www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 O ATO CRIATIVO DE VIRGINIA WOOLF EM Mrs. DALLOWAY Fernanda Ferreira de Souza∗ RESUMO: Este artigo tem como objetivo investigar a técnica de narrativa literária utilizada por Virginia Woolf no romance Mrs. Dalloway. Demonstraremos que a parte do romance correspondente ao primeiro capítulo é uma teia construída pelo recorte e colagem dos fragmentos feitos na “ficção curta” da autora intitulada “Mrs. Dalloway em Bond Street” ABSTRACT: The aim of this article is to investigate the narrative techniques used by Virginia Woolf in the novel Mrs. Dalloway. We are going to demonstrate that the part of novel equivalent to the first chapter is a web bought by cuttings and collage of fragments from her “short story” titled “Mrs. Dalloway in Bond Street”. PALAVRAS-CHAVE: corte, ficção curta, romance KEYWORDS: cutting, short-story, novel www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 INTRODUÇÃO A prática da escritura como repetição tem despertado o interesse acadêmico desde a modernidade, quando autores como Joyce, Proust, Virginia Woolf e mais tarde no Brasil, Clarice Lispector, revolucionaram a forma alicerçando sua prática criativa na estética do fragmento. O resgate de textos primevos, a movência de fragmentos para a composição de um texto “novo” caracteriza um processo de criação auto-intertextual, um trabalho de citação de si mesmo que faz parte do complexo estilo literário da autora inglesa Virginia Woolf. Já foi constatado pela crítica que o exercício do conto em Virginia Woolf “é um continuum da sua prática literária, de seu ato criador” (SANTOS, 1998, p. 156), proporcionando uma transmigração textual que vai dos fragmentos ficcionais até o romance. Em seu ato criativo de narrativa literária, Woolf não só se apropria de textos alheios evidenciando a presença de uma “intertextualidade” ao nível da simples alusão, a exemplo dos versos de Shakespeare que aparecem em diversas obras, como também se recria a partir de seus próprios textos. Assim, ao se recitar, a sua obra se insere em um movimento intratextual ou autotextual, como foi estudado pelo teórico Lucien Dallenbach. Para o autor, o “autotexto” se desdobra em duas dimensões: a literal e a referencial. Na primeira dimensão, o autotexto deve ser entendido sintagmamente em relação ao texto em que ele aparece. Na segunda, o autotexto deve ser entendido paradigmaticamente, servindo para uma comparação entre os seus significados em suas aparições. (DALLENBACH, 1979, p. 52). Essa escrita que se reflete na reescrita nos mostra que alguns contos da escritora, como o intitulado “Mrs. Dalloway em Bond Street”1, formam uma teia de cortes e recortes que se ramificam na (re)construção do romance Mrs. Dalloway2. Assim, é nosso intuito verificar neste artigo como se dá o entrelaçamentos desses fios, a tessitura da teia que se forma pela ramificação do conto no romance. I O ATO CRIATIVO DE VIRGINIA WOOLF EM MRS. DALLOWAY Não sei ler as instruções, mas tenho-as no sangue, a paixão do recorte, da seleção e da combinação. Compagnon, 1996. A descrição de um jogo infantil com a tesoura e a cola bem poderia ser a do trabalho literário de Virginia Woolf, que como a criança às voltas com seu modelo de universo, constrói um mundo à sua imagem, um mundo onde se pertence, “um mundo de papel.” www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 Compagnon pondera que “recorte e colagem são as experiências fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita não são senão formas derivadas, transitórias, efêmeras.” (COMPAGNON, 1996, p.12). Essa prática original do papel, anterior à linguagem, deixa seu traço sempre presente na leitura, na escrita e no texto, cuja definição adotada por Compagnon e corroborada por Joyce e Proust, é a de que o texto é a prática do papel. Nas palavras de Compagnon, Joyce apresentava “a tesoura e a cola como objetos emblemáticos da escrita.” Proust, pregando aqui e ali seus pedaços de papel, comparava seu trabalho ao do “costureiro que constrói um vestido.” (op.cit., p.13) A escrita enquanto prática do gesto arcaico de recortar e colar traz à discussão a presença de um texto no outro, seja como citação, como reescrita ou mesmo como processo de criação. A escritura é, em todos os níveis, a fala de um outro que se materializa no ato da construção do texto. Não é sem razão que Barthes entende por literatura “não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever.” (BARTHES, 2004, p.16-17). O escritor, nas palavras de Barthes, “pode apenas imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de modo que nunca se apoie em apenas uma delas.” (BARTHES, 1980, p. 62). O texto é feito de escrituras múltiplas que dialogam umas com as outras em forma de paródia, de contestação e de outras formas de repetição. Escrever, para Virgínia Woolf, não era criar, mas viver, perceber a realidade na criação em contraponto à textura da vida enquanto consciência. Em sua obra, ao repetir fragmentos de textos anteriores, lança mão da (auto)intertextualidade como prática de escritura. A autora desenvolveu uma técnica pessoal de escrita calcada na sobreposição/ justaposição de textos, revelando a nítida impressão de uma escrita parcelada que se vale dos restos, dos fragmentos, das sobras textuais para o processo de criação. O resultado é o desaguar de um conto no outro, de um texto antigo num novo, uma disseminação de origens e começos na tentativa de dar sentido aos textos superpostos em teia. A idéia de teia, fios em rede, articulados de modo que não deixem escapar a presa, nos leva a comparar o trabalho da escritora com o da rendeira. Ambas tecem os fios, partes de um todo que só terão sentido quando ligados habilmente pela artesã. Woolf experimentou diversas formas narrativas ao longo de sua carreira. Seu desejo de renovar o romance levou-a a experimentar técnicas diversas de narrativa, como a ficção curta. A esse respeito, comentou em 1917 que lhe agradava a idéia de inventar formas novas por meio “dessas coisas curtas”. Em suas “coisas curtas”, Virginia Woolf reinventa a narrativa de forma a quase sempre fugir de uma ação linear. As falas, os pensamentos e as ações de seus personagens são imbricados às reflexões www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 da narradora. Em certos contos, o narrador é um observador perceptivo da cena externa, enquanto que em outros, expõe suas próprias percepções e seu mundo através da mente da personagem. Esse estilo tão ímpar de escrever faz de seus “contos” um gênero à parte do resto de sua narrativa. Mesmo a crítica reconhece que estudar sua ficção curta exige bem mais que procurar nos “contos” as características que os classificariam como pertencentes a esse gênero narrativo. A própria terminologia para as peças curtas da autora é alvo de discussão, visto que poucas delas trazem referência ao que a teoria define como conto. Susan Dick diz na Introdução da coletânea Objetos Sólidos que: Pelo fato de ter experimentado continuamente formas narrativas, a ficção curta de Virginia Woolf varia muitíssimo. Algumas obras suas de menor extensão, como Objetos Sólidos e O legado, são contos no sentido tradicional, narrativas com estruturas firmes e personagens bem-delineados. Outras, tais como A marca na parede e Um romance em branco, são devaneios ficcionais que, em suas mudanças de perspectiva e prosa lírica, lembram ensaios autobiográficos de escritores do século XIX(...). (DICK apud WOOLF, 1992, p. 5). As ficções curtas da autora nos chamam a atenção por seu processo de criação, uma criação em recortes, formada a partir de escrituras previamente elaboradas e publicadas independentemente umas das outras. O recorte, enquanto enquadramento e ponto de vista, é marcado por um processo em constante modificação, levado a efeito por um olhar capaz de ir além das imagens construídas, dotando-as de espaço e tempo únicos na sua multiplicidade. Traçar a arquitetura do ato criativo de Virginia Woolf é trabalho incansável e interminável. Para ela, uma escritora moderna em todas as acepções da palavra, ansiosa como sua geração pelo novo, o que interessava não era a força, a paixão, nem nada de surpreendente, mas sim aquilo que chamava de sua “estranha individualidade”. O que a preocupa é a busca pelo sentido da vida. Em procura da resposta, adentra a mente humana e retrata o fluxo de pensamento, de consciência ou da vida subjetiva. Virginia Woolf tinha consciência da condição de inteligibilidade3 literária quando decidia juntar os fragmentos que todos os dias escrevia por diversão4. Quando projetava Mrs. Dalloway, anotou em seu caderno que todos os acontecimentos deveriam ser ligados por um fato externo, como uma morte. A necessidade de ligar os fragmentos resultou na cena do suicídio do veterano de guerra Septimus Warren Smith: “Que tinham os Bradshaws de falar de morte em na sua festa? Um jovem se havia suicidado. E falavam disso na sua festa – os Bradshaws falavam de morte. Suicidado... mas como?” (WOOLF, 1980, p. 176). O que diferencia seu estilo do de seus contemporâneos é justamente a escrita parcelar, a capacidade de registrar momentos de vida, reservá-los e mais tarde, compô-los, combiná-los, escolhê-los até que se tornem significativos. www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 Concluído o conto, começou a considerar a possibilidade de ampliá-lo num romance. O projeto inicial previa sete ou oito capítulos, abordando a vida social londrina; o primeiro-ministro seria uma personagem importante e tudo convergiria na festa do final, o que ainda se vê no romance publicado. A personagem central, Clarissa Dalloway, deveria suicidar-se ou morrer de alguma forma na festa que ela própria daria. Segundo o novo esboço, não apenas o enredo seria diferente. Uma idéia fundamental era enfatizar a apresentação através da consciência. Como Ulisses, o livro trataria do fluxo da consciência, e todos os eventos narrados, tal como no romance de Joyce, ocorreriam num único dia – o dia da festa de Clarissa Dalloway. A visão do “invólucro translúcido” da vida, que cerca e cria a consciência, é a meta de Virginia Woolf em Mrs. Dalloway. É um romance composto de momentos – os momentos luminosos de um dia em 1923, o dia em que Clarissa Dalloway dá sua festa. Woolf imaginou o livro como uma série de capítulos independentes. No começo de outubro de 1922, anotou em seu diário que o título para o trabalho seria “Em casa: ou a festa”. Virginia chegou a escrever em seu caderno o título de oito capítulos: 1. Mrs. Dalloway em Bond Street/ 2. O primeiro-ministro/ 3. Ancestrais/ 4. Um diálogo/ 5. As velhas senhoras/ 6. Casa de campo?/ 7. Flores/ 8. A festa. Como ela percebeu, os capítulos precisavam ser conectados, talvez por um fato externo, como uma morte noticiada na festa. Embora tenha mudado seu projeto inicial e feito Mrs. Dalloway totalmente sem capítulos, o que vemos no romance é a (re)construção de suas ficções curtas em uma teia de cortes e recortes que se ramificam. Analisando as páginas iniciais que corresponderiam a um primeiro capítulo do romance Mrs. Dalloway e o conto “Mrs. Dalloway em Bond Street”, notamos que a frase de abertura, tanto do romance quanto do conto – Mrs. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as ... –, difere apenas quanto ao objeto da compra: no romance, flores; no conto, luvas. Mais adiante, sobre a descrição de Clarissa por Scrope Purvis lemos no conto e no romance, as seguintes passagens: Mulher charmosa, firme, cheia de vida, com o cabelo grisalho em estranho contraste com o rosto corado, assim a viu Scrope Purvis, cavaleiro da Ordem do Banho (...)5 “Uma encantadora mulher”, pensou Scrope Purvis (...); havia nela algo de pássaro, de um gaio, azul-verde, leve, vivaz, embora houvesse passado dos cinqüenta e encanecido muito desde a última doença.6 Um pouco mais adiante, Clarissa espera, no romance e no conto, o caminhão de Durtnall passar para que ela possa atravessar a rua; enquanto que ao fundo ouvem-se as batidas do Big Ben. Tanto no conto quanto no romance, as batidas do Big Ben mantêm o leitor informado sobre a passagem do tempo e sobre as idas e vindas aos acontecimentos do passado. Vejamos como isso se dá no conto e no romance: www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 Ela se retesou um pouco, esperando que o furgão de Durtnall passasse. O Big Ben bateu a décima; e a décima primeira badalada. Os círculos de chumbo se dissolveram no ar.7 Deteve-se um instante no cordão da calçada, esperando que passasse o caminhão de Durtnall. (...) aquela suspensão antes que batesse o Big Ben. Agora! Já vibrava. Primeiro um aviso, musical; depois a hora, irrevogável. Os pesados círculos dissolviam-se no ar.8 Vejamos este outro trecho em que a autora narra a divagação de Clarissa sobre o sofrimento das pessoas. Percebe-se claramente a reescritura, e consequentemente, a lapidação da escrita e da linguagem no romance, já que a informação prestada pela autora é a mesma. Como as pessoas sofriam, como sofriam, pensava, pensando em mrs. Foxcroft ontem de noite na embaixada, coberta de jóias mas sofrendo em silêncio porque aquele belo rapaz tinha morrido e a velha casa da propriedade agora ficaria com um primo.9 A guerra estava acabada, exceto para alguns, como Mrs. Foxcroft, ainda na última noite, na Embaixada, devorando a sua mágoa, porque fora morto aquele belo rapaz e o velho castelo deveria agora passar para um primo.10 De sentido fiel também é o diálogo que se segue entre Hugh Whitbread e Clarissa, quando se encontram no parque. No conto e no romance, vemos: Muito bom dia! – disse Hugh Whitbread, erguendo-lhe o chapéu, perto da loja de louças, não sem certa extravagância, já que desde crianças eles se conheciam. – Para onde está indo? Adoro andar a pé por Londres – disse mrs. Dalloway. É melhor realmente do que caminhar pelo campo.11 Olá, Clarissa! – disse Hugh, alvoroçadamente, pois conheciam-se desde crianças. – Aonde vais? Gosto de passear por Londres. Sempre é melhor do que passar pelo campo.12 Ainda com relação ao encontro de Clarissa Dalloway e Hugh Whitbread, o que no conto é dito por discurso direto, no romance é dito por discurso indireto, sem alteração de sentido. Vejamos: “Nós acabamos de chegar”, disse Hugh Whitbread. “Infelizmente para ir a médicos.”/ “Os Whitbreads acabavam de chegar – infelizmente – para ver médicos.” Dentre as imagens mais marcantes da narrativa de Virginia Woolf está a dos versos de Shakespeare: Não mais temas o calor do sol/ Nem as iras do inverno furioso. Estes versos, extraídos do drama Cymbeline, podem ser entendidos tanto em Mrs. Dalloway quanto em outros contextos em que tornam a aparecer, como o paradigma da coragem de Mrs. Dalloway, da ousadia e determinação de continuar a viver sob a pressão do tempo e www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 do relógio dissolvendo “pesados círculos no ar”. Respectivamente no conto e no romance em questão, os versos de Shakespeare aparecem enquanto Clarissa observa os livros abertos através da vitrine da livraria Hatchard’s: [...] e agora – ela tinha passado por Bond Street – estava diante da livraria Hatchard’s. (...) Para todas as coisas preciosas é preciso ir ao passado, pensou. Pelo contágio das manchas do mundo... Não mais temas o calor do sol.13 Mas que estava ali a sonhar, enquanto olhava a vitrina de Hatchard? Que estaria tentando recordar? Que imagem de límpida aurora no campo, enquanto lia no livro aberto: Não mais temas o calor do sol Nem as iras do inferno furioso.14 A citação dos versos de Shakespeare, como esclarece Santos, não só remete ao paradigma da “leitura” da tradição literária e cultural inglesa, mas, antes de tudo, informa o dilaceramento da consciência de Mrs. Dalloway entre o cotidiano “demasiadamente humano”, que ela assiste nas ruas, nas lojas, e o peso da tradição da qual ela faz parte. Ou seja: de um lado o signo da opulência, da tradição, da erudição, claramente indicado pela narradora como índice da classe social a que os Dalloways pertenciam. De outro lado, a “balconista” que, de dentro de uma loja, mostrava a Clarissa os braceletes, as luvas francesas e os anéis, sem que essa deixasse de observar que se tratava da mesma atendente que, no entanto, parecia estar vinte anos mais velha. (SANTOS, 1998, p. 159). Enquanto caminhava pela Bond Street, Clarissa tecia considerações sobre a rua, sobre as pessoas, sobre as lojas, os produtos vendidos (como as luvas vendidas antes e depois da guerra). É nesse momento também que Clarissa avista Lady Bexborough, a quem ela admirava muito. Vejamos como isso foi mostrado no conto e no romance: Há cem anos seu tataravô, Seymour Parry, que fugiu com a filha de Conway, descia a pé pela Bond Street. Seu pai já comprava roupas no Hill’s. Havia uma peça de fazenda na vitrine e, aqui, apenas uma jarra sobre uma mesa preta, incrivelmente cara; como o salmão cor-de-rosa sobre pedras de gelo, na peixaria. A Bond Street era um rio entupido. Em relevo real, como uma rainha num torneio, lá estava Lady Bexborough. (...) e Clarissa daria qualquer coisa para ser também assim, amante de Clarefield, discutindo política, como um homem.15 Antes de tudo, seria morena como Lady Bexborough, com uma tez de pelica e lindos olhos. Seria, como Lady Bexborough, serena e imponente; um tanto forte; interessada em política como um homem... Bond Street fascinava-a; Bond Street na manhã de primavera; as suas bandeiras drapejando; as suas lojas; nada turvo; nada berrante; uma peça de fazenda no estabelecimento onde seu pai comprara roupa durante cinquenta anos; umas poucas pérolas; salmão no gelo. www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 “Tudo isto”, dizia ela, olhando os pescados. “Tudo isto”, repetia, parando por um momento à vitrina de uma luvaria onde, antes da guerra, podiam-se comprar luvas quase sem defeito.16 Quando Clarissa já está na cena da luvaria, no conto, lembra-se de seu tio William que costumava dizer: Conhece-se uma mulher por seus sapatos e luvas. A mesma lembrança encontramos no romance, enquanto Clarissa está parada em frente à loja de luvas: E o velho tio William, que costumava dizer que se conhecia uma dama por seus sapatos e suas luvas. O conto termina com uma violenta explosão ouvida de dentro da luvaria, cuja causa não é explicada. No romance, a mesma explosão é ouvida de dentro da floricultura, e a explicação do fato é dada. Houve uma violenta explosão lá fora na rua. As mulheres da loja encolheram-se por trás dos balcões. Mas Clarissa, sentando-se bem erecta, sorriu para a outra senhora: “Miss Anstruther!”, exclamou.17 A violenta explosão que sobressaltara Mrs. Dalloway e fizera Miss Pym correr à janela e desculpar-se provinha de um auto que se aproximara da calçada oposta à Casa Mulberry.18 O carro, como a autora esclarece no romance, era da família real, mas os transeuntes não puderam reconhecer qual figura estava dentro: a rainha? O príncipe de Gales, o primeiro-ministro? A informação não é dada pela escritora. A figura de Septimus Smith só entra em cena no romance logo após do término da narrativa da explosão. O veterano é, além da ponte que liga um capítulo a outro, a conexão da trama com a guerra. Na festa de Clarissa, William Bradshaw é o condutor da discussão sobre as conseqüências da Primeira Guerra na saúde mental dos soldados e o personagem que fará a ligação pelo anúncio, durante a festa, do suicídio de Septimus. O conto “Mrs. Dalloway em Bond Street” foi um marco importante na evolução literária de Virginia Woolf, pois foi ao escrevê-lo que ela descobriu “uma maneira de colocar o narrador dentro da mente do personagem e apresentar seus pensamentos e emoções à medida que ocorriam.” (DICK, 1992, p. 7). Como vimos, este conto, que podemos chamá-lo de “o primeiro fio da rede”, resultou no romance Mrs. Dalloway. A partir do término desta obra, Woolf começou a escrever uma série de oito contos, todos ambientados na festa de Clarissa Dalloway, a fim de apresentar as tensões que distinguem “a consciência do grupo.” (WOOLF, Diário. Terceiro volume – 1925-1929, p. 12). A Festa, que já servira de mote para a construção de todo um romance, agora permitia que novos fios se soltassem em novas ramificações. www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se vê por essa análise inicial, é possível visualizar a colagem do conto “Mrs. Dalloway em Bond Street” no romance Mrs. Dalloway. Não é nosso intuito para este artigo analisar todo o conteúdo do romance e os fragmentos dos outros contos que o compõe, já que este é o nosso objetivo para a dissertação de mestrado. Objetivamos sim provocar a suspeita no leitor de que, ao longo de todo o romance em estudo e na obra da autora como um todo, pode-se visualizar a mesma colagem que mostramos aqui, uma narrativa imbricada em narrativas anteriores, feita da acomodação dos fragmentos anteriormente escritos em uma moldura nova, evidenciando, assim, a genialidade criativa de Virginia Woolf. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Aula. 12. ed. Tradução e posfácio de Leyla PerroneMoisés. 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Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMS/Três Lagoas. 1 Versão contida na coletânea lançada recentemente no Brasil Contos completos Virginia Woolf com tradução de Leonardo Fróes. 2 Edição brasileira com tradução de Mário Quintana. 3 Ver JENNY, 1979, p. 5. 4 No dia 28 de maio de 1929 Woolf escreveu em seu diário: “Cada manhã escrevo uma pequena passagem para me divertir. Não digo, e poderia dizer, que estas passagens tenham alguma utilidade. Não tento contar uma história. No entanto, talvez dessa maneira se possa obter algum efeito.” (WOOLF apud NATHAN, 1989, p.143). 5 “Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214 6 Mrs. Dalloway, p. 8 7 “Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214 8 Mrs. Dalloway, p. 8 9 “Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214 10 Mrs. Dalloway, p. 8 11 “Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214. 12 Mrs. Dalloway, p. 9 13 “Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 217 14 Mrs. Dalloway, p. 13 15 “Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 218. 16 Mrs. Dalloway, p. 14. 17 “Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 222. 18 Mrs. Dalloway, p. 17.