EXTRA CLASSE Outubro/2013
MARCOS ROLIM*
E
O teste de Bechdel
m 1929, em seu ensaio Um teto todo seu (disponível em: cultural. O teste de Bechdel (Bechdel Test, Bechdel-Wallace Test ou Mo Mohttp://brasil.indymedia.org/media/2007/11//402799.pdf), vie Measure) é um instrumento que pode auxiliar esta tarefa. O nome
Virginia Woolf introduziu no mundo a “irmã de
foi dado em homenagem à cartunista americana Alison Bechdel
Shakespeare”. Chamou-a de Judith, sugerinque, em uma de suas histórias em quadrinhos, tratou da
do que ela teria um enorme talento para
forma como as mulheres são retratadas no cinema. O
a poesia. Então, diante desta ficção, solicitou que
teste de Bechdel tem sido aplicado basicamente
se imaginasse o que teria ocorrido caso a pera filmes, mas pode valer para outros produtos
sonagem tivesse tentado, de fato, ser escriculturais. Para que a obra “passe no teste” é
tora. Ela, então, assinala que Shakespeare
preciso atender a três critérios:
deve ter aprendido latim lendo Ovídio,
1) Deve incluir pelo menos duas muVirgílio e Horácio, mas sua irmã não foi
lheres com nomes próprios...
sequer mandada à escola. Ainda que de2) que devem manter pelo menos
sejasse conhecer os clássicos, sua família
uma conversação...
a impedia de ler, pois havia meias a re3) sobre qualquer coisa que não se remendar e uma cozinha para tomar conta.
fira a homens.
Talvez, se ela rabiscasse algumas páginas,
Simples, não? Aparentemente, tais
se esconderia no sótão. Depois, queimaria
pontos não ofereceriam qualquer dificuldade.
as folhas, para não ser punida. O texto mostra
O que ocorre, entretanto, é que a maioria dos
que nem o maior talento faria de Judith uma
filmes não passa no teste. Sejam filmes bons
escritora em plena Idade Média. O argumenou ruins, o que os resultados evidenciam é que
to retira a hierarquia de gênero da natureza,
o paradigma da indústria cultural segue sendo
situando-a onde ela sempre esteve: na históbasicamente masculino e heterossexual, ainda
ria, entre as normas e os preconceitos das soquando os filmes possuem personagens femiciedades patriarcais.
ninas fortes. Seria possível, ainda, com razão,
Neste mesmo trabalho, referindo-se à
acrescentar a palavra “branco” neste paradigmaneira pela qual as mulheres aparecem na
ma, o que, entretanto, avançaria para além de
literatura, Woolf assinala:
nosso tema aqui.
“Todas estas relações entre mulheres,
O teste não é suficiente para uma avaliapensei, recordando rapidamente a esplêndida
ção da qualidade das obras, nem tem esta pregaleria de personagens femininas, são simtensão. Um determinado filme, por exemplo,
ples demais. Muita coisa foi deixada de fora,
pode cumprir os três requisitos e seguir sendo
sem ser experimentada. E tentei recordar-me
sexista ou misógino. O reverso também é verde algum caso, no curso de minha leitura, em
dadeiro. Um filme que não passe no teste pode
que duas mulheres fossem representadas como
até ter um sentido geral feminista (embora seja
amigas. Há uma tentativa em Diana of the
pouco provável que isto ocorra). O que importa
crossways. Há confidentes, é claro, em Racine
no teste é o padrão. Se a maioria das obras não
e nas tragédias gregas. Vez por outra, são mães
cumpre os três quesitos, estamos diante de oue filhas. Mas, quase sem exceção, elas são mostro fenômeno quase sempre invisível: os fatos
tradas em suas relações com os homens. Era
são narrados de acordo com um olhar mascuestranho pensar que todas as grandes mulheres
lino. Trata-se de uma “leitura” do mundo, mas
da ficção, até a época de Jane Austen, eram não
não no sentido de que toda obra é uma inter"Era estranho pensar que todas as
apenas vistas pelo outro sexo, como também
pretação e, portanto, a criação de uma nova reagrandes mulheres da ficção, até a
vistas somente em relação ao outro sexo. E que
lidade. O problema consiste, precisamente, em
época
de
Jane
Austen,
eram
não
parcela mínima da vida de uma mulher é isso!”
perceber o quanto há de reprodução irrefletida
A passagem carrega uma crítica radical cuja
de sentidos aqui, processo pelo qual metade dos
apenas vistas pelo outro sexo, como
importância talvez não tenha ainda sido sufiseres humanos aparece não a partir dos seus
também vistas somente em relação ao
cientemente destacada. Virgínia Woolf está nos
olhares e sensibilidades, mas a partir do olhar
outro sexo. E que parcela mínima da
dizendo que os homens possuem uma visão disdo outro; daquele que, historicamente, impediu
vida de uma mulher é isso!"
torcida sobre as mulheres e que esta distorção,
que as mulheres alcançassem a plenitude de sua
(Virginia
Woolf)
uma vez transposta para a cultura, “naturalizacondição humana.
-se”, fortalecendo os estereótipos. Um parágraUma parte importante da violência contra
fo, em síntese, no qual é possível antever toda a moderna crítica feminista.
as mulheres, uma parte da obstinada vocação de tantos homens ao domíÉ preciso retomar e atualizar esta perspectiva crítica para construir nio e à opressão cotidiana, uma parte da covardia dos que ameaçam, dos
um mundo onde a igualdade entre homens e mulheres seja mais do que que gritam, dos que agridem e dos que matam começa no sequestro culuma formalidade jurídica. Para isto, é preciso estar atento à produção tural da subjetividade feminina. Não se trata do filme, então, mas da vida.
* Jornalista, sociólogo e professor do IPA.
[email protected] | www.rolim.com.br
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