Coelhinhos à Solta Monica Baumgarten de Bolle Economista, Professora da PUC-Rio e diretora do IEPE/Casa das Garças (Publicação no O Globo a Mais de 26 de novembro de 2013) Um homem vai passar uma temporada no apartamento emprestado por uma amiga, que está em Paris. O impecável do apartamento é logo descrito nas primeiras linhas: “ali, os almofadões verdes; neste exato lugar da mesinha, o cinzeiro de cristal, sempre um perfume, sempre um crescer de plantas, ritual de bandejas com chá e pinças de açúcar. Tirar essa tacinha do lugar altera o jogo de relações de toda a casa.” Sente-se, de antemão, que a ordem meticulosa do apartamento aflige o homem, que, em seguida, revela seu problema. Ele vomita coelhinhos. Quando está em sua casa, consegue controlá-los. Mas ali, na residência da amiga, ali onde a ordem minuciosa impera, ele não sabe o que pode acontecer. Os coelhinhos vomitados não estarão em seu ambiente natural. Quem sabe os roedores não acabarão por destruir a bela moradia? O Fed vomita coelhinhos. Coelhinhos que deixam os mercados ansiosos, pois não sabem quando os roedores começarão a atacar as compras mensais de títulos do governo. A ata cifrada divulgada na semana passada, cheia de circunlóquios, não deu muitas pistas. Discorreu sobre a melhora dos indicadores, mas advertiu sobre a falta de solidez do mercado de trabalho e o baixo nível da inflação. O núcleo do PCE, o Personal Consumption Expenditures, o índice de preços que o Fed acompanha mais de perto, acumula uma variação de menos de 1% nos últimos doze meses. De acordo com o documento divulgado, os dirigentes do Banco Central americano teceram considerações sobre isso, além de discutir diferentes opções para que os estímulos monetários continuem a sustentar a economia, ainda que as compras mensais sejam reduzidas. Uma dessas maneiras seria iniciar o tapering junto com uma diminuição da taxa que hoje remunera os depósitos livres que os bancos detêm no Fed. Essa taxa, que era nula antes de dezembro de 2008, está, hoje, em 0,25%. Presume-se que, se voltar a ser nula, os bancos terão o incentivo de retirar esse dinheiro “represado” e usá-lo para empréstimos, aumentando a oferta de moeda e/ou diminuindo os efeitos do tapering sobre a extensão dos estímulos monetários. Os coelhinhos da ata vieram acompanhados dos coelhinhos vomitados pelos membros do Fed em discursos individuais proferidos na última semana. James Bullard, o Presidente do Fed de St. Louis com um pendor para o evasivo, disse que “o tapering está na mesa, mas vai depender dos dados. Um bom resultado para o mercado de trabalho, pode antecipá-lo”. Bernanke foi um pouco mais comedido: “se a melhora da economia continuar, o tapering pode começar”—atenção ao verbo empregado. Por fim, Charles Plosser, Presidente do Fed da Philadelphia para quem o Fed está marcando passo há tempos, declarou: “acredito que o mercado de trabalho melhorou e que temos de iniciar a redução das compras de títulos”. Mas, é bom não se empolgar muito com os coelhinhos, pois a sucessora de Bernanke ainda pode recolhê-los rapidamente. Em suas audiências no Senado, Janet Yellen disse que a economia ainda está demasiado frágil e que todo cuidado com o timing do tapering é pouco. No Brasil, vomita-se coelhinhos à vontade. A Presidente Dilma, em vez de comemorar o êxito dos leilões dos aeroportos, preferiu proclamar que os pessimistas teriam “um dia de amargura”. A falta de compreensão das críticas que recebe – afinal, quem não quer um aeroporto privatizado e decente? – e a exaltação do clima inóspito que se instaurou não ajudam a dissipar os vapores tóxicos que se adensam no País, provenientes de todos os lados. Do lado fiscal, prendeu-se um coelhinho – a mudança retroativa dos indexadores das dívidas estaduais e municipais – para soltar outro: o afrouxamento da Lei de Diretrizes Orçamentárias para que se possa excluir do cálculo do superávit primário o resultado fiscal dos estados e municípios, facilitando a obtenção da meta desacreditada. O alento de curto prazo é que o coelhinho inflacionário também está mais bem comportado do que se imaginava, o que deve permitir o ansiado ajuste dos preços dos combustíveis até o fim do ano. No conto de Cortázar, o homem que vomita coelhinhos passa a vomitá-los com uma frequência avassaladora no apartamento da amiga. Por sorte, encontra um grande armário onde pode escondê-los durante o dia para que a governanta que cuida da casa não os descubra. De noite, entretanto, é obrigado a soltá-los. Pouco a pouco, o apartamento meticulosamente arrumado vai sendo destruído, os pés das mesas roídos, os livros estraçalhados. Não sobra ao homem outra alternativa que a de escrever para a amiga em Paris. Na carta, ele explica a situação, porém sublinha, sempre, que tem como provar que não é ele o responsável pela destruição irremediável do outrora imaculado apartamento... Soa familiar?