vidaReal : g in t a E e g in B distúrbio r a t n e m i l a o d a l f u m ca 58 58 Cosmopolitan abril 2014 31-03-2014 10:08:52 É um distúrbio alimentar ainda desconhecido, mas que pode trazer graves problemas à saúde física e mental. Aprende a identificar os sintomas do binge eating e sabe como combater a doença Por Catarina Cruz “Não me lembro de alguma vez me ter sentido bem com o meu corpo. Quando era pequena, a minha avó tinha uma gaveta com doces. Era o ‘cofre secreto’, onde podia ir sempre que achasse que me tinha portado bem. O facto de ter passado tanto tempo com ela fez com que ganhasse hábitos alimentares pouco saudáveis. Entre batatas fritas, hambúrgueres e doces, fui crescendo gordinha, mas bonitinha. Felizmente, nunca fui gozada por nenhum colega e tinha muitos amigos. Com 18 anos, entrei para a faculdade e fui viver sozinha. Não tinha horários regrados e a cozinha estava por minha conta. Engordei 10kg nos três primeiros meses. Durante a manhã estava na faculdade e o resto do dia era passado a comer e a chorar. Foi então que começaram os primeiros episódios de ingestão compulsiva. No espaço de uma hora era capaz de comer uma caixa de cereais com leite, um pacote de bolachas, bolos e gomas. Estava constantemente a petiscar durante a tarde e quando dava conta, tudo tinha desaparecido. Olhava para as embalagens vazias e assustava-me. Deitava o lixo fora rapidamente, porque não queria deixar ‘provas do crime’. À frente das outras pessoas comia pouco, porque realmente às refeições sempre tive pouco apetite. Usava a roupa para disfarçar as gordurinhas extra e recusava vários convites para programas por vergonha de me expor. Conclusão: sentia-me triste e culpada pelas justificações inventadas, o que me levava a comer mais, para depois me sentir ainda pior. Perdi alguns amigos que se cansaram das desculpas esfarrapadas. Não sabia que nome dar ao que me estava a acontecer. Achava Comecei a identificar-me com um viciado, mas em vez de drogas ou álcool, eu era viciada em açúcar simplesmente que era gulosa e fraca, mas sentia que era algo mais forte do que eu. Comecei a identificar-me com um viciado, mas em vez de drogas ou álcool, eu era viciada em açúcar. Cheguei a ir à estação de serviço mais próxima à 1h da manhã, para comprar chocolates e bolachas. Por vezes, ia a três pastelarias diferentes para comer um bolo, para não passar vergonha de comer três numa só. Cheguei a simular telefonemas a perguntar quantos bolos queriam que levasse para o lanche, mas na verdade era tudo para mim. Toda aquela comida era a minha fiel companheira, mas o conforto que me dava e a companhia que me fazia saíam-me caros. A angústia era imensa e assim que comia mais um doce tudo melhorava. Era como se ficasse anestesiada e a pairar sobre mim mesma. Quando passava o efeito, a culpa e o mal-estar eram tão grandes que me levavam a mais uma dose de doce anestesia. Com 20 anos, iniciei uma psicoterapia que durou dois anos. Nunca falámos diretamente sobre os problemas com a comida, mas trabalhámos a minha segurança, a relação com o corpo, a capacidade de dizer ‘não’ e a relação com a família. Aos 21 ou 22 anos, desabafei, pela primeira vez, com uma amiga. Nessa altura comecei a namorar e isso também ajudou a sentir-me mais segura. Hoje, com 32 anos, tenho um peso normal e cuido da minha alimentação. Se já fiz as pazes com o espelho? Tem dias... Se tenho uma relação totalmente saudável com a comida? Não. Em momentos de maior stress e ansiedade surgem sempre os doces como escape. Tenho procurado conhecer-me mais e ser a minha melhor amiga. No ano passado integrei um grupo terapêutico de comportamento alimentar na Oficina de Psicologia e foi muito útil. Esclareceram-me sobre algumas questões que ainda não estavam claras e percebi que regular e aceitar as minhas emoções é essencial. Foi especialmente inspirador ver diferentes pessoas na mesma sala, com ideias e pesos distintos, mas com o mesmo problema: a comida. Desabafar com o meu companheiro é fundamental; recorrer a amigas que sabem do problema também é importante. Se eu consegui, qualquer pessoa consegue! É um desafio e a cada etapa existem novos obstáculos e tentações, mas estou decidida a ultrapassá-los e a ser feliz nesta jornada.” “Andreia”, 32 anos abril 2014 Cosmopolitan 59 59 31-03-2014 10:08:55 e mostrem uma preocupação extrema com o corpo e a condição física. Cerca de 78,9 por cento dos binge eaters têm outro diagnóstico associado ao transtorno alimentar, como depressão, transtorno bipolar ou de ansiedade. Quem sofre de ataques de pânico tem mais tendência para desenvolver binge eating, como forma de aliviar a ansiedade. “A dificuldade em identificar e gerir emoções e em lidar com alterações de humor, uma baixa tolerância ao desconforto e frustração, e Carateriza-se por ser um uma alimentação rica em açúcares e gorduras, distúrbio alimentar em que que provoca uma maior instabilidade dos são consumidas quantidades excessivas níveis de açúcar no sangue” são os fatores que de alimentos, seguindo-se uma sensação podem conduzir a este distúrbio alimentar. de perda de controlo sobre a quantidade Podem não existir sintomas físicos ou sinais ingerida. É um comportamento que se óbvios, e os binge eaters tanto podem sofrer repete várias vezes durante o dia e, em de excesso de peso e obesidade, como podem alguns casos, em segredo. Para que ter um peso considerado normal. Existe ninguém se aperceba, os binge eaters igualmente a possibilidade de perda e ganho têm o hábito de esconder alimentos, de peso, de forma repetida. Este que são consumidos mais tarde, transtorno de compulsão durante a noite ou numa alimentar tem, geralmente, parte do dia em que se início no começo da vida encontrem sozinhos. adulta. “A idade média Filipa Jardim da Silva, cerca de 0,7% a 4% de início são os 25 anos. psicóloga clínica na Quando se pesquisa a da população tem história Oficina de Psicologia, de vida da pessoa um quadro de explica que “estes percebe-se que a comida episódios tendem a ser binge eating” ganhou outros significados, desencadeados devido a para além do nutricional, ao alterações de humor, tensões longo do seu crescimento, ou emocionais ou problemas diários, descobrem-se padrões alimentares com funcionando a ingestão de comida como alterações (pais excessivamente rigorosos que um método para regular emoções.” Resistir proibiam todos os doces, excesso de preocuà tentação é um verdadeiro desafio, pois pação com o ganho de peso, comida como é na comida que encontram o conforto elo de ligação emocional da família, festejos necessário para lidar com determinadas e reforços familiares feitos através do uso situações. Se um binge eater se sente de comida, entre outros fatores”, esclarece desconfortável em relação à sua aparência Filipa Jardim da Silva. física, irá refugiar-se na comida. É um ciclo vicioso: comem para se sentir melhor, mas sentem-se ainda pior por terem cedido à tentação, e voltam a procurar novamente a comida como um escape. Um episódio os critérios diagnósticos, Avaliar de binge eating pode durar “cerca de duas a psicoterapia assume-se eficazmente horas, mas podemos observar ingestão de como a intervenção mais o quadro clínico do comida durante todo o dia (um petiscar eficaz, com vista a paciente é o primeiro constante). Uma pessoa com compulsão adquirir-se estratégias passo para que o alimentar tende a comer mesmo quando não de regulação emocional tratamento seja eficaz. tem fome física ou até depois de estar cheia”, e uma maior tolerância “Tratando-se de um ao desconforto e à avança a especialista. Na maior parte dos quadro de binge eating frustração, bem como casos, esta compulsão alimentar é acompaou de uma situação com potenciar a autoestima e nhada por sentimentos de angústia, revolta, comportamentos típicos relação com o corpo com de binge eating, ainda vergonha, culpa e solidão. É também o objetivo de se alterar o que sem cumprir todos frequente que os binge eaters tenham baixa O que é o binge eating? “em portugal Tratamentos indicados comportamento alimentar”, diz a especialista. Um acompanhamento nutricional é também uma mais-valia, de forma a controlar a alimentação, enquanto o acompanhamento psiquiátrico pode revelar-se essencial em pacientes com estados depressivos ou ansiosos graves. autoestima, atravessem estados depressivos 60 60 Cosmopolitan abril 2014 31-03-2014 10:09:04 Sintomas de binge eating Alimentação compulsiva (incapacidade de parar de comer ou de controlar o que se come). Rápida ingestão de grandes quantidades de comida. Comer de forma exagerada às escondidas dos outros e sem sentir fome. Esconder comida para comer mais tarde. Refeições sem horário e desregradas. 2 Consequências físicas Excesso de peso/obesidade ou alterações constantes de peso (efeito iô-iô). Sentimentos de culpa e angústia. Colesterol e pressão arterial elevados. Problemas respiratórios, renais, ósseos e de pele. Menstruação irregular. Estratégias para vencer a doença Faz uma autoanálise e tenta perceber o funcionamento do padrão alimentar, para o conseguires quebrar. Comes de quantas em quantas horas? Em que momentos do dia sentes mais vontade do que necessidade de comer? Utiliza uma escala de fome (de 0 a 10) para detetar a fome emocional. Deverás preencher esta escala sempre que sentires apetite, para que possas fazer uma escolha mais consciente do que vais consumir e da quantidade que vais ingerir. Evita tentações alimentares. É importante pensar que um ataque de gula não passa de um pensamento intenso: “Eu sou muito mais do que um pensamento, por mais forte que ele seja” Combate os pensamentos relacionados com comida, praticando atividades. Come sentada, mastiga devagar e estimula todos os sentidos (saborear, olhar, cheirar e tocar). Estabelece um esquema de refeições para que não estejas muito tempo sem comer, evitando a fome descontrolada. Tem sempre contigo snacks ligeiros e saudáveis, como alguns frutos secos. Procura ajuda junto de especialistas. Elabora um diário alimentar. Conselhos da especialista É importante saber como agir se nos depararmos com uma situação de binge eating. Reconheces os sintomas em ti ou numa amiga? Segue 3Consequências psicológicas Sensação de perda de controlo. Desânimo, frustração, desespero. Isolamento social, vergonha dos outros. Baixa autoestima, mal-estar. Inatividade. Culpa, autocrítica. 4 Prepara-te para a consulta Escreve os sintomas que tens tido. Escreve informação pessoal que aches relevante. Anota o nome dos medicamentos que estás a tomar. Escreve as perguntas que queres colocar. Pede a um familiar ou amiga que te acompanhem, para que te sintas confortável e segura. os conselhos da psicóloga Filipa Jardim da Silva e age de forma sensata. “Não utilizes a comida como estratégia de conforto. Muitas vezes, quando pensamos em diversão, relaxamento e convívio, pensamos automaticamente em restaurantes. Em vez de convidarmos uma amiga para almoçar ou jantar fora, podemos convidá-la para passear à beira mar ou para um passeio de bicicleta. Por outro lado, quando vemos uma amiga a oscilar de peso constantemente ou a aumentar progressivamente, podemos abordá-la e procurar compreender o que se está a passar. É importante não fazer de conta que não vemos nada ou nos perdermos nos clichés de ‘Gosto de ti com 50 ou 100kg’ ou ‘Os outros têm de gostar de ti pelo que és e não por aquilo que aparentas’. Ninguém que não se sinta bem com a sua imagem está bem. Também ajuda se, entre amigos, se falar mais sobre o que sentimos e menos sobre factos”, diz a especialista. Fotos: Gustavo arrais; fotolia 1Sinais Se tens uma história de vida que queiras partilhar connosco, escreve-nos para [email protected] 61 31-03-2014 10:09:06