo uso de conceitos associados à Teoria dos Sistemas Gerais); exemplifiquemos isso com as seguintes duas textualizações: Antes de se tomar a decisão final em torno do assunto [colonização dirigida em Goiás], é preciso que todos os pontos tenham sido focalizados; do contrário, será correr o risco de ver tão importante iniciativa periclitar ou mesmo malograr por falta de previsão e planejamento. (FAISSOL, 1949b, p. 758, grifo nosso). Analisado segundo as concepções de um sistema, o fluxo de migrantes de uma área para outra pode, não só ser entendido como um fluxo energético, como também os processos de perda e ganho que este fluxo acarreta podem ser vistos em termos de ajustamentos homeostáticos, [...] (FAISSOL, 1971, p. 163, grifo nosso). Com as seis citações acima esperamos ter ilustrado, minimamente, o subgrupo das nuances e centralidades. Passemos, então, ao segundo subgrupo, o qual dirá respeito mais exatamente ao procedimento quantitativo (suas vantagens e reflexos). Uma primeira textualização nos permite constatar que Faissol estava mesmo a par dos significados utilitários da Geografia Neopositivista: [...] um surto de teorização e quantificação na Geografia permitiu de um lado o esforço de aglutinação de todos os princípios gerais já estabelecidos na Geografia e a absorção de um conjunto de formulações comumente usadas nas ciências sistemáticas, tendendo a formar teorias geográficas. (FAISSOL, 1972a, p. 163, grifo nosso). Refletindo bem a adaptação lingüística (do meramente descritivo-verbal à estilização sistêmica) que tanto se esmerou em tornar factível, temos o próximo trecho extraído de artigo no qual abordou a questão da diferenciação regional do desenvolvimento econômico: “A utilização dos conceitos da teoria dos sistemas gerais pode iluminar bastante os raciocínios sobre o desenvolvimento dos dois processos – o regional e o nacional – mas sobretudo pode mostrar a profunda interdependência entre os dois, uma vez que o regional é um subsistema do sistema nacional. (FAISSOL, 1970, p. 121). Uma tendência notável em Faissol é, como já mencionado, a retidão que se preocupou em recomendar nas ocasiões em que, indiretamente, formava usuários em potencial. Falamos “indiretamente” porque seus artigos não tinham, em essência, o propósito estrito 232 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) de ensinar os interessados a manejar técnicas de tratamento estatístico (ainda que, pela via indireta, de fato, tenha terminado por promover explanações pedagógicas com estudos de caso). E no sentido dessa sua coerência, desse seu comedimento em não mitificar as benesses da quantificação, conseguimos visualizar passagens em que mescla convicção (fé na fecundidade dos métodos então recentes) e parcimônia (ciência de que há fatores limitantes invariavelmente envolvidos); um exemplo conexo: [...] embora a linguagem matemática não acrescente conteúdo à linguagem de qualquer ramo das ciências sociais ou biológicas, pois a sua própria essência é ser abstrata, ela contém no seu bojo o fundamento do argumento lógico. Ela obriga [...] a pensarmos logicamente. (FAISSOL, 1972b, p. 84-85, grifo nosso). Cabe-nos também chamar a atenção para o fato de Faissol ter discordado da impressão simplista, segundo a qual uma Geografia Quantitativa, aos moldes do Neopositivismo, apenas encontrou ambiente propício na cena brasileira em virtude de, nos anos sessenta e setenta, o país ter sido regido politicamente por governos defensores de práticas autoritárias. A idéia (simplória) imersa é a de que haveria uma sintonia natural e inexorável entre os regimes que mascaram desigualdades, contradições e injustiças sociais e as práticas técnicocientíficas baseadas em postulados abstratos de maximização de variáveis. Estas práticas remontariam à questão da eficiência – um conceito, de fato, muito ligado aos paradigmas de cunho capitalista. Bem, Faissol simplesmente não se deixou levar por essa muito vaga impressão, conforme nos deixam claro as seguintes duas textualizações: [...] podia-se constatar que o temário da Conferência [Conferência Regional da União Geográfica Internacional, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1982] e os temas dos expositores continham numerosos assuntos de inspiração social e mesmo marxista, sem que a isto tivesse qualquer observação nem dos organizadores, nem da direção do IBGE, que foi o principal patrocinador; o que foi até objeto de alguns comentários na crônica internacional a respeito, que ao ressaltar o alto nível profissional em que se realizou a Conferência, estranhava esta liberdade conceitual e mesmo ideológica, dado o fato de estar isto acontecendo num momento de governo militar autoritário e de direita. (FAISSOL, 1989b, p. 23-24, grifo nosso). A preocupação com relevância social foi, em muitos casos, interpretada como descartando métodos quantitativos de análise, pois muitos deles se constituíam em funções otimizadoras de eficiência, portanto contrários aos objetivos de eqüidade, o que apenas revelava um certo desconhecimento do que é uma função otimizadora, que poderia otimizar a distribuição de rendimentos, por exemplo. (FAISSOL, 1987, p. 9, grifo nosso). Para arrematar essa breve panorâmica, selecionamos um extrato no qual o autor deixa transparecer seu desacordo com um dos preceitos clássicos na doutrina positivista: o da extirpação dos enunciados (“pseudo-científicos”) contaminados pelas ideologias: [...] a teoria jamais poderia ser socialmente neutra, como às vezes se pretende, pois pensamento reflexivo implica nossa própria visão do mundo, o que deixa inaplicável a idéia positivista de value free no processo de Ambientes estudos de Geografia 233 conhecimento científico. (FAISSOL, 1987, p. 12, grifo nosso). Por outro lado, a negação desta “recomendação” positivista – desta conduta (ingênua) de livrar as sentenças dos juízos de valor – não impediu que se vissem imersos, no discurso de Faissol, alguns dos caracteres tipicamente neopositivistas. Não houve, portanto, a negação de um Positivismo, por assim dizer, “reconfigurado”. Considerações finais O exame dos artigos de Speridião Faissol presenteia seu leitor em dois aspectos. Em primeiro lugar, uma leitura sistemática (guiada por parâmetros pré-estabelecidos) tende a revelar todo um acervo de experiências com a prática científica. Para os desavisados – aqueles que, por ventura, nada saibam a respeito da atuação desse geógrafo na cena brasileira – até pode causar surpresa o grau de envolvimento que o profissional foi capaz de devotar às, digamos, “coisas da Geografia”. Coisas que, com sabemos, ainda não convergiram a fim de, finalmente, compor uma base epistemológica bem coesa e de consenso mínimo. Em verdade, sabedor dessa desordem intrínseca, Faissol desempenhou uma porção de atividades dentro do amplo espectro de interesses da disciplina, sondando, pacientemente, um norte teórico-metodológico que pudesse ser sua redenção. Veio a se deparar, nos fins da década de sessenta, com aquilo que – teve para si – parecia ser a saída providencial para um ajustamento definitivo da Geografia. O segundo regalo com que Faissol nos presenteia – a par, portanto, da própria riqueza informativa (em termos de história e contextos vividos) – diz respeito exatamente às profundas e pedagógicas reflexões que fez a propósito da Nova Geografia. Posto que elas são muito mais do que simples revisões bibliográficas ou exposições pobres em juízo pessoal, seu conteúdo obriga-nos a rever impressões que possivelmente ainda cultivemos; sobretudo aquelas que nos constrangem especulações de base fisicista ou organísmica (temidas ou ferozmente atacadas). Ler Faissol é educar-se. Ele nos ensina, mesmo sem saber, que algum anarquismo ainda é possível em ciência, mas o faz apontando-nos, paternalmente, todas as armadilhas. Referências FAISSOL, S. Problemas de colonização na Conferência de Goiânia. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 274-278, abr./jun. 1949a. 234 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ______. O Mato Grosso de Goiás. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 7, n. 79, p. 745750, out. 1949b. ______. Amazônia. In: FUNDAÇÃO IBGE. Curso de geografia para professores do ensino superior: geografia regional. Rio de Janeiro: IBGE, 1967. p. 31-58. ______. As grandes cidades brasileiras: dimensões básicas de diferenciação e relações com o desenvolvimento econômico. Um estudo de análise fatorial. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 87-130, out./dez. 1970. ______. Migrações internas – um subsistema no processo de desenvolvimento. 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O impacto das crises da energia e da dívida externa no processo de desenvolvimento da América Latina e do Brasil. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 51, n. 3, p. 7-24, jul./set. 1989a. ______. A geografia quantitativa no Brasil: como foi e o que foi? Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 21-52, out./dez. 1989b. ______. O espaço, território, sociedade e desenvolvimento brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE, 1994. GALVÃO, M. V.; FAISSOL, S. A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no Brasil. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 5-22, out./dez. 1970. REIS JÚNIOR, D. F. da C. O humano pelo viés quantitativo: um exame do (neo)positivismo em Speridião Faissol, através da leitura de textos selecionados. 2003. 141 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2003. SCIACCA, M. F. História da filosofia. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968. A APRENDIZAGEM ESCOLAR DO CONCEITO DE USO DO TERRITÓRIO POR MEIO DE CROQUIS E FOTOGRAFIAS AÉREAS VERTICAIS Valéria CAZETTA Rosângela Doin de ALMEIDA Imagens e fotografias aéreas aparecem continuamente em matérias de jornais e revistas, por isso, novas perspectivas para a Didática de Geografia tornam-se necessárias no desenvolvimento de práticas de sala de aula e sua devida avaliação para com esse instrumental, principalmente no momento atual, em que as imagens passaram a veicular, de forma vertiginosa, a nossa comunicação com o mundo; afinal, elas possuem uma dimensão pedagógica. Dentre as diversas formas de representação do espaço geográfico (mapas, cartas topográficas, maquetes, imagens de satélite), trabalhamos com as fotografias aéreas verticais em branco e preto (escala 1:5.000) e mais dois mosaicos também de fotografias aéreas verticais em branco e preto (escala 1:25.000): um referente ao ano de 1972 e o outro ao ano de 1995. Assim como as imagens de satélite, as fotografias aéreas verticais apresentam o espaço em toda sua complexidade, inexistindo uma seleção da informação. A seleção da informação para este último tipo de documento é dada pela escala e pelo enquadramento da câmera aérea fotográfica. Para fins escolares, a utilização deste tipo de fotografia esbarra em dois tipos de dificuldades: • a restrita produção dos levantamentos aerofotogramétricos; • o difícil acesso a este tipo de documento, pois pertence a órgãos públicos ou a empresas especializadas, que não as liberam para o domínio público. Além disso, nas grades curriculares dos cursos de licenciatura em Geografia inexiste o Sensoriamento Remoto aplicado ao ensino de Geografia. Se existe é como uma disciplina técnica (e não como área da Didática) da formação do geógrafo que irá trabalhar com Sensoriamento Remoto para fins de pesquisa aplicada ou empresarial. Então, como explicar que o professor tenha este conhecimento aplicado ao ensino se ele não existe sistematizado em nenhuma instância? Nesta pesquisa investigamos como os alunos constroem/aproximam-se do conceito de uso do território (SANTOS; SILVEIRA, 2001) por meio da elaboração de croquis1. A partir desta pergunta diretriz delineamos a hipótese de nosso estudo de que é possível por meio da elaboração de croquis construir o conceito de uso do território, porque tal atividade pode possibilitar aos escolares realizar a passagem daquilo que é polissêmico (fotografias aéreas 1 Chamamos de croquis os overlays obtidos em papel vegetal pelos escolares por meio da fotointerpretação. 216 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) verticais – pré-mapas) para o que é monossêmico. Para tanto, definimos como objetivo: desenvolver e avaliar procedimentos de ensino com escolares do terceiro ciclo (6a série) do Ensino Fundamental sobre como se dá a construção/aproximação do conceito de uso do território a partir da elaboração de croquis utilizando-se das fotografias aéreas verticais. Enquanto recurso metodológico para registrar os acontecimentos presenciados e vividos em sala de aula, adotamos o “diário de campo”, através do qual relata-se o que se olha?; como se olha? e o que faz (ou poderá fazer) com o que está olhando? (PELISSARI, 1998, p.1; ZABALZA, 1994 ). Após cada aula, relatava no “diário de campo”, as maneiras de resolução dos problemas encontrados pelos alunos, suas dificuldades, seus modos de raciocínio, seus comentários e todas as situações apresentadas tanto em sala de aula como na escola. Por meio da pesquisa participante, observamos em um primeiro momento a classe em que ministramos as aulas, para irmos ambientando-nos e conhecendo melhor os sujeitos da escola (alunos e professores). Bogdan e Biklen (1994, p. 125) afirmam que: [...] num dos extremos situa-se o observador completo. Neste caso, o investigador não participa em nenhuma das atividades do local onde decorre o estudo. Olha para a cena, no sentido literal ou figurativo, através de um espelho de um só sentido. No extremo oposto, situa-se o observador que tem um envolvimento completo com a instituição, existindo apenas uma pequena diferença discernível entre os seus comportamentos e os do sujeito. Os investigadores de campo situam-se algures entre dois extremos. Nesta pesquisa, situamo-nos no extremo oposto, ou seja, observadora com envolvimento completo com a instituição. Portanto, definimos inicialmente o tempo em que ficaríamos realizando as observações na escola e depois o período das aulas, pois de acordo com Bogdan e Biklen (1994, p. 125) “é necessário calcular a quantidade correta de participação e o modo como se deve participar, tendo em mente o estudo que se propôs elaborar”. Na elaboração da atividade de ensino (na concepção de Leontiev, 1964), constituída por dez fichas de trabalho, organizamos o mapa conceitual da figura 1. Os mapas ou esquemas conceituais, no dizer de Moreira e Buchweitz (s.d., p. 13) são [...] diagramas hierárquicos indicando os conceitos e as relações entre esses conceitos [procurando] reflectir a organização dos conceitos de uma disciplina ou parte de uma disciplina, de um livro, de um artigo, de uma experiência laboratorial, da estrutura cognitiva de um indivíduo sobre um dado assunto, de uma obra ou de uma outra fonte ou área de conhecimento qualquer. Na seleção das fotografias aéreas verticais na elaboração das dez fichas de trabalho para o desenvolvimento da pesquisa em sala de aula utilizamos dois critérios (FORESTI; HAMBÚRGUER, 1995): o funcional - áreas residenciais, comerciais, industriais, rurais, etc; na definição deste critério levamos em consideração as atividades principais desenvolvidas em cada bairro; e o socioeconômico - neste critério consideramos a setorização2 realizada de acordo com o padrão de vida da população de Rio Claro. Ambientes estudos de Geografia 217 Para que os escolares conseguissem atingir ao final da atividade, os padrões de uso do território eles deveriam conseguir interpretar uma fotografia aérea vertical, utilizando-se das “chaves de interpretação” (figura 1). E ao final da atividade, concluírem que a dinâmica no uso do território, em princípio, é um processo que se dá pela transformação do uso rural em uso urbano do território. Estabelecemos quatro módulos no desenvolvimento da pesquisa na escola. No primeiro módulo, abordamos as transformações ocorridas nas técnicas fotográficas paralelamente às transformações ocorridas na aviação. No segundo módulo, enfocamos os pontos de vista vertical e oblíquo e as “chaves de interpretação” por possibilitarem a descrição e a fotointerpretação. Estas chaves implicam em padrões de uso do território que resultam na elaboração dos croquis, apresentando ao aluno como é o uso de um determinado bairro ou lugar. Como a fotointerpretação envolve primeiramente a fotoleitura (observação e detecção), depois o reconhecimento-identificação dos objetos, padrões-feições, e por fim a fotoanálise, destacamos, neste estudo as seguintes “chaves”: • tamanho; • forma: plano de um objeto permitindo distinguir um prédio de uma casa; • cor (tonalidade): expressa em tonalidade do preto ao branco com graus intermediários de cinza e é afetada pela luz refletida ou absorvida e pela textura das superfícies; • textura: é criada pelas repetições tonais em grupos de objetos; • feições que lhe são associadas: sombra, padrão, etc. O terceiro módulo consistiu na elaboração dos croquis pelos escolares que lançaram mão das “chaves” para atingir os padrões de uso urbano e rural do território. O quarto módulo concluiu a atividade, tratando da transformação no uso do território em Rio Claro (SP-Brasil) nas décadas de 70 e 90. Na elaboração dos primeiros croquis, os alunos apresentaram certa “resistência” quanto a esse conhecimento novo. O sujeito [...] quando em face de objetivos que não pode atingir diretamente, de situações problemáticas para cuja solução não dispõe de condutas adequadas, tem de resolvê-las mediante o estabelecimento de combinações novas de esquemas ou modificações dos esquemas anteriores. (DELVAL, 1998, p. 89). Esta resistência ocorreu, provavelmente, devido ao próprio instrumental técnico utilizado, no caso, as fotografias aéreas verticais, pois os escolares desconheciam-nas e necessitaram criar novos esquemas de conhecimento para apropriarem-se deste conhecimento novo. Nos croquis posteriores, a “resistência” oferecida pelas fotografias aéreas verticais foi diluindo-se. Para Miras (1998, p. 61), [...] uma aprendizagem é tanto mais significativa quanto mais relações 2 Esta setorização foi feita a partir do projeto “Integrando universidade e escola através da pesquisa em ensino: atlas municipal escolar”, coordenado pela profa. Dra. Rosângela Doin de Almeida (Depto. de Educação/Instituto de Biociências - Universidade Estadual Paulista/Unesp - Rio Claro/SP/Brasil), no período de março de 1997 a maio de 1999. 218 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Figura 1. Conteúdo temático geral da atividade: o uso do território Elaborado por Valéria Cazetta Ambientes estudos de Geografia 219 com sentido o aluno for capaz de estabelecer entre o que já conhece, seus conhecimentos prévios e o novo conteúdo que lhe é apresentado como objeto de aprendizagem. Essa resistência não quer dizer aquela referente aos alunos quanto à aprendizagem, mas a resistência oferecida pela fotointerpretação e elaboração dos croquis à aplicação dos esquemas que os alunos já possuíam anteriormente, isto é, esta atividade exigiu dos escolares a criação de outros esquemas, que foram aglutinados aos esquemas anteriores, na realização desta atividade. Esta “resistência” pode estar associada também à prática do professor que acompanhava aquela classe, que possui outras concepções sobre o processo educativo. Os três primeiros croquis representam simultaneamente tanto o conceito (uso do território) como a resistência do ambiente, no caso, a elaboração de croquis a partir de fotografias aéreas verticais na aquisição de um conceito novo. Para apreender esta atividade, os alunos tiveram que se apropriar de outros conceitos, tanto que a resolução da ficha de trabalho 1 era pré-requisisto para a seguinte e, assim, sucessivamente. Na passagem do módulo I para o módulo II e do módulo II para o módulo III, não verificamos dificuldades na aprendizagem dos escolares. Porém, o módulo III, por introduzir conceitos que mobilizaram novas habilidades dos alunos, que estavam habituados a estabelecer uma relação específica de apropriação do conhecimento escolar mediada pelo professor, eles tiveram que criar novos esquemas para lidar com a atividade. A criação destes esquemas demandou em certo tempo. Constatamos que, por meio de croquis obtidos de fotografias aéreas verticais – representações monossêmicas semelhantes a mapas (pré-mapas) -, no contexto de uma atividade de ensino (LEONTIEV, 1964 ), alunos do Ensino Fundamental constroem o conceito geográfico de uso do território. A aproximação do conceito teórico ocorreu através da aglutinação dos esquemas que os alunos já possuíam aos esquemas novos criados. Por exemplo, eles representaram os terrenos vazios e as áreas verdes, a partir da concepção que tinham, isto é, a partir dos esquemas de conhecimentos existentes. Porém, a diferenciação destes dois quesitos exigia uma acuidade de fotointerpretação. Esta habilidade exigiu que os alunos criassem esquemas novos, os quais, por sua vez, foram aglutinados aos esquemas anteriores. O conceito de uso do território envolveu tanto os esquemas de ação quanto os esquemas abstratos. O primeiro, no caso desta pesquisa, refere-se propriamente à elaboração dos croquis. O segundo diz respeito à resolução das fichas de trabalho e produção dos textos. Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada, na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. (ARENDT, 2000, p.191). Estes esquemas estiveram envolvidos simultaneamente, pois os alunos, ao elaborarem os croquis, sentiram-se estimulados pela idéia de “nascimento” de um conhecimento novo, no sentido dado por Arendt (2000, p.190), e responderam a isso por iniciativa própria, 220 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ao estarem dispostos a criar esquemas novos. Este nascimento de um conhecimento novo estimulou também habilidades como: observar, comparar, diferenciar e classificar. Assim, a diferença de adensamento das construções, bem como sua organização espacial, emergiram através dos croquis. Isso possibilitou aos alunos, durante as discussões em grupo por meio de esquemas de interação social, verificar como, por que e com que finalidade o território é usado. Para se aproximar deste conceito, o domínio das “chaves de interpretação” é prescindível, porque estas foram circunstanciadas pelas relações que os escolares estabeleceram com este conhecimento. Isto está impresso nos croquis, motivo pelo qual estes não foram discutidos pelas “chaves”, conforme havia imaginado. Tanto que, apesar de nos três primeiros croquis, a representação das áreas verdes e terrenos vazios ser parcial, nas respostas destas fichas de trabalho, verificamos os atributos decisivos apontados, enquanto critérios de diferenciação de um bairro para outro. Além disso, temos que considerar também a resistência oferecida por este instrumental técnico (as fotografias aéreas verticais). Isso nos auxiliou a verificar como um conhecimento produzido na universidade, ao ser transposto para a escola, recebe uma ressignificação devido ao “triângulo didático” (MÉRENNE-SCHOUMAKER, 1999) que envolve as relações professor-saber, aluno-saber e professor-aluno. As constatações proporcionadas por esta pesquisa evidenciam que as fotografias aéreas verticais favorecem a representação de um conceito/sistema de conceitos à medida que possibilitam concomitantemente a sua construção teórica. Disso compreende-se que estas fotografias utilizadas na passagem para a representação bidimensional permitem caminhos mais promissores no processo de ensino e aprendizagem de conceitos geográficos. Contudo, o ensino de Geografia nas séries iniciais seria melhor empreendido se partisse das fotografias aéreas verticais (pré-mapas) para levar à passagem daquilo que é polissêmico para o que é monossêmico. Caberia ainda verificar como este conceito poderia ser aprofundado nas séries posteriores empregando, além das fotografias aéreas verticais, as imagens de satélites, e incluindo também outra rede de conceitos, a qual mobilizaria provavelmente novos esquemas. Referências ARENDT, H. A condição humana. Tradução R. Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. Ambientes estudos de Geografia 221 BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Tradução M. J. Alvarez e S. B. Santos. Portugal: Porto, 1994. DELVAL, J. Aprender a aprender. 3. ed. Tradução J. P. Santos. Campinas: Papirus, 1998. FORESTI, C.; HAMBURGER, D. S. Sensoriamento Remoto aplicado ao estudo do uso do solo urbano. In: TAUK-TORNISIELO, S. M.; GOBBI, N.; FOWLER, H. G. Análise ambiental: uma visão multidisciplinar. 2. ed. São Paulo: Edunesp, 1995. p.143-149. LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1964. MÉRENNE-SCHOUMAKER, B. Didática da Geografia. Tradução C. Marçal. Lisboa: Asa, 1999. MIRAS, M. Um ponto de partida para a aprendizagem de novos conteúdos: os conhecimentos prévios. In: COLL, C.; MARTÍN, E.; MAURI, T. et al. O construtivismo na sala de aula. Tradução C. Sclilling, 5. ed. São Paulo: Ática, 1998. (Série Fundamentos) MOREIRA, M. A.; BUCHWEITZ, B. Novas estratégias de ensino-aprendizagem: os mapas conceptuais e o vê epistemológico. Coimbra: Plátanos, [s.d.] PELISSARI, M. A. O diário de campo como instrumento de registro. 8p. 1998 (Mimeografado). SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001. ZABALZA, M. A. Diários de aula. Contributo para o estudo dos dilemas práticos dos professores. Porto: Porto Editora, 1994. A AGRICULTURA E ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO - O CASO DO CHAPADÃO, NO MUNICÍPIO DE JAGUARI, RS, NOS ÚLTIMOS 40 ANOS. Valdemar VALENTE Manuel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy Introdução As transformações técnico-científicas são permanentes, no entanto não atingem simultaneamente os diversos espaços. O desenvolvimento tecnológico torna o processo de produção capitalista mais flexível, no sentido de utilizar mais máquinas e menos mão-deobra, favorecendo a acumulação do capital, não se restringindo, no entanto, à acumulação no campo econômico, mas também ao político, social e espacial. Não somente pela presença de inovações tecnológicas que um espaço se renova e se organiza, assim como se interliga com os demais, mas também pela forma como se organiza a produção, bem como pela estrutura que se cria e pela função que determinada área passa a ter no processo de acumulação em nível regional, nacional ou internacional. Na pesquisa geográfica, o estudo da organização do espaço se consolida e se valoriza à medida que são destacados os estudos locais e regionais, uma vez que a organização espacial é indicativo da existência de uma unidade integrada resultante de um produto terminal (no sentido de concluído), só que esse produto terminal nos parece relativo, visto que o espaço está em constante modificação e transformação. O estudo da organização espacial envolve relações, combinações, interações, conexões e localizações, processados de forma dinâmica entre os elementos que a constituem e que dão origem à diversificação de formas espaciais. Para analisar a evolução da organização do espaço, temos que pressupor, inicialmente, a existência do meio natural que, mediante a ação humana e através do uso da técnica, transforma-o em espaço geográfico. O avanço da ciência permite que o meio técnico científico seja incorporado ao espaço geográfico, possibilitando outras formas de organização do espaço. Atualmente, além da técnica e do meio técnico científico, ainda compõe o espaço geográfico o conteúdo técnico-científico informacional. Desse modo, novas formas de organização espacial são incorporadas. Porém, “um meio não suprime o outro, por isso o espaço geográfico é uma acumulação desigual de tempos”, segundo Santos (1988, p. 6). A ação humana geradora da organização espacial (em termos de forma, movimento e conteúdo de natureza social) é caracterizada pelo trabalho dos atores (pessoas) que deixam suas marcas sobre o espaço com o objetivo de se apropriarem e controlarem os recursos existentes. O espaço se torna humanizado não pelo simples fato de ser habitado, mas, sim, porque o homem cria os objetos e se apropria dos mesmos. A ação humana, que estrutura e produz um espaço, ocorre por razões de sobrevivência, de manutenção da vida, através da relação de trabalho e de uma população que utiliza a superestrutura existente (política, 202 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ideológica, jurídica e religiosa). O trabalho não só transforma o espaço como também determina a apropriação do mesmo, pois, à medida que o processo de produção capitalista avança, este gera mudanças com relação à importância e ao valor de determinadas parcelas do espaço, tendo em vista que o mesmo depende das modificações. Portanto, a organização espacial espelha fielmente a qualidade das relações sociais. Na organização espacial, encontramos o lugar que exprime uma categoria básica. No entanto, esse lugar apresenta um conjunto de paisagens que exprime suas finalidades e que, por sua vez, caracteriza o lugar. Tomando por base o exposto, o presente trabalho procurará traçar um perfil do processo de construção do espaço relativo a localidade do Chapadão, no município de Jaguari, pela sua inserção na economia estadual e regional, pela diversificação da atividade econômica, pela participação dos agricultores no mercado consumidor e pela utilização de bens e serviços modernos. Também foram analisados o desenvolvimento e a importância da agricultura na construção do espaço da referida localidade, nos últimos 40 anos, num corte temporal até os dias atuais. Pretendemos também verificar o estágio atual em que se encontra a agricultura, o grau de inserção dos agricultores na economia moderna e as modificações ocorridas naquele espaço geográfico. Considerações acerca da organização do espaço A base econômico-social de cada sociedade, que constitui um espaço organizado, consiste num determinado modo de produção e na reprodução da vida social, pois a técnica, fruto da criatividade humana e considerada medida de poder do homem é, em última análise, o elemento determinante das forças produtivas, nas quais o homem se coloca como principal elemento e agente de transformação dos recursos naturais. Conforme Miorin (1988), o mundo é a realidade material em transformação e em contínua construção, realizada por pessoas que vivem em determinada época e num determinado sistema de relações sociais, uma vez que o grau de transformação do mundo, encontrado pelas gerações sucessoras, depende das relações de produção das gerações anteriores e da atividade prática de desenvolvimento da consciência do grupo humano anterior. Assim sendo, o número de objetos construídos no espaço aumenta a cada geração através dos quais é possível descobrir seus aspectos, suas propriedades e esclarecer os meios de ação. Também é possível, a cada geração, descobrirmos que cada ação pode se realizar de diferentes maneiras e por meio de diferentes instrumentos, assim como um mesmo instrumento pode ser usado para a realização de diferentes ações. Portanto, o espaço é um testemunho de momentos de um modo de produção, no qual, em cada paisagem criada, é fixada a construção das forças produtivas e dos instrumentos utilizados. Na geografia, o espaço deve ser concebido como totalidade, constituída de momen- Ambientes estudos de Geografia 203 tos, mas há totalidades mais abrangentes, outras, nem tanto. As totalidades e os momentos expressam a dinâmica natural e social, bem como suas determinações específicas em termos de tempo e de lugar. Cada momento guarda peculiaridades próprias do tempo histórico e do lugar manifestadas na paisagem de forma diferenciada, razão por que não existe um espaço único na superfície da Terra. No entanto, muitos espaços existentes na superfície terrestre apresentam um traço comum, a submissão ao modo de produção, pois, em muitos deles, ocorreu ou ocorre a exploração econômica e existe um componente básico, a terra, onde as relações sociais de produção se caracterizam pela divisão social do trabalho. O espaço, visto como algo organizado e ao mesmo tempo indicador de relações sociais, não pode ser concebido como estático, pois, quando surge o homem, este constitui a paisagem humanizada, símbolo do espaço geográfico, dando provas de que a produção existe e, desse modo, a organização do espaço deve ser entendida como resultado das relações de produção. Para compreendermos o espaço geográfico, necessário também se faz conhecermos a forma, representada pelas atividades que nele se desenvolvem, bem como vê-lo em suas contradições, e elas existem em cada realidade. As mudanças provocadas no território afetam as formas de sua organização de maneira diversa, quando não organizando ou reorganizando o espaço. Essa organização ou reorganização ocorre vinculada não só à produção propriamente dita, mas também à circulação, distribuição e consumo, já que são questões que se complementam. No entanto, esse espaço se organiza de acordo com os níveis de exigência do processo, vinculado ao volume de capital, à tecnologia e à organização correspondente, razão pela qual a paisagem agrária é mais homogênea, se comparada à urbana. A organização do espaço geográfico consiste na criação de um sistema de objetos cada vez mais artificiais, compostos por sistemas de ações imbuídos de artificialidade, muitas vezes com fins estranhos ao lugar e a seus habitantes. Nesse sentido, o espaço constitui-se em um novo sistema da natureza quase que totalmente desnaturalizado. Na análise da organização do espaço, não se pode excluir a produção, vinculada ao meio urbano-industrial e ao modelo de produção capitalista. As diferenças territoriais de produção agrícola são resultantes dos tipos diferentes de integração entre os setores agrícola e industrial e da articulação da produção agrícola capitalista com os modos anteriores de produção. Novas produções agrícolas se estruturam dentro da lógica da produção capitalista do espaço, mediante uma interação com as especificidades da agricultura e do lugar. As interligações não se limitam por aí, acontecem também com os setores da comercialização, da armazenagem, dos transportes e das comunicações. Com o aumento dos capitais fixos (estradas, silos, etc.), dos capitais constantes (máquinas, fertilizantes, veículos) e dos fluxos, rompem-se os equilíbrios preexistentes, porque aumenta a necessidade de movimento e outros se impõem, diminuindo, desse modo, o espaço reservado à produção, enquanto aumenta o espaço das outras instâncias da produção, circulação, distribuição e consumo, de acordo com Santos (1999). 204 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) A evoluçao da agricultura A intensificação do capital circulante no campo estabelece, por sua vez, uma intensa mobilidade territorial do capital, ganhando novos espaços, ganhando mais agilidade, organizando-se de acordo com o mercado, diversificando o uso do solo, aperfeiçoando as técnicas agrícolas e elevando a produtividade. Sendo assim, o campo se subordina cada vez mais ao capital industrial, embora com certa polaridade e evolução regional desigual. A modernização da agricultura consiste num processo de mudanças, mediante a adoção de técnicas mais avançadas. Tal processo também inclui o aumento do conhecimento técnico, modificação das relações de trabalho e do sistema de investimentos, visando ao aumento da produtividade e da rentabilidade. A modernização significa uma mudança qualitativa de transformação de base técnica. Entretanto, o processo de modernização na agricultura brasileira consistiu no rompimento das velhas formas de dominação no campo, na eliminação gradativa das antigas relações de produção e na ampliação da fronteira agrícola. A modernização da agricultura implica ainda “o aumento da produtividade do trabalho, a submissão do trabalho ao capital, a superação das barreiras naturais e, por conseguinte, a submissão da terra ao capital e à contribuição do setor ao processo de acumulação”, segundo Ferreira (1990, p. 74). Essa modernização permite ainda mudar rapidamente a configuração do processo produtivo e os produtos ajustarem-se às demandas de mercado e à divisão de trabalho entre empresas que controlam a produção agrícola. Dessa forma, é crescente a integração dos segmentos modernos da agricultura com a indústria fornecedora de insumos, máquinas e equipamentos. Uma característica que marca a pequena propriedade, no Estado, está no emprego predominante da força animal como força motriz, especialmente em áreas de topografia acidentada. No entanto, com a implantação da soja, esta prática é deixada de lado parcialmente e a tendência é aumentar o uso do trator e máquinas e diminuir o emprego de animais. Algumas propriedades na área da pesquisa já substituíram o modo tradicional de produzir, pelo uso de técnicas mais modernas. O processo de capitalização do campo não é um processo que abrange de modo uniforme e homogêneo, mas, sim, incide nas diversas regiões do Estado sob diferentes formas. O processo ocorre tanto pela adoção de técnicas agrícolas modernas como pela ocupação de terras por unidades produtivas. O processo de capitalização que sofre a agricultura proporciona a modificação do cenário agrícola e, desde então, do espaço geográfico. A capitalização, na verdade, precisa atender a um mercado consumidor cada vez maior, face ao elevado crescimento populacional, até porque “a necessidade de acumulação de capital leva a uma franca expansão geográfica da sociedade capitalista, conduzida pelo capital produtivo”, de acordo com Smith (1988, p. 175). Acreditamos que este modelo deva ser repensado, porque não basta alimentar a população hoje e a que existirá daqui a vinte ou trinta anos, já que este não é um modelo sustentável, uma vez que apenas atende às necessidades de expansão do capital. A conversão da agricultura pela indústria provoca uma reunificação do campo e da cidade quando os novos espaços assumem formas urbanas e rurais que se ligam no processo Ambientes estudos de Geografia 205 comum que as formou. A capitalização da agricultura brasileira, a partir dos anos sessenta, embora conservadora, ajusta-se à estrutura fundiária sem modificá-la, privilegia produtos, regiões e investidores, esboça um novo modelo de organização espacial, acentuando as variações sazonais das atividades em vez de atenuá-las. Verificamos que não apenas novos espaços são criados, mas que o território se remodela e neste processo estão envolvidos o campo e a cidade. A agricultura se relaciona com uma indústria fortemente oligopolizada que consegue impor preços aos insumos adquiridos pelo agricultor, além do estabelecimento de preços e padrões dos produtos agrícolas, comprimindo a renda dos produtores rurais e, de certo modo, inviabilizando a produção no campo, uma vez que, apesar da relação de interdependência existente, “a indústria se apropria do excedente que seria o lucro e a renda da terra”, segundo Silva (1991, p. 11). O desenvolvimento da agricultura no Estado é desigual, razão pela qual em algumas regiões ainda são utilizados meios de trabalho diversos do modo de produção dominante, pois persistem agricultores que, em suas propriedades, apresentam baixo nível tecnológico, com marcas típicas das formações pré-capitalistas. Os aspectos que modelaram a evolução da agricultura estão ligados à expansão do espaço agrícola e à intensificação do processo de mecanização. Este processo altera profundamente as relações no modo de produção da agricultura até então desenvolvida, introduzindo novos tipos de culturas e novos métodos e técnicas de plantio. O ser humano, ao transformar o espaço natural através do trabalho, realizou alteração sobre o espaço físico e seus recursos naturais e foi influenciado pelas condicionantes técnicas. Essas limitações são inversamente proporcionais ao desenvolvimento tecnológico de cada grupo social. A partir do momento em que o ser humano avança tecnologicamente, as limitações vão se restringindo e a natureza passa, então, a ser entendida como um recurso à sua ação, tanto mais eficaz quanto maior for a disponibilidade de capital e tecnologia. Desse modo, a organização espacial do Chapadão, no município de Jaguari está condicionada também pelas influências das bases físicas, como relevo, clima, solo e vegetação que, associadas às relações sociais, políticas e econômicas, possibilitaram a atual configuração do espaço geográfico. A Organização do espaço no Chapadão O território municipal de Jaguari pertence à microrregião de Santa Maria, MRH-l8, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), composta dos municípios de Cacequi, Dilermando de Aguiar, Itaara, Jaguari, Mata, Nova Esperança do Sul, Santa Maria, São Martinho da Serra, São Pedro do Sul, São Sepé, São Vicente do Sul, Toropi e Vila Nova do Sul, que se localiza no centro oeste do Estado do Rio Grande do Sul. Essa região está inserida, ainda que parcial, na zona de transição entre a Campanha Gaúcha, composta por planícies com pequenas elevações denominadas coxilhas, cujas altitudes variam de 100 a 160 metros e por sedimentos, depositados por diferentes agentes, 206 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) cujos solos são pouco evoluídos, dificultando o desenvolvimento da vegetação, e o Planalto Meridional, variando de 380 a 450 metros, com uma superfície bastante diversificada, porém com feição suavemente ondulada. A área relativa à pesquisa é de ocupação recente, final do século XIX, e se caracteriza pela presença dominante de pequenas propriedades como formas de organização de produção, contrária à porção sul do Estado e outras regiões, caracterizadas pela existência de latifúndios. Nesse sentido, a área se destaca por apresentar unidade produtiva. O processo de mecanização, que tem início na agricultura brasileira na década de 1960, não é total e sim parcial na referida área, ou seja, a mecanização é desigual, porque desigual é a capacidade econômica dos agricultores, desigual é a capacidade de inserção no processo de capitalização. Mecanizaram-se aqueles agricultores que cultivam a soja ou que tiveram uma melhor capitalização, devido à diversificação da atividade agrícola e à possibilidade de acesso ao capital financeiro. O comportamento espacial da área em evidência é de uma região periférica, ou seja, subordinada a um mercado local, resistindo, de certo modo, às inovações tecnológicas pelas dificuldades econômicas em que os agricultores se encontram, aliadas ao baixo nível de instrução da grande maioria e à carência de orientação técnica dos moradores e essa reduzida orientação/assistência implica a lentidão das transformações. O espaço organizado na área do Chapadão é um espaço que apresenta pouca materialização das relações sociais, incapaz, portanto, de proporcionar uma dinâmica mais intensa na reprodução do capital, pois são poucos os fixos existentes, assim como também os fluxos não são muito intensos. O uso de alguns meios técnicos, considerados elementos determinantes das forças produtivas, não é dominante no processo produtivo da localidade, tendo em vista, por exemplo, a significativa utilização da força animal, de instrumentos antigos como o arado, a enxada, entre outros, conforme comprova o questionário aplicado. Poucas foram as agregações ao espaço das etapas historicamente já vencidas. Se todo e qualquer espaço se organiza vinculado aos níveis de exigência do processo produtivo e este vinculado ao nível de capital empregado e à tecnologia, o nível de exigência não é grande, porque a quantidade de capital e de tecnologia empregada também não é acentuada e, portanto, o nível de organização não é avançado, justificando as relações econômicas e sociais correspondentes. Por sua vez, a paisagem, num processo lento, embora sem grandes transformações, proporciona um novo conjunto de formas heterogêneas. É possível afirmar que encontramos um verdadeiro mosaico de paisagens na área do Chapadão, tendo em vista a diversificação de culturas existentes, a introdução de novas atividades e cultivos ligados à produção agrícola. Esse mosaico de paisagens compõe a organização espacial atual. Quanto maior a diversificação de objetos no espaço, maior será a interdependência desse mesmo espaço. Como a área pesquisada reúne pouca diversidade de objetos, podemos afirmar que o espaço geográfico do Chapadão não apresenta grande interdependência com outros espaços, porque a capacidade de articulação não é expressiva. Ambientes estudos de Geografia 207 Com relação à produção agropecuária, são observadas formas tradicionais (como o uso de roças) e modernas, que dependem da fertilidade natural do solo, da declividade do relevo, da disponibilidade de terras e da capacidade técnica dos agricultores. O predomínio das práticas tradicionais aliadas à mecanização, muitas vezes inadequada, provocaram o esgotamento das terras com repercussões na produtividade. Para melhorar a produção, será necessário adotar a prática da agricultura alternativa ou agroecológica, caso contrário, a submissão do setor urbano-industrial tenderá a aumentar, assim como pode se acentuar o esgotamento dos solos. A dependência aumentada significará maior quantidade de implementos agrícolas no campo, maior uso de adubos, corretivos no solo e defensivos agrícolas, controlados por empresas transnacionais, de elevado custo e duvidosa eficiência e, ainda, uma melhor infra-estrutura disponível, o que não deixa de ser positivo, no entanto significará maior transferência de capitais por parte dos agricultores para as indústrias. Os excedentes agrícolas são comercializados. Porém, o que comanda o processo produtivo na pequena propriedade do Chapadão é a produção voltada para a subsistência familiar, embora exista uma produção comercial que se expande com o passar dos anos, mediante a venda de leite, da uva, do fumo, de frutas, entre outras. A comercialização do leite, da uva, do vinho, do fumo, dos animais, da cachaça e outros excendentes garantem o poder de compra para adquirir aquilo que não produzem em suas propriedades, sendo para muitos uma relação de intercâmbio negativa, uma vez que pouco sobra da renda para investir em melhoramentos de suas atividades, bem como para o progresso econômico e social dos agricultores e de seus familiares. O investimento em cultivos de maior valor agregado significará, provavelmente, maior circulação de dinheiro, beneficiando diretamente a coletividade, uma vez que aumentará a capacidade de aquisição de novas máquinas, ampliará o consumo, a produtividade, em razão de novos conhecimentos, e estimulará o comércio local. A tecnologia utilizada nas propriedades apresenta alguns traços modernos, acompanhados de outros tradicionais. Na verdade, é aquilo que o agricultor pode fazer frente aos condicionantes que se impõem, como o tamanho da propriedade, o relevo acidentado, a pouca capacidade de obtenção de empréstimos bancários, etc. O resultado da formação agrícola na referida área é a presença de agricultores técnica e economicamente capacitados a desenvolver uma mecanização, bem como daqueles que utilizam, de forma expressiva, a força de trabalho familiar sem condições de capitalização de sua atividade, apesar da modesta tecnologia introduzida em suas propriedades. Cada período histórico apresenta suas próprias técnicas e essas são as responsáveis pela dinamização espacial de uma região. No Chapadão, há ainda um número razoável de agricultores que usam técnicas tradicionais ou mesclam as tradicionais com as modernas em suas atividades. Dessa forma, a dinâmica econômica não é intensa nem geral para todos, assim como não são intensas as relações sociais, conseqüentemente a dinâmica espacial se apresenta como tal. A mão-de-obra é predominantemente familiar, inclusive de ambos os sexos, sem remuneração fixa. O trabalho assalariado se apresenta reduzido, uma vez que a renda das famílias, de modo geral, é insuficiente para adotá-lo como prática. A jornada de trabalho 208 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ainda se prolonga geralmente de sol-a-sol, apesar da transformação que se incorpora ao processo produtivo, característica da produção familiar. O fato do pequeno agricultor possuir os meios de produção, tradicionais ou modernos, não lhe garante uma autonomia, enquanto produtor, uma vez que o mesmo não pode se desvincular do mercado consumidor, embora local e, sim, cada vez mais influenciado por ele, como condição de sobrevivência. Assim sendo, o agricultor trabalha cada vez mais e mais transfere para as casas comerciais e para as cooperativas seus capitais, impedindo-o de ter uma vida sócio-econômica melhor. Não ocorreram maiores transformações na organização do espaço no Chapadão, porque o processo de desenvolvimento da sociedade brasileira, em geral, e da inserida na pesquisa, em particular, é muito lento. Em razão disso, a própria estrutura social, os hábitos e os costumes daquelas pessoas, bem como suas relações, evoluíram pouco, apesar de a mudança em si não ser o mais importante, mas, sim, a propensão à mudança e essa é realidade. No entanto, essas poucas mudanças não impediram que algumas transformações ocorressem no espaço no período analisado. A complexidade do modo de produção repercute diretamente numa melhor organização espacial. Desse modo, a organização do espaço do Chapadão não é muito complexa, porque o modo de produção dominante é simples, tendo em vista o estágio de evolução em que se encontra e por determinar um ritmo pouco intenso de transformações espaciais. O aumento da informação técnico-científica, da produção, da diversificação, da comercialização, da integração e das estruturas de produção tornará muito mais complexo o modo de produção inserido na localidade do Chapadão e, desse modo, ampliará as repercussões na organização espacial, tornando-a mais complexa, à medida que intensifica as transformações espaciais. Incentivada e concretizada a atividade turística, em curso, esse espaço rural se tornará parcialmente agrícola e dará suporte a uma nova relação com a terra e com a natureza já que outras pessoas advindas do meio urbano também usufruirão desse mesmo espaço. Novos elementos deverão fazer parte dele, aliás já surgiram novos objetos espaciais como o mirante, visando atender turistas com ambientes que oferecem alimentação, postos de venda dos produtos locais, etc. Um espaço geográfico não se organiza somente pela inovação tecnológica, mas também pela maneira como se organiza a produção. No caso específico do Chapadão, constatamos uma renovação tecnológica relativa, pois não se trata da tecnologia mais avançada disponível no mercado. Quanto à organização da produção, é predominantemente representada pela agricultura familiar, embora com geração de excedentes. Esse modelo de organização da produção não é capaz de implementar grandes mudanças no espaço geográfico, porque é um modelo limitado em sua capacidade de inovação, face à realidade da agricultura brasileira. Parece-nos evidente que ocorreram mudanças negativas, como, por exemplo: houve desmatamento para ocupar novas terras com a pecuária e a agricultura; os solos sofreram um processo de desgaste, tanto pela erosão quanto pelo uso de adubação química e defensivos agrícolas, que atingem a microvida do solo, repercutindo na vegetação remanescente e na Ambientes estudos de Geografia 209 produção agrícola. Essas mudanças, na base natural, refletem diretamente a organização do espaço, à medida que os moradores dependem e muito das condições naturais para sobreviver, bem como afeta as relações sociais. Com relação ao estágio atual da agricultura, fica claro que ocorreu uma evolução, no entanto, não é uma grande mudança, porque a modernização foi parcial e predatória, pelo uso de máquinas pesadas não adequadas ao tipo de solo e pelo uso de insumos químicos. Muito ainda será necessário evoluir para atingir uma verdadeira modernização. A diversificação de cultivos e de atividades são evidentes, pois de uma produção baseada no cultivo de milho, feijão e uva, hoje verificamos ainda o cultivo da soja, do fumo, de frutas, de cana-de-açúcar, consorciadas à pecuária de corte, leiteira, à piscicultura e à produção de vinho. Com relação à piscicultura, o que observamos são alguns açudes para a criação de peixes destinados à alimentação das famílias e um “pesque-pague” para fins de lazer. O avanço da especialização, observado na área pesquisada, o crescimento da produção, assim como o aumento das trocas contribuem para “tornar o homem estranho ao seu trabalho, estranho ao seu espaço, à sua terra, transformada praticamente em fábrica”, de acordo com Santos (1999, p. 19). Estranho, porque o agricultor deverá aumentar a produtividade da terra, racionalizar a atividade que desenvolve, dar um novo ritmo ao trabalho para atingir uma determinada produção. Assim sendo, intensificam as relações comerciais e o homem se vê condenado a ser uma mercadoria, um valor de troca no mercado de trabalho. Para aumentar a produtividade da terra e racionalizar a atividade que desenvolve o agricultor obrigatoriamente deverá incorporar maior informação técnico-científica, significando uma atualização do espaço no tempo. A agricultura que, no passado, foi responsável pela sobrevivência dos agricultores, continua sendo a principal fonte de renda, no entanto apresenta-se mais diversificada, mais mecanizada, o que possibilitou a inserção de alguns agricultores no comércio local e esporadicamente no regional. Essa inserção no comércio garante um fluxo mais intenso de capitais, de produtos, de pessoas e de informações na localidade, tornando o espaço geográfico mais complexo. A constatação de que o cultivo da soja foi uma atividade introduzida na área na década de 1970, contribuiu para novas paisagens que compõem o espaço geográfico, portanto um elemento a mais na paisagem e uma mudança espacial significativa. No entanto, a soja não constitui apenas uma nova paisagem, ela tornou-se importante à medida que possibilitou a introdução de novas máquinas à produção agrícola, intensificou o comércio, facilitou a capitalização de alguns produtores e a aquisição de novas informações. O aumento da plantação de parreirais nos últimos 40 anos, quando muitos dos agricultores a introduziram em suas propriedades ou aumentaram recentemente a área cultivada, responsável também por mudanças no espaço, contribuiu para melhorar os níveis de vida, mas nem todos tiveram os parreirais aumentados, porque os agricultores não dispõem de espaço físico, não possuem recursos financeiros para tal empreendimento ou mesmo vocação, uma vez que existe um morador que não cultiva parreiras. Se maiores transformações não ocorreram no espaço geográfico é porque a mobilidade social da comunidade de moradores é pouco significativa. O grau de mobilidade repercute 210 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) diretamente na organização do espaço, uma vez que esse espaço é organizado a partir das relações homem/meio ambiente e entre os próprios seres humanos. Concordamos, quando Santos (1988) afirma que “o espaço é uma estrutura social dotada de um dinamismo próprio”. O espaço do Chapadão apresenta seu dinamismo próprio à medida que está integrado ao comércio local, embora de pouca intensidade e esporadicamente ao regional e apresenta um modo de produção agrícola com base na produção familiar. Assim sendo, não se poderia esperar outra dinâmica, a não ser a pouca mobilidade social e transformação espacial. O modo de produção identificado pode ser considerado misto, uma vez que inclui técnicas antigas e modernas, portanto o padrão tecnológico empregado na produção agrícola do Chapadão não é o único elemento determinante na organização do espaço, mas, sim, resultado também do conhecimento absorvido pelos agricultores, pelos valores herdados, pelas condições naturais que, embora não sendo determinantes, são capazes de estabelecer limites na produção, pelas condições de um certo isolamento que ainda persiste e por um comércio não muito expressivo. Por sua vez, os objetos encontrados, constituintes do espaço geográfico, testemunham uma evolução das forças produtivas na área e das relações sociais de produção, portanto não subordinadas à repetição das relações do ato de produzir. Assim sendo, a sociedade do Chapadão consegue sobreviver e reproduzir-se sem grandes transformações. Acreditamos que a organização do trabalho, existente na área pesquisada, garante a produção e a formação de excedentes, indispensáveis à manutenção dos indivíduos e da própria comunidade. Esse excedente, embora não expressivo, garante a circulação de produtos agrícolas que, por sua vez, estimula a troca e a manutenção do produtor rural em sua comunidade. Concebido o espaço geográfico como não apenas aquilo que se apresenta diante de nós, tendo em vista sua abrangência e generalizações, percebemos através da observação de campo, de entrevistas, de conversas informais no clube do Chapadão que o fazer do homem daquele lugar não é de total exploração, de submissão e alienação material, embora apresente anseios, desejos e esteja consciente de suas limitações. No caso do Chapadão, constatamos que as forças sociais não seguem explicitamente orientações do poder político local nem instrumentos sociais foram construídos pelos moradores, mas estão assumindo “naturalmente” a ampliação das relações, mediante a aquisição de conhecimentos, de equipamentos técnicos, intensificando, desse modo, as relações sociais, bem como do homem com a natureza. Dessa forma, os agricultores seguem implicitamente a política de evolução, de aperfeiçoamento existente. O progresso técnico presente já é capaz de alterar a configuração dos meios de produção existente, uma vez que há tendência por parte de algumas famílias e, concretamente, por outras de acompanhar, mesmo que parcial, a evolução técnico-científica e informacional, bem como pela melhora na infra-estrutura. O conjunto de paisagens caracteriza o lugar. Observamos que o Chapadão apresenta uma diversificação de paisagens, representada pelas lavouras de milho, de soja, de feijão, de cana-de-açúcar, de fumo, pelos parreirais, pastagens, campos, matas nativas, casas, bosques de eucaliptos, pela forma como as propriedades acompanham o “travessão”, (de- Ambientes estudos de Geografia 211 finido como uma precária estrada em linha reta, ou uma clareira na mata), pelos galpões, estufas, mangueiras, estrebarias, pela rede elétrica, etc. No entanto, a paisagem não implica o espaço geográfico do Chapadão. Esses elementos elencados apresentam um conteúdo, em sua maioria, de pouca renovação. Analisando essa paisagem, observamos que a mesma apresenta pouco conteúdo técnico-científico-informacional, mesmo assim, exprime sua finalidade que é garantir a sobrevivência do agricultor, inserido no comércio local e, por vezes, no regional, mas que carece de expressivo desenvolvimento econômico e de acumulação capitalista, representado pela baixa utilização de bens e de serviços modernos. Se o presente na organização do espaço é constituído principalmente pelo conteúdo técnico-científico-informacional, percebemos que o espaço do Chapadão é dominado por conteúdo do passado, porque este passado tem caráter dominante e o presente não, representando, desse modo, pouca dinamicidade. O espaço humanizado é capaz de revelar o passado, o presente e o futuro. Com relação ao passado, é dominante a presença de objetos de uma estrutura social sem grande dinamismo. O presente, na verdade, começa a ser inserido, enquanto no futuro deverá repercutir, de forma mais intensa, o conteúdo técnico-científico-informacional, resultado lógico do processo de modernização da atividade agrícola que busca, de todas as formas, maior produtividade, o cultivo de produtos com maior valor agregado, a inserção mais intensa da produção no comércio, como alternativa de maior acumulação de capital, além de ocorrer uma renovação técnica, social e econômica, pois se não ocorrer tal evolução, os lugares envelhecem, e não terão condições de acompanhar a evolução que está, obrigatoriamente, vinculada a novos futuros. A paisagem cultural já é significativa no Chapadão, uma vez que a vegetação natural, representada pela floresta, foi quase totalmente substituída por lavouras de milho, de soja, de fumo, de cana, pelas parreiras, por galpões, estufas, pastagens, bem como pela presença de máquinas, implementos agrícolas, casas modernas, rede de energia, entre outros. Desse modo, ocorreram mudanças nas formas estruturais, quanto funcionais. Considerações finais O espaço geográfico do Chapadão no período analisado, de 1960 a 2000, tornou-se mais artificial, devido à ampliação dos objetos construídos, pelas transformações ocorridas na natureza, pela ampliação das relações entre a sociedade e a natureza, pela implementação de instrumentos mecanizados de origem industrial, amenizando, dessa forma, as influências das condições naturais e garantindo a esse espaço maior dinamicidade. Assim, novas condições de produção são estabelecidas no espaço, bem como novas necessidades de intercâmbio comercial, vinculadas ao meio urbano industrial e ao modelo de produção capitalista, com conteúdo de técnica, de ciência e de informação, rompendo, desse modo, os equilíbrios preexistentes, uma vez que aumenta a necessidade de produção e de circulação de seus habitantes. 212 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Diante das evidências espaciais, concluímos que o espaço do Chapadão é caracterizado pelo meio técnico e não pelo meio técnico-científico, uma vez que são encontradas técnicas que sofreram modificações, mas que carecem de informação científica. Diante disso, percebemos que esse é o tempo do espaço geográfico do Chapadão, uma vez que cada lugar do espaço tem seu próprio tempo. Outra conclusão interessante que nos cabe destacar é que, no passado, a comunidade do Chapadão estava ligada à profissão desempenhada pelos moradores, a de agricultor, mas que hoje, se transfere para o consumo diante do novo momento histórico, em que a circulação e não a produção é o que importa, significando a necessidade da diversificação produtiva, a adoção de novas técnicas e a ampliação do mercado. Concluímos também que o aumento da renda dos agricultores através da diversificação da produção significa maior capacidade de consumo, no entanto não significa mudança na condição sócio-econômica, uma vez que as estruturas de produção, de distribuição e circulação da produção não os beneficia e, sim, fortalece o grande capital. Conclui-se ainda, que, apesar da conclusão do asfaltamento da estrada, na década de 1980, o município continua isolado e este isolamento tem contribuído para o esvaziamento populacional do município, fato inibidor de investimentos. Foi possível concluir também que o comércio do município não se apresenta intenso e essa pouca intensidade deve-se à baixa produção, resultante das condições de esgotamento dos solos, da pequena propriedade e do isolamento, inibindo o comércio local ou regional, significando também dificuldades econômicas e sociais para a população residente. O espaço é a primeira realidade com que se defronta o grupo social. A sociedade moderna, apesar de seus avanços, é dependente do espaço, mas o que fica evidente nessa relação é que a satisfação das necessidades primárias, como a habitação e a alimentação, depende do nível tecnológico, porque o avanço tecnológico decorre do adensamento populacional ou da escassez dos recursos naturais, assim sendo, o grupo social cria um novo espaço, face à saturação do originário. Esse novo espaço está sendo criado no Chapadão, uma vez que as necessidades impostas pela ampliação das relações capitalistas exigem ou estimulam novos empreendimentos tecnológicos, capazes de reestruturar o espaço, constatado pela elevação do padrão de vida de algumas famílias. Para Megale (1992), “a mudança do espaço geográfico é motivada por uma mudança no espaço social, como um movimento através da mobilidade social” (p. 58). Essa mudança no espaço social e por extensão no espaço geográfico no Chapadão ocorre quando seus moradores ganham mobilidade, pois têm acesso ao conhecimento e a outras cidades ou regiões do Estado, quando da visita aos seus familiares que emigraram. Assim sendo, essa mobilidade social possibilita o processo de socialização do conhecimento, da informação, do novo, pois essa mobilidade é permanente, visto que o espaço social torna-se mais amplo que o espaço geográfico, uma vez que as relações dos indivíduos ultrapassam seu domicílio, o local de trabalho, estendendo-se, dessa forma, a lugares de participação social de cunho político, religioso, de lazer, etc., ampliando sua forma, estrutura e função. Observamos ainda que toda ação social sobre o espaço como, por exemplo, a agricultura, a pecuária, o reflorestamento é sempre um exercício da função social, mas dependente Ambientes estudos de Geografia 213 das condições históricas da evolução de cada grupo social, em especial dos moradores do Chapadão, uma vez que a vida rural, como todas as demais instituições sociais, apresenta duas dimensões: a social (inerente ao próprio grupo) e a geográfica (presente na interferência do espaço) e o relacionamento do grupo social com o espaço é historicamente diferenciada. Apesar da importância que as condições naturais representam no processo de organização do espaço, são as condições artificialmente criadas que se sobrepõem, uma vez que representam a expansão dos processos técnicos e da informação. Assim sendo, essa nova forma de manifestação do meio geográfico é representada por espaços desiguais, por razões que nos parecem muito simples, ou seja, a não simultaneidade da informação e da absorção daquilo que é novidade, uma vez que, para sobreviver, o capital precisa expandir-se e a constatação é que essa expansão ocorre de forma lenta. Assim sendo, “a reprodução da vida material fica totalmente dependente da produção do valor excedente”, conforme Smith (1988, p. 87), já que o espaço é o resultado direto da produção material. Concluímos ainda que a aplicação da ciência no processo de produção modifica a estrutura da produção, a qual determinará um tipo de organização espacial, já que os velhos ramos de atividades são paulatinamente eliminados e novos vão surgindo. Isso tudo impõe uma nova organização do trabalho e o trabalho humano passa a desempenhar um novo papel, embora a aplicação tecnológica seja seletiva em relação à qualificação do trabalho. Assim, a sociedade e a vida humana são também afetadas, bem como os lugares que não escapam a tal processo hegemônico. Dessa forma, o local é a versão da dinâmica global visto que um subsistema se instala sobre subsistemas preexistentes. Novos espaços se estruturam ao mesmo tempo que o espaço como um todo se remodela submetido à dinâmica do processo global. Ocorre, pois, a mudança na composição orgânica e técnica do território, o qual passa a contar com mais ciência, mais técnica e mais informação. Desse modo, a especialização do território se torna uma exigência da produção e a própria complementariedade, significando uma maior circulação de mercadorias ou produtos e uma maior divisão do trabalho. A especialização, a circulação e a divisão do trabalho se retroalimentam. Dessa forma, os circuitos de produção, além de se tornarem mais amplos, possibilitam uma maior fluidez de informação. A interação existente entre espaço e sociedade, fortalecida pelos laços comuns que unem os moradores da localidade, representados pelos traços étnicos, lingüísticos, religiosos, costumes e folclore constroem uma identidade local, e esta, por sua vez, contribuirá para desencadear um processo de resistência, tanto transformadora quanto conservadora, a qual garante a especificidade espacial. Acreditamos ser essa a razão das diferentes respostas que o modo de produção capitalista recebe ao tentar homogeneizar o espaço geográfico. 214 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Referências FERREIRA, I.C.B. Inovações tecnológicas e novos espaços da produção. In: ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA. 10 . Teresópolis, 1990, Anais..., Rio de Janeiro: UFRJ, 1990. MEGALE, J.F. Espaço e realidade social em Max. Sorre. In: Geografia e Sociologia em Max. Sorre. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1982 MIORIN, V. M. F. 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Com uma configuração litorânea, a urbanização integrou-se às práticas econômicas e às políticas de conquista territorial por todo o interior do país. A ação urbanizadora do sistema colonial português deu ao Brasil um caráter urbano antes mesmo do rural (REIS FILHO, 1968; OLIVEIRA, 1982). A cidade sempre esteve presente na história de diferentes sociedades. Em culturas de base agrícola ou comercial, apresentava-se como uma mediação entre as mediações (LEFEBVRE, 1974). Como cenário da evolução social, a cidade tornou-se sede do poder político, da produção e do consumo assim como em fábrica de culturas. Em Geografia Humana, J. Brunhes (1955) afirma que a cidade não passa de uma aglomeração improdutiva e que deveria ser analisada com uma espécie de “ser natural”. Na acepção de M. Sorre (1953, p. 253), a cidade em sua forma específica, “é um lugar de contactos e de trocas de atividades, formas de vida, de sistemas de necessidades distintas”. Para este autor, “as cidades traduziriam, na sua estrutura interna e na sua fisionomia, o caráter dominante da civilização que as produziu”. Considerou ainda, que a ação consciente está na origem das cidades e que “o contato de duas regiões seria propício ao nascimento de cidades e uma grande estrada, com suas etapas, determinaria verdadeiras linhas urbanas ”. Nesse sentido, Sorre (1953, p. 256) conclui que “ existe uma cidade quando há coalescência de funções em uma aglomeração. Esta expressão significa que as funções chegam a depender uma das outras, tornando-se assim independentes da atividade primária que deu origem à aglomeração”. Para Munford (1961, p. 16 e 494), a cidade “representa a possibilidade máxima de humanização do ambiente natural e de naturalização da herança humana : ela dá ao primeiro uma conformação cultural e exterioriza a segunda em formas coletivas permanentes”. Segundo este autor, a cidade é um “complexo geográfico, uma organização econômica, um processo institucional, um teatro de ação social e um símbolo estético de unidade coletiva”. A cidade condensou em sua materialidade, a técnica, a arte e as funções sociais, fazendo do urbanismo e da política urbana, pares históricos na produção do espaço urbano. Para o historiador F. Braudel (1967), em Civilsation matérelle, économie et capitalisme, a cidade apresenta-se como um produto da divisão social do trabalho e, ao mesmo tempo, condição concreta de existência dos mercados nacionais. 186 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) O espaço urbano, na conjugação das concepções acima, consiste no lugar de mediações, de possibilidades, de trocas e de formas de vida. Na história das conquistas territoriais, as cidades aparecem como espaço do poder político e militar, de efetivação do processo colonizador e de ordenação dos fluxos de mercadorias. Inicialmente deve-se enfatizar que a colonização portuguesa no Brasil, a partir do século XVI, mostrou que o desempenho das cidades na conquista de territórios foi de grande importância para o sucesso do empreendimento colonizador. A fundação de vilas, freguesias e povoados ocorria, muitas vezes, como uma técnica de apropriação territorial. O papel específico da cidade era o de demarcar fronteiras e garantir o domínio sobre as terras conquistadas. A sobrevivência dessas cidades dependeu menos do campo do que da geopolítica administrativa realizada pela coroa portuguesa. As considerações preliminares apresentadas sobre o urbano no processo de colonização do território brasileiro durante o período colonial não procurou uma re-interpretação do processo de urbanização na de contraposição de idéias ou concepções teóricas de espaço e de história. A Cidade na colônia No Brasil, a expansão da colonização portuguesa sempre foi marcada pela presença de freguesias, patrimônios, cidades, vilas e povoados. O significado desses núcleos urbanos na paisagem conquistada, refletia as preocupações político-administrativas com a ocupação e a exploração do território e também, com as formas que assumiam o domínio do colonizador sobre a natureza e o nível de desenvolvimento técnico de sua cultura. A idéia de criação de cidades na colonização de novas áreas, constitui-se em uma prática secular. As fronteiras econômicas, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1963, p. 61-62), “estabelecidas no tempo e no espaço pelas fundações de cidades no Império Romano tornaram-se também as fronteiras do mundo que mais tarde ostentaria a herança da cultura clássica”. Na América Latina, as colonizações portuguesa e espanhola a partir do século XVI, ocuparam e demarcaram seus territórios mediante a criação de cidades e desenvolveram, em certa medida, economias que, necessariamente, passaram por elas. Para Geiger (1963, p. 69), o Brasil não escapou à característica geral da colonização européia em continentes novos, marcada pela fundação de núcleos urbanos em áreas ainda não povoadas, como ponto de partida para a ocupação e desenvolvimento de atividades econômicas. As localidades fundadas no Brasil podem não ter tido, durante dezenas de anos, grande expressão, do ponto de vista de sua população [...] Salvador, pôr exemplo, precede a expansão açucareira no Recôncavo Baiano e mesmo se pode afirmar quanto ao Rio de Janeiro e ao Recôncavo da Guanabara. Apoiando-se nestas cidades é que os engenhos de açúcar se desenvolveram, inicialmente, nos seus arredores. No século XVI, como informa Reis Filho (1968, p. 66), Portugal já realizava uma Ambientes estudos de Geografia 187 política urbanizadora (grifo do autor) no Brasil como “solução mais eficaz de colonização e domínio”. O espaço urbano, como lugar de concentração de bens e pessoas, controle político, militar e religioso e difusão do poder instituído, integrou-se de modo singular à prática de conquista territorial, desde o período colonial. A política urbanizadora não estava dirigida para a criação de uma economia urbana e com base regional de influências diretas sobre uma determinada hinterlândia. Antes de estimular, a “política urbana” portuguesa conteve-se em deter o crescimento urbano nas colônias. Os núcleos urbanos fundados no período colonial, tiveram apenas um sentido político de domínio territorial e escoamento de mercadorias. Na visão do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1963, p. 66), em outra direção conceitual e histórica sobre o papel da cidade na colônia, argumentou que os portugueses, esses criavam todas as dificuldades às entradas terras a dentro, receosos que com isso despovoasse a marinha. No regimento do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, estipula-se, expressamente, que pela terra firme a dentro não vá tratar pessoa alguma sem licença especial do governador ou provedor-mor da fazenda real [...] outra medida que destinada a conter a povoação no litoral é a que estipulam as cartas de doação das capitanias, segundo as quais poderão os donatários edificar junto ao mar e dos rios navegáveis quantas vilas quiserem, por que por dentro da terra fyrme pelo sertam as nam poderam fazer menos espaço de seys legoas de hua a outra pera que se posam ficar ao menos tres legoas de terra de termo a cada hua das ditas villas e ao tempo que se fizerem as tais villas ou cada hua dellas lhe lymitaram e asynaram logo termo pera ellas e depois nam poderam da terra que asy tiverem dado por termo fazer mays outra villa , sem licença prévia de Sua Majestade”. Nota-se, na citação acima, que ao referir-se ao poder atribuído aos donatários de fundar povoamento no litoral, quando na verdade eles não tinham tal direito, ignorou o fato de que a fundação de vilas e povoados só poderia acontecer em terras alodiais, como colocava o antigo direito romano em relação ao Município. Por outro lado, a fundação de povoados e sua elevação à categoria de vilas eram considerados como título de benemerência (grifo do autor) dos governadores coloniais perante à Coroa portuguesa. Para Reis Filho (1968, p. 84), a política urbanizadora da Metrópole consistia em controlar mais diretamente a fundação e o desenvolvimento das cidades e estimular, indiretamente, a ação urbanizadora dos seus donatários [...] A política de colonização aplicada pelos portuguêses no Brasil até meados do século XVII é a mesma utilizada pelos holandêses durante os 30 anos de sua colonização do Nordeste : concentrar a atenção e os recursos nos núcleos urbanos. No período de dominação espanhola (1580-1640), a conquista do território a partir das cidades, iniciou-se na Paraíba (1585), Natal (1599) e São Luís do Maranhão (1612); e com a fundação de povoados no interior, como Caeté (1634), Canutá (1635), Alcântara (1637) e Gurupá (1639), nos atuais Estados do Maranhão e Pará (REIS FILHO, 1968). À medida em que a cidade tornou a ação colonizadora mais eficaz e presença na paisagem conquistada mais comum, maior foi o empenho da Coroa portuguesa em controlar 188 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) a criação de núcleos urbanos. A cidade pode ser antes de tudo, como coloca Monbeig (1943, p. 08), “uma forma de ato de posse do solo por um grupo humano”. M. Marx (1991, p. 18) informa que, um pequeno arraial que se formasse [...] por certo dependia da necessidade de terrenos para cada morador e sua família, para toda a comunidade. Teria ou não acesso a essa terra? Seguramente, dependeria do reconhecimento da sociedade organizada, por mais distante que estivessem os centros do poder. A oficialização de núcleos urbanos perante ao poder institucional dava-se com a edificação de uma capela que uma vez visitada por um cura, poderia promover o povoado à categoria de vila ou de cidade. Porém, segundo M. Marx (1991, p.19), “não bastava, contudo erguer uma ermida; não bastava construir, por melhor de fosse, uma capelinha; era necessário oficializá-las. Não era suficiente dotar o povoado de um abrigo para o exercício religioso em comum; era necessário sagrá-lo”. A união entre Estado e Igreja, desempenhou papel fundamental na fundação e na elaboração de políticas de expansão urbana. O espaço urbano passou a representar não só o poder do Estado como o da Igreja católica. A influência exercida pela organização dessas relações de poder entre Estado-Igreja sobre o urbano, representou, de acordo com M. Marx, um fator decisivo na definição da rede urbana brasileira. Assim, a cidade tornava-se peça fundamental do empreendimento colonizador e religioso, a sua expansão territorial implicava em maior capacidade e eficácia na exploração de recursos naturais. Somente no território paulista, nas antigas províncias de São Vicente e Santo Amaro, foram fundadas, entre 1610 a 1693, nove vilas : Mogi das Cruzes (1611); Santana de Parnaíba (1625); Taubaté (1645); Jacareí (1653); Jundiaí (1655); Guaratinguetá (1657); Itu (1657); Sorocaba (1661); e Iguape (1693) e no oeste do Paraná, havia o núcleo de Guaíra, que fora destruído em 1627, durante o conflito entre jesuítas e bandeirantes (REIS FILHO, 1968). Ianni (1988, p. 36) destacou em seu estudo sobre a cidade de Itu que no início do século XVII, a fundação de povoados no interior paulista forneceu apoio de ligação “na vasta rede de rios, trilhas e caminhos (ou sítios, arraiais, freguesias, povoados, vilas e cidades) que se criaram com a expansão do povoamento do planalto paulista, das regiões de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná e de todo o sul do país. Em relação a importância das estradas, Azevedo (1957, p. 151) argumentou que, “os caminhos coloniais constituíram a espinha dorsal da rede urbana brasileira”. No início do século XVIII, o Brasil contava com uma rede urbana de sessenta e cinco vilas e oito cidades. Notou-se que somente no século XVIII, foram fundadas 118 vilas no Estado de São Paulo. As principais eram : Pindamonhangaba (1705); São José dos Campos (1767); Mogi Mirim (1769); Lorena (1788); Campinas (1797) e Bragança Paulista (1797). No mesmo período, foram fundadas no Centro Oeste brasileiro Cuiabá (1727), Vila Bela (1752), Cáceres (1778) e Poconé (1780) (AZEVEDO, 1957). A distribuição espacial dessa rede urbana e sua estrutura interna revelaram o sentido exploratório da colonização e a posição política da Metrópole portuguesa em relação a Colônia. Deve-se ponderar que o número de cidades e vilas citados corresponde aos dados Ambientes estudos de Geografia 189 oficiais, ou seja, considera-se apenas os que foram oficializados e sacramentados. O controle do Estado e da Igreja na fundação e expansão de núcleos urbanos, na organização e escoamento de mercadorias e a voracidade que caracterizou a exploração dos recursos naturais da colônia, influenciou diretamente a ordenação do espaço interno das cidades. Em relação a estrutura interna das cidades, Holanda (1963, p. 62) argumentou que ao comparar as colonizações espanhola e portuguesa na América Latina, o próprio traçado dos centros urbanos na América Espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste [...] As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; de acordo com Aymord (1985, p. 138), seria uma espécie de “vitória da ordem sobre a sombra, em uma cidade ideal estabelecida sob o signo do espírito”. Sem considerar as implicações teóricas e as diferenças geográficas existentes entre as regiões Andinas e as do litoral brasileiro, Holanda (1963) procurou enfatizar nas cidades de colonização espanhola, o rigor geométrico na ordenação do espaço urbano que as “imunizaram” contra as forças e as assimetrias da natureza. Em relação as cidades da colonização portuguesa, Holanda (1963, p. 75-76) as caracterizou como espaços desorganizados e irracionais, isto é, “não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem”. Em relação ao traçado das cidades, Pe. Antônio Vieira dizia: não fez Deus o Céu em xadrez de estrêlas (XAVIER PEREIRA, 1982, p. 82). A Vila de São Paulo, como informa Xavier Pereira, significava uma paisagem de casario estreitado no topo da colina, entrecortada pelos rios Anhangabaú e Tamanduateí, que se mesclava às roças e criações de animais nos arrabaldes. Na descrição de Azevedo (1957, p. 152), São Paulo se apresentava “com suas tortuosas ruas serpenteando no cabeço da colina, estreitas num ponto, largas noutro, recortadas de casas baixas e enormes beiradas de telhado a protegerem as paredes de taipa. Nas palavras de Morgado de Mateus, era uma verdadeira cidade de barro”. O espaço interno das cidades coloniais no Brasil traduzia, em primeiro lugar, o objetivo do empreendimento colonizador e, consequentemente, a função atribuída à cidade no processo de exploração do território. Além disso, deve-se acrescentar como informa Azevedo (1957, p. 152), que os núcleos urbanos criados pelas autoridades coloniais “obedeciam, em suas origens, um plano regular e geométrico, se bem que adaptado às características topográficas. Sem demora, porém, deixava-se de lado essa preocupação urbanística e a expansão passava a se realizar de maneira espontânea”. Além disso, vale lembrar que, segundo M. Marx (1992, p. 22), a localização do sítio urbano não ocorreu aleatoriamente, mas obedecendo uma legislação específica criada pelo Estado e pela Igreja. Assim, segundo o direito canônico, as Igrejas se devem fundar, e edificar em lugares decentes, e acomodados, pelo que mandamos, que havendo-se de edificar de novo alguma igreja parochial em nosso Arcebispado, se edifique em sitio alto, e lugar decente, livre de humidade, e desviado, quanto for possível, de lugares immundos, e sordidos. 190 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Na concepção de Holanda (1963), os núcleos urbanos caracterizavam-se pela pequena concentração de casas em torno de uma igreja, geralmente localizada no alto de um espigão. À revelia da natureza, o traçado das ruas, das quadras ou da praça central se faziam na medida em que as casas, os edifícios públicos e a igreja eram construídas. O costume de se destacar a igreja na paisagem, consistiu em uma tradição e uma decisão política, estética e simbólica que, na verdade, obedeceu, segundo M. Marx (1992, p. 23) “a uma legislação clara a ser cumprida se se quisesse a sagração, ainda que de uma pobre capelinha [...] Em boa parte, nosso território com seu relevo ensejou a exploração das colinas e das escarpas pelas capelas e igrejas em todo porte [...]” Com efeito, essa legislação incidiu diretamente sobre [...] o sistema de ruas e prédios ou, no mínimo, para as redondezas da igreja. Se esta devia estar afastada das demais construções, e quanto isto fosse possível, um espaço à volta se configuraria, sendo transformado, com o passar do tempo e com a evolução do povoado [...] em determinado logradouro. E isso foi possível quando o povoado era incipiente, pequeno e de construções ainda esparsas. Além de uma igreja destacada pelas alturas, pelo próprio sítio urbano, o arraial passava a contar com a sua valorização pelo espaço livre em volta. Estava definida a ocupação de algum ponto topograficamente privilegiado e um espaço aberto de expressão relativa. (MARX, 1992, p. 23) Desse modo, supõe-se que a configuração topográfica do sítio urbano, constituiu-se em outro obstáculo de geometrização do espaço interno das cidades. Os casos de Salvador, São Vicente, Ouro Preto e outras, são exemplos de “obediência” da estrutura urbana às sinuosidades do terreno. O traçado prévio, organizando a ocupação do solo urbano, surgiu, historicamente como resposta às mudanças de funções adquiridas pela cidade na economia colonial e pela valorização do solo urbano decorrentes da concentração populacional. Embora a Igreja, unida ao Estado, tenha sido responsável em grande parte pela expansão urbana, a sua distribuição espacial ao longo do litoral correspondeu, sem dúvida, aos objetivos econômicos e geopolíticos da Coroa portuguesa. A localização das cidades e o traçado dos caminhos que as interligavam, relacionaram-se diretamente com as necessidades de escoamento de mercadorias e controle da exploração de recursos naturais. Em relação à configuração litorânea da urbanização, Oliveira (1982, p. 37) argumentou que [...] as cidades se constituíram segundo um padrão litorâneo não só devido ao seu caráter exportador de produtos primários, mas também devido à divisão social do trabalho, e isto tem a ver com a forma específica do capital que controlava desde cima (sem entrar nela) essa economia agroexportadora. Vai ser nas cidades que se localizarão tanto os aparelhos que fazem a ligação da produção com a circulação internacional de mercadorias quanto os aparelhos de Estado - do Estado colonial português, em primeiro lugar, e depois do Estado brasileiro - que tem nas cidades, evidentemente, a sua sede privilegiada. De acordo com Reis Filho (1968, p. 38), a cidade se estabeleceu em decorrência do Ambientes estudos de Geografia 191 processo de urbanização e não ao contrário. Isso porque, como bem argumentou Oliveira (1982, p. 37), estamos acostumados a entender que o fenômeno da urbanização na sociedade e na economia brasileira é um fenômeno que se deflagra apenas a partir da industrialização [...] O que nos tem levado a desprezar, de certa forma, a formação urbana dentro das condições da economia exportadora. Assim, a rede urbana que se formou nos primeiros séculos de colonização, constituiuse em um conjunto de respostas às solicitações deste processo de urbanização e conquista territorial. De acordo com Oliveira (1982, p. 38), “o urbano no Brasil é historicamente fundado numa contradição singular : enquanto o locus da produção era rural, agrário, o locus do controle foi urbano”. Considerou-se que o movimento de acumulação primitiva do capitalismo mercantil teve sua sede de controle na cidade porque tratava-se de uma economia com uma função específica dentro do sistema internacional de acumulação. Fundada para exportação, a cidade nasce no Brasil antes mesmo do campo. A política de exploração realizada pela Coroa portuguesa no Brasil, não excluiu a idéia de criação de cidades como forma de domínio territorial e pontos de escoamento de mercadorias. A articulação entre elas, caracterizou a rede urbana e o modo como o processo de colonização se desenvolveu. A colonização portuguesa no Brasil não caracterizou-se como um movimento demográfico. Na verdade, como argumenta Novaes (1997, p. 20), a colonização moderna não foi um fenômeno essencialmente demográfico, mas por certo tinha uma dimensão demográfica muito importante. Não foi essencialmente demográfico no sentido de que o movimento colonizador não foi impulsionado por pressões demográficas [...]. A colonização do Novo Mundo articula-se de maneira direta aos processos correlatos de formação dos Estados e de expansão do comércio que marcam a abertura da modernidade européia. Na dimensão política, decorreu um permanente esforço metropolitano no sentido de expandir o território da dominação colonial para além das possibilidades de exploração econômica. Isso devido, segundo Novaes (1997, p.22), ao fato de os Estados modernos em gestação na Europa estão se formando uns contra os outros, de aí essa furiosa competição para garantir espaços na exploração colonial. No caso português, esse processo é levado ao limite, e é o que explica a enorme desproporção entre a pequenez da Metrópole e a imensidão da Colônia. E é também de aí que resulta a enorme dispersão e rarefação das populações coloniais. Em relação ao rompimento da concentração do povoamento na faixa litorânea ocorreu parcial e momentaneamente na fase da mineração, quando a ocasião da descoberta de ouro e diamantes gerou um importante movimento migratório entre as regiões litorâneas (São Paulo e Rio de Janeiro) e as regiões de Minas Gerais e sul de Goiás. De acordo com Deffontaines (1944, p. 143), “a colonização mineira se apresentou essencialmente sob a 192 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) forma de uma civilização urbana”. A vida urbana da colônia foi vista como um prolongamento e uma complementação da metrópole e, ao mesmo tempo, a sua negação e o seu avesso. A população da colônia na perspectiva metropolitana era equivalente à da metrópole, porém a metrópole era uma região de emigração, e a colônia uma região de imigração (NOVAES, 1997, p.20). A forte concentração econômica e política em São Paulo e no Rio de Janeiro a partir principalmente de meados do século XIX, associada às formas de controle sobre a distribuição de terras, foram fatores internos que contribuíram para o fortalecimento da economia litorânea. Para Azevedo (1957, p. 114), a obra de urbanização conseguiu libertar-se da orla atlântica, em conseqüência da expansão povoadora e da conquista do Planalto Brasileiro e da própria Amazônia”. Vale dizer, de acordo Novaes (1997, p. 25), que a economia açucareira organiza-se para exportação; e a subsistência (como a de São Paulo, ou a pecuária nordestina), que está voltada para dentro, dá lugar a uma formação social instável, móvel, sem implantação. De outro ângulo, o contraponto entre o caráter profundamente rural da sociedade litorânea, e marcadamente urbano das Minas, realça a diversidade até o paradoxo : o mais estável, permanente, é o setor litorâneo, voltado para fora, nas bordas; o mais fluido e superficial é o setor interiorizado e urbano. Como elo de ligação entre Metrópole e colônia, a cidade encontrou-se envolvida por um conjunto de relações políticas administrativas, comerciais e culturais que a tornava, cada vez mais, parte de uma rede urbana e de um sistema econômico interno. A política urbanizadora, como argumenta Reis Filho (1968), teve seus desdobramentos durante todo o século XVIII para se consolidar como processo de urbanização no século XIX, quando o espaço urbano adquiriu novos significados para os agentes sociais, políticos e econômicos da conquista territorial. Na perspectiva do poder da Metrópole portuguesa, os núcleos urbanos na colônia tornaram-se espaços de controle e, ao mesmo tempo, permitiram ampliar, com eficácia, o sistema administrativo. Para o Estado brasileiro, a cidade tornar-se-ia a condição concreta de intervenção política na economia e na sociedade. As melhorias ocorridas nos quadros administrativos no início do século XIX, implicaram a incorporação de novos serviços tipicamente urbanos, (jurídicos-burocráticos, comerciais, transportes e culturais) provocando alterações nas funções da cidade, bem como modificações importantes na regulação do uso do solo urbano. As demandas de serviços derivadas das atividades agrícolas e comerciais, que passaram a ser atendidas na cidade, resultaram na edificação de prédios públicos, estabelecimentos comerciais, casas teatrais, escolas, bibliotecas, praças etc. Com o adensamento da aglomeração urbana, aumentou-se a pressão sobre o solo urbano e, desse modo, as necessidades de parcelamento e geometrização do espaço interno das cidades. O parcelamento do solo urbano, como forma de regulamentação e controle do uso e ocupação, registrou as regras impostas e elaboradas exclusivamente para as cidades. A divisão dos lotes implicava na definição de espaços públicos e privados, bem como no seu preço. Ambientes estudos de Geografia 193 O desenvolvimento da economia colonial ao longo dos séculos XVII e XVIII, embora voltada inteiramente para o campo, desdobrou-se em uma rede urbana que no século XIX passou a concentrar, em determinadas regiões, significativos contingentes populacionais. Segundo Geiger (1963), três fatores contribuíram para a expansão urbana durante o século XIX : a abolição da escravatura; a maior divisão do trabalho; e o desenvolvimento das médias e pequenas propriedades rurais. Um quarto fator pode ser acrescentado se considerarmos a imigração européia na segunda metade do século XIX, sobretudo, para São Paulo e Estados do sul do País. Por outro lado, como observa Deffontaines (1944, p. 144), “no decurso do século XIX, com o declínio da mineração, a montanha ficou vazia com suas cidades mortas, verdadeiros monumentos históricos perdidos num deserto: São João del Rei e Congonhas do Campo”. Santos (1996, p. 20) informa que “ no final do período colonial, as cidades, entre as quais avultaram São Luís do Maranhão, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, somavam perto de 5,7% da população total do País, onde viviam, então, 2.850.000 habitantes ”. No final do século XIX, haviam apenas três cidades com mais de 100.000 habitantes: Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A partir do início do século XX, sobretudo no Estado de São Paulo, a cafeicultura e a ferrovia foram decisivos para crescimento das cidades. Em 1900, a cidade de São Paulo contava com aproximadamente 240.000 habitantes. Localizadas na faixa litorânea, formando o tão propalado “arquipélago econômico”, as cidades litorâneas lançaram raízes para o interior do território, configurando uma relativa continuidade do processo de expansão urbana através do movimento da fronteira agrícola. De acordo com Santos (1996, p. 20), esse arquipélago, formado por subespaços que evoluíam segundo lógicas próprias [...] foi relativamente rompido na segunda metade do século XIX, quando, a partir da produção do café, o Estado de São Paulo se torna o pólo dinâmico de vasta área que abrange os estados mais ao sul e vai incluir, ainda que modo incompleto, o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Na verdade, o processo de urbanização sofreu poucas alterações entre o final do século XIX e o início do século XX. A aceleração do processo se deu entre os anos 20 e 40, período em que a população ocupada em serviços cresceu mais rapidamente que o total da população economicamente ativa. No caso do Estado de São Paulo, a taxa de crescimento da população urbana no o referido período foi de 43% (SANTOS, 1996). A história da colonização portuguesa no Brasil, mostra também a história e a geografia da cidade. Da conquista territorial à exportação de produtos agrícolas, a cidade desenhou o mapa econômico e político do Estado português, constituindo-se, ao mesmo tempo, como espaço de controle sobre o território conquistado e ponto de articulação com a economia metropolitana, tornando-se cidades internacionais antes mesmo de serem nacionais. As relações econômicas entre Metrópole e Colônia se faziam através das cidades e estas, por sua vez, dependiam menos do sucesso empreendedor da colonização do que da política administrativa estabelecida pela Metrópole. O caráter de espaço de articulação entre Colônia e Metrópole produziu uma rede urbana singular dado à especificidade de suas funções no sistema colonial e de sua distribuição geográfica . 194 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Evidentemente, outras características poderiam ser atribuídas a cidade no período colonial e outras relações poderiam ser exploradas do ponto de vista teórico e conceitual, como também do seu papel em territórios em processo de incorporação. A arquitetura, o urbanismo, a cultura urbana e as relações de poder através das cidades, constitui-se em um campo de pesquisa extremamente importante para a geografia urbana brasileira, mas ainda pouco estudado e analisado teoricamente. Os trabalhos realizados durante os anos 40 e 50, revelaram uma certa preocupação em relação ao período colonial, um desses trabalhos, como observou-se, foi Vilas e cidades do Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva, de Aroldo de Azevedo, publicado pela Universidade de São Paulo (USP), em 1956. Outro trabalho, menos abrangente, foi o de Pierre Deffontaines (1944) no artigo Como se constituiu a rede de cidades, enfatizou sobretudo o Estado de São Paulo. Outro geógrafo que tratou da questão urbana no início dos anos 50, considerando a cidade desde o período colonial foi Pierre Monbeig (1943), em estudos sobre Goiânia e a frente pioneira no oeste paulista e norte do Estado do Paraná, mostrando a preocupação em valorizar o período de colonização para uma melhor compreensão do urbano no Brasil. Com Evolução da Rede Urbana Brasileira lançado em 1963, Pedro Geiger apresentou um importante estudo sobre as funções da cidade na Colônia e seu processo de evolução nas áreas de expansão territorial. A partir dos anos 60, os trabalhos de pesquisa em geografia urbana passaram a enfatizar principalmente, o processo de industrialização, a formação da rede urbana, a regionalização e questões relacionadas ao planejamento regional. Muito desses trabalhos romperam com a história. Um exemplo pode ser notado em Análise fatorial : problemas e aplicações em geografia, de Faissol (1973), e tantos outros considerados de abordagem quantitativa ou neopositivista. Assim, considerando o que se expôs anteriormente em relação ao recorte histórico e espacial da análise sobre o papel da cidade nas áreas de fronteira econômica, passou-se a examinar a urbanização do Estado de São Paulo até os anos 30 em seus aspectos gerais. O processo de urbanização no Estado de São Paulo nas décadas de 1920 e 1930 O processo de urbanização no Brasil, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, apresentou em termos numéricos, pequenas alterações no quadro geral do seu crescimento. Em 1872, a população total era de 10.112.061 habitantes, apenas 6,8% estavam nas cidades; em 1920, a população total era de 27.500.000, e a população urbana passou para 10,7% (SANTOS, 1996). Em relação ao interior do Estado de São Paulo, Rossini (1988, p. 74) informa que a urbanização acelerada pelo “movimento de capitais mercantis locais propiciando investimentos de origem privada de companhias de energia, de telefone, de meios de transporte, bancos, instituições de ensino etc”; reforçaram de modo significativo o crescimento urbano através da ampliação do setor de serviços. Considerou-se que o uso de energia elétrica, como um dos indicadores do crescimento Ambientes estudos de Geografia 195 de atividades urbanas e de inovações técnicas, mostra que no início do século XX (1907), trinta e dois estabelecimentos industriais utilizavam-se da energia elétrica e nos anos 20, eram 3.042 estabelecimentos (LORENZO, 1997, p.179). Nos anos 20, embora tenha sido a exportação de café o principal elo de ligação com o mercado externo, foi na cidade que o capital estrangeiro se instalou com maior proeminência. Entre os anos 30 e 50, o Brasil passou de exportador de produtos primários, para importador de bens de consumo duráveis e de capital fixo. Esse processo de urbanização, que antecedeu o desenvolvimento da economia industrial do pós guerra (1945), apresentou-se nas décadas de 1920/30 de modo bastante singular nas zonas de fronteira agrícola do oeste paulista. As regiões pioneiras do oeste paulista (municípios de Marília, Araçatuba, São José do Rio Preto e Presidente Prudente) foram durante as três primeiras décadas do século XX, o palco privilegiado da atuação do café e da ferrovia. Ambos constituíram-se nos agentes protagonistas do movimento pioneiro, alterando a localização (privilegiou-se os espigões dos planaltos) e a estrutura das cidades, bem como suas relações comerciais. A estação ferroviária, como observa Geiger (1963, p. 92), “ou atraiu para a sua proximidade o centro comercial, ou criou um outro”. A relação café-ferrovia, no final do século XIX, iniciou-se com a construção da São Paulo Railway entre 1860 e 1865, ligando Santos-Jundiaí. Em 1872, como informa Singer (1974, p. 39), deu-se a concessão da Estrada de Ferro São Paulo-Rio, que partindo de São Paulo, alcança Moji das Cruzes em 1875, Jacareí, São José dos Campos, Caçapava e Taubaté no ano seguinte, e Pindamonhangaba, Guaratinguetá e Cachoeira, em 1877, entroncando nessa cidade com a Estrada de Ferro Central do Brasil (antiga D. Pedro II). Completava-se desta forma a ligação com a Capital Federal. No início do século XIX, o café representava 18,4% da exportação nacional; no caso açúcar era de 30,1% . Entre 1831 e 1840, a exportação de café chegou a 43,5% e a do açúcar a 24,0%. No final do século o café era responsável por 64,5% das exportações (ROSSINI, 1988, p. 73). Além disso, foi a partir do final do século XIX, como informa Rossini, “ que o grande surto imigratório para São Paulo vai ocorrer, subsidiado pelo governo provincial. Neste período, a população cresceu cerca de 46,0%, atingindo 1.221,383 habitantes em 1900 chegou a 2.282.269 habitantes”. Deve-se enfatizar o período compreendido entre 1872 e 1920, pois a partir deste período que o processo de urbanização no Estado de São Paulo ganhou impulso definitivo. Segundo Lorenzo (1997, p. 169), em estudo sobre o uso de energia elétrica no Estado de São Paulo durante a década de 1920, observou que “o crescimento da população das cidades de mais de trinta mil habitantes [...] entre 1872 e 1920, é de 7.393%, contra um crescimento de 488% para a população total do Estado”. Observou-se ainda que, neste período, quando a imigração se acentuou e o café e a ferrovia passaram a expandir-se para o oeste paulista, o segmento dominante do movimento 196 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ruralista brasileiro passou a empenhar-se mais fortemente na organização política da agricultura. Em 1897 foi fundada a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), que propunha a diversificação agrícola e a modernização técnica das relações de produção. Em 1909, foi criado o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio com o objetivo de estimular a diversificação agrícola e preparação da mão-de-obra rural através do ensino agrícola e fomento à imigração/colonização. Por outro lado, referindo-se às relações de trabalho, a importância da ferrovia relacionou-se não somente com o avanço da cafeicultura e com a reestruturação da rede urbana paulista, mas também com a expansão das relações capitalistas de produção. A divisão interna do trabalho, a hierarquia administrativa, os regimentos internos de regulação e controle da produção, são aspectos que fizeram da empresa ferroviária um modelo de organização e disciplina do trabalho que influenciaram outras atividades econômicas, inclusive a cafeicultura. A influência da ferrovia deu-se, sobretudo, na cidade. O traçado das estradas de ferro não só alterou o funcionamento da rede urbana, surgindo várias cidades ao longo de suas paralelas de aço, como diria Odilon Nogueira (1974), como também as “contaminou” de cultura urbana e ‘modernidade’. Sem dúvida, a expansão urbana que acompanhou a chamada “frente pioneira” correspondeu de acordo com Lorenzo (1997, p. 137), às necessidades do café, ou dos privilegiados urbanos, em seus investimentos” e abriu “possibilidades de absorção do desemprego, e [...] à necessidade de manutenção da situação básica dominante; a sociedade hegemonicamente agrária faz do desenvolvimento urbano a sua janela para o exterior, a janela que recepcionará o moderno. As cidades que surgiram com a ferrovia modificaram, em grande parte, o funcionamento da antiga rede urbana. Antes de serem criadoras de cidades, como argumentou Deffontaines (1944, p. 56), as ferrovias provocaram uma verdadeira hecatombe urbana. Este autor informa que, “primeiro foi a morte de todos os pequenos portos da costa não servidos pelas vias férreas: Angra dos Reis, Ubatuba, Nova Almeida e Tôrres”. Depois, provocaram uma forte concorrência com a navegação fluvial que gerou a decadência e a estagnação de cidades ligadas a este setor. Seguindo as “cristas dos espigões” a ferrovia no Estado de São Paulo, sobretudo na primeira metade do século XX, tornou-se, parafraseando Azevedo, a “espinha dorsal” da rede urbana do interior paulista. As principais companhias ferroviárias que atuaram no Estado de São Paulo (Companhia Paulista, Sorocabana, Noroeste do Brasil, Mogiana), tinham como prática comum a construção de estações e sub/estações em distâncias que variavam entre 20 e 30 quilômetros ao longo das respectivas linhas férreas. As estações ferroviárias funcionaram, muitas vezes, como embriões de cidades ou pequenas vilas ou simplesmente sucumbiram, mais tarde, com a crise do café e da ferrovia. No caso da Companhia Paulista, a maioria das linhas foram estabelecidas principalmente na chamada zona velha, anteriormente ocupada pelo café e com inúmeras cidades. A Noroeste do Brasil, por outro lado, se expandiu nas zonas pioneiras, onde a divisão da Ambientes estudos de Geografia 197 terra e tampouco a cafeicultura tinham alcançado. Geralmente, na estação terminal da linha férrea – ponta de linha – surgia um núcleo urbano que ganhava rapidamente status de cidade. Em 1896, quando a ferrovia chegou em Bauru, era um povoado que contava, como informa Deffontaines (1944), com cerca de “50 cabanas de madeira”; 2 anos depois era uma cidade com perto de 4.000 habitantes. Além da ferrovia e da cafeicultura, as médias e pequenas propriedades produtoras de alimentos, proporcionaram também, como argumentou Prado Jr. (1944, p. 64), uma “maior rapidez na organização da rede urbana, com melhor caracterização da hierarquia de seus centros urbanos”. As cidades que surgiram com a monocultura do café e a expansão da ferrovia até o final do século XIX, foram essencialmente cidades de serviços. As cidades da indústria nasceram com o algodão e a cana-de-açúcar. O processo de urbanização nutrido pelo binômio café-ferrovia no Estado de São Paulo só ganhou impulso definitivo a partir dos anos 30, mas as duas primeiras décadas do século XX foram decisivas para o desempenho da economia paulista no cenário nacional. Entre 1900 e 1920, a população paulista cresceu 101,2%. No censo de 1920 o Estado de São Paulo contava com 15% da população nacional (4.592.188 habitantes) e participava, em 1907, com 16% da produção industrial; em 1919, era de 31%. Além disso, em 1920, São Paulo contava com 6.810 quilômetros de estradas de ferro e a Capital paulista chegava aos 593.134 habitantes ( ROSSINI, 1988; SINGER, 1974). A expansão da ferrovia foi acompanhada durante todo período pela expansão rodoviária. Observou-se que no governo de Washington Luís Pereira de Souza (1920-1924), a abertura de estradas estaduais (rodovias) e vicinais foram alvos constantes de investimentos. “Em 1924, [...] o Estado de São Paulo contava com 22.432 veículos, sendo 4.395 caminhões, trafegando em mais de mil quilômetros de rodovias, construídas pelo governo estadual”; O ano de 1924 foi também o da instalação da General Motors, no município de Santo André (REIS FILHO, 1997, p.149). No referido período, a agricultura paulista produzia 28% do valor da produção agrícola em 2.000.000 de hectares cultivados (30% da área cultivada no País). Segundo o Censo Agropecuário de 1920 (FIBGE), dos 648 mil estabelecimentos agrícolas existentes no Brasil, 80.921 estavam no Estado de São Paulo. Além disso, como informa Tartaglia (1993, p. 14), “a agricultura paulista utilizava 401 tratores e 27.902 arados (tração animal e mecânica) o que representava 23,5% do total de tratores do país e 19,8% dos arados utilizados”. Os 24,7 milhões de hectares do Estado de São Paulo, 14,3% estavam ocupados com lavouras, 48,4% com pastagens e terras incultas e 37,2% com matas naturais. Evidentemente, devemos ponderar sobre a exatidão desses dados, uma vez que as dificuldades encontradas na época e as possibilidades de mapeamento das áreas e levantamento de dados eram extremamente limitadas. Para Tartaglia (1993, p.59-64), durante os anos 20 a rede urbana paulista definiu-se “em torno dos eixos ferroviários e as cidades-pólo mais importantes delineadas e consolidadas em sua maioria”. Segundo este autor, “ao longo dessas ferrovias nascem e florescem núcleos urbanos que, de várias formas, apoiam a atividade agrícola, sustentam a operação 198 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) da ferrovia e se integram rapidamente ao sistema urbano paulista”. A base dessa rede urbana originou-se, portanto, na produção do café e “assentou-se no desenho das ferrovias, onde se distribuíam núcleos urbanos que davam suporte às lavouras e às necessidades de armazenagem e transporte de café e outros produtos”. Neste caso, o surgimento da cidade condicionou-se, primeiramente, à expansão da ferrovia e a função de suporte dos fluxos e armazenagem de mercadorias. Ou seja, o surgimento dos núcleos urbanos correspondeu à demanda gerada pela produção agrícola : o café. Entretanto, cidades como Ribeirão Preto, Araraquara e São José do Rio Preto (todas fundadas por mineiros) surgiram antes do café e da ferrovia; por outro lado, cidades como Valparaíso e Andradina (Noroeste do Brasil) surgiram antes mesmo da chegada da “frente pioneira”. A concepção de que a rede urbana no oeste paulista se formou a partir da expansão cafeeira e ferroviária, deixou de lado fatores que não permitem a compreensão acerca dos processos de espacialização do urbano no Interior do Estado do São Paulo. Entre os fatores importantes, analisados mais adiante, referem-se à atuação das companhias privadas de colonização e comercialização de terras, do processo de estruturação agrária e do papel desempenhado pelo Estado na formação da economia regional. O surgimento da cidade na fronteira agrícola do oeste paulista, na primeira metade do século XX, resultou, em grande parte, do processo de urbanização de meados do século XIX, e não somente de um conjunto de fatores que passou a se articular economicamente em função da cafeicultura e da ferrovia, fazendo com que a cidade surgisse como espaço do excedente. Sem dúvida, as cidades constituíram-se em espaço de trocas, de suporte da economia agrícola, armazenagem e beneficiamento de produtos agrícolas. Essas funções, porém, foram as que as cidades adquiriram ao longo do movimento de expansão agrícola e não as que lhes deram origem. Em relação ao avanço da economia paulista, referido acima, pode-se destacar vários fatores que contribuíram para o seu dinamismo : a expansão da cafeicultura; a implantação de uma importante malha ferroviária; a substituição do trabalho escravo pelo imigrante livre; a descentralização política administrativa advinda com a proclamação da República; e o precoce, mas acelerado, processo de industrialização da Capital paulista. O conjunto desses fatores deve ser entendido como resultado de um contexto mais amplo, envolvendo as escalas nacional e internacional. A Primeira Guerra Mundial, por exemplo, aumentou as exportações, favoreceu a emergência de políticas industriais e ampliou, relativamente, o mercado interno. Os dados abaixo confirmaram a supremacia econômica de São Paulo no referido período: 15% da população nacional; 28,8% da produção agrícola; 2,3 milhões de hectares de área cultivada (50% de café); 50% das exportações nacionais; 75% das exportações são produtos manufaturados; 6.600 quilômetros de ferrovias. A partir dos anos 30, o processo que articulou agricultura-urbanização-indústria, ganhou impulso decisivo com a presença do Estado. A mudança no modo de acumulação de capital, unificou os interesses industriais, financeiros, imobiliários, comerciais e agrícolas, como também instituiu uma nova divisão espacial e social do trabalho. São Paulo tornouse, como argumentou Rossini (1988), o centro nervoso da economia nacional. Ambientes estudos de Geografia 199 Embora a crise do modelo agro-exportador a partir do anos 30 tenha colocado a agricultura em segundo plano em relação aos investimentos políticos e econômicos do Estado, parte do capital cafeeiro se associou às diretrizes da indústria e do setor de serviços, sobretudo nos ramos de transporte e imobiliário, e dinamizou de modo efetivo o desenvolvimento industrial. Com o avanço da industrialização, o processo de unificação do mercado interno e a concentração da produção industrial na região sudeste se acentuou de modo decisivo e permitiu a rápida formação de aglomerados urbanos industriais e, consequentemente, aprofundou as desigualdades regionais. Por outro lado, a diminuição do movimento imigratório acentuou a migração interna, o que resultou em uma divisão regional do trabalho, onde a Região Nordeste apareceu como mercado de mão-de-obra para a indústria do Sudeste, e o Norte e Centro-Oeste como regiões de expansão da fronteira agrícola dirigida pelo Estado. A partir de 1940, como informa Rossini (1988, p. 106 e 113), “as ferrovias entram em franco declínio, acelerando a retirada de ramais deficitários por falta de modernização e por causa da nova política do Estado. Em 1955 quase 1.000 km de ferrovias foram suprimidos” , ao mesmo tempo, a diversificação da agricultura passou a impor uma “nova orientação na compartimentação espacial da produção agrícola”, fazendo com que a articulação Capital e Interior passasse a se apoiar no tripé industrialização-urbanização-agricultura. Referências AZEVEDO, A. De vilas e cidades do Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva. 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Agricultura e Urbanização em São Paulo (1920-1980). 1993. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1993. A TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA DO CONCEITO DE TERRITÓRIO NO ENSINO DE GEOGRAFIA Levon BOLIGIAN Rosângela Doin de ALMEIDA Introdução Neste trabalho, parte-se do pressuposto de que a atual crise do ensino de Geografia, nas fases do Fundamental e Médio, deve-se, em grande parte, ao tipo de conhecimento geográfico que o sistema de ensino tem apresentado aos alunos: de maneira geral, uma Geografia escolar desatualizada, cujos conteúdos (oriundos de uma Geografia tradicional e descritiva) e os métodos (baseados na memorização de conceitos) não acompanharam as mudanças epistemológicas e conceituais ocorridas na esfera da Geografia acadêmica nas últimas décadas. Dessa forma, torna-se clara a existência de um distanciamento entre o conhecimento geográfico científico e o conhecimento geográfico escolar, decorrente da desatualização dos conteúdos e dos métodos empregados pela Geografia escolar em relação àqueles da Geografia científica. Ou seja, o conhecimento ou o saber geográfico ensinado na escola apresenta-se envelhecido, gasto, em função daquilo que Chevallard (1991) chama de “obsolescência” diante das transformações sociais e científicas contemporâneas. Portanto, entende-se que este fato estaria distanciando o saber geográfico acadêmico do saber geográfico escolar. Objetivos e metodologia do trabalho Sabendo-se que o conhecimento ensinado na escola é, em grande parte, orientado pelos conteúdos selecionados e estabelecidos pelos currículos oficiais e pelos conteúdos programáticos dos livros didáticos, investigou-se neste trabalho, a maneira pela qual estes elementos do sistema de ensino promovem na disciplina de Geografia, aquilo que Chevallard (1991) denomina “transposição didática do saber”, ou seja, de que forma transformam um “objeto de saber científico” - no caso deste estudo, o conceito de território - em um “objeto de ensino”, ou melhor, em um saber a ser ensinado na sala de aula. Antes de continuarmos a discorrer sobre o processo de transposição didática, é fundamental esclarecer alguns pontos a respeito da escolha do conceito de território – uma categoria fundamental da ciência geográfica – como objeto de análise dentro do currículo oficial e dos livros didáticos de Geografia. Atualmente, é bastante difundida entre estudiosos da Educação, e mesmo do ensino de Geografia, a idéia de que a priorização do aprendizado de conteúdos conceituais é uma das principais formas de romper com uma tradição, ainda bastante forte, de se desenvolver 236 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) apenas a aprendizagem memorística de conteúdos factuais. Dessa forma, o uso de conceitos vem atribuir sentido ao processo educacional, ou seja, vem priorizar, aquilo que David Ausubel (AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1980) chama de processo de aprendizagem significativa dos conteúdos escolares. Isso porque, segundo Pozo (1998, p.21), para que “[...] os dados e os fatos adquiram significado, os alunos devem dispor de conceitos que lhes permitam interpreta-los”. De acordo com Moreira e Buchweitz (1993), para Ausubel, o processo de aprendizagem decorre da relação que estabelecemos, em nossas mentes, entre as novas idéias, informações e conceitos e aqueles que já havíamos apreendido anteriormente e que, de certa forma, encontravam-se disponíveis no interior de nossa estrutura cognitiva. Ainda segundo os autores (citados), Ausubel supõe que as pessoas pensam, basicamente, a partir de conceitos, os quais revelam o significado das coisas, ou seja, dos objetos, dos fenômenos ou dos eventos. Assim, para esses dois primeiros autores, a aprendizagem significativa “[...] envolve a interação da nova informação com uma estrutura de conhecimento específica, a qual Ausubel define como conceitos ‘facilitadores’, existentes na estrutura cognitiva do indivíduo”. Dessa maneira, entendemos que os conceitos ou as categorias-chave de cada ciência podem ser empregados como elementos “facilitadores” do processo de aprendizagem, na medida em que passam a nortear os conteúdos escolares, criando condições para que os processos pedagógicos tenham maior sucesso no âmbito da sala de aula. Ao transportarmos essa discussão para a esfera da Geografia escolar, citamos Santos (1993), que afirma ser essencial ao currículo apresentar-se como um instrumento contemporâneo, aproximando os alunos da realidade por meio de conteúdos que mostrem como as relações entre as coisas são históricas e dinâmicas. Segundo esse autor, isso somente será possível por meio do ensino das categorias fundamentais da Geografia. Neste estudo, propomos o território como um conceito “facilitador” no ensino de Geografia, por entendermos que todos os outros conceitos geográficos fundamentais estão, de certa forma, e em escalas diferentes, contidos implicitamente nesse conceito. Pela sua abrangência teórica, o conceito de território nos parece ser mais que um conceito-chave da Geografia. Na realidade, o território é, por assim dizer, um metaconceito da ciência geográfica. O que é a transposição didática A transposição didática apresenta-se como uma teoria sobre o que ocorre como o saber quando este percorre o “caminho” entre as esferas de conhecimento, isto é, quando parte da esfera científica, onde é produzido, rumo à esfera escolar, onde é ensinado. A transposição surge como um dispositivo que permite analisar como o saber “passa”, ou é transposto, de uma esfera de conhecimento para outra esfera. Permite analisar, também, quais transformações podem ocorrer nesse percurso, assim como quais são os atores ou elementos que interferem nessas transformações. De acordo com Chevallard (1991), em cada esfera de conhecimento o saber é “preparado” de maneira diferente, adquirindo uma característica própria. Não se trata aqui, ao Ambientes estudos de Geografia 237 tomar essa idéia como base, de promover uma análise segmentada do saber, mas de colocar em evidência o fato de existir uma diferenciação epistemológica em relação à produção do conhecimento. Segundo Rodrigo (1998), essa diferenciação ocorre de acordo com o “cenário sociocultural” onde o conhecimento é produzido. A autora propõe a existência de três cenários socioculturais distintos: o cotidiano, o escolar e o científico – além de um provável cenário profissional. Em cada um deles, desenvolve-se um tipo de conhecimento que, conseqüentemente, associa-se ou distingue-se a um tipo de “epistemologia construtiva” que norteia sobre “o que”, “por que” e “como” os saberes são construídos. Outro aspecto relevante para este estudo, é que a idéia de transposição didática rompe com aquele “esquema” tradicional e, segundo Chevallard (1991, p. 14), ultrapassado de se pensar e analisar o sistema didático a partir da “[...] tão famosa ‘relação professor-aluno’, que obscureceu, durante pelo menos duas décadas, a abordagem dos fatos didáticos os mais imediatamente aparentes”. Ocorre que a transposição didática insere um terceiro elemento nessa relação, o saber, criando assim uma “relação ternária: saber – professor – aluno”. É o que Chevallard (1991, p. 14), chama de “relação ou contrato didático”, base do esquema segundo o qual “[...] a didática dos matemáticos [e por que não dizer aqui dos geógrafos ou professores de Geografia] pode então começar a pensar o seu objeto” 1. Diante de tais colocações, acreditamos na pertinência do modelo transpositivo para a realização deste estudo, como forma de contribuir para o avanço das análises científicas na área da didática do ensino de Geografia. De acordo com Chevallard (1991), para a análise da transposição didática, possuem relevância os seguintes saberes: • O saber sábio: conjunto de conhecimentos elaborados e aperfeiçoados na esfera da comunidade acadêmica ou científica, por meio de pesquisas e/ ou reflexões teóricas. São aqueles conhecimentos aferidos e comprovados como lógicos e verdadeiros por meio de métodos de investigação científicos e, por isso, considerados como conhecimentos válidos e legítimos pela sociedade, de maneira geral. • O saber a ensinar: conjunto de conhecimentos produzidos pelas pessoas que pensam a respeito do sistema de ensino e que, de certa forma, decidem “o que” e “como” estes devem ser adaptados no sentido de tornarem-se hábeis para que sejam transpostos para a sala de aula. Chevallard (1991) refere-se a esse grupo de “pensadores” do sistema de ensino como noosfera. · O saber ensinado ou saber escolar: conhecimento que professor e alunos constroem em sala de aula, isto é, no ambiente escolar. É nesse ambiente que se dá o contrato didático, a relação ternária (saber – professor – aluno), como a inserção do saber a ensinar trazido pelos currículos e pelos livros didáticos, e do saber cotidiano, aquele introduzido pelos próprios professores e estudantes, assim como pelos funcionários da escola, pelos pais de alunos, etc. 1 “(...) la didactique des mathématiques peut donc entreprendre de penser son object.” 238 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Há, assim, fluxos de saberes oriundos tanto da esfera científica (saber sábio), como da sociedade (saber cotidiano), os quais convergem para o sistema de ensino. O esquema a seguir (figura 1) visa representar esses fluxos, esferas de saber onde ocorre a transposição didática. Figura 1 – A transposição didática segundo Chevallard (1991) Elaborado por Levon Boligian (2003) Perrenoud (1997), ao analisar o conceito de transposição didática estabelecido por Chevallard, propõe a existência de três fases diferentes, nas quais ocorrem as transformações entre o saber erudito e o saber escolar, de forma a tornar os conhecimentos “ensináveis” em sala de aula. São elas: • a fase de transferência entre o saber sábio (produzido na esfera acadêmica) e o saber a ensinar ou a ser ensinado (produzido pela noosfera); • a fase de transferência entre o saber a ser ensinado e o saber ensinado (aquele que se dá no interior do ambiente escolar ou do sistema de ensino); • a fase entre o saber ensinado e o saber efetivamente adquirido pelo aluno. Portanto, o foco de análise do trabalho foi estabelecido na fase de transferência entre o saber sábio (produzido na esfera acadêmica) e o saber a ser ensinado (produzido na noosfera), ou seja, traçou-se como objetivo, analisar como o conceito de território é “preparado” como saber a ser ensinado pela noosfera, grupo delimitado neste estudo como sendo composto pelos elaboradores dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997; 1998) e pelos autores dos livros didáticos mais utilizados no país (ADAS, 1995; LUCCI, 2000; VESENTINI; VLACH, 2001) na atualidade. Ambientes estudos de Geografia 239 Procedimentos de pesquisa A fim de alcançarmos os objetivos propostos para este trabalho de investigação, desenvolvemos alguns procedimentos de pesquisa. Em primeiro lugar, buscou-se, apreender o significado teórico acadêmico empregado ao conceito de território, por meio de uma ampla revisão bibliográfica de autores que discutem cientificamente esse conceito na esfera acadêmica. Essa revisão bibliográfica levou em consideração as principais discussões que atualmente envolvem o território, não somente na esfera acadêmica da Geografia, mas da Sociologia, da Filosofia, entre outros. Foram analisados também, outros conceitos e noções a ele subentendidos, como os de territorialidade, Estado-nação, território nacional, organização e configuração territorial. Para tanto, buscou-se o entendimento do significado teórico do território sob a perspectiva da teoria das relações de poder. De acordo com Raffestin (1993), o espaço é a base para formação do território, ele é a matéria-prima para a construção deste último. Na realidade, segundo este autor, em um espaço, propriamente dito, ainda não se deram relações de poder, relações onde um ator manifeste a intenção de apoderar-se deste espaço. Em contrapartida, um território enquanto tal, não exprime mais um espaço, mas um espaço construído pelo ator dominante, apropriado e organizado de acordo com seus objetivos e interesses. Ainda segundo Raffestin (1993), o território é sempre um enquadramento do poder ou de um poder, em um determinado recorte espacial. Nesse sentido, e, de acordo com as leituras teóricas realizadas, concluímos que as relações de poder se dão em diferentes escalas territoriais. A escala do território determina a escala dos poderes. Existem poderes que interferem em diferentes escalas territoriais, como é o caso do Estado. Contudo, há poderes que estão limitados a determinadas escalas territoriais. Assim sendo, temos relações de poder em diferentes escalas: local, regional, nacional, supranacional, etc., produzindo uma multiplicidade de territórios, cada qual com uma territorialidade diferente, ou seja, com uma dimensão própria, e um conteúdo específico, sendo apropriado, apreendido e vivenciado de maneira singular pelos atores sociais. A partir da revisão bibliográfica, foi organizado em seguida um mapa conceitual teórico sobre o território, com o objetivo de promover uma análise constitucional deste conceito. De acordo com Moreira e Buchweitz (1993), os mapas conceituais podem ser elaborados de várias maneiras, ou seja, há diferentes formas de se estabelecer, num diagrama – neste caso o mapa – as relações necessárias entre conceitos e entre conceitos e proposições. Segundo Faria (1995), levando em consideração a teoria da aprendizagem significativa de David Ausubel, têm-se alguns princípios básicos que servem como critério para a seleção e organização dos itens que compõem os mapas conceituais. Entre os principais estão: • selecionar os conceitos, noções e proposições considerados como unificadores de uma determinada ciência; • priorizar os conceitos e proposições que possuem amplo poder explicativo, de forma a possibilitar generalizações e relações com os conteúdos que fazem parte do corpo da disciplina. Neste sentido, Pozo (1998) coloca que um conceito científico não é um elemento 240 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) isolado, mas faz parte de uma grande teia de conceitos, organizada hierarquicamente. Assim sendo, foram elaborados dois mapas conceituais a respeito do conceito de território, cada qual organizado de forma hierárquica, apresentando-se, em primeiro lugar, as idéias (conceitos e proposições) mais gerais e, seqüencialmente, as idéias mais específicas, ou subordinadas, apontando-se graficamente no diagrama as relações existentes entre eles. Posto dessa forma, Moreira e Buchweitz (1993) colocam que o mapa conceitual permite o “desempacotamento” dos conhecimentos contidos nos documentos científicos, tornando-os próprios para serem usados no ensino, ou, como expressam estes mesmos autores, próprios para fins educacionais. Vejamos, então, os mapas conceituais referentes ao território (figura 2) e ao território nacional (figura 3), construídos com base no referencial teórico levantado. Seguindo a descrição dos procedimentos de pesquisa, com base no levantamento bibliográfico teórico e nos mapas conceituais elaborados, investigou-se, na seqüência, a proposta de transposição que os Parâmetros Curriculares Nacional (PCN) (BRASIL, 1997; 1998) e que os livros didáticos mencionados estabeleceram para o conceito de território. Para tanto, foi utilizado como método de investigação científica o modelo de interpretação teórica da “transposição didática”, assim como o exercício de “vigilância epistemológica”, conceitos estabelecidos pelo matemático Yves Chevallard. Ou seja, a partir de uma posição externa ao sistema didático, como observador do objeto de estudo, verificou-se de que maneira esses agentes propuseram transformações ao saber erudito, neste caso ao conceito de território, de maneira a torna-lo “ensinável” em sala de aula, e se neste processo foi preservada a essência de sua semântica estruturante, oriunda do pensamento geográfico científico. Resultados da investigação No caso dos PCN foram constatados vários problemas, a partir do exercício de vigilância epistemológica. • Os referenciais teóricos utilizados pelos autores em relação ao conceito de território são pouco claros, tornando difícil a identificação de seu significado e a corrente à qual é atribuído, fato que se agrava quando se sabe que, atualmente, diversos estudiosos da Geografia discutem este conceito, enquanto categoria de análise geográfica. Assim, mesmo fazendo uma análise da bibliografia citada no final de cada documento, tornou-se difícil detectar as concepções que nortearam as reflexões teóricas dos elaboradores, pois são poucas as referências que tratam especificamente das discussões científicas a respeito do território. • Constatou-se que o significado do conceito de território nos PCN mostra-se, na maioria das vezes, desvinculado de seu mote teórico fundamental – as relações de poder. Entende-se que esse tratamento dispensado pelos autores ao conceito, se apresenta semanticamente míope. Por outro lado, encontra-se adequado à tônica despolitizada e, de certa forma, acrítica que permeia os documentos de maneira geral. Pois, na realidade, há uma preocupação maior com a dimensão sociocultural das relações humanas, do que com as questões de ordem econômica, política e Ambientes estudos de Geografia 241 242 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Ambientes estudos de Geografia 243 244 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Ambientes estudos de Geografia 245 246 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) Ambientes estudos de Geografia 247 ideológica. Os livros didáticos também apresentaram problemas na preparação do conceito de território. • Os autores analisados deram pouca atenção ao conceito em estudo. Privilegiouse na maioria dos volumes, o trabalho com os conceitos de espaço geográfico e paisagem, assim como a noção de regionalização. Na realidade, detectou-se um trabalho concentrado a respeito do conceito de território nos volumes de 6a série, característica que revelou, também, um planejamento descontínuo de apresentação dos conteúdos conceituais nestas coleções, não somente com relação ao conceito de território, mas aos demais conceitos básicos da Geografia. • Há o predomínio de uma abordagem político-econômica que permeia os conteúdos relacionados ao conceito de território, na maioria das vezes, abordado na escala do território nacional e do Estado-nação. Poucas são as menções feitas a existência de processos territorializantes na escala local. Dessa forma, o resultado da análise efetuada veio confirmar a principal hipótese de estudo: os PCN e as coleções de didáticos de Geografia de maior adoção no país, são elementos do sistema de ensino que falham na transposição de conteúdos oriundos da esfera científica para a esfera escolar, visto a série de imprecisões e de incongruências conceituais e teóricas verificadas nestes documentos, em relação à categoria geográfica de território. Conclusão Entendemos que as questões levantadas neste estudo, a respeito dos PCN de Geografia e dos livros didáticos para o ensino fundamental, por meio da metodologia empregada, configuram-se como problemas à transposição do saber geográfico entre as esferas científica e escolar. Sabendo-se disso, acreditamos que tais problemas devem ser superados, de forma a se alcançar, na disciplina de Geografia, o que Chevallard (1991) chama de “bom funcionamento do sistema didático”. Para tanto, há a necessidade de um esforço maior por parte das pessoas que pensam o ensino de Geografia, professores, profissionais da área da didática, acadêmicos, burocratas de órgãos públicos, etc. Isso significa dizer que a noosfera geográfica precisa criar um diálogo melhor entre a ciência geográfica e as disciplinas da educação, promovendo, assim, uma “didatização” e uma “pedagogização” das teorias e dos conteúdos relacionados ao saber geográfico. Referências 248 Lúcia Helena de O. Gerardi (org.) ADAS, Melhem. Geografia, volumes 1, 2, 3 e 4. 3a edição. São Paulo: Moderna, 1995. AUSUBEL, D.; NOVAK, J.; HANESIAN, H. Psicologia educacional, Rio de Janeiro: Interamericans, 1980. BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: história, geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997. BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: geografia. Brasília: MEC/SEF, 1998. CHEVALLARD, Yves. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Grenoble: Ed. La Pensée Sauvage, 1991. FARIA, Wilson de. Mapas conceituais: aplicações ao ensino, currículo e avaliação. São Paulo: EPU, 1995. LUCCI, Elian Alabi. Geografia: homem e espaço, volumes 1, 2, 3 e 4. 16a edição. São Paulo: Saraiva Editores, 2000. MOREIRA, Marco António; BUCHWEITZ, Bernardo. Novas estratégias de ensino aprendizagem: os mapas conceptuais e o Vê epistemológico. Lisboa: Plátano Edições Técnicas, 1993. PERRENOUD, Phillippe. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote, 1997. POZO, Juan Ignácio. A aprendizagem e o ensino de fatos e conceitos. In: COLL, César et al. Os conteúdos na reforma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e atitudes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p.17-72. RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. RODRIGO, Maria José. Do cenário sociocultural ao construtivismo episódico: uma viagem ao conhecimento escolar mediante as teorias implícitas. In: RODRIGO, Maria; ARNAY, José. Conhecimento cotidiano, escolar e científico: representação e mudança. São Paulo: Ática, 1998. p.219-238. A construção do conhecimento escolar, n.1. SANTOS, Milton. Mesa redonda: A formação do professor de Geografia. Orientação, São Paulo, n. 10, p. 44-57, 1993. VESENTINI, José William; VLACH, Vânia. Geografia Crítica, volumes 1,2,3 e 4. 15a edição. São Paulo: Ática, 2001. Sobre os Autores Ambientes - Estudos de Geografia 251 Adler Guilherme VIADANA - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. Email: [email protected] Adriana Rosa BIERAS - Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Dante Flávio da Costa REIS JÚNIOR - Doutorando do Programa de pós-graduação em Geografia, Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] Eliane Guerreiro Rossetti PADOVANI - Centro Universitário Salesiano de São Paulo Americana-SP. E-mail: [email protected] Elias Antônio VIEIRA - E. E. Prof. Cid Oliveira Leite - Ribeirão Preto- SP – E-mail: [email protected] Francisco Roberto Brandão FERREIRA - Centro Federal de Educação Tecnológica do Maranhão. Doutorando do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] José Carlos Godoy CAMARGO - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] José FRANCISCO - Universidade Federal de São Carlos-SP. E-mail: [email protected] Juergen Richard LANGENBUCH – Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Levon BOLIGIAN - E-mail: [email protected] Lucia Helena de Oliveira GERARDI - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Marcos César FERREIRA – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: macferre@uol. com.br Manuel Baldomero Rolando BERRIOS Godoy - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Maria Juraci Zani dos SANTOS - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Odeibler Santo GUIDUGLI - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. Email: [email protected] Paulo Ricardo Machado WEISSBACH - Universidade de Cruz Alta – RS. E-mail: paulorw@ bol.com.br Paulo Roberto Teixeira de GODOY - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Pompeu Figueiredo de CARVALHO - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Regina Helena Moreira Riani COSTA - Faculdades Integradas Einstein – Limeira-SP. Email: [email protected] 252 Lúcia Helena de Oliveira Gerardi (org.) Rosane BALSAN – Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Rosângela Doin de ALMEIDA - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Sidney Gonçalves VIEIRA - Universidade Federal de Pelotas – RS. E-mail: yendis@ufpel. tche.br Susimara Cristina LEVIGHIN - Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] .br Silvio Carlos BRAY - Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] Valdemar VALENTE – Centro Universitário Franciscano de Santa Maria – RS. E-mail: [email protected] Valéria CAZZETA - Doutoranda do Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Rio Claro. E-mail: [email protected] ou vcazetta@ hotmail.com Vilma Dominga Monfardini FIGUEIREDO – Universidade Federal de Santa Maria – RS. E-mail: [email protected]