ERA UMA VEZ A LITERATURA ENSINADA NA ESCOLA... E O QUE
ACONTECEU, COM O ADVENTO DOS ESTUDOS CULTURAIS?
Márcia Rios da Silva (UNEB)
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Resumo: Nesta comunicação, propõe-se uma reflexão acerca das contribuições dos estudos
da cultura contemporâneos para o trabalho com as produções literárias na escola. Parte-se do
entendimento de que esses estudos, produzidos em um contexto de transformações sociais,
marcadas por reivindicações de grupos minoritários, tem desafiado o ensino formal a uma
revisão de suas práticas educativas. No tocante à literatura ensinada, torna-se imperativo
pensar sobre os impasses postos pelos currículos escolares, que ainda preservam a
importância da “tradição” literária na educação formal, proposta conflitante com o universo
cultural dos jovens estudantes.
Palavras-chave: Estudos da cultura; Literatura; Ensino.
Com um título instigante, Tzvetan Todorov publica o livro A literatura em perigo1, no
qual discute as implicações do ensino da literatura. De acordo com o autor, o trabalho com as
produções literárias desenvolvido nas escolas abandonou “o sentido das obras”, ao mediá-las
aos estudantes através de uma aparelhagem teórico-crítica e historiográfica. Essas mediações,
de ordem disciplinar, terminam por vetar o contato dos jovens com a literatura – daí a ideia de
perigo – no que tem de extraordinário: falar da sociedade, dos homens, da vida, das paixões,
enfim. Predominam no ensino da literatura, destaca o autor, o estudo dos movimentos
literários e as leituras de resenhas das obras ou de textos de críticos literários.
Todorov atribui esse fato a uma formação docente na área de Letras, particularmente
após o advento do formalismo russo e do estruturalismo orientando a crítica literária nas
universidades, com seus métodos que primam por dissecar o literário em nome da estrutura
profunda do texto. Contudo, o autor exime os professores dessa culpa, ao estender a sua
análise à concepção de arte elaborada pela tradição filosófica no Ocidente, que, por sua vez,
contribuiu na constituição do campo artístico e literário. Tal concepção, sustentada no ideal de
transcendência, modelou a teoria literária nos centros universitários, formulada como ciência,
na qual predominou o estudo imanente das obras através de um código restrito de análise,
promovendo assim uma centralidade do literário.
1
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
1
De acordo com Todorov, ganham relevo nos estudos literários, a partir da segunda
metade do século XX, concepções niilistas e solipsistas da literatura, sustentadas na “na ideia
de que uma ruptura radical separa o eu e o mundo”, dissociando as obras da realidade exterior,
bem como daqueles que as produziram. Como consequência, afastam a literatura do chamado
leitor comum. Todorov analisa essas questões no contexto do sistema educacional francês, no
nível secundário, as quais também se apresentam com vigor na educação formal dos países
latino-americanos, guardadas as suas especificidades, onde a centralidade do literário ganhou
terreno.2
No Brasil, o ensino da literatura também explica a negação do sentido das obras, como
pensado por Todorov, ao ser conduzido, desde o século XIX, por uma perspectiva
historiográfica de base positivista.3 Aliada a uma concepção humanista de educação, esse
ensino vai corresponder ao projeto de consolidação do Estado brasileiro, atendendo aos
interesses de uma elite política, econômica e cultural. Coube à escola reproduzir os valores
eruditos e culturais dessa elite, ao disseminar a sua produção literária, fazendo o papel de
divulgadora da cultura erudita, nos termos de Pierre Bourdieu.
Segundo esse pensador francês, a escola reproduz os valores do campo de produção
erudita, contribuindo para os processos de legitimação da chamada arte culta. 4 O sistema de
ensino torna-se instância complementar ao processo de autonomização e consequente
institucionalização da arte e da literatura, uma vez que é responsável por instruir e assegurar
“os esquemas de percepção e apreciação dos bens simbólicos” 5 a serem aceitos e valorizados.
2
Tal centralidade antecede, sem dúvida, aquele século e tem explicação histórica. Em uma perspectiva cultural,
o pesquisador norte-americano John Beverley faz uma análise dessa centralidade na América Latina, a sua
supervalorização, o que contribui para compreender a distância que o ensino da literatura promove entre leitores
e obras. Segundo o autor, desde o início da colonização, a literatura, como instituição, sob a forma dos
ensinamentos dos Humanistas, foi transplantada para a América Latina. Esse fato delega à literatura um papel
ambíguo: o de ser uma instituição de dominação colonial e, paralelamente, o de desenvolver uma “cultura
crioula autônoma” e, posteriormente, uma cultura nacional. Em toda sua história, portanto, os escritores latinoamericanos atribuíram à literatura “uma supervalorização social e historicamente determinada de sua
importância e função” (p. 14), o que resultou na centralidade da atividade literária. Tal centralidade guiou a
política cultural da esquerda latino-americana no século XX, segundo Beverley, a qual posicionou a literatura
“como o discurso crucialmente formador da possibilidade e da identidade latino-americanas”. Cf. John
BEVERLEY. Por Lacan: da Literatura aos Estudos Culturais. Travessia; revista de literatura. Florianópolis:
UFSC, ago.1994/jul.1995.
3
Tomando por base as pesquisas de Roberto Acízelo de Souza e Marcia de Paula Gregório Razzini sobre “a vida
escolar e as práticas de ensino do Colégio Pedro II no século XIX e parte do século XX”, William Cereja
encontra uma explicação para o ensino da literatura na escola. Com mais de 150 anos, a abordagem
historiográfica, implantada no ensino secundário pelo Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, uma escola para a
elite, converte-se em “tradição”, sustentando os conteúdos programáticos, que priorizam a “visão panorâmica da
literatura [de Brasil e Portugal], enfocando os cânones da tradição literária”. Cf. CEREJA, William Roberto.
Uma proposta dialógica de ensino de literatura no ensino médio. PUC/SP: 2004. (tese de doutorado).
4
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
5
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 117.
2
Desse modo, seguindo o raciocínio do autor, a produção literária legitimada pelo campo da
produção erudita – no qual se incluem as artes e a literatura –, e divulgada na escola, impõe-se
pelo “monopólio do exercício legítimo da violência simbólica”, 6 em busca de legitimidade
cultural, e contribui para a institucionalização da literatura erudita, num momento em que o
campo artístico e literário alcança um grau máximo de autonomia, a saber, com a arte
moderna.
O campo da produção erudita vai assim contar com um grande aliado, o sistema de
ensino, responsável por validar determinadas produções, tendo no professor a voz autorizada
a respaldá-las. Segundo Bourdieu, a expansão da produção e a circulação dos bens simbólicos
nas sociedades modernas capitalistas, aliada a um crescente público consumidor, orienta o
campo erudito para que cultive e mantenha seus capitais culturais intrínsecos e exclusivos às
suas próprias leis. Isso se deve ao fato desse campo se estruturar com um corpo de agentes
especializados, a saber – escritores, artistas, críticos e promotores culturais –, profissionais
qualificados para selecionar e validar as produções literárias, como também para definir os
princípios e critérios do campo. Essa organização, marcando uma institucionalização da
literatura, resulta na distância da arte moderna em relação ao público. 7
De acordo com Simon During, a literatura ensinada, em sua roupagem
institucionalizada, estará a serviço da formação cultural e culta dos jovens, tomada portanto
como um projeto civilizacional na escolarização formal. Esse teórico inglês dos estudos de
cultura contemporâneos afirma que na Grã-Bretanha dos anos 1950 desenvolveu-se um
projeto para as escolas, conhecido como Leavisismo, por ter à frente R. F. Leavis, uma
iniciativa que teve o intuito de distribuir o capital cultural através do sistema educacional,
quando se incluiu a literatura em tal programa. Os leavisistas pregavam o valor da leitura da
“grande tradição” para formar a sensibilidade moral dos leitores, isto é, “formar indivíduos
com o sentido concreto e equilibrado da vida”, ameaçados com o prazer oferecido pela
chamada cultura de massa8. Essa tradição passa a compor um cânone literário e converte-se
6
BOURDIEU, Pierre. Id., p. 118.
Segundo Bourdieu, o culto da “arte pela arte” e o funcionamento do campo de produção erudita são regidos
pelos critérios de autossuficiência e especificidade, conforme interesses de seus agentes. As obras modernas ou
experimentais são tidas como “puras” e demandam “imperativamente do receptor uma disposição propriamente
estética”, e “esotéricas”, por sua “estrutura complexa que exige sempre a referência à história inteira das
estruturas anteriores”, tornando-se “acessíveis apenas aos detentores do manejo prático ou teórico de um código
refinado”. Cf. BOURDIEU, 2002, p. 116. Em paralelo a esse campo, situa-se o de produção da indústria cultural
e das artes tidas como populares ou comerciais. Para esse pensador, no campo da produção erudita as obras se
apresentam como algo inaugural e original, vindo a criar, posteriormente, a demanda do seu público seleto. As
produções massivas, por sua vez, contam com uma recepção tida como “mais ou menos independente do nível
de instrução dos receptores (uma vez que tal sistema tende a ajustar-se à demanda)”. BOURDIEU, id., p. 117.
8
Afirma During: (...). Leavisism was na attempt to re-disseminate what is now commonly called, after Pierre
Bourdieu, “cultural capital” – thougt this is not how it saw itself. Leavis wanted to use the educational system to
7
3
em valor universal, produzido pela cultura hegemônica, esfera da arte erudita, e é naturalizado
como uma verdade, a ser aceita por diferentes segmentos sociais e culturais.
Esse universalismo orienta a formação de um cânone literário com as obras da “grande
tradição”, uma seleção imposta como o que merece ser ensinado nas escolas, independente do
público que as freqüenta. O universalismo que se quer alcançar está assentado no princípio de
que a escola transmite saberes aos quais todos têm acesso, ignorando assim a diversidade das
culturas. A “grande tradição” literária passa, dessa forma, a fazer parte do currículo escolar –
instrumento que traduz um projeto político e pedagógico – e vai sendo naturalizada como o
melhor a ser ensinado. De acordo com Tomas Tadeu da Silva, um currículo escolar –
documento de identidade, saber e poder, nos termos do autor – endossa processos de exclusão,
na medida em que o que ensinar implica seleção e organização de conteúdos. 9
No Brasil, enquanto o sistema educacional atendia predominantemente às elites do
país, a “grande tradição” – e aqui evocando During –, incorporada ao currículo, não
encontrava resistência. O impasse se apresenta quando a escola pública se expande, a partir
dos anos 1970, para segmentos sociais, de etnias e culturas diversas, que não fazem parte da
cultura dominante. Com novos sujeitos freqüentando a escola, outras demandas e novos
repertórios culturais entram em sala de aula. Desse modo, os conteúdos selecionados para a
composição do currículo formal – que elege um cânone literário com autores da “grande
tradição” – passam a ser questionados, uma vez que a sua organização vai de encontro às
aspirações desses novos segmentos, ao não contemplarem seus valores sociais e modos de
vida. Frente a essa nova realidade escolar, qual o significado da literatura até então ensinada?
Como libertá-la das abordagens historiográficas de base positivista ou ainda das análises
ancoradas em um arcabouço teórico-crítico que a descolou da vida? Que propostas teóricometodológicas podem contribuir para que novas práticas de ensino de literatura se instaurem?
Para se pensar sobre essas questões, as reflexões produzidas por um relativamente
recente campo transdisciplinar, designado de Estudos Culturais, têm uma contribuição
imensurável. Ao investirem em análises acerca da pluralidade das culturas, tais estudos
distribute literary knowledge and appreciation more widely. To achive this, the Leavisites argued for a very
restricted canon, discarding modern experimental works like those James Joyce or Virginia Woolf, for instance.
Instead, they primarily celebrated works directed towards developing the moral sensibility of readers such as the
works of Jane Austen, Alexander Popp or George Eliot – the “grat tradition.” Leavisistes fiercely insisted that
culture was not simply a leisure activity; reading “the great tradition” was, rather, a means of forming mature
individuals with a concrete and balanced sense de “life”. And the main threa to this sense de life came from the
pleasure offfered by so-called “mass culture”. Cf. Simon DURING. Introduction a The Cultural Studies Reader.
London and New York, 1999. p. 2.
9
Cf. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003.
4
colocaram em questionamento a centralidade do literário, colaborando radicalmente para
romper o impasse gerado com o conflito criado pelos interesses dos jovens frente a um
projeto de escolarização formal, particularmente quando se vive uma realidade que é fruto da
existência de temporalidades diversas.
Os repertórios culturais dos novos sujeitos que freqüentam a escola – sejam aquelas
experiências e valores de uma formação cultural elaborada no passado, considerado por
Raymond Williams como residual, sejam os novos significados e valores, novas práticas,
tidos pelo autor como força emergente – vão se cruzar com valores da cultura dominante. 10
Tais repertórios provocam uma mudança de práticas cristalizadas, como a do ensino de
literatura, implementadas por um sistema educacional moldado pelas aspirações de segmentos
sociais que fazem parte da cultura dominante.
De acordo com o pensador marxista inglês Raymond Williams, nas culturas, as
práticas emergentes, entendidas como forças de ruptura, entram em conflito não só com as
práticas dominantes, mas, sobretudo, com o “residual”, definido pelo autor como formações
culturais elaboradas no passado – como as dos sujeitos excluídos da cultura hegemônica –,
“enraizadas”, portanto, que continuam atuando com vigor no presente. A noção de residual
não deve ser entendida pelo anacronismo, mas compreendido como formações culturais
surgidas no passado atuando ainda no sujeito, dando sentido às nossas existências, pois são
formações de que somos feitos: nossa história familiar e cultural, nossa memória. Coloca
Williams: “a complexidade de uma cultura se encontra não apenas em seus processos
variáveis e suas definições sociais – tradições, instituições, formações – mas também nas
inter-relações dinâmicas, em todos os pontos do processo, de elementos variados e variáveis”.
11
Segundo Raymond Williams, enquanto o emergente diz respeito à criação contínua
de “novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relação”,
apontando para o futuro, o “residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas
ainda está ativo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um
elemento efetivo do presente”12. Sendo assim, “certas experiências, significados e valores que
Cf. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Cf. WILLIAMS, id., p. 124. Segundo o autor, um processo cultural, por apresentar determinadas
características dominantes em uma determinada época, é tomado como o sistema cultural, com a pretensão de
equivaler a uma totalidade. No entanto, numa análise histórica, para se dar conta da totalidade do processo
cultural, torna-se inevitável compreender as diversas temporalidades (marcadas pelo “residual”, pelo
“dominante” e o “emergente”) e as inter-relações entre movimentos e tendências dentro da cultura dominante.
Pensar o “dominante” só se torna rentável se forem considerados ainda o “residual” e o “emergente”,
“significativos tanto em si mesmos como naquilo que revelam das características do ‘dominante’”.
12
Id., p. 125.
10
11
5
não se podem expressar em termos de cultura dominante, ainda são vividos e praticados à
base do resíduo −
cultural, bem como social −
de uma instituição ou formação social e
cultural anterior”13, como as práticas cristalizadas da cultura dominante.
O “residual” não se confunde com o arcaico, que se apresenta como um elemento do
passado e é tido como tal. Aquele conceito deve ser articulado, assim como o de “emergente”,
com a cultura dominante e possui com ela uma relação alternativa ou oposta, ou ainda pode
ter sido incorporado pela cultura hegemônica. Os elementos residuais vêm de formações
sociais anteriores e “parecem ter significação porque representam áreas da experiência,
aspiração e realização humanas que a cultura dominante negligencia, subvaloriza, opõe,
reprime ou nem mesmo pode reconhecer” 14.
Frente ao “residual” e o “emergente”, o sistema educacional segue cumprindo o seu
papel, ao preservar uma prática cristalizada na abordagem da literatura, o que faz da escola o
conservatório da alta cultura, a saber, a “tradição” literária. Por conta disso, são ignoradas as
mudanças sociais ocorridas, como as trazidas pela indústria cultural, que também constituiu o
seu campo, cujos produtos são desqualificados pelo sistema escolar, segundo Bourdieu. Por
isso, os repertórios da indústria cultural, tão familiares aos jovens, foram excluídos do
currículo escolar, que se encarrega de definir uma cultura legítima.
Em sua análise dos valores e forças presentes na elaboração dos currículos escolares
em diferentes momentos, Tomaz Tadeu da Silva afirma que esse instrumento tem se
constituído em objeto de preocupação de muitos teóricos, principalmente a partir da
emergência, na década de 1970, de teorias pedagógicas críticas. 15 Os estudos realizados nessa
perspectiva focalizam os processos de seleção, organização, distribuição e estratificação dos
conteúdos curriculares. Segundo Tomaz Tadeu da Silva, o fenômeno do multiculturalismo foi
fundamental a esses questionamentos: provocou uma problematização dos currículos,
atacando os valores da classe dominante neles veiculados, e questionou a exclusão das
Id., loc. cit.
Id., loc. cit. O conceito de cultura hegemônica deve ser compreendido no sentido gramsciano e é retomado
aqui como pensado por Williams e Stuart Hall. Segundo Hall, a hegemonia, para Gramsci, é um “momento
particular, historicamente específico e temporário na vida de uma sociedade” [ ‘hegemony’ is a very particular,
historically specific, and temporary ‘moment’ in the life of a society ] , “possui um caráter multi-dimensional e
multi-arena” e não “pode ser construída ou sustentada em uma única frente de luta (por exemplo, a econômica)”.
“Efetivamente resulta de obter um substancial grau de consentimento popular”, não devendo, por isso, ser
entendida exclusivamente como coerção. [ (...) we must take note of the multi-dimensional, multi-arena
character of hegemony. It cannot be constructed or sustained on one front of struggle alone (for example, the
economic)] Cf. HALL. Gramsci’s relevance for the study of race and ethnicity. In: Critical dialogues in
cultural studies. London/NY: Routledge, 1996. Tradução da autora.
15
O autor procede a uma análise das teorias do currículo, de sua origem às teorias pós-criticas, avaliando as
implicações desse instrumento político-pedagógico na formação da subjetividade e identidade dos sujeitos. Cf.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Op. cit.
13
14
6
culturas populares e até do popular massivo promovida por uma organização curricular, o que
expõe o jogo entre saber e poder.
Ainda com Tomaz Tadeu da Silva, as teorias pós-críticas do currículo, produzidas no
âmbito dos Estudos Culturais, significaram uma dilatação de questionamentos a serem
considerados nessa problematização. Isso possibilitou à sua teorização articular a produção do
conhecimento às relações de poder e à produção de identidades sociais, de gênero e
sexualidade, apontando novos caminhos para se pensar o nexo entre conhecimento e
indivíduo, enfim, as experiências humanas. Ao apontarem as relações sociais de dominação
nesse jogo, os Estudos Culturais vão favorecer que se pensem nos novos atores sociais da
escola para que se planeje um currículo em que as literaturas produzidas por diferentes
sujeitos ganhem efetivamente espaço e sentido.
Como campo de produção do conhecimento, os Estudos Culturais emergem nos anos
1950 promovendo rupturas significativas, o que marca um posicionamento político e teórico,
ao se preocuparem com a cultura popular e a dos mass media, desqualificadas pela cultura
dominante. Com esses deslocamentos, as artes e a literatura são consideradas práticas
culturais, minimizando assim o culto da arte pela arte ou a autonomia artística defendidos pela
modernidade estética. Afirma Ana Carolina Escosteguy acerca desses estudos: “As relações
entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e
práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais compõem
seu eixo principal de pesquisa”.16
Destaque-se aqui a obra The uses of literacy, de Richards Hoggart, que aborda as
experiências e os estilos de vida das classes populares da Inglaterra. Tendo vivido em bairros
operários do Norte desse país, interessa a Hoggart o que vem da cultura popular, no contexto
dos anos 1930 a 1950, quando a classe operária foi escolarizada, tendo acesso a livros,
revistas e jornais, como também ao rádio e à televisão, meios de comunicação que passam a
fazer parte do cotidiano dos operários. É no contexto dos anos 1950, cabe ressaltar, que o
Leavisismo, analisado por Simon During, é encampado como projeto de divulgação da
“grande tradição” literária nas escolas para enriquecer o capital cultural dos jovens britânicos
contra os perigos da cultura de massa.
Segundo Ana Carolina Escosteguy, a pesquisa de Hoggart, daí a autora destacar a sua
contribuição, “inaugura a perspectiva que argumenta que no âmbito popular não existe apenas
Tendo iniciado no final dos anos 1950 por pesquisadores britânicos como Richard Hoggart, Raymond
Williams e E. P. Thompson, os Estudos Culturais marcam uma postura política, teórica e metodológica frente aos
campos disciplinares vigentes. Cf. ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Estudos Culturais: uma introdução. In. SILVA,
Tomaz Tadeu. (org. e trad.). O que é, afinal, os Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
16
7
submissão mas, também, resistência, o que, mais tarde, será recuperado pelos estudos de
audiência dos meios massivos”.17 Tal perspectiva amplia as análises de Bourdieu, que postula
que a escola é o lugar da reprodução cultural, bem como se torna fundamental para se
entender os impasses postos pelos currículos escolares, que ainda preservam a importância da
“tradição” literária. A resistência dos jovens aos textos dessa tradição pode, inclusive,
contribuir com mudanças de ordem metodológica no ensino de literatura, forçando uma
expansão do cânone, a despeito do elitismo na defesa da tradição literária, já abalada com
produções de segmentos sociais historicamente excluídos.
De acordo com Jonathan Culler, o crescimento dos Estudos Culturais, ao contrário das
severas críticas que lhes são feitas – como a de que teriam liquidado os estudos literários –
acompanhou a expansão do cânone literário. 18
O trabalho nos estudos culturais se harmoniza particularmente com o caráter
problemático da identidade e com as múltiplas maneiras pelas quais as
identidades se formam, são vividas e transmitidas. Particularmente
importante, portanto, é o estudo das culturas e identidades culturais instáveis
que se colocam para grupos – minorias étnicas, imigrantes e mulheres – que
podem ter problemas em identificar-se com a cultura mais ampla na qual se
encontram – uma cultura que é ela própria uma construção ideológica que
sofre mudanças.19
Em vista disso, e a despeito da escola recusar a ampliação do cânone literário, um
trabalho com a literatura em sala de aula pode se beneficiar das contribuições dos Estudos
Culturais, que têm o mérito de reconhecer as literaturas produzidas por diferentes sujeitos,
ricas por trazerem a pluralidade das identidades sociais. Tais produções apresentam
singularidades, demandas e valores desses protagonistas, e fazem cair por terra a já
sedimentada idéia de literatura universal, para que fale “de ‘literaturas’ em condições
históricas e socialmente específicas de produção e recepção” 20. Assim, uma prática de ensino
da literatura que venha acolher essas produções literárias permitirá a escuta de experiências
humanas – expressas por sentimentos, ações e expectativas – silenciadas por vozes
autoritárias. Ampliando o repertório de obras literárias e explorando o diálogo do estético com
Id., p. 139.
Segundo Culler, contestando a ideia corrente de que os Estudos Culturais fazem oposição aos estudos
literários, o que ocorre é questionamento a uma tarefa dos estudos literários convencionais, que faziam, e ainda
fazem, ressalte-se, a “interpretação de obras literárias enquanto realizações de seus autores, e a principal
justificativa para o estudo da literatura era o valor especial das grandes obras: sua complexidade, sua beleza, sua
percepção, sua universalidade e seus potenciais benefícios para o leitor”. CULLER, Jonathan. Teoria literária;
uma introdução. São Paulo: Beca, 1999. P. 52.
19
Idem, loc. cit.
20
Cf. John BEVERLEY. Op. cit., p. 12.
17
18
8
o cultural, tal prática levará os jovens estudantes ao sentido das obras, a saber, experiências de
vida singulares.
Desse modo, a literatura ensinada deve ser uma prática libertadora, a fim de que
conduza os jovens não só ao exercício da leitura, como ao da escrita. Este já se encontra
socializado nas redes digitais, quando se tem conhecimento do imensurável volume de textos
literários produzidos na Internet, o que permite conferir sentido à literatura, na clave de
Todorov, ao se incentivar a atividade de leitura e escrita, como um gesto libertador. Portanto,
para se recuperar esse sentido, o ensino deve tomar a literatura em seu devir, nos termos de
Gilles Deleuze, ao entender a literatura como processo, criação, uma prática de escrita da
ordem do inacabado. “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de
fazer-se, e que extravaza qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”. 21
Essa perspectiva ainda liberta a literatura de sua dimensão estritamente
institucionalizada, como pretendida pelo currículo escolar, em favor da vida, das experiências,
de seus sentidos, que explodem pela linguagem, beneficiados com as rupturas promovidas
pelos Estudos Culturais, campo de conhecimento que conferiu visibilidade a práticas sociais
negligenciadas pela cultura dominante. Um verso de Manuel de Barros sintetiza tal pretensão:
“A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais
fundos desejos”.
REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de janeiro/São Paulo: Record, 1998.
BEVERLEY, John. Por Lacan: da Literatura aos Estudos Culturais. Travessia; revista de literatura.
Florianópolis: UFSC, ago.1994/jul.1995.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção de Sergio
Miceli. São Paulo: Perspectiva, 2002. (Estudos).
CEREJA, William Roberto. Uma proposta dialógica de ensino de literatura no ensino médio.
PUC/SP: 2004. (tese de doutorado).
21
Cf. DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. P. 11.
9
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo:
Editora 34, 1997. (Coleção TRANS).
DURING, Simon. Introduction a The Cultural Studies Reader. London and New York, 1999.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Estudos Culturais: uma introdução. In. SILVA, Tomaz Tadeu. (org. e
trad.). O que é, afinal, os Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
HALL, Stuart. Gramsci’s relevance for the study of race and ethnicity. In: Critical dialogues in
cultural studies. London/NY: Routledge, 1996.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2ª. ed. 5ª.
reimpressão. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
10
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