www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
O ATO CRIATIVO DE VIRGINIA WOOLF EM Mrs. DALLOWAY
Fernanda Ferreira de Souza∗
RESUMO: Este artigo tem como objetivo investigar a técnica de narrativa literária
utilizada por Virginia Woolf no romance Mrs. Dalloway. Demonstraremos que a parte do
romance correspondente ao primeiro capítulo é uma teia construída pelo recorte e
colagem dos fragmentos feitos na “ficção curta” da autora intitulada “Mrs. Dalloway em
Bond Street”
ABSTRACT: The aim of this article is to investigate the narrative techniques used by
Virginia Woolf in the novel Mrs. Dalloway. We are going to demonstrate that the part of
novel equivalent to the first chapter is a web bought by cuttings and collage of fragments
from her “short story” titled “Mrs. Dalloway in Bond Street”.
PALAVRAS-CHAVE: corte, ficção curta, romance
KEYWORDS: cutting, short-story, novel
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
INTRODUÇÃO
A prática da escritura como repetição tem despertado o interesse
acadêmico desde a modernidade, quando autores como Joyce, Proust,
Virginia Woolf e mais tarde no Brasil, Clarice Lispector, revolucionaram a
forma alicerçando sua prática criativa na estética do fragmento. O resgate
de textos primevos, a movência de fragmentos para a composição de um
texto “novo” caracteriza um processo de criação auto-intertextual, um
trabalho de citação de si mesmo que faz parte do complexo estilo literário
da autora inglesa Virginia Woolf.
Já foi constatado pela crítica que o exercício do conto em Virginia Woolf “é
um continuum da sua prática literária, de seu ato criador” (SANTOS,
1998, p. 156), proporcionando uma transmigração textual que vai dos
fragmentos ficcionais até o romance. Em seu ato criativo de narrativa
literária, Woolf não só se apropria de textos alheios evidenciando a
presença de uma “intertextualidade” ao nível da simples alusão, a
exemplo dos versos de Shakespeare que aparecem em diversas obras,
como também se recria a partir de seus próprios textos. Assim, ao se recitar, a sua obra se insere em um movimento intratextual ou autotextual,
como foi estudado pelo teórico Lucien Dallenbach. Para o autor, o
“autotexto” se desdobra em duas dimensões: a literal e a referencial. Na
primeira dimensão, o autotexto deve ser entendido sintagmamente em
relação ao texto em que ele aparece. Na segunda, o autotexto deve ser
entendido paradigmaticamente, servindo para uma comparação entre os
seus significados em suas aparições. (DALLENBACH, 1979, p. 52).
Essa escrita que se reflete na reescrita nos mostra que alguns contos da
escritora, como o intitulado “Mrs. Dalloway em Bond Street”1, formam
uma teia de cortes e recortes que se ramificam na (re)construção do
romance Mrs. Dalloway2. Assim, é nosso intuito verificar neste artigo
como se dá o entrelaçamentos desses fios, a tessitura da teia que se
forma pela ramificação do conto no romance.
I O ATO CRIATIVO DE VIRGINIA WOOLF EM MRS. DALLOWAY
Não sei ler as instruções, mas tenho-as no
sangue, a paixão do recorte, da seleção e da
combinação.
Compagnon, 1996.
A descrição de um jogo infantil com a tesoura e a cola bem poderia ser a
do trabalho literário de Virginia Woolf, que como a criança às voltas com
seu modelo de universo, constrói um mundo à sua imagem, um mundo
onde se pertence, “um mundo de papel.”
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
Compagnon pondera que “recorte e colagem são as experiências
fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita não são senão
formas derivadas, transitórias, efêmeras.” (COMPAGNON, 1996, p.12).
Essa prática original do papel, anterior à linguagem, deixa seu traço
sempre presente na leitura, na escrita e no texto, cuja definição adotada
por Compagnon e corroborada por Joyce e Proust, é a de que o texto é a
prática do papel. Nas palavras de Compagnon, Joyce apresentava “a
tesoura e a cola como objetos emblemáticos da escrita.” Proust, pregando
aqui e ali seus pedaços de papel, comparava seu trabalho ao do
“costureiro que constrói um vestido.” (op.cit., p.13)
A escrita enquanto prática do gesto arcaico de recortar e colar traz à
discussão a presença de um texto no outro, seja como citação, como
reescrita ou mesmo como processo de criação. A escritura é, em todos os
níveis, a fala de um outro que se materializa no ato da construção do
texto. Não é sem razão que Barthes entende por literatura “não um corpo
ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de
ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de
escrever.” (BARTHES, 2004, p.16-17). O escritor, nas palavras de
Barthes, “pode apenas imitar um gesto sempre anterior, jamais original;
seu único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se
umas pelas outras, de modo que nunca se apoie em apenas uma delas.”
(BARTHES, 1980, p. 62). O texto é feito de escrituras múltiplas que
dialogam umas com as outras em forma de paródia, de contestação e de
outras formas de repetição.
Escrever, para Virgínia Woolf, não era criar, mas viver, perceber a
realidade na criação em contraponto à textura da vida enquanto
consciência. Em sua obra, ao repetir fragmentos de textos anteriores,
lança mão da (auto)intertextualidade como prática de escritura. A autora
desenvolveu uma técnica pessoal de escrita calcada na sobreposição/
justaposição de textos, revelando a nítida impressão de uma escrita
parcelada que se vale dos restos, dos fragmentos, das sobras textuais
para o processo de criação. O resultado é o desaguar de um conto no
outro, de um texto antigo num novo, uma disseminação de origens e
começos na tentativa de dar sentido aos textos superpostos em teia. A
idéia de teia, fios em rede, articulados de modo que não deixem escapar a
presa, nos leva a comparar o trabalho da escritora com o da rendeira.
Ambas tecem os fios, partes de um todo que só terão sentido quando
ligados habilmente pela artesã.
Woolf experimentou diversas formas narrativas ao longo de sua carreira.
Seu desejo de renovar o romance levou-a a experimentar técnicas
diversas de narrativa, como a ficção curta. A esse respeito, comentou em
1917 que lhe agradava a idéia de inventar formas novas por meio “dessas
coisas curtas”. Em suas “coisas curtas”, Virginia Woolf reinventa a
narrativa de forma a quase sempre fugir de uma ação linear. As falas, os
pensamentos e as ações de seus personagens são imbricados às reflexões
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
da narradora. Em certos contos, o narrador é um observador perceptivo
da cena externa, enquanto que em outros, expõe suas próprias
percepções e seu mundo através da mente da personagem.
Esse estilo tão ímpar de escrever faz de seus “contos” um gênero à parte
do resto de sua narrativa. Mesmo a crítica reconhece que estudar sua
ficção curta exige bem mais que procurar nos “contos” as características
que os classificariam como pertencentes a esse gênero narrativo. A
própria terminologia para as peças curtas da autora é alvo de discussão,
visto que poucas delas trazem referência ao que a teoria define como
conto. Susan Dick diz na Introdução da coletânea Objetos Sólidos que:
Pelo fato de ter experimentado continuamente formas narrativas, a
ficção curta de Virginia Woolf varia muitíssimo. Algumas obras
suas de menor extensão, como Objetos Sólidos e O legado, são
contos no sentido tradicional, narrativas com estruturas firmes e
personagens bem-delineados. Outras, tais como A marca na
parede e Um romance em branco, são devaneios ficcionais que,
em suas mudanças de perspectiva e prosa lírica, lembram ensaios
autobiográficos de escritores do século XIX(...). (DICK apud
WOOLF, 1992, p. 5).
As ficções curtas da autora nos chamam a atenção por seu processo de
criação, uma criação em recortes, formada a partir de escrituras
previamente elaboradas e publicadas independentemente umas das
outras. O recorte, enquanto enquadramento e ponto de vista, é marcado
por um processo em constante modificação, levado a efeito por um olhar
capaz de ir além das imagens construídas, dotando-as de espaço e tempo
únicos na sua multiplicidade.
Traçar a arquitetura do ato criativo de Virginia Woolf é trabalho incansável
e interminável. Para ela, uma escritora moderna em todas as acepções da
palavra, ansiosa como sua geração pelo novo, o que interessava não era a
força, a paixão, nem nada de surpreendente, mas sim aquilo que chamava
de sua “estranha individualidade”. O que a preocupa é a busca pelo
sentido da vida. Em procura da resposta, adentra a mente humana e
retrata o fluxo de pensamento, de consciência ou da vida subjetiva.
Virginia Woolf tinha consciência da condição de inteligibilidade3 literária
quando decidia juntar os fragmentos que todos os dias escrevia por
diversão4. Quando projetava Mrs. Dalloway, anotou em seu caderno que
todos os acontecimentos deveriam ser ligados por um fato externo, como
uma morte. A necessidade de ligar os fragmentos resultou na cena do
suicídio do veterano de guerra Septimus Warren Smith: “Que tinham os
Bradshaws de falar de morte em na sua festa? Um jovem se havia
suicidado. E falavam disso na sua festa – os Bradshaws falavam de morte.
Suicidado... mas como?” (WOOLF, 1980, p. 176). O que diferencia seu
estilo do de seus contemporâneos é justamente a escrita parcelar, a
capacidade de registrar momentos de vida, reservá-los e mais tarde,
compô-los, combiná-los, escolhê-los até que se tornem significativos.
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
Concluído o conto, começou a considerar a possibilidade de ampliá-lo num
romance. O projeto inicial previa sete ou oito capítulos, abordando a vida
social londrina; o primeiro-ministro seria uma personagem importante e
tudo convergiria na festa do final, o que ainda se vê no romance
publicado. A personagem central, Clarissa Dalloway, deveria suicidar-se
ou morrer de alguma forma na festa que ela própria daria. Segundo o
novo esboço, não apenas o enredo seria diferente. Uma idéia fundamental
era enfatizar a apresentação através da consciência. Como Ulisses, o livro
trataria do fluxo da consciência, e todos os eventos narrados, tal como no
romance de Joyce, ocorreriam num único dia – o dia da festa de Clarissa
Dalloway. A visão do “invólucro translúcido” da vida, que cerca e cria a
consciência, é a meta de Virginia Woolf em Mrs. Dalloway. É um romance
composto de momentos – os momentos luminosos de um dia em 1923, o
dia em que Clarissa Dalloway dá sua festa.
Woolf imaginou o livro como uma série de capítulos independentes. No
começo de outubro de 1922, anotou em seu diário que o título para o
trabalho seria “Em casa: ou a festa”. Virginia chegou a escrever em seu
caderno o título de oito capítulos: 1. Mrs. Dalloway em Bond Street/ 2. O
primeiro-ministro/ 3. Ancestrais/ 4. Um diálogo/ 5. As velhas senhoras/ 6.
Casa de campo?/ 7. Flores/ 8. A festa. Como ela percebeu, os capítulos
precisavam ser conectados, talvez por um fato externo, como uma morte
noticiada na festa. Embora tenha mudado seu projeto inicial e feito Mrs.
Dalloway totalmente sem capítulos, o que vemos no romance é a
(re)construção de suas ficções curtas em uma teia de cortes e recortes
que se ramificam.
Analisando as páginas iniciais que corresponderiam a um primeiro capítulo
do romance Mrs. Dalloway e o conto “Mrs. Dalloway em Bond Street”,
notamos que a frase de abertura, tanto do romance quanto do conto –
Mrs. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as ... –, difere apenas
quanto ao objeto da compra: no romance, flores; no conto, luvas. Mais
adiante, sobre a descrição de Clarissa por Scrope Purvis lemos no conto e
no romance, as seguintes passagens:
Mulher charmosa, firme, cheia de vida, com o cabelo grisalho em
estranho contraste com o rosto corado, assim a viu Scrope Purvis,
cavaleiro da Ordem do Banho (...)5
“Uma encantadora mulher”, pensou Scrope Purvis (...); havia nela
algo de pássaro, de um gaio, azul-verde, leve, vivaz, embora
houvesse passado dos cinqüenta e encanecido muito desde a
última doença.6
Um pouco mais adiante, Clarissa espera, no romance e no conto, o
caminhão de Durtnall passar para que ela possa atravessar a rua;
enquanto que ao fundo ouvem-se as batidas do Big Ben. Tanto no conto
quanto no romance, as batidas do Big Ben mantêm o leitor informado
sobre a passagem do tempo e sobre as idas e vindas aos acontecimentos
do passado. Vejamos como isso se dá no conto e no romance:
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
Ela se retesou um pouco, esperando que o furgão de Durtnall
passasse. O Big Ben bateu a décima; e a décima primeira
badalada. Os círculos de chumbo se dissolveram no ar.7
Deteve-se um instante no cordão da calçada, esperando que
passasse o caminhão de Durtnall. (...) aquela suspensão antes que
batesse o Big Ben. Agora! Já vibrava. Primeiro um aviso, musical;
depois a hora, irrevogável. Os pesados círculos dissolviam-se no
ar.8
Vejamos este outro trecho em que a autora narra a divagação de Clarissa
sobre o sofrimento das pessoas. Percebe-se claramente a reescritura, e
consequentemente, a lapidação da escrita e da linguagem no romance, já
que a informação prestada pela autora é a mesma.
Como as pessoas sofriam, como sofriam, pensava, pensando em
mrs. Foxcroft ontem de noite na embaixada, coberta de jóias mas
sofrendo em silêncio porque aquele belo rapaz tinha morrido e a
velha casa da propriedade agora ficaria com um primo.9
A guerra estava acabada, exceto para alguns, como Mrs. Foxcroft,
ainda na última noite, na Embaixada, devorando a sua mágoa,
porque fora morto aquele belo rapaz e o velho castelo deveria
agora passar para um primo.10
De sentido fiel também é o diálogo que se segue entre Hugh Whitbread e
Clarissa, quando se encontram no parque. No conto e no romance,
vemos:
Muito bom dia! – disse Hugh Whitbread, erguendo-lhe o chapéu,
perto da loja de louças, não sem certa extravagância, já que desde
crianças eles se conheciam. – Para onde está indo?
Adoro andar a pé por Londres – disse mrs. Dalloway. É melhor
realmente do que caminhar pelo campo.11
Olá, Clarissa! – disse Hugh, alvoroçadamente, pois conheciam-se
desde crianças. – Aonde vais?
Gosto de passear por Londres. Sempre é melhor do que passar
pelo campo.12
Ainda com relação ao encontro de Clarissa Dalloway e Hugh Whitbread, o
que no conto é dito por discurso direto, no romance é dito por discurso
indireto, sem alteração de sentido. Vejamos: “Nós acabamos de chegar”,
disse Hugh Whitbread. “Infelizmente para ir a médicos.”/ “Os Whitbreads
acabavam de chegar – infelizmente – para ver médicos.”
Dentre as imagens mais marcantes da narrativa de Virginia Woolf está a
dos versos de Shakespeare: Não mais temas o calor do sol/ Nem as iras
do inverno furioso. Estes versos, extraídos do drama Cymbeline, podem
ser entendidos tanto em Mrs. Dalloway quanto em outros contextos em
que tornam a aparecer, como o paradigma da coragem de Mrs. Dalloway,
da ousadia e determinação de continuar a viver sob a pressão do tempo e
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
do relógio dissolvendo “pesados círculos no ar”. Respectivamente no conto
e no romance em questão, os versos de Shakespeare aparecem enquanto
Clarissa observa os livros abertos através da vitrine da livraria Hatchard’s:
[...] e agora – ela tinha passado por Bond Street – estava diante
da livraria Hatchard’s. (...) Para todas as coisas preciosas é preciso
ir ao passado, pensou. Pelo contágio das manchas do mundo...
Não mais temas o calor do sol.13
Mas que estava ali a sonhar, enquanto olhava a vitrina de
Hatchard? Que estaria tentando recordar? Que imagem de límpida
aurora no campo, enquanto lia no livro aberto:
Não mais temas o calor do sol
Nem as iras do inferno furioso.14
A citação dos versos de Shakespeare, como esclarece Santos,
não só remete ao paradigma da “leitura” da tradição literária e
cultural inglesa, mas, antes de tudo, informa o dilaceramento da
consciência de Mrs. Dalloway entre o cotidiano “demasiadamente
humano”, que ela assiste nas ruas, nas lojas, e o peso da tradição
da qual ela faz parte. Ou seja: de um lado o signo da opulência, da
tradição, da erudição, claramente indicado pela narradora como
índice da classe social a que os Dalloways pertenciam. De outro
lado, a “balconista” que, de dentro de uma loja, mostrava a
Clarissa os braceletes, as luvas francesas e os anéis, sem que essa
deixasse de observar que se tratava da mesma atendente que, no
entanto, parecia estar vinte anos mais velha. (SANTOS, 1998, p.
159).
Enquanto caminhava pela Bond Street, Clarissa tecia considerações sobre
a rua, sobre as pessoas, sobre as lojas, os produtos vendidos (como as
luvas vendidas antes e depois da guerra). É nesse momento também que
Clarissa avista Lady Bexborough, a quem ela admirava muito. Vejamos
como isso foi mostrado no conto e no romance:
Há cem anos seu tataravô, Seymour Parry, que fugiu com a filha
de Conway, descia a pé pela Bond Street. Seu pai já comprava
roupas no Hill’s. Havia uma peça de fazenda na vitrine e, aqui,
apenas uma jarra sobre uma mesa preta, incrivelmente cara;
como o salmão cor-de-rosa sobre pedras de gelo, na peixaria.
A Bond Street era um rio entupido. Em relevo real, como uma
rainha num torneio, lá estava Lady Bexborough. (...) e Clarissa
daria qualquer coisa para ser também assim, amante de Clarefield,
discutindo política, como um homem.15
Antes de tudo, seria morena como Lady Bexborough, com uma tez
de pelica e lindos olhos. Seria, como Lady Bexborough, serena e
imponente; um tanto forte; interessada em política como um
homem...
Bond Street fascinava-a; Bond Street na manhã de primavera; as
suas bandeiras drapejando; as suas lojas; nada turvo; nada
berrante; uma peça de fazenda no estabelecimento onde seu pai
comprara roupa durante cinquenta anos; umas poucas pérolas;
salmão no gelo.
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
“Tudo isto”, dizia ela, olhando os pescados. “Tudo isto”, repetia,
parando por um momento à vitrina de uma luvaria onde, antes da
guerra, podiam-se comprar luvas quase sem defeito.16
Quando Clarissa já está na cena da luvaria, no conto, lembra-se de seu tio
William que costumava dizer: Conhece-se uma mulher por seus sapatos e
luvas. A mesma lembrança encontramos no romance, enquanto Clarissa
está parada em frente à loja de luvas: E o velho tio William, que
costumava dizer que se conhecia uma dama por seus sapatos e suas
luvas.
O conto termina com uma violenta explosão ouvida de dentro da luvaria,
cuja causa não é explicada. No romance, a mesma explosão é ouvida de
dentro da floricultura, e a explicação do fato é dada.
Houve uma violenta explosão lá fora na rua. As mulheres da loja
encolheram-se por trás dos balcões. Mas Clarissa, sentando-se
bem erecta, sorriu para a outra senhora: “Miss Anstruther!”,
exclamou.17
A violenta explosão que sobressaltara Mrs. Dalloway e fizera Miss
Pym correr à janela e desculpar-se provinha de um auto que se
aproximara da calçada oposta à Casa Mulberry.18
O carro, como a autora esclarece no romance, era da família real, mas os
transeuntes não puderam reconhecer qual figura estava dentro: a rainha?
O príncipe de Gales, o primeiro-ministro? A informação não é dada pela
escritora. A figura de Septimus Smith só entra em cena no romance logo
após do término da narrativa da explosão. O veterano é, além da ponte
que liga um capítulo a outro, a conexão da trama com a guerra. Na festa
de Clarissa, William Bradshaw é o condutor da discussão sobre as
conseqüências da Primeira Guerra na saúde mental dos soldados e o
personagem que fará a ligação pelo anúncio, durante a festa, do suicídio
de Septimus.
O conto “Mrs. Dalloway em Bond Street” foi um marco importante na
evolução literária de Virginia Woolf, pois foi ao escrevê-lo que ela
descobriu “uma maneira de colocar o narrador dentro da mente do
personagem e apresentar seus pensamentos e emoções à medida que
ocorriam.” (DICK, 1992, p. 7). Como vimos, este conto, que podemos
chamá-lo de “o primeiro fio da rede”, resultou no romance Mrs. Dalloway.
A partir do término desta obra, Woolf começou a escrever uma série de
oito contos, todos ambientados na festa de Clarissa Dalloway, a fim de
apresentar as tensões que distinguem “a consciência do grupo.” (WOOLF,
Diário. Terceiro volume – 1925-1929, p. 12). A Festa, que já servira de
mote para a construção de todo um romance, agora permitia que novos
fios se soltassem em novas ramificações.
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se vê por essa análise inicial, é possível visualizar a colagem do
conto “Mrs. Dalloway em Bond Street” no romance Mrs. Dalloway. Não é
nosso intuito para este artigo analisar todo o conteúdo do romance e os
fragmentos dos outros contos que o compõe, já que este é o nosso
objetivo para a dissertação de mestrado. Objetivamos sim provocar a
suspeita no leitor de que, ao longo de todo o romance em estudo e na
obra da autora como um todo, pode-se visualizar a mesma colagem que
mostramos aqui, uma narrativa imbricada em narrativas anteriores, feita
da acomodação dos fragmentos anteriormente escritos em uma moldura
nova, evidenciando, assim, a genialidade criativa de Virginia Woolf.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Aula. 12. ed. Tradução e posfácio de Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Cultrix, 2004.
BRADBURY, Malcom. O mundo moderno: dez grandes escritores.
Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P.
B. Mourão. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1996.
DALLENBACH, Lucien. Autotexto e intertexto. In: JENNY, Laurent et alii.
Poétique: Revue de Théoric et d’Analyse littéraires. Coimbra, n.27, 1979,
p. 51-75.
JENNY, Laurent. A estratégia da forma. Tradução de de Clara Crabbé
Rocha. Poétique: Revue de Théoric et d’Analyse littéraires. Coimbra,
n.27, 1979, p. 5-49.
LEONE, Eduardo; MOURÃO, Maria Dora. Cinema e montagem. Série
Princípios. São Paulo: Ática, 1987.
MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte: estudo de literatura
brasileira contemporânea. Campo Grande: Ed. UFMS, 2004.
NATHAN, Monique. Virginia Woolf. Tradução de Léo Schlafman. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1989.
www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006
NOLASCO, Edgar César. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura.
Belo Horizonte: Annablume, 2001
PASOLD, Bernadete. (Ed.). Virginia Woolf. Ilha do Desterro. A Journal of
Language and Literature. Revista de Língua e Literatura, Florianópolis
n.24, 2. trim. 1990.
SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos. Nas malhas da rede: uma leitura
crítico-comparativa de Julio Córtazar e Virginia Woolf. Campo Grande: Ed.
da UFMS, 1998.
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Tradução de Mário Quintana. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
WOOLF, Virginia. Contos Completos. Tradução de Leonardo Fróes. São
Paulo: Cosac Naify, 2005.
WOOLF, Virginia. Objetos Sólidos. Tradução de Hélio Pólvora. São Paulo:
Siciliano, 1992.
∗
Professora de Língua e Literatura Latinas no curso de Letras da UNIGRAN. Mestranda no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMS/Três Lagoas.
1
Versão contida na coletânea lançada recentemente no Brasil Contos completos Virginia
Woolf com tradução de Leonardo Fróes.
2
Edição brasileira com tradução de Mário Quintana.
3
Ver JENNY, 1979, p. 5.
4
No dia 28 de maio de 1929 Woolf escreveu em seu diário: “Cada manhã escrevo uma
pequena passagem para me divertir. Não digo, e poderia dizer, que estas passagens
tenham alguma utilidade. Não tento contar uma história. No entanto, talvez dessa
maneira se possa obter algum efeito.” (WOOLF apud NATHAN, 1989, p.143).
5
“Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214
6
Mrs. Dalloway, p. 8
7
“Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214
8
Mrs. Dalloway, p. 8
9
“Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214
10
Mrs. Dalloway, p. 8
11
“Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 214.
12
Mrs. Dalloway, p. 9
13
“Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 217
14
Mrs. Dalloway, p. 13
15
“Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 218.
16
Mrs. Dalloway, p. 14.
17
“Mrs. Dalloway em Bond Street”, In: Contos Completos: Virginia Woolf, p. 222.
18
Mrs. Dalloway, p. 17.
Download

O ATO CRIATIVO DE VIRGINIA WOOLF EM Mrs