VOTO NO BRASIL: INSTRUMENTO DA DEMOCRACIA E DA DEMAGOGIA
João Romano da Silva Junior1
Resumo: O presente artigo tem por escopo trazer à baila o instituto do voto, não sob
um prisma puramente técnico-jurídico, mas antes, por um enfoque em que repousam
as nuances entre sua previsão constitucional, sua importância como instrumento de
representatividade e de soberania popular, e de outra banda, contrastá-lo despido
desse tecnicismo que o cinge, enfrentando-o como um tema que oculta problemas
sociais, e que por isso mesmo, pode ser utilizado como mero discurso, perigoso e
cheio de armadilhas, capaz de degenerar o sentido de democracia, transmudando-o
para demagogia.
Palavras-chave: sufrágio, voto, cidadania, democracia, demagogia.
1. INTRODUÇÃO
À primeira vista, com supedâneo na Constituição Federal de 1988, soerguida
com o dístico de “constituição cidadã”, o direito ao voto, se analisado divorciado do
contexto histórico brasileiro que o permeia, representa um perigoso embuste.
O poder constituinte originário guindou o voto como um dos pilares intocáveis
da nossa República, não podendo o poder constituinte derivado nele bulir, nem por
emenda constitucional, é o que se chama de núcleo imodificável ou cláusula pétrea da
Constituição Federal.
1
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR, Mestrando do Programa
de Pós-graduação em Política Social na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT;
Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura, Maringá-PR, Especializando
em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Mato Grosso; Delegado de Polícia – PJC/MT, E-mail [email protected] ;
http://lattes.cnpq.br/5398007204212243 .
Quadra gizar que não é o substantivo voto propriamente dito que é intocável,
mas seus adjetivos “direto”, “secreto”, “universal” e “periódico”.2
Assim, é força concluir que havendo outro epíteto amoldável ao substantivo
voto, exsurgirá uma possibilidade de mudança, por exemplo, no que tange a ser ele
“obrigatório” ou “facultativo”.
Aliás, no esteio dessa antítese meio barroca, o voto no Brasil constitui-se em
um direito ou em um dever?
Colimando trazer algumas pistas para essa indagação, ainda que sem a
pretensão de estancar a discussão que grassa no meio técnico, privilegiar-se-á os
argumentos de caráter mais históricos.
Como ponto de partida se socorrerá da obra do Professor José Murilo de
Carvalho, “Cidadania no Brasil: O Longo Caminho”.
Tendo o Brasil adotado o modelo de Estado Democrático de Direito, afirmou-se
como Estado que se não submete simplesmente à lei de modo mecânico e formal,
mas o faz espraiado em um ideal de igualdade, mirando um compromisso social.
E a democracia é o móvel de toda a engrenagem engendrada para se chegar
aos fins pretendidos pelo Estado, tendo em vista que está jungida em seu bojo a
participação de todos para a consecução dos objetivos insertos no documento legal
máximo que é a Constituição Federal.
Aludida participação é oferecida aos cidadãos, por meio do sufrágio universal,
tendo como meio mais comum de exercê-lo, pelo voto, expressando desta forma a
soberania popular, sendo o povo o legítimo detentor do poder.
A construção teórica nos seduz e por vezes esquecemos-nos de cotejá-la com
a realidade fática e histórica. Mas se fizermos esse exercício nossa visão se
desobinubila e surgem pálios de luz que nos permitem assumir uma postura mais
crítica e menos pueril.
Mesmo tendo por premissa que a igualdade num Estado capitalista é uma
utopia, uma contradição insuperável, e mesmo no Estado Social de Direito, é
inatingível em sua plenitude, não se pode perder de vista a busca pela redução da
2
Art. 60,§ 4º, inciso II, CF.
desigualdade social, que é exatamente o que propala a Constituição Federal, fundada
no Estado Democrático de Direito.
Ocorre que essa tentativa é sempre entremeada por forte apelo populista, seja
deturpando a disposição dos direitos sociais, sobretudo nos períodos autoritários por
nós já experimentados, seja pela garantia dos direitos políticos como arremedo de
direitos fundamentais, como acontecido nas nossas malsinadas ditaduras civil e militar
ou mesmo nos governos dito democráticos, indiferentes muitas vezes à necessidade
de reformas políticas e sociais, máxime da educação.
O que se pretende, destarte, ainda que sem um aprofundamento de maior
envergadura, tendo em vista que a modalidade do trabalho não permite, é discutir o
voto dentro do contexto democrático atual, mas fundado em períodos passados,
lançando-se mão de um recorte e uma ligeira incursão histórica, pinçando dentre os
vários momentos históricos aqueles mais afetos aos primórdios do voto no Brasil, e os
que oferecem algumas circunstâncias idôneas a explicar os motivos que podem levar
o instituto do voto a ser usado como discurso de manutenção de poder.
2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO VOTO NO BRASIL: MENOS
DEMOCRACIA, MAIS DEMAGOGIA
Um escorço histórico é sempre útil, traz uma coloração mais viva para o pano
de fundo que se presta a pontuar, localizar e contextualizar o tema.
Soa quase desnecessário anotar que não há como se falar em sufrágio e em
voto sem que esteja inserta a noção de nacionalidade e cidadania.
E não é novidade que nossa colonização foi a que se convencionou chamar de
“exploração”, em oposição à outra forma que vigeu, a de “povoamento”.
Engraçado como esse termo “exploração” tornou-se uma espécie de estigma
para as nações que estiveram sujeitas às suas regras.
Nesse diapasão, observa-se que durante todo o período colonial, inexistiu um
sentido mais claro de nacionalidade, havendo sim, em alguns locais pontuais, certo
regionalismo.
A grande massa sempre esteve apartada das decisões políticas, o que autoriza
asseverar que não foi regida sob a batuta dos direitos civis e políticos.
Nesse tanto, registre-se que pouquíssimos estavam inseridos em um contexto
de direitos civis e políticos, referenciando aqui, que os direitos sociais inexistiam, tendo
em vista que a assistência social era provida pela Igreja e por particulares.
As insurreições soerguidas no período colonial eram, sobretudo, revoltas de
escravos, e bem assim conflitos de setores da classe dominante.
Destaca-se a Revolta dos Alfaiates, ocorrida em 1798, na Bahia, que era
composta por militares de baixa patente, artesãos e escravos, e foi influenciada pelo
ideário da Revolução Francesa.
De toda sorte, não tinha caráter político definido, era uma insurgência de
natureza social e racial, tendo por mote a própria escravidão, mas sua importância
está no fato de ter sido o movimento mais popular do período.
Aqui, ouso a entender que se encontram os argumentos mais indisfarçáveis
para as mazelas sociais brasileiras, incluindo o não pleno exercício da cidadania civil,
que advieram dos tempos coloniais, e se arrastam até os dias hodiernos: a escravidão,
com todos os seus reflexos, a grande propriedade rural e a mistura da coisa pública
com o privado.
De um lado, a escravidão, pois se constituía em negar a condição humana dos
negros, e de outra ponta, a propriedade rural, que parecia mais feudos, e estava
blindada à ação legal, e o privado passeando livremente na seara pública, agindo
como seu legítimo dono.
Findo o período colonial, advém o Brasil Monárquico, ante a independência
proclamada em 1822.
O Brasil padeceu de uma não participação popular efetiva, podendo-se afirmar
que a transição se deu de forma quase que pacífica, com alguns pequenos levantes
aqui e acolá.
Nada comparado a outros movimentos de libertação de outras nações da
América Latina, com o aparecimento de grandes vultos que se notabilizaram por um
espírito patriótico.
Na verdade, no Brasil, a independência foi negociada, obra de uma diplomacia
da elite nacional e a coroa portuguesa.
Só para destacar um fato que corrobora isso, o principal mediador foi José
Bonifácio, que integrava a alta burocracia portuguesa. Ademais, nosso primeiro
imperador, era, simplesmente, o filho do rei de Portugal.
No contexto internacional, Portugal só aceitou a independência brasileira após
ser indenizada no montante de 2 milhões de libras esterlinas.
Não se sabe a que pretexto Portugal foi indenizado, já que praticou na excolônia verdadeira pilhagem. É o que Rosa Luxemburgo, citada por David Harvey,
denominou de “acumulação por desapossamento”, em oposição à “acumulação
ampliada”:
“Um diz respeito ao mercado de mercadorias e ao lugar onde o valor excedente é
produzido – a fábrica, a mina, propriedade agrícola. Considerada sob esta luz, a acumulação é
um processo puramente econômico, cuja fase mais importante se realiza entre os capitalistas e
os trabalhadores assalariados (...) Aqui, na forma de qualquer valor, paz, propriedade e
igualdade prevalecem, e a apurada dialética da análise científica é requisitada para revelar como
o direito de propriedade se converte no curso da acumulação em apropriação de propriedade
alheias, como a troca de mercadorias se transforma em exploração e a igualdade torna-se
domínio de classe. O Outro aspecto da acumulação de capital diz respeito às relações entre
capitalismo e formas de produção não capitalistas, que se desenvolvem no cenário internacional.
Seus métodos predominantes são a „polícia colonial‟, um sistema de empréstimos internacional –
política de interesses privados – e a guerra. Violência, fraude, opressão, roubo são abertamente
revelados sem nenhum esforço para descobrir no meio desta confusão de políticas de violência e
disputas de poder as severas leis do processo econômico”.
(HARVEY, David. O Novo
Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004).
Harvey,
sintetizando
o
entendimento
acerca
de
acumulação
por
desapossamento, muito utilizada no imperialismo europeu, classificou-a de “roubo”.
Não é forçoso afirmar que com a independência ocorrida de forma pacífica,
houve uma continuidade nas relações sociais de outrora.
Em que pese nossa primeira Constituição, outorgada em 1824, ter caráter
bastante liberal para a época, um ponto nebuloso e triste da nossa história não foi
tocado, a escravidão, o que por si só, inibiu o avanço dos direitos políticos.
Com o constitucionalismo, havia a necessidade premente de legitimar um
governo representativo, lastreado no voto e na separação dos poderes.
A Constituição estabeleceu os parâmetros políticos, isto é, quem teria o direito
de votar e ser votado, às mulheres não foram estendidos esse direito, e os escravos,
por óbvio, sequer eram considerados cidadãos (em verdade não eram considerados
nem seres humanos).
A Constituição contemplou pessoas sem um mínimo de instrução escolar, a
maioria era analfabeta, inclusive muitos proprietários rurais, à categoria de cidadãos.
Desta forma, esse “cidadão”, já nasceu com a vontade viciada, maculando o
espírito da propalada soberania popular. A maior parte vivia na área rural, sob a égide
dos senhores de terra, e dos que viviam na cidade, muitos eram funcionários públicos,
e desta forma, adstritos à vontade do governante.
Nesse cenário o que interessava era o domínio político local, não havendo por
parte dos eleitos uma consciência do significado do voto, mas ele era importante para
a classe dominante.
Data desta época o cenário de fraudes e violência, a contar que no início a
eleição era por aclamação, vencida literalmente no grito, havendo figuras que existiam
sob um único pretexto, burlar as eleições.
O voto era sim, uma mercadoria, era ostensivamente negociado, barganhado,
já que não se podia confiar apenas na fidelidade do cidadão. Desta forma, os políticos
além da compra, tomavam medidas mais extremas para garantir a subserviência do
votante.
Aí está a origem de expressões como “curral eleitoral”, “voto de cabresto”,
“eleições a bico de pena”, entre outras, que demonstram que o voto era antes, um ato
de fidelidade ao poder local, de obediência imposta, mas desalijado de qualquer
sentido de participação consciente.
Atualmente, embora o Brasil seja reconhecido pela agilidade de suas eleições,
modelo no aspecto da informatização, considerada à prova de fraude, impende
asseverar que, o voto continua a ser barganhado, uma moeda de troca, subsistem os
currais eleitorais, voto de cabresto, e políticos coronéis existem aos montes.
Continuamos a padecer de uma educação deficiente e indigna, e de uma
desigualdade social gritante, e nesse contexto, fundado sobre essa base, o voto
permanece sendo utilizado para a manutenção do poder, uma forma de forjar uma
legitimidade que se analisada mais a fundo, não se sustenta.
3. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: A NÃO EFETIVIDADE COMO PERIGO
DE SER MERA CARTA DE INTENÇÕES E DE CONVENIÊNCIAS
Nossa Constituição Federal de 1988 traz como fundamento da República
Federativa do Brasil, a cidadania3.
Diz ainda textualmente que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
4
E essa soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto5, sendo que este será obrigatório para os maiores de dezoito anos e
facultativo para os analfabetos, os maiores de setenta anos e os maiores de dezesseis
e menores de dezoito anos. 6
Ora, de pronto se destaca que o tema aludido está inserto na Constituição
Federal sob a epígrafe “Dos Direitos Políticos”.
É força concluir assim que o voto parece se afigurar em um direito, mas há
controvérsia nesse particular.
Entendido como direito, surge uma incômoda contradição, ou seja, a
possibilidade que se abre de se exercer um direito de forma obrigatória.
3
Art. 1, inciso II, CF.
Art. 1º, parágrafo único, CF.
5
Art. 14, caput, CF.
6
Art. 14, § 1º, incisos I e II, alíneas “a”, “b” e “c”, CF.
4
O direito constitui-se em uma faculdade, uma liberalidade de exercê-lo ou não,
e assim, seria então direito nas hipóteses de mera faculdade, e dever, de outra banda,
na hipótese de obrigatoriedade,
Há que se referenciar, que para os que entendem ser o voto um direito, em
qualquer circunstância, causa estranheza o fato de ser tão sancionado caso dele não
se disponha.
Se houver ausência do eleitor em três turnos eleitorais consecutivos, há
aplicação de multa, e o eleitor fica impedido de participar de concurso público, de tirar
identidade, passaporte etc.
Desta forma, o voto tem um caráter híbrido e anômalo, é um misto de dever e
de direito, mas o que se busca aqui, com efeito, não são mesmo as miudezas
jurídicas, mas antes, algo que antecede o próprio poder constituinte originário.
O que se pretende é desvelar o papel que foi reservado a quem irá exercer o
dever ou o direito de voto.
Antes é preciso avançar um pouco mais nos argumentos, por ora, dentro do
contexto da Constituição Federal de 1988, há que serem abordados alguns temas
correlatos.
Oportuno então lançar mão da base fundante da ordem constitucional do
Estado brasileiro, o art. 1º da Constituição Federal, que assim estatui: “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos...”.
O dispositivo traz em sua essência muitas minúcias de ordem técnica, mas o
que se frisa, por pertinente, é o fragmento “Estado Democrático de Direito”.
Em apertada síntese, tem-se que no Estado Democrático de Direito há um
compromisso com a transformação da realidade, buscando a efetiva concretização da
igualdade. Nesse esteio, tem em mira uma preocupação social. Para ilustrar o que se
está argumentando, vale citar o entendimento de Lênio Luiz Streck e José Luis Bolzan
de Moraes:
“O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se
restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais
de existência. Assim o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida
digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no
processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade, apropriando-se do caráter
incerto da democracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova
sociedade, onde a questão da democracia contém e implica, necessariamente, a solução do
problema das condições materiais de existência.”
(STRECK, Lênio Luiz e outro. Ciência
Política e Teoria do Estado. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
pp. 97 e 98).
Denota-se que todo o arcabouço jurídico-constitucional que nos rege foi
assentado sobre um sólido terreno que privilegia o povo.
Da mesma forma que Aristóteles havia sentenciado que democracia é “o
governo do povo e pelo o povo”, e Abraham Lincoln arrematado que é “governo do
povo, pelo o povo e para povo”, nosso constituinte originário lançou mão desse
ideário.
Isso se visualiza hialinamente no dispositivo que assegura: “todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição”. 7
Aqui, novamente nos deparamos com um ponto altamente sensível, tendo em
vista que se apregoa a soberania popular.
Nossa democracia é a que se denomina de semidireta ou representativa, tendo
em vista que há institutos que permitem que os cidadãos exerçam a decantada
democracia de forma indireta, isto é, por meio de eleições, ou ele mesmo decida por
meio de referendo ou plebiscito, havendo também o instituto da iniciativa popular.
Deste modo, sob o ponto de vista constitucional, em seu aspecto formal, o
povo detém a soberania em última instância, e o faz lastreado no sufrágio universal,
que se afigura no direito público, subjetivo e irrestrito (salvo exceções, por exemplo, os
conscritos), de participar do processo eleitoral, e no voto, que grosso modo é exercício
do sufrágio.
Dentro das gerações do direito, esse capítulo faz parte, junto com os direitos
civis, da primeira geração ou dimensão dos direitos.
7
Art. 1º, parágrafo único, CF.
Mas no Brasil, é força admitir que muitos direitos e garantias se encontram
etéreos,
dormindo
a
em
estado
letárgico
do
formalismo.
O
que
implica
desconsideração da dignidade da pessoa humana, atributo inafastável do ser humano,
e que os direitos fundamentais se encarregam de dar suporte.
Muitos dos direitos apregoados não são cumpridos de maneira satisfatória,
citando-se alguns deles como saneamento básico, saúde, moradia etc., e que por isso
a cidadania fica comprometida, e por corolário, esvazia a força da democracia, pois
essa deve ser exercida por cidadãos plenos para que se atinja o escopo precípuo da
participação e representação conscientes que reclama a soberania popular.
Diante disso, oportuno colacionar o entendimento de Ferdinand Lassalle,
quando em sua obra “A Essência da Constituição”, asseverou:
“Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder, a verdadeira
Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele
país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam
fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais
que devemos sempre lembrar”.
(LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição.
Rio de Janeiro: Líber Júris, 1985).
Lassalle discorre acerca de uma situação ocorrida na época, em que os fatores
reais de poder, dissimuladamente, agiram por meio da legalidade, ou seja, da
constituição escrita, ou da “folha de papel”, termo que ele utilizou para ilustrar seu
raciocínio. 8
Em que pese os avanços na área eleitoral brasileira, não se pode tomar isso,
sem fazer uma devida análise, pois participação maciça no pleito eleitoral e ausência
de fraudes, por si só, não têm o condão de fazer loas à democracia.
Nossa Constituição, em muitos momentos é uma carta de intenções, o que se
denomina de programática, e ela própria, textualmente, reconhece as disparidades
sociais, só a título de exemplo, já no seu art. 3º, assevera que um dos seus objetivos
fundamentais é: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais”.
8
Alusão à frase de Frederico Guilherme IV que teria dito: “Julgo-me obrigado a fazer agora solenemente,
a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país se
interponha uma folha de papel escrita, como se fosse uma segunda Providência.”
Não é o objetivo aqui teorizar acerca das causas das desigualdades e a
marginalização, embora possa lançar como postulado que existam em grande parte
em função de uma herança colonial escravista e latifundiária.
Quanto às desigualdades que o Estado se propõe a reduzir, e não ousou
afirmar que irá aqui nesse ponto também erradicar, muito se deve, de igual forma, pela
mesma herança a pouco citada.
Houve ao longo dos anos inversão ou mesmo deturpação dos direitos
fundamentais, e em muitos casos, como nos períodos ditatoriais, fortalecimento
somente de uma das espécies, como no caso dos direitos sociais, uma apelo populista
capaz de alienar o povo, enfraquecendo os direitos políticos, visando ao não
questionamento dos desmandos.
Com isso, temos que é importante a garantia dos direitos na Constituição, e a
nossa Carta Magna de 88 trouxe significativo avanço, foi a primeira no Brasil que
colocou no corpo constitucional os direitos fundamentais antes da organização do
Estado.
Contudo, soa demagogia expressar tantas garantias e direitos sem que os seus
destinatários estejam aptos a exercê-los, basta se atentar para o fato de que temos
uma taxa absurda de analfabetismo e pobreza. Fora a falta de instrumentos e
mecanismos capazes de operacionalizar a estrutura de garantias constitucionais.
Se em centros mais desenvolvidos isso se constitui em prato cheio para
políticos inescrupulosos, que dirá dos distantes rincões em que ainda impera o
domínio dos “coronéis”.
Aristóteles quando formulava suas teses acerca das formas puras e impuras de
governo, versava que a democracia seria sua forma pura, enquanto a demagogia sua
degeneração.
Dessa forma, afigura-se meio demagógico não providenciar os meios
disponíveis para preparar o cidadão para participar de forma efetiva nos rumos de sua
nação.
Ficamos com a sensação que de fato temos o poder de transformar nossa
realidade por meio do voto, mas se este continua a ser uma moeda de troca, sem a
consciência da maioria que o anima, a democracia se torna mero discurso de poder e
de perpetuação desse poder.
4. AS MASSAS NA DEMOCRACIA BRASILEIRA
Retomando o argumento acerca do papel destinado a quem exerce a
soberania popular, isto é, o povo, cumpre, nesse momento, entendê-lo como “massa”.
Um dos elementos do Estado é exatamente o povo, definido desta forma por
Dalmo de Abreu Dallari:
“Deve-se compreender como povo o conjunto dos indivíduos que, através de um
momento jurídico, se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico
de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do Poder
Soberano.”
(DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado,
19 ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1995).
No entendimento de povo não se faz distinção de classes, e assim, povo
somos todos nós brasileiros, natos ou naturalizados, independentemente de nossa
posição social, crenças e convicções políticas ou filosóficas, se detentores do capital
ou só da força de trabalho.
A injustiça social, em maior ou menor grau, cria uma espécie de deformação
nesse componente humano, mais perceptível em países de extremos, como é o caso
do Brasil, surgindo assim o que muitos teóricos denominam de “massa”.
No contexto do capitalismo, a questão social, entendida sem aprofundamento
teórico, como a contradição e o embate entre o capital e o trabalho, gera uma classe
dominante e uma classe de dominados.
A massa é o resultado da exploração impingida por uma classe sobre a outra, e
a classe que dita essa dinâmica é conhecida como o que se convencionou denominar
de “elite”.
A existência das massas é essencial para que a elite continue a desfrutar de
todas as regalias e privilégios a ela inerentes dentro de um modelo de Estado
preconcebido para esse fim, resquício do Estado liberal burguês. Isso porque as
massas não têm cor, não têm forma nem identidade, e nesse passo, podem ser
manipuladas.
De toda sorte, não se deve desprezar o poder da massa, tendo em vista que
ela é imprevisível, como bem frisa o festejado professor Paulo Bonavides:
“Esta atua subitamente nas comoções revolucionárias, nas imensas convulsões sociais.
Tem a instantaneidade de um raio nas ocasiões de crise. E aí se distingue da massa
adormecida, passiva, que toda sociedade moderna conhece”.
(BONAVIDES, Paulo. Do
Estado Liberal ao Estado Social, 8ªed., São Paulo: Malheiros, 2007, p.198).
O mesmo autor, na mesma obra, aduz que as massas sempre foram
hostilizadas e menoscabadas em sua capacidade de autodeterminação, e que os
grandes clássicos da Reação “trataram as massas quase invariavelmente com
desmesurado
desprezo,
indissimulável
desconfiança
e
amargo
pessimismo”.
(BONAVIDES, op.cit. p.192).
A importância histórica das massas é visualizada quando no conflito entre o
capital e o trabalho, o proletariado aviltado pela classe dominante exploradora,
conseguiu ascender ao poder, mormente o legislativo, emergindo o quarto estado.
Isso foi possível com a crise do velho liberalismo, que já não tinha mais
condições de resolver os problemas sociais e econômicos criados no seio de um
sistema que escorchava a classe operária que a sustentava.
O discurso liberal pautado na liberdade, mas na liberdade restrita, destinada
apenas aos figurões que deixavam do lado de fora do banquete uma gama de
desapossados, excluídos, uma massa de anônimos marginalizados, deu azo a
reações.
Nesse passo, a extensão da liberdade política, por meio do sufrágio universal
foi um imperativo que os liberais não puderam negar, e não foi concedido senão
depois de muito embate, constituindo-se assim numa conquista sem precedentes,
inclusive para a superação do liberalismo e o surgimento do Estado Social.
É dessa forma que descreve BONAVIDES:
“Ali no campo de batalha social, os individualistas ferrenhos e privilegiados da velha
burguesia capitalista tiveram que depor a arma mais poderosa de sua convicção política - o
sufrágio censitário. Ao arrebatar o sufrágio universal, o quarto estado ingressava, de fato, na
democracia política, e o liberalismo, por sua vez, dava mais um passo para o desaparecimento,
numa decadência que deixou de ser apenas doutrinária para se converter, então, em decadência
efetiva, com a plena ingerência do Estado na ordem econômica”.
(op. cit., p 188-189).
A Inglaterra possui sólido exemplo da conquista do quarto estado na figura do
emblemático e fortíssimo Partido Trabalhista inglês, que na sua gênese, efetivamente
é constituído de pessoas que saíram da classe trabalhadora, e agora investido em um
mando eletivo a representa.
Trazendo esse mesmo argumento para a realidade dos países tidos por
subdesenvolvidos, entre eles o Brasil, que, com efeito, é o alvo do que se sustenta
neste trabalho, não há essa mesma representatividade.
Na nossa democracia, conhecida com o adjetivo pejorativo de “plebiscitária”, os
líderes que representam a classe operária com ela não se identificam, já que não são
advindos do seu seio.
Ademais, a despolitização da massa, torna esta presa fácil de políticos
embusteiros, na maioria das vezes a serviço de um grupo econômico, contribuindo
com um desserviço à democracia.
Da forma como está estabelecida nossa democracia, tendo o cidadão como um
protagonista que fica na plateia, já que seu voto desprovido da força de consciência
que o anima, e sua própria energia que é dispersa por uma necessidade mais
premente da própria sobrevivência, aliena-o, ele participa do processo, mas sequer
sabe quem o representa.
Em nota de rodapé, BONAVIDES faz a seguinte contextualização:
“E nas democracias plebiscitárias dos países subdesenvolvidos, de massas ignorantes
e indefesas, quem poderá sustentar a mesma tese quando uma liderança plutocrática e
gozadora existe adjudicada à plebe, cujo voto, no campo, se acha encabrestado ao coronel, que
o transaciona, e, na cidade, à desumana demagogia eleitoral dos milionários populistas,
doutrinariamente disfarçados em líderes da classe trabalhadora?”. (BONAVIDES, op.cit., p. 203).
Com o mesmo recurso estilístico, eminente professor, arremata:
“O Estado Social da democracia de massas pode apresentar, pois – e o apresenta
quase sempre –, nos países flagelados pela miséria econômica e pelo infradesenvolvimento,
esse tumor político, que é a interpolação da pecúnia desonesta dos grupos financeiros entre o
quarto estado e o voto (grifei) que este deposita nas urnas, o qual sai, segundo a expressão que
já empregamos, instrumentalizado, para afiançar, através da respectiva maioria parlamentar, o
governo das grandes empresas capitalistas.”
(BONAVIDES, op. cit., p. 203-204).
A não politização das massas, o deslembrar da sua educação, significa deixálas a mercê dos demagogos exploradores, que se utilizam de subterfúgios
paternalistas, fisiológicos e clientelistas para arregimentar esse contingente e dispor
dele ao seu arrepio.
Se o constitucionalismo democrático proporcionou emancipação política às
massas por meio do sufrágio universal, não conseguiu o mesmo êxito em conquistálas, ou seja, é preciso que haja efetividade para que uma faculdade democrática não
seja transmudada em arma antidemocrática, como os exemplos ocorridos na Itália e
Alemanha, com o fascismo e o nazismo, respectivamente. 9
Não pode a democracia ser deformada e ser travestida de demagogia. Aliás,
demagogia, que é um vocábulo grego, etimologicamente, significa: “demos” (povo), e
“agó” (conduzir). Assim, é a forma ou arte de conduzir o povo. 10
E no Brasil, o povo é conduzido segundo interesses bem delimitados de uma
minoria, que sabe manejar com maestria os mecanismos democráticos, inculcando a
falsa ideia de que a maioria é quem dita os rumos da nação. É a demagogia em seu
sentido deturpado, não como conceito filosófico da antiga Grécia.
9
PAULO BONAVIDES, op. cit., p. 200
DEMAGOGIA La palabra "Demagogia" viene del griego δημος (demos -pueblo) y ἄγω (ágo conducir), es decir, guiar o conducir al pueblo, no tendría que ser obligatoriamente el discurso engañoso
de quienes sólo buscan halagar al pueblo para obtener sus favores y beneficiarse personalmente; podría
pensarse que personajes famosos como Cristo, Mahoma y Gandhi, para no citar más, fueron excelentes
demagogos en cuanto procuraron guiar y educar a la población con los mejores propósitos.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É necessário não perder de vista que o voto se afigura na “maior arma de
libertação política e social que o homem moderno já conheceu”. 11
Mas como se sustentou, repisa-se que o cidadão não pode ser um protagonista
que fica na plateia.
Muitos se autointitulam democratas, batem no peito e bradam aos quatro
ventos que representam o povo.
Em período eleitoral a publicidade estatal se encarrega de reforçar a
necessidade de se ir às urnas.
Contudo, indigitada prática, não balizada em uma educação universalizada,
gratuita e de qualidade, cumpre muitas vezes uma função negativa.
De regra, a maioria do povo, com uma consciência intransitiva, ou no máximo
transitiva ingênua, não detém a necessária consciência crítica idônea a compreender o
que subsiste por trás de toda a complexidade da aparente singeleza do ato de votar.
Porém, há compreensão hialina de que o tal do voto é importante, já que de
tempos em tempos um figurão que antes era visto apenas na televisão de terno e
gravata, um belo dia aparece em sua casa, de camisa arregaçada, beija suas
crianças, toma um cafezinho, entrega um punhado de papelzinho e diz: “vote em mim”.
Não é rara, por exemplo, a inclinação de se votar no fulano porque arrumou
serviço para um parente, ou no médico beltrano, que antes cobrava consulta
caríssima, e com o advento das eleições, atende de graça.
E mesmo se o candidato a cargo eletivo for alvo de uma dessas CPI da vida,
criadas muitas vezes pela oposição para utilizar os holofotes da mídia, a chuva de
denúncias não impede o êxito nas urnas, haja vista um peculiar discurso eloquente e
sedutor que ecoa no campo fértil da ingenuidade alheia.
11
PAULO BONAVIDES, op. cit.
Há também os reconhecidamente “políticos ladrões”, mais eufemisticamente os
cleptocratas. No entanto, se são daqueles que “roubam, mas fazem”, está tudo certo,
merecem, antiteticamente, um voto de confiança.
Destarte, não há como conceber democracia num cenário em que o povo é
forjado para ser uma figura expletiva. Formalmente ele é o todo poderoso, mas
substancialmente é semelhante a um convidado de luxo que não consegue participar
da conversa porque não sabe sobre o que os demais estão falando, ou simplesmente
senta à mesa, mas não come por não saber usar os talheres.
Pertenço a uma geração pós-ditadura, e tenho náuseas só de pensar em
achaques e tolhimento à liberdade de imprensa, fechamento do Congresso Nacional,
presos políticos, tortura e tudo o mais de diabólico que é corolário de governos
caudilhistas, autoritários e ditatoriais.
Mas sinto o mesmo enjoo quando vejo apregoarem uma democracia em que
impera a fisiologia, alianças espúrias, promoção de salvadores da pátria, falastrões
populistas, direitos e garantias meramente formais, personalismos, paternalismos,
clientelismos e não sei mais o que “ismos”. E o pior, a cleptocracia que grassa impune.
É óbvio que em toda parte do mundo se observam muitas dessas máculas no
comentado regime de governo, mas o que se não pode admitir é a democracia
convertida em demagogia pelo fato de o povo não estar intelectualmente preparado
suficientemente para entender a importância do “poderoso instrumento do voto”.
De todo modo, a democracia deve ser defendida sempre com entusiasmo, e
reconhecer suas falhas é imprescindível para seu aperfeiçoamento.
“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem se dito
que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm
sido experimentadas de tempos em tempos”. (Winston Churchill).
Referências bibliográficas:
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Disponível em http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/principal.htm.
STRECK, Lênio Luiz e outro. Ciência Política e Teoria do Estado. 5ª ed. Porto Alegre:
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