O MITO DA NAÇÃO N’OS LUSÍADAS E N’O URAGUAI
Maiquel Röhrig*
ABSTRACT: In this article, I analyze The Lusiads, by Luis de Camões, and O Uraguai, by
Basilio da Gama. The interpretation operates with the concepts of poetry and of Dasein, by
Heidegger, who wrote that poetry establish the being of man; of nation, by Homi Bhabha, for
whom the nation is a narration; and foreign, by Kristeva, who wrote that the opposition to the
other contributes to the invention of national identity. A formal analysis of the works, with
respect to its epic nature, is based on Aristotle and Hegel. My goals are to confront the two
epics narratives with the theoretical concepts and examine how these authors represent their
people and to what extent the foundation of the national discourse is part of the narrative.
KEYWORDS: epic, Dasein, nation.
RESUMO: Neste artigo, analiso Os lusíadas, de Luís de Camões, e O Uraguai, de Basílio da
Gama, sob a perspectiva da narrativização da nação, considerando-os como poemas que
buscam criar um discurso fundante de uma ideia de coletividade. A interpretação opera com
os conceitos de poesia e de Dasein, de Heidegger, de acordo com quem a poesia funda o Ser
do homem; de nação, de Homi Bhabha, para quem a nação é uma narração; e de
estrangeiro, de Kristeva, no sentido de que a oposição ao outro contribui para a invenção da
identidade nacional. A análise formal das obras, no que diz respeito ao seu caráter épico, é
feita nos termos de Aristóteles e Hegel. Meus objetivos são confrontar as duas epopeias com
os conceitos teóricos referidos e averiguar como os autores representam seu povo e até que
ponto a fundação do discurso nacional alcança êxito nas narrativas.
PALAVRAS-CHAVE: epopeia, Dasein, nação, Os lusíadas, O uraguai.
1 Apresentação das epopeias
*
Doutorando em Literatura Comparada pela UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
No início do século XVI, Portugal viveu uma expansão econômica e um clima de
prosperidade. A conquista do caminho marítimo para as Índias abriu grandes possibilidades
comerciais, políticas e culturais. A descoberta do Brasil ainda não representava muito para os
portugueses, e Os lusíadas não se refere às terras brasileiras nem exalta o capitão que as
descobriu, Pedro Álvares Cabral.
Camões publica sua epopeia em 1572. Sua narrativa louva o povo português, cuja
coletividade funciona como o herói da epopeia. Vasco da Gama é um entre os valorosos
heróis portugueses que lutam contra as forças do mar, contra a fúria de Baco e contra os
mouros, em cujas terras querem semear o cristianismo. Portugal estava geograficamente
definido, situado no extremo oeste da península ibérica, a nação correspondia a este trecho
contínuo de terras, e a oposição entre portugueses e mouros permite a Camões discernir com
clareza o que é seu povo e o que é “o outro”.
A situação de Basílio da Gama é mais complexa, dos pontos de vista geográfico,
histórico e moral. Em sua épica, publicada em 1769, a constituição do perfil do povo é
prejudicada, por um lado, pelo aspecto histórico, pois o exército português precisou da ajuda
do exército espanhol para derrotar os índios, em 1756; por outro, pela incapacidade do autor
em representar os índios como maus, atribuindo aos padres jesuítas todos os caracteres
negativos e, aos índios, a mesma valentia e honradez dos generais português e espanhol.
O contexto histórico em que Basílio produziu a obra não era auspicioso, e, no plano
pessoal, Basílio precisava criticar os padres jesuítas espanhóis para agradar ao primeiroministro português. O Tratado de Madri, de 1750, acirrara a animosidade nas terras do sul,
visto que os jesuítas não admitiam cumpri-lo. Em 1755, um terremoto arrasa Lisboa, e a
situação, já precária, complica-se ainda mais. O marquês de Pombal é o homem responsável
por reconstruir a cidade (com o ouro proveniente do Brasil) e equiparar Portugal às demais
nações europeias, que experimentavam acelerado progresso econômico. Enquanto Camões
tinha uma nação geograficamente demarcada e com glórias a exaltar, Basílio não consegue
localizar seu povo nem sua nação, e tem diante de si uma crise política e outra econômica.
Camões funda uma identidade para o povo português; Basílio da Gama vê-se em
dificuldades inclusive para compor uma imagem que represente seu herói, dividido
principalmente entre portugueses e indígenas. Não há uma nação a ser narrada; há, outrossim,
uma difícil relação entre metrópole, colônia e tratados internacionais. O autor não consegue
criar um antagonismo entre guerreiros bons e guerreiros maus, personificando o inimigo na
figura de um terceiro elemento: os padres jesuítas. Neste sentido, Antonio Candido (1975, p.
131) afirma que um fator de abrandamento do espírito épico se deve ao fato de que “o poema
deixa de ser a celebração dum herói para tornar-se o estudo de uma situação. À guerrilha do
Sul, superpõe-se o próprio drama do choque de culturas”. Da mesma forma, Hegel destaca a
necessidade de focalizar um único personagem na epopeia:
o acontecimento épico particular só pode ser descrito de forma poética e viva
quando se concentra num só indivíduo. Do mesmo modo que é um só poeta quem
tudo inventa e realiza, um só indivíduo deve estar à frente dos acontecimentos e
imprimir-lhes a sua forma, desde os seus começos até a sua conclusão (1996, p. 464,
grifos do autor).
As duas obras possuem as cinco partes das epopeias: proposição, invocação,
dedicatória, narração, epílogo, e ambas iniciam in media res, conforme solicita a tradição.
Porém, Camões adota o verso decassílabo heroico, e todos os 8.816 versos de Os lusíadas são
acentuados na sexta e décima sílabas poéticas. Basílio da Gama subverte o decassílabo na
maioria de seus versos, usando acentos não convencionais, de modo que o ritmo do poema
apresenta diversas variações. Os versos d'O uraguai são brancos, no entanto apresentam,
ocasionalmente, rimas toantes. Cada um dos cinco cantos contém uma única estrofe,
diferentemente d'Os lusíadas, cuja estrofação, nos seus dez cantos, obedece rigidamente à
oitava-rima, com esquema de rimas ABABABCC.
A epopeia de Camões possui o que podemos chamar de três níveis: mitológico,
histórico, ficcional. O autor se vale ao mesmo tempo da mitologia greco-romana, da história
de Portugal e de sua imaginação. N'O uraguai não há elementos mitológicos, há apenas
referências históricas estilizadas pela imaginação do poeta.
O uraguai apresenta algumas características que dificultam sua classificação como
epopeia. Trata-se de um texto curto, com muitos trechos líricos. Antonio Candido hesita em
classificar a obra. Primeiramente, ele diz que “é erro considerá-la epopéia, não se devendo
perder de vista que é, primeiramente, lírica; em seguida, heróica; finalmente, didática” (1975,
p. 127). Entretanto, logo depois ele enquadra o livro como “epopéia de assunto militar” (id., p.
131).
Para Aristóteles (1966, p. 73), “A epopéia e a tragédia concordam sòmente em serem,
ambas, imitação de homens superiores, em verso”. É o que acontece n'Os lusíadas e em O
uraguai: os dois poetas focalizam sua narrativa nos feitos de homens superiores, narrando
ações de difícil execução.
Hegel afirma que “a poesia épica consiste em representar o desenrolar de uma ação,
quer dizer, não apenas o lado exterior da realização de um fim, mas também as circunstâncias
exteriores, as condições naturais e outras sem as quais a ação não poderia se realizar” (p. 463).
Camões representa a ação de Vasco da Gama, e de todo o povo português, de conquistar os
mares e singrar pela primeira vez o caminho da Europa à Índia. A obra “os Lusíadas de
Camões [...] marca já uma ruptura total com a Idade Média e está orientada para interesses
que anunciam uma nova era” (id., p. 508). Basílio representa a ação das tropas portuguesa e
espanhola derrotando os índios das missões guaraníticas, anunciando também uma suposta
nova era de progresso sustentado pela racionalidade iluminista.
Heidegger (1958, p. 128) afirma que “La poesía se muestra en la forma modesta del
juego. Sin trabas, inventa su mundo de imágenes y queda ensimismada en el reino de lo
imaginario”. Este reino imaginário representa o mundo real e funda o Ser do homem, e, como
acontece nas grandes epopeias, funda o Ser da pátria. Mas nem todos os poetas alcançam este
ideal poético.
2 A nação como narração e a poesia como fundamento do Ser
Camões escreveu Os lusíadas num momento de consolidação da comunidade
portuguesa. O conceito moderno de nação ainda não se aplica ao século XVI, porém podemos
nos aventurar a dizer que Portugal se configurava como aquilo que, grosso modo, chamamos
de nação.
Homi Bhabha (1998, p. 200), afirma que a nação é uma “estratégia narrativa”, e que
povo e nação constituem-se como uma “comunidade imaginada” (p. 199). Para ele, a
nacionalidade é uma “forma de afiliação social e textual” (p. 199). Neste sentido, a nação não
é algo a priori, mas um construto narrativo criado a partir de “estratégias complexas de
identificação cultural e de interpelação discursiva que funcionam em nome 'do povo' ou 'da
nação' e os tornam sujeitos imanentes e objetos de uma série de narrativas sociais e literárias”
(p. 199).
Hegel (1996, p. 443) acredita na existência da nação como uma espécie de espírito, e
afirma que “uma coleção de epopéias [...] equivaleria a uma galeria de espíritos nacionais”.
Para ele, “todas as epopéias verdadeiramente originais nos oferecem a imagem do espírito
nacional” (p. 455). E,
Se a ingênua consciência de um povo se exprime pela primeira vez na epopéia
propriamente dita, o verdadeiro poema épico pertence essencialmente a essa época
intermédia em que um povo, saído da sua ingenuidade e sentindo o seu espírito
despertar, se põe a criar um mundo que lhe seja próprio e no qual se sente à vontade
(p. 444).
Também Hegel admite que o mundo da nação é um mundo criado, discursivo, cuja
imagem é registrada nas narrativas. Heidegger concentra-se na questão da linguagem,
atribuindo-lhe uma centralidade jamais ousada pela filosofia. Segundo ele, “A linguagem é a
casa do Ser” (2009, p. 24). Esta afirmativa lhe é muito cara, por isso a repete: “O homem não
é apenas um ser vivo, que, entre outras faculdades, possui também a linguagem. Muito mais
do que isso. A linguagem é a casa do Ser” (id., p. 55). E, novamente: “a linguagem é
conjuntamente a casa do Ser e a habitação da Essência do homem.” (id., p. 95).
Ricoeur (1978, p. 197) seguindo o pensamento de Heidegger, afirma que “A irrupção
da linguagem outra coisa não é que a irrupção do ser-aí, pois a irrupção do ser-aí significa
que, na linguagem, o ser está trazido à palavra”. E Nunes (1992, p. 102) diz que “o discurso é
constitutivo do ser-no-mundo”, e “Isso equivale a dizer que o Dasein é falante” (id., ib.).
Inspirado pela poesia de Hölderlin, Heidegger vale-se de um verso do poeta para
afirmar que é poeticamente que o homem habita esta terra. Habitar poeticamente significa
experimentar a essência das coisas, e a poesia deve ser concebida como a essência da
linguagem. A poesia instaura o permanente pela palavra, em oposição à corrente do tempo.
Deste modo, a poesia é a instauração do Ser: “la poesía no toma el lenguaje como un material
ya existente, sino que la poesía misma hace posible el lenguaje. La poesía es el lenguaje
primitivo de un pueblo histórico [...] el lenguaje primitivo es la poesía como instauración del
ser” (1958, p. 140). O Ser do homem funda-se na fala, a qual só alcança sua essência no
diálogo. Este, conforme Heidegger, é o portador do Dasein: “El ser del hombre se funda en el
habla; pero ésta acontece primero en el diálogo. [...] el habla sólo es esencial como diálogo.
[...] El diálogo y su unidad es portador de nuestra existencia (Dasein)” (id., p. 134).
Heidegger sustenta a ideia de que “El habla no es un instrumento disponible, sino
aquel acontecimiento que dispone la más alta posibilidad de ser hombre” (p. 133). Segundo
ele, “Sólo hay mundo donde hay habla” (id., ib.). Mas, para criar, fundar o mundo, o poeta
tem de ser uma criatura diferente dos mortais comuns: ele precisa estar no meio do caminho
entre os homens e os deuses.
El poeta mismo está entre aquéllos, los dioses, y éste, el pueblo. Es un “proyectado
fuera”, fuera en aquel entre, entre los dioses y los hombres. Pero sólo en este entre y
por primera vez se decide quién es el hombre y dónde se asienta su existencia.
“Poéticamente el hombre habita esta tierra” (id., p. 145).
Heidegger não admite a ideia da poesia como um adorno, nem como mera diversão.
“La poesía es el fundamento que soporta la historia, y por ello no es tampoco una
manifestación de la cultura, y menos aún la mera 'expresión' del 'alma de la cultura'” (id., p.
139). A poesia é a instauração do Ser, seja do Ser do homem enquanto indivíduo, seja dele
como povo-nação.
3 A construção da nação portuguesa n'Os lusíadas
A estrutura de Os lusíadas reúne os principais elementos capazes de funcionar como
uma narrativa de fundação, legitimando os valores e interesses “nacionais”. Segundo Bhabha,
o povo consiste em “objetos” históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui
ao discurso uma autoridade que se baseia no pré-estabelecido ou na origem histórica
constituída no passado; o povo consiste também em “sujeitos” de um processo de
significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povonação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como
contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional
é redimida e reiterada como um processo reprodutivo (1998, p. 206-207, grifos do
autor).
A origem histórica do povo lusitano é traçada por Camões sobretudo na longa
narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde, e o prodígio do povo, na contemporaneidade
(considerando o momento histórico em que viveu Camões) é dado pelos feitos dos
navegadores.
O conceito criado por Heidegger para pátria é diferente do habitual: “Pensa-se aqui
essa palavra num sentido Essencial, a saber, não no sentido patriótico ou nacionalista, mas no
sentido da História do Ser” (2009, p. 62). Nesse sentido, Os lusíadas não é um texto que conta
a história de Portugal, mas a História do Ser de Portugal, de sua essência. De acordo com
Nunes (1992, p. 265), “Heidegger refere-se expressamente à origem da arte como origem do
Dasein historial de um povo, entendendo por povo a comunidade dos criadores e dos
guardiões da obras”.
Os estrangeiros têm tratamento ambivalente no texto de Camões. Por um lado, o
encontro com eles é desejado para o comércio; por outro, receiam sua violência, ou contra os
navegadores durante a viagem, ou contra o povo que permaneceu e teme a invasão dos
mouros, possibilidade trazida à tona pelo Velho do Restelo. Vasco da Gama vivencia as duas
circunstâncias: sofre tentativa de pilhagem e violência em Mombaça, e o acolhimento em
Melinde.
Homi Bhabha (1998, p. 211) cita Freud para destacar algo que Kristeva também
focaliza: “É sempre possível unir um número considerável de pessoas no amor, desde que
restem outras pessoas para receber a manifestação de sua agressividade”. Kristeva (1994, p.
21) diz, em relação ao estrangeiro, que “O ódio o torna real, autêntico de alguma forma,
sólido ou, simplesmente, vivo” . Segundo ela, o estrangeiro “assinala os limites dos Estadosnações e da consciência política nacional que os caracteriza e que todos nós interiorizamos
profundamente” (id., p. 108). Considerando a narrativização da nação, a presença do
estrangeiro é, portanto, importante para marcar os limites do povo-nação, lógica em
conformidade com o binarismo de nossa racionalidade: “a cultura [...] implanta em cada um a
consideração de um valor e do seu contrário, do mesmo e do outro, do idêntico e do seu
estranho” (id., p. 155).
N'Os lusíadas é fácil identificar a oposição entre portugueses e estrangeiros, marcada
pela religião: cristãos versus mouros. Há, também, a oposição marcada pela coragem lusitana
contra a covardia espanhola e inglesa, no episódio conhecido como “Os doze de Inglaterra”:
os espanhóis acovardam-se diante dos ingleses, e estes mostram-se covardes porque
sequestram damas indefesas.
N'O uraguai a questão é mais complicada.
4 A problemática da nação n'O uraguai
Basílio da Gama nasceu em Minas Gerais, filho de pai português e mãe brasileira.
Estudou no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, mas, devido à expulsão dos jesuítas pelo
Marquês de Pombal, partiu para Roma, onde aprendeu as técnicas da poesia árcade. Quando
mudou-se para Coimbra a fim de cursar a universidade, foi preso e deportado sob a acusação
de ter amizade com os jesuítas. Livrou-se do degredo em Angola após escrever um poema em
homenagem à filha do Marquês de Pombal, que lhe concede carta de fidalguia e o nomeia
Secretário do Reino. Esta relação política estimulará a produção d'O uraguai, epopeia
dedicada ao irmão do Marquês, e que reverencia a administração progressista do primeiroministro português após o terremoto que destruiu Lisboa.
A época em que Basílio viveu foi conturbada, e sua vida foi marcada por um trânsito
constante: MG, RJ, Itália, Portugal, Angola, Brasil, Portugal. A “nacionalidade” de seus pais
já o colocava na fronteira entre Brasil e Portugal, e sua vida foi pouco a pouco inserindo-o nas
relações políticas e econômicas entre a metrópole e a colônia. Por isso, embora nascido no
Brasil, sua epopeia não se refere ao povo brasileiro, ainda que seu cenário sejam as terras do
Rio Grande do Sul. Seus personagens são portugueses, espanhóis, indígenas, e o narrador não
coloca em nenhum deles o signo de uma “brasilidade”.
O uraguai não apresenta um “povo” que se impõe a outro “estrangeiro”, e a batalha se
dá no interior do mesmo reino, entre pessoas deste mesmo reino.
Talvez o próprio Basílio se visse como estrangeiro. Kristeva (id., p. 27) diz que “Todo
nativo sente-se mais ou menos 'estrangeiro' em seu 'próprio' lugar e esse valor metafórico do
termo 'estrangeiro' primeiramente conduz o cidadão a um embaraço referente à sua identidade
[...]”.
Basílio não consegue definir quem é o herói de sua narrativa, alguém com quem o
narrador se identifique. Seu ódio recai sobre os padres jesuítas espanhóis, e somente sobre
eles, de modo que sua admiração se divide entre os generais brancos, o português e o
espanhol, e os líderes índios, Cacambo e Sepé Tiaraju. Os personagens, por sua vez, não
sentem ódio uns pelos outros: os generais cumprem ordens e Gomes Freire mostra-se
benvolente com os índios; os índios defendem seu território, e somente Sepé Tiaraju, devido a
seu temperamento explosivo, aproxima-se de odiar os brancos (ainda que pareça, muito mais,
que ele apenas prefira o combate à conversa diplomática).
Ao contrário de Camões, que conhecia pormenores da história de Portugal e, mais do
que isso, enfrentou os mares como Vasco da Gama, experimentando seus perigos, Basílio
narra um fato exterior a suas experiências. Além disso, seu conhecimento sobre a história das
guerras guaraníticas e sobre a geografia da região onde elas ocorreram era limitado. Antonio
Candido relata que
A informação do poeta era sem dúvida improvisada; não há pormenores que revelem
conhecimento, seja dos costumes primitivos, seja da vida nas Reduções, resultando
índios esboçados sumariamente. [...] Quanto aos acontecimentos militares, limitouse a indicações extraídas da Relação Abreviada, publicação antijesuítica mandada
fazer por Pombal (1975, p. 135).
Candido também menciona uma infidelidade histórica cometida por Basílio para corroborar
sua crítica aos jesuítas.
Existiu efetivamente um índio missioneiro assim chamado [Cacambo]; procurando
entrar em contato com o general português, despertou a suspeita dos companheiros,
que tencionaram matá-lo. Por intercessão do Padre Balda, foi contudo preso, e na
prisão morreu. Como se vê, aí estão os elementos de que partiu Basílio para o
personagem, cuja morte atribui ao jesuíta, alterando os fatos (id., p. 133).
Esses dados prejudicam o caráter épico d'O uraguai. Hegel afirmou que “Para que o
espírito de uma nação nos apareça do ponto de vista poético, tal como é na realidade, é
necessário que a obra nos apresente figuras verdadeiramente históricas e na sua atividade
real” (p. 464).
As limitações de Basílio na elaboração do plano histórico de sua obra, atendendo a
suas inclinações pessoais, são uma grande fragilidade da obra.
A criação de um discurso que funde o Ser da nação precisa da focalização de um fato
de grande relevância histórica para o povo, narrado de modo fidedigno. A tentativa de
expulsar índios das terras por eles cultivadas para atender a um acordo político não se
configura como um ato de grandeza heroica, mas de brutalidade e falta de sentido. E as
intrusões de Basílio, corrompendo os fatos para atender a seus objetivos pessoais,
compromete sua epopeia.
Considerações finais
A linguagem é um traço distintivo do ser humano, e a poesia, mais do que isso, funda
o Ser do homem, revelando sua essência. As epopeias criam narrativas que procuram fundar o
Ser da pátria e projetar uma imagem que construa uma ideia de coletividade.
Os lusíadas incorpora eventos e personalidades da história de Portugal, engrandece o
heroísmo de Vasco da Gama e, através dele e dos navegadores que com ele singraram os
mares, cria uma identidade para os portugueses, compõe uma representação de pátria e funda
o Ser de Portugal.
O uraguai se ressente da falta de um herói, da fragmentação da pátria em metrópole e
colônia, e da falta de um evento histórico potencialmente heroico e positivo fundante de uma
identidade. A epopeia de Basílio da Gama não consegue transformar as guerras guaraníticas
num evento grandioso, expõe a fragilidade do exército português, incapaz de derrotar os
índios sem o auxílio dos espanhóis, e, ao descrever os índios como guerreiros tão valorosos
quanto os brancos e com práticas de cultivo e criação civilizadas, deixa transparecer a tolice e
a injustiça que o Tratado de Madri representou. Basílio não consegue, através de seu texto,
representar uma nação, tampouco revelar-nos algo que o real até então nos escondera.
Benedito Nunes (1992, p. 249) cita Heidegger para dizer que “a arte é uma
consagração e um abrigo, por onde o real dispensa ao homem o seu brilho até então
escondido, para que, numa claridade, possa ver, de maneira mais pura, e ouvir, mais
distintamente, o que fala à sua essência”. Este ideal de arte não foi alcançado n'O uraguai,
mas perpassa cada uma das 1.102 estrofes d'Os lusíadas.
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