VOTO NO BRASIL: INSTRUMENTO DA DEMOCRACIA E DA DEMAGOGIA João Romano da Silva Junior1 Resumo: O presente artigo tem por escopo trazer à baila o instituto do voto, não sob um prisma puramente técnico-jurídico, mas antes, por um enfoque em que repousam as nuances entre sua previsão constitucional, sua importância como instrumento de representatividade e de soberania popular, e de outra banda, contrastá-lo despido desse tecnicismo que o cinge, enfrentando-o como um tema que oculta problemas sociais, e que por isso mesmo, pode ser utilizado como mero discurso, perigoso e cheio de armadilhas, capaz de degenerar o sentido de democracia, transmudando-o para demagogia. Palavras-chave: sufrágio, voto, cidadania, democracia, demagogia. 1. INTRODUÇÃO À primeira vista, com supedâneo na Constituição Federal de 1988, soerguida com o dístico de “constituição cidadã”, o direito ao voto, se analisado divorciado do contexto histórico brasileiro que o permeia, representa um perigoso embuste. O poder constituinte originário guindou o voto como um dos pilares intocáveis da nossa República, não podendo o poder constituinte derivado nele bulir, nem por emenda constitucional, é o que se chama de núcleo imodificável ou cláusula pétrea da Constituição Federal. 1 Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR, Mestrando do Programa de Pós-graduação em Política Social na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT; Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura, Maringá-PR, Especializando em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso; Delegado de Polícia – PJC/MT, E-mail [email protected] ; http://lattes.cnpq.br/5398007204212243 . Quadra gizar que não é o substantivo voto propriamente dito que é intocável, mas seus adjetivos “direto”, “secreto”, “universal” e “periódico”.2 Assim, é força concluir que havendo outro epíteto amoldável ao substantivo voto, exsurgirá uma possibilidade de mudança, por exemplo, no que tange a ser ele “obrigatório” ou “facultativo”. Aliás, no esteio dessa antítese meio barroca, o voto no Brasil constitui-se em um direito ou em um dever? Colimando trazer algumas pistas para essa indagação, ainda que sem a pretensão de estancar a discussão que grassa no meio técnico, privilegiar-se-á os argumentos de caráter mais históricos. Como ponto de partida se socorrerá da obra do Professor José Murilo de Carvalho, “Cidadania no Brasil: O Longo Caminho”. Tendo o Brasil adotado o modelo de Estado Democrático de Direito, afirmou-se como Estado que se não submete simplesmente à lei de modo mecânico e formal, mas o faz espraiado em um ideal de igualdade, mirando um compromisso social. E a democracia é o móvel de toda a engrenagem engendrada para se chegar aos fins pretendidos pelo Estado, tendo em vista que está jungida em seu bojo a participação de todos para a consecução dos objetivos insertos no documento legal máximo que é a Constituição Federal. Aludida participação é oferecida aos cidadãos, por meio do sufrágio universal, tendo como meio mais comum de exercê-lo, pelo voto, expressando desta forma a soberania popular, sendo o povo o legítimo detentor do poder. A construção teórica nos seduz e por vezes esquecemos-nos de cotejá-la com a realidade fática e histórica. Mas se fizermos esse exercício nossa visão se desobinubila e surgem pálios de luz que nos permitem assumir uma postura mais crítica e menos pueril. Mesmo tendo por premissa que a igualdade num Estado capitalista é uma utopia, uma contradição insuperável, e mesmo no Estado Social de Direito, é inatingível em sua plenitude, não se pode perder de vista a busca pela redução da 2 Art. 60,§ 4º, inciso II, CF. desigualdade social, que é exatamente o que propala a Constituição Federal, fundada no Estado Democrático de Direito. Ocorre que essa tentativa é sempre entremeada por forte apelo populista, seja deturpando a disposição dos direitos sociais, sobretudo nos períodos autoritários por nós já experimentados, seja pela garantia dos direitos políticos como arremedo de direitos fundamentais, como acontecido nas nossas malsinadas ditaduras civil e militar ou mesmo nos governos dito democráticos, indiferentes muitas vezes à necessidade de reformas políticas e sociais, máxime da educação. O que se pretende, destarte, ainda que sem um aprofundamento de maior envergadura, tendo em vista que a modalidade do trabalho não permite, é discutir o voto dentro do contexto democrático atual, mas fundado em períodos passados, lançando-se mão de um recorte e uma ligeira incursão histórica, pinçando dentre os vários momentos históricos aqueles mais afetos aos primórdios do voto no Brasil, e os que oferecem algumas circunstâncias idôneas a explicar os motivos que podem levar o instituto do voto a ser usado como discurso de manutenção de poder. 2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO VOTO NO BRASIL: MENOS DEMOCRACIA, MAIS DEMAGOGIA Um escorço histórico é sempre útil, traz uma coloração mais viva para o pano de fundo que se presta a pontuar, localizar e contextualizar o tema. Soa quase desnecessário anotar que não há como se falar em sufrágio e em voto sem que esteja inserta a noção de nacionalidade e cidadania. E não é novidade que nossa colonização foi a que se convencionou chamar de “exploração”, em oposição à outra forma que vigeu, a de “povoamento”. Engraçado como esse termo “exploração” tornou-se uma espécie de estigma para as nações que estiveram sujeitas às suas regras. Nesse diapasão, observa-se que durante todo o período colonial, inexistiu um sentido mais claro de nacionalidade, havendo sim, em alguns locais pontuais, certo regionalismo. A grande massa sempre esteve apartada das decisões políticas, o que autoriza asseverar que não foi regida sob a batuta dos direitos civis e políticos. Nesse tanto, registre-se que pouquíssimos estavam inseridos em um contexto de direitos civis e políticos, referenciando aqui, que os direitos sociais inexistiam, tendo em vista que a assistência social era provida pela Igreja e por particulares. As insurreições soerguidas no período colonial eram, sobretudo, revoltas de escravos, e bem assim conflitos de setores da classe dominante. Destaca-se a Revolta dos Alfaiates, ocorrida em 1798, na Bahia, que era composta por militares de baixa patente, artesãos e escravos, e foi influenciada pelo ideário da Revolução Francesa. De toda sorte, não tinha caráter político definido, era uma insurgência de natureza social e racial, tendo por mote a própria escravidão, mas sua importância está no fato de ter sido o movimento mais popular do período. Aqui, ouso a entender que se encontram os argumentos mais indisfarçáveis para as mazelas sociais brasileiras, incluindo o não pleno exercício da cidadania civil, que advieram dos tempos coloniais, e se arrastam até os dias hodiernos: a escravidão, com todos os seus reflexos, a grande propriedade rural e a mistura da coisa pública com o privado. De um lado, a escravidão, pois se constituía em negar a condição humana dos negros, e de outra ponta, a propriedade rural, que parecia mais feudos, e estava blindada à ação legal, e o privado passeando livremente na seara pública, agindo como seu legítimo dono. Findo o período colonial, advém o Brasil Monárquico, ante a independência proclamada em 1822. O Brasil padeceu de uma não participação popular efetiva, podendo-se afirmar que a transição se deu de forma quase que pacífica, com alguns pequenos levantes aqui e acolá. Nada comparado a outros movimentos de libertação de outras nações da América Latina, com o aparecimento de grandes vultos que se notabilizaram por um espírito patriótico. Na verdade, no Brasil, a independência foi negociada, obra de uma diplomacia da elite nacional e a coroa portuguesa. Só para destacar um fato que corrobora isso, o principal mediador foi José Bonifácio, que integrava a alta burocracia portuguesa. Ademais, nosso primeiro imperador, era, simplesmente, o filho do rei de Portugal. No contexto internacional, Portugal só aceitou a independência brasileira após ser indenizada no montante de 2 milhões de libras esterlinas. Não se sabe a que pretexto Portugal foi indenizado, já que praticou na excolônia verdadeira pilhagem. É o que Rosa Luxemburgo, citada por David Harvey, denominou de “acumulação por desapossamento”, em oposição à “acumulação ampliada”: “Um diz respeito ao mercado de mercadorias e ao lugar onde o valor excedente é produzido – a fábrica, a mina, propriedade agrícola. Considerada sob esta luz, a acumulação é um processo puramente econômico, cuja fase mais importante se realiza entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados (...) Aqui, na forma de qualquer valor, paz, propriedade e igualdade prevalecem, e a apurada dialética da análise científica é requisitada para revelar como o direito de propriedade se converte no curso da acumulação em apropriação de propriedade alheias, como a troca de mercadorias se transforma em exploração e a igualdade torna-se domínio de classe. O Outro aspecto da acumulação de capital diz respeito às relações entre capitalismo e formas de produção não capitalistas, que se desenvolvem no cenário internacional. Seus métodos predominantes são a „polícia colonial‟, um sistema de empréstimos internacional – política de interesses privados – e a guerra. Violência, fraude, opressão, roubo são abertamente revelados sem nenhum esforço para descobrir no meio desta confusão de políticas de violência e disputas de poder as severas leis do processo econômico”. (HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004). Harvey, sintetizando o entendimento acerca de acumulação por desapossamento, muito utilizada no imperialismo europeu, classificou-a de “roubo”. Não é forçoso afirmar que com a independência ocorrida de forma pacífica, houve uma continuidade nas relações sociais de outrora. Em que pese nossa primeira Constituição, outorgada em 1824, ter caráter bastante liberal para a época, um ponto nebuloso e triste da nossa história não foi tocado, a escravidão, o que por si só, inibiu o avanço dos direitos políticos. Com o constitucionalismo, havia a necessidade premente de legitimar um governo representativo, lastreado no voto e na separação dos poderes. A Constituição estabeleceu os parâmetros políticos, isto é, quem teria o direito de votar e ser votado, às mulheres não foram estendidos esse direito, e os escravos, por óbvio, sequer eram considerados cidadãos (em verdade não eram considerados nem seres humanos). A Constituição contemplou pessoas sem um mínimo de instrução escolar, a maioria era analfabeta, inclusive muitos proprietários rurais, à categoria de cidadãos. Desta forma, esse “cidadão”, já nasceu com a vontade viciada, maculando o espírito da propalada soberania popular. A maior parte vivia na área rural, sob a égide dos senhores de terra, e dos que viviam na cidade, muitos eram funcionários públicos, e desta forma, adstritos à vontade do governante. Nesse cenário o que interessava era o domínio político local, não havendo por parte dos eleitos uma consciência do significado do voto, mas ele era importante para a classe dominante. Data desta época o cenário de fraudes e violência, a contar que no início a eleição era por aclamação, vencida literalmente no grito, havendo figuras que existiam sob um único pretexto, burlar as eleições. O voto era sim, uma mercadoria, era ostensivamente negociado, barganhado, já que não se podia confiar apenas na fidelidade do cidadão. Desta forma, os políticos além da compra, tomavam medidas mais extremas para garantir a subserviência do votante. Aí está a origem de expressões como “curral eleitoral”, “voto de cabresto”, “eleições a bico de pena”, entre outras, que demonstram que o voto era antes, um ato de fidelidade ao poder local, de obediência imposta, mas desalijado de qualquer sentido de participação consciente. Atualmente, embora o Brasil seja reconhecido pela agilidade de suas eleições, modelo no aspecto da informatização, considerada à prova de fraude, impende asseverar que, o voto continua a ser barganhado, uma moeda de troca, subsistem os currais eleitorais, voto de cabresto, e políticos coronéis existem aos montes. Continuamos a padecer de uma educação deficiente e indigna, e de uma desigualdade social gritante, e nesse contexto, fundado sobre essa base, o voto permanece sendo utilizado para a manutenção do poder, uma forma de forjar uma legitimidade que se analisada mais a fundo, não se sustenta. 3. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: A NÃO EFETIVIDADE COMO PERIGO DE SER MERA CARTA DE INTENÇÕES E DE CONVENIÊNCIAS Nossa Constituição Federal de 1988 traz como fundamento da República Federativa do Brasil, a cidadania3. Diz ainda textualmente que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 4 E essa soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto5, sendo que este será obrigatório para os maiores de dezoito anos e facultativo para os analfabetos, os maiores de setenta anos e os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. 6 Ora, de pronto se destaca que o tema aludido está inserto na Constituição Federal sob a epígrafe “Dos Direitos Políticos”. É força concluir assim que o voto parece se afigurar em um direito, mas há controvérsia nesse particular. Entendido como direito, surge uma incômoda contradição, ou seja, a possibilidade que se abre de se exercer um direito de forma obrigatória. 3 Art. 1, inciso II, CF. Art. 1º, parágrafo único, CF. 5 Art. 14, caput, CF. 6 Art. 14, § 1º, incisos I e II, alíneas “a”, “b” e “c”, CF. 4 O direito constitui-se em uma faculdade, uma liberalidade de exercê-lo ou não, e assim, seria então direito nas hipóteses de mera faculdade, e dever, de outra banda, na hipótese de obrigatoriedade, Há que se referenciar, que para os que entendem ser o voto um direito, em qualquer circunstância, causa estranheza o fato de ser tão sancionado caso dele não se disponha. Se houver ausência do eleitor em três turnos eleitorais consecutivos, há aplicação de multa, e o eleitor fica impedido de participar de concurso público, de tirar identidade, passaporte etc. Desta forma, o voto tem um caráter híbrido e anômalo, é um misto de dever e de direito, mas o que se busca aqui, com efeito, não são mesmo as miudezas jurídicas, mas antes, algo que antecede o próprio poder constituinte originário. O que se pretende é desvelar o papel que foi reservado a quem irá exercer o dever ou o direito de voto. Antes é preciso avançar um pouco mais nos argumentos, por ora, dentro do contexto da Constituição Federal de 1988, há que serem abordados alguns temas correlatos. Oportuno então lançar mão da base fundante da ordem constitucional do Estado brasileiro, o art. 1º da Constituição Federal, que assim estatui: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos...”. O dispositivo traz em sua essência muitas minúcias de ordem técnica, mas o que se frisa, por pertinente, é o fragmento “Estado Democrático de Direito”. Em apertada síntese, tem-se que no Estado Democrático de Direito há um compromisso com a transformação da realidade, buscando a efetiva concretização da igualdade. Nesse esteio, tem em mira uma preocupação social. Para ilustrar o que se está argumentando, vale citar o entendimento de Lênio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Moraes: “O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade, apropriando-se do caráter incerto da democracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade, onde a questão da democracia contém e implica, necessariamente, a solução do problema das condições materiais de existência.” (STRECK, Lênio Luiz e outro. Ciência Política e Teoria do Estado. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. pp. 97 e 98). Denota-se que todo o arcabouço jurídico-constitucional que nos rege foi assentado sobre um sólido terreno que privilegia o povo. Da mesma forma que Aristóteles havia sentenciado que democracia é “o governo do povo e pelo o povo”, e Abraham Lincoln arrematado que é “governo do povo, pelo o povo e para povo”, nosso constituinte originário lançou mão desse ideário. Isso se visualiza hialinamente no dispositivo que assegura: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 7 Aqui, novamente nos deparamos com um ponto altamente sensível, tendo em vista que se apregoa a soberania popular. Nossa democracia é a que se denomina de semidireta ou representativa, tendo em vista que há institutos que permitem que os cidadãos exerçam a decantada democracia de forma indireta, isto é, por meio de eleições, ou ele mesmo decida por meio de referendo ou plebiscito, havendo também o instituto da iniciativa popular. Deste modo, sob o ponto de vista constitucional, em seu aspecto formal, o povo detém a soberania em última instância, e o faz lastreado no sufrágio universal, que se afigura no direito público, subjetivo e irrestrito (salvo exceções, por exemplo, os conscritos), de participar do processo eleitoral, e no voto, que grosso modo é exercício do sufrágio. Dentro das gerações do direito, esse capítulo faz parte, junto com os direitos civis, da primeira geração ou dimensão dos direitos. 7 Art. 1º, parágrafo único, CF. Mas no Brasil, é força admitir que muitos direitos e garantias se encontram etéreos, dormindo a em estado letárgico do formalismo. O que implica desconsideração da dignidade da pessoa humana, atributo inafastável do ser humano, e que os direitos fundamentais se encarregam de dar suporte. Muitos dos direitos apregoados não são cumpridos de maneira satisfatória, citando-se alguns deles como saneamento básico, saúde, moradia etc., e que por isso a cidadania fica comprometida, e por corolário, esvazia a força da democracia, pois essa deve ser exercida por cidadãos plenos para que se atinja o escopo precípuo da participação e representação conscientes que reclama a soberania popular. Diante disso, oportuno colacionar o entendimento de Ferdinand Lassalle, quando em sua obra “A Essência da Constituição”, asseverou: “Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder, a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar”. (LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1985). Lassalle discorre acerca de uma situação ocorrida na época, em que os fatores reais de poder, dissimuladamente, agiram por meio da legalidade, ou seja, da constituição escrita, ou da “folha de papel”, termo que ele utilizou para ilustrar seu raciocínio. 8 Em que pese os avanços na área eleitoral brasileira, não se pode tomar isso, sem fazer uma devida análise, pois participação maciça no pleito eleitoral e ausência de fraudes, por si só, não têm o condão de fazer loas à democracia. Nossa Constituição, em muitos momentos é uma carta de intenções, o que se denomina de programática, e ela própria, textualmente, reconhece as disparidades sociais, só a título de exemplo, já no seu art. 3º, assevera que um dos seus objetivos fundamentais é: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. 8 Alusão à frase de Frederico Guilherme IV que teria dito: “Julgo-me obrigado a fazer agora solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita, como se fosse uma segunda Providência.” Não é o objetivo aqui teorizar acerca das causas das desigualdades e a marginalização, embora possa lançar como postulado que existam em grande parte em função de uma herança colonial escravista e latifundiária. Quanto às desigualdades que o Estado se propõe a reduzir, e não ousou afirmar que irá aqui nesse ponto também erradicar, muito se deve, de igual forma, pela mesma herança a pouco citada. Houve ao longo dos anos inversão ou mesmo deturpação dos direitos fundamentais, e em muitos casos, como nos períodos ditatoriais, fortalecimento somente de uma das espécies, como no caso dos direitos sociais, uma apelo populista capaz de alienar o povo, enfraquecendo os direitos políticos, visando ao não questionamento dos desmandos. Com isso, temos que é importante a garantia dos direitos na Constituição, e a nossa Carta Magna de 88 trouxe significativo avanço, foi a primeira no Brasil que colocou no corpo constitucional os direitos fundamentais antes da organização do Estado. Contudo, soa demagogia expressar tantas garantias e direitos sem que os seus destinatários estejam aptos a exercê-los, basta se atentar para o fato de que temos uma taxa absurda de analfabetismo e pobreza. Fora a falta de instrumentos e mecanismos capazes de operacionalizar a estrutura de garantias constitucionais. Se em centros mais desenvolvidos isso se constitui em prato cheio para políticos inescrupulosos, que dirá dos distantes rincões em que ainda impera o domínio dos “coronéis”. Aristóteles quando formulava suas teses acerca das formas puras e impuras de governo, versava que a democracia seria sua forma pura, enquanto a demagogia sua degeneração. Dessa forma, afigura-se meio demagógico não providenciar os meios disponíveis para preparar o cidadão para participar de forma efetiva nos rumos de sua nação. Ficamos com a sensação que de fato temos o poder de transformar nossa realidade por meio do voto, mas se este continua a ser uma moeda de troca, sem a consciência da maioria que o anima, a democracia se torna mero discurso de poder e de perpetuação desse poder. 4. AS MASSAS NA DEMOCRACIA BRASILEIRA Retomando o argumento acerca do papel destinado a quem exerce a soberania popular, isto é, o povo, cumpre, nesse momento, entendê-lo como “massa”. Um dos elementos do Estado é exatamente o povo, definido desta forma por Dalmo de Abreu Dallari: “Deve-se compreender como povo o conjunto dos indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do Poder Soberano.” (DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, 19 ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1995). No entendimento de povo não se faz distinção de classes, e assim, povo somos todos nós brasileiros, natos ou naturalizados, independentemente de nossa posição social, crenças e convicções políticas ou filosóficas, se detentores do capital ou só da força de trabalho. A injustiça social, em maior ou menor grau, cria uma espécie de deformação nesse componente humano, mais perceptível em países de extremos, como é o caso do Brasil, surgindo assim o que muitos teóricos denominam de “massa”. No contexto do capitalismo, a questão social, entendida sem aprofundamento teórico, como a contradição e o embate entre o capital e o trabalho, gera uma classe dominante e uma classe de dominados. A massa é o resultado da exploração impingida por uma classe sobre a outra, e a classe que dita essa dinâmica é conhecida como o que se convencionou denominar de “elite”. A existência das massas é essencial para que a elite continue a desfrutar de todas as regalias e privilégios a ela inerentes dentro de um modelo de Estado preconcebido para esse fim, resquício do Estado liberal burguês. Isso porque as massas não têm cor, não têm forma nem identidade, e nesse passo, podem ser manipuladas. De toda sorte, não se deve desprezar o poder da massa, tendo em vista que ela é imprevisível, como bem frisa o festejado professor Paulo Bonavides: “Esta atua subitamente nas comoções revolucionárias, nas imensas convulsões sociais. Tem a instantaneidade de um raio nas ocasiões de crise. E aí se distingue da massa adormecida, passiva, que toda sociedade moderna conhece”. (BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social, 8ªed., São Paulo: Malheiros, 2007, p.198). O mesmo autor, na mesma obra, aduz que as massas sempre foram hostilizadas e menoscabadas em sua capacidade de autodeterminação, e que os grandes clássicos da Reação “trataram as massas quase invariavelmente com desmesurado desprezo, indissimulável desconfiança e amargo pessimismo”. (BONAVIDES, op.cit. p.192). A importância histórica das massas é visualizada quando no conflito entre o capital e o trabalho, o proletariado aviltado pela classe dominante exploradora, conseguiu ascender ao poder, mormente o legislativo, emergindo o quarto estado. Isso foi possível com a crise do velho liberalismo, que já não tinha mais condições de resolver os problemas sociais e econômicos criados no seio de um sistema que escorchava a classe operária que a sustentava. O discurso liberal pautado na liberdade, mas na liberdade restrita, destinada apenas aos figurões que deixavam do lado de fora do banquete uma gama de desapossados, excluídos, uma massa de anônimos marginalizados, deu azo a reações. Nesse passo, a extensão da liberdade política, por meio do sufrágio universal foi um imperativo que os liberais não puderam negar, e não foi concedido senão depois de muito embate, constituindo-se assim numa conquista sem precedentes, inclusive para a superação do liberalismo e o surgimento do Estado Social. É dessa forma que descreve BONAVIDES: “Ali no campo de batalha social, os individualistas ferrenhos e privilegiados da velha burguesia capitalista tiveram que depor a arma mais poderosa de sua convicção política - o sufrágio censitário. Ao arrebatar o sufrágio universal, o quarto estado ingressava, de fato, na democracia política, e o liberalismo, por sua vez, dava mais um passo para o desaparecimento, numa decadência que deixou de ser apenas doutrinária para se converter, então, em decadência efetiva, com a plena ingerência do Estado na ordem econômica”. (op. cit., p 188-189). A Inglaterra possui sólido exemplo da conquista do quarto estado na figura do emblemático e fortíssimo Partido Trabalhista inglês, que na sua gênese, efetivamente é constituído de pessoas que saíram da classe trabalhadora, e agora investido em um mando eletivo a representa. Trazendo esse mesmo argumento para a realidade dos países tidos por subdesenvolvidos, entre eles o Brasil, que, com efeito, é o alvo do que se sustenta neste trabalho, não há essa mesma representatividade. Na nossa democracia, conhecida com o adjetivo pejorativo de “plebiscitária”, os líderes que representam a classe operária com ela não se identificam, já que não são advindos do seu seio. Ademais, a despolitização da massa, torna esta presa fácil de políticos embusteiros, na maioria das vezes a serviço de um grupo econômico, contribuindo com um desserviço à democracia. Da forma como está estabelecida nossa democracia, tendo o cidadão como um protagonista que fica na plateia, já que seu voto desprovido da força de consciência que o anima, e sua própria energia que é dispersa por uma necessidade mais premente da própria sobrevivência, aliena-o, ele participa do processo, mas sequer sabe quem o representa. Em nota de rodapé, BONAVIDES faz a seguinte contextualização: “E nas democracias plebiscitárias dos países subdesenvolvidos, de massas ignorantes e indefesas, quem poderá sustentar a mesma tese quando uma liderança plutocrática e gozadora existe adjudicada à plebe, cujo voto, no campo, se acha encabrestado ao coronel, que o transaciona, e, na cidade, à desumana demagogia eleitoral dos milionários populistas, doutrinariamente disfarçados em líderes da classe trabalhadora?”. (BONAVIDES, op.cit., p. 203). Com o mesmo recurso estilístico, eminente professor, arremata: “O Estado Social da democracia de massas pode apresentar, pois – e o apresenta quase sempre –, nos países flagelados pela miséria econômica e pelo infradesenvolvimento, esse tumor político, que é a interpolação da pecúnia desonesta dos grupos financeiros entre o quarto estado e o voto (grifei) que este deposita nas urnas, o qual sai, segundo a expressão que já empregamos, instrumentalizado, para afiançar, através da respectiva maioria parlamentar, o governo das grandes empresas capitalistas.” (BONAVIDES, op. cit., p. 203-204). A não politização das massas, o deslembrar da sua educação, significa deixálas a mercê dos demagogos exploradores, que se utilizam de subterfúgios paternalistas, fisiológicos e clientelistas para arregimentar esse contingente e dispor dele ao seu arrepio. Se o constitucionalismo democrático proporcionou emancipação política às massas por meio do sufrágio universal, não conseguiu o mesmo êxito em conquistálas, ou seja, é preciso que haja efetividade para que uma faculdade democrática não seja transmudada em arma antidemocrática, como os exemplos ocorridos na Itália e Alemanha, com o fascismo e o nazismo, respectivamente. 9 Não pode a democracia ser deformada e ser travestida de demagogia. Aliás, demagogia, que é um vocábulo grego, etimologicamente, significa: “demos” (povo), e “agó” (conduzir). Assim, é a forma ou arte de conduzir o povo. 10 E no Brasil, o povo é conduzido segundo interesses bem delimitados de uma minoria, que sabe manejar com maestria os mecanismos democráticos, inculcando a falsa ideia de que a maioria é quem dita os rumos da nação. É a demagogia em seu sentido deturpado, não como conceito filosófico da antiga Grécia. 9 PAULO BONAVIDES, op. cit., p. 200 DEMAGOGIA La palabra "Demagogia" viene del griego δημος (demos -pueblo) y ἄγω (ágo conducir), es decir, guiar o conducir al pueblo, no tendría que ser obligatoriamente el discurso engañoso de quienes sólo buscan halagar al pueblo para obtener sus favores y beneficiarse personalmente; podría pensarse que personajes famosos como Cristo, Mahoma y Gandhi, para no citar más, fueron excelentes demagogos en cuanto procuraron guiar y educar a la población con los mejores propósitos. http://www.etimologias.dechile.net/demagogia. 10 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS É necessário não perder de vista que o voto se afigura na “maior arma de libertação política e social que o homem moderno já conheceu”. 11 Mas como se sustentou, repisa-se que o cidadão não pode ser um protagonista que fica na plateia. Muitos se autointitulam democratas, batem no peito e bradam aos quatro ventos que representam o povo. Em período eleitoral a publicidade estatal se encarrega de reforçar a necessidade de se ir às urnas. Contudo, indigitada prática, não balizada em uma educação universalizada, gratuita e de qualidade, cumpre muitas vezes uma função negativa. De regra, a maioria do povo, com uma consciência intransitiva, ou no máximo transitiva ingênua, não detém a necessária consciência crítica idônea a compreender o que subsiste por trás de toda a complexidade da aparente singeleza do ato de votar. Porém, há compreensão hialina de que o tal do voto é importante, já que de tempos em tempos um figurão que antes era visto apenas na televisão de terno e gravata, um belo dia aparece em sua casa, de camisa arregaçada, beija suas crianças, toma um cafezinho, entrega um punhado de papelzinho e diz: “vote em mim”. Não é rara, por exemplo, a inclinação de se votar no fulano porque arrumou serviço para um parente, ou no médico beltrano, que antes cobrava consulta caríssima, e com o advento das eleições, atende de graça. E mesmo se o candidato a cargo eletivo for alvo de uma dessas CPI da vida, criadas muitas vezes pela oposição para utilizar os holofotes da mídia, a chuva de denúncias não impede o êxito nas urnas, haja vista um peculiar discurso eloquente e sedutor que ecoa no campo fértil da ingenuidade alheia. 11 PAULO BONAVIDES, op. cit. Há também os reconhecidamente “políticos ladrões”, mais eufemisticamente os cleptocratas. No entanto, se são daqueles que “roubam, mas fazem”, está tudo certo, merecem, antiteticamente, um voto de confiança. Destarte, não há como conceber democracia num cenário em que o povo é forjado para ser uma figura expletiva. Formalmente ele é o todo poderoso, mas substancialmente é semelhante a um convidado de luxo que não consegue participar da conversa porque não sabe sobre o que os demais estão falando, ou simplesmente senta à mesa, mas não come por não saber usar os talheres. Pertenço a uma geração pós-ditadura, e tenho náuseas só de pensar em achaques e tolhimento à liberdade de imprensa, fechamento do Congresso Nacional, presos políticos, tortura e tudo o mais de diabólico que é corolário de governos caudilhistas, autoritários e ditatoriais. Mas sinto o mesmo enjoo quando vejo apregoarem uma democracia em que impera a fisiologia, alianças espúrias, promoção de salvadores da pátria, falastrões populistas, direitos e garantias meramente formais, personalismos, paternalismos, clientelismos e não sei mais o que “ismos”. E o pior, a cleptocracia que grassa impune. É óbvio que em toda parte do mundo se observam muitas dessas máculas no comentado regime de governo, mas o que se não pode admitir é a democracia convertida em demagogia pelo fato de o povo não estar intelectualmente preparado suficientemente para entender a importância do “poderoso instrumento do voto”. De todo modo, a democracia deve ser defendida sempre com entusiasmo, e reconhecer suas falhas é imprescindível para seu aperfeiçoamento. “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. (Winston Churchill). Referências bibliográficas: BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social, 8ªed., São Paulo: Malheiros, 2007. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. 9ªed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, 19ªed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1995. 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