O DISCURSO ADMINISTRATIVO E A INSTAURAÇÃO DE UMA NOVA TEMPORALIDADE NA HISTÓRIA DA INSTRUÇÃO PÚBLICA PAULISTA Ilíada Pires da Silva A historiografia da educação brasileira tem discutido intensamente as interpretações construídas por educadores e governantes republicanos no período inicial da República. As severas críticas feitas ao regime monárquico; a obsessão por estabelecer um distanciamento absoluto entre o projeto político republicano e o anterior; a exacerbação do papel da instrução pública na regeneração do social; o desempenho da escola na disciplinarização para o trabalho; representam algumas das questões debatidas pela historiografia da educação referente a este período. Tais discussões remetem ao exame dos discursos produzidos pelos administradores republicanos na primeira década republicana. Os questionamentos levantados pelos republicanos em relação ao regime monárquico, na última década do século XIX, assumem a conotação de uma proposta política radicalmente oposta à do regime anterior e lhes confere a experiência de se estabelecerem enquanto criadores de um novo momento histórico, ou seja, a experiência da (re)fundação da nação. A tarefa de (re)fundação supunha um modelo de nação articulava-se ao ato de dar um formato à nação e, a instrução pública emergia como ferramenta privilegiada dessa modelagem. Os republicanos, aglutinados em torno do recém instalado governo, assumem para si a missão de preparar “os futuros cidadãos da República através da criação de escolas dignas de uma democracia” (Rodrigues, 1930, p. 188). Esta comunicação pretende interpelar, em caráter exploratório, as estratégias construídas por estes discursos para constituir e difundir um projeto político e buscar as suas ressonâncias na historiografia da educação brasileira. A Grande Reforma A construção da instrução pública paulista aparece diante de nós como um produto dos primeiros anos da experiência republicana. O advento da República foi fixado como o ponto terminal do longo período que manteve o povo preso à ignorância e a abertura de outra época; de um movimento de libertação da consciência nacional, centrado na tarefa de ilustrar o espírito do povo. Os discursos dos republicanos paulistas constituem-se em fontes valiosas para se capturar como este grupo, instaurador da nova ordem, foi se definindo pelo estabelecimento de uma distinção em relação passado monárquico e na produção de uma perspectiva do futuro. Apesar de suas divergências, são as suas representações em torno de uma identidade que interessa aqui assinalar, porque elas informam o modo como se define enquanto grupo unitário e constitui o outro como o conjunto do qual se distingue e se opõe, fixando ainda o lugar onde as lutas políticas se travam. Privilegiei alguns discursos de autoridades administrativas cujo foco é a Reforma da Escola Normal de São Paulo tendo como referência temporal o período que vai de 1890 a 1894, em função da ênfase que lhe foi conferida pelos próprios contemporâneos envolvidos com a atuação governamental e pela retomada desta temática pela obra memorialística de João Lourenço Rodrigues, publicada posteriormente em 1930, quando então, o seu significado foi reafirmado e ampliado. Um traço fundamental desses discursos é sentido de ruptura que estabelecem entre a sua atuação administrativa e o regime monárquico pela criação de um marco criador de dois momentos políticos. Observemos um trecho do discurso do Dr. Antonio Caetano de Campos. “A democratização do poder restituiu ao povo uma tal somma de autonomia, que em todos os ramos de administração é hoje indispensavel consultar e satisfazer suas necessidades. Já que a revolução entregou ao povo a direção de si mesmo, nada é mais urgente que cultivvar-lhe o espirito, dar-lhe a elevação moral de que elle precisa, formar-lhe o carater, para que saiba querer” (Rodrigues, 1930, p.199). Neste fragmento, ao associar o advento da República à idéia de revolução, o autor, estabelece uma descontinuidade e atribui à ação dos republicanos uma dimensão inovadora, cujo sentido do novo se produz pela aproximação que estabelece com a noção de democracia. Em outro trecho, Caetano de Campos reafirma a idéia de rompimento pela caracterização do adversário contra o qual foi conduzida a revolução: ”sessenta e oito annos de imperio deixam-nos em quasi completo obscurantismo e na incapacidade quasi absoluta, peores que a peste e a guerra, peores que as secas e a miseria” (Rodrigues, 1930, p. 195). A idéia de revolução, qualificada pela concepção de democracia determina aqui o sentido histórico da República. Ao definir a República como expressão da vontade coletiva, ou seja, como o rompimento político produzido pela atuação competente dos republicanos na condução do povo ao poder, acaba por conceder, não apenas, legitimidade ao movimento como também, por estabelecer o campo autêntico da política (Vesentini,1997). O discurso de Caetano de Campos, então diretor da Escola Normal, representa a posição do agente político que ao associar ruptura à vontade popular desloca os partidarismos para além das fronteiras do poder instituído e instala a atuação administrativa republicana em um campo neutro. Por outro lado, o estabelecimento do ano 1889 como marco definidor de uma nova etapa na consciência nacional, ressalta, de um lado, o obscurantismo cultural do passado monárquico identificado pelo abandono do povo na ignorância e, de outro, estabelece a passagem para uma nova era pela sinalização da atenção que será dispensada ao cultivo do espírito popular, conferindo à atual administração um papel único na construção da democracia. A obra de (re)fundação do país ligava-se, conforme afirma o projeto republicano paulista, à tarefa de edificar a República pela libertação da consciência popular do que definiam como “obscurantismo monárquico”. A criação de um “homem novo”, postulado do republicanismo, impunha o começo de um movimento de desprendimento dos valores de um determinado passado e a impregnação dos valores republicanos através da formação de “patriotas”. Deste modo, ao atribuir ao Estado republicano uma dimensão pedagógica fixam o sentido da intervenção administrativa no campo da instrução pública (Catroga, 1991). Rangel Pestana, três meses antes de ser assinado o decreto que pretendia a reforma da instrução pública paulista, anuncia-a em artigo publicado pelo jornal “O Estado de São Paulo” sob o título de “A Grande Reforma”. “Há uma outra refórma importante e urgente que deve ser feita neste período de transformação - a da instrução publica. Impossível no domínio dos partidos monarchicos, porque cada um deles queria ter o ensino nas mãos, como arma eleitoral, preferindo contar os votos dos professores a dar boa instrução ao povo, renasce hoje a esperança de uma reforma patriótica, na altura das necessidades. Compreende-se que o Governo tem de (...) imprimir um cunho nacional ao ensino (...) a boa escola nacional, capaz de incutir no animo popular o sentimento da patria moderna” (Rodrigues, 1930, p. 181). Em uma série de artigos publicados pelo periódico citado - de tendência republicana, Rangel Pestana anuncia, justifica e impõe o significado da reforma da instrução publica, antes mesmo de ser decretada. A escolha do título remete à idéia de uma mudança profunda e aparece como parte constitutiva da primeira revolução. A reforma é tomada como o passo seguinte no conjunto de fatos que vão sendo conformados pela ação inovadora da República e é neste conjunto que o campo da política deverá transcorrer. Fora desta corrente de fatos decisivos para a completude da democracia está a antipolítica, instala a reação (Vesentini, 1997). Como sujeito ligado à condução da reforma procura estabelecer a legitimidade desta administração não só pela associação que estabelece entre a reforma e as aspirações coletivas, mas também pelas representações que constrói em torno de seus adversários. Através desta operação situa o “outro” na política monarquista, no campo da reação, dos interesses mesquinhos de partidos impatrióticos, movidos por razões eleitorais. O Império não encarnou os interesses gerais da nação, não foi eficaz na condução do povo. A instrução pública ficou relegada a um reduzido número de “escolas inuteis, em cadeiras sem casa, sem alumnos” e a um “professorado acostumado ao jogo político” e a existência de professores que “não comprehendem o valor moral de suas funções” (Rodrigues, 1930, p. 181). Inventariar o passado monárquico para produzir um sentido de atraso, de carência e criar representações legitimadoras da nova administração definindo-a como intérprete dos anseios coletivos é o que emerge destes discursos. Considerando-se portadores de uma consciência cívica, estes administradores, propõem-se a despertar a consciência nacional adormecida pelo cultivo do espírito do povo. Em nome de um patriotismo recusam a política monárquica e apontam para o aprimoramento das medidas de intervenção do Estado na vida social. “Ora não serão os velhos mestres, formados na escola de abusos, de patronato, que hão de desempenhar a nova missão. (...) é fora de duvida que a Republica precisa formar novos mestres... o ensino normal exige profunda reforma, (...) A Republica é a organização do Patriotismo” (Rodrigues, 1930, p. 182). Rangel Pestana estabelece aqui, o lugar da “reforma patriótica”; a da Escola Normal e direciona o seu alvo; o professor primário. Ao atribuir ao professor a missão de construir a Pátria através da formação de sentimentos coletivos, “incutir no ânimo popular o sentimento da pátria moderna”, transforma os docentes em mensageiros do projeto político republicano pelo estabelecimento de um novo modelo de professor primário; a ser desenvolvido sob a tutela do Estado (Nóvoa, s/d p.28). Trata-se do professor-cidadão cuja função é fomentar um tipo de patriotismo capaz de produzir sentimentos de vocação consensual. (Catroga, 1991) Representado como um joguete dos interesses políticopartidários da Monarquia, o professor precisa ser reformado e, desse modo, centraliza a reforma administrativa na questão da formação docente sob a alegação de apagar os vícios que o império nutriu e incutir no professorado o modelo cultural republicano, tido como uma nova mentalidade, tida, como uma mentalidade patriótica. Em 1890, por ocasião da assinatura do decreto da reforma da Escola Normal, esboça-se uma reação. Caetano de Campos, na tentativa de controlar o significado da reforma constitui-se em seu defensor. Em carta endereçada ao jornal “O Estado de São Paulo” busca apoio para veicular a intenção da lei e estabelecer a sua autoridade. Sob alegação de “esclarecer a opinião pública” sobre os principais pontos da reforma que, segundo ele, vinham sendo “deturpados em seus fins”, indica o seu sentido pedagógico e qualifica a conduta de seus opositores como impatriótica. A reorganização da Escola Normal e a transformação das escolas-anexas em escolas-modelo expressavam, segundo ele, o primeiro passo para a mais completa transformação da instrução pública conforme o modelo da pedagogia moderna. Destinavam-se “a fornecer os paradigmas para a remodelação do nosso antiquado apparelho escolar” (Rodrigues, 1930, p. 215). A chave da Reforma da Escola Normal, conforme Caetano de Campos, encontra-se na prática que devem ter os alunos-mestres junto à escola-modelo. Mais do que a ampliação do curso normal, a ênfase recai sobre a obrigação de praticar o ensino nas escolas-modelo. “Não se póde ter mestre em tais assuntos sem ter visto fazer e sem ter feito por si” (Rodrigues, 1930, p. 242). Critica a tenebrosa conduta pedagógica das escolas do Império que criava nos alunos o hábito de decorar as lições através de pedagogias punitivas e aponta para o ensino moderno fundamentado nos processos intuitivos. “É necessario acostumar a creança a raciocinar por si, na medida das suas forças physicológicas, sobre todas as coisas que lhes caem debaixo de seus olhos” (Rodrigues, 1930, p. 242). Estes são, conforme Caetano de Campos, os pontos básicos inseridos no que os republicanos denominaram de a Grande Reforma que lhes aparecia como uma ruptura, notadamente, quando contraposta às práticas educativas do Império. A implantação deste modelo, orientado pelos métodos de ensino norte-americano, requeria uma série de condições materiais, tais como a necessidade da construção de novos edifícios escolares, da reordenação do espaço escolar, de mobiliário escolar, da organização dos programas etc. Em 1894, com o término da construção do edifício da Escola Normal a reforma se completa. Trata-se da transformação do edifício da Escola Normal em símbolo das virtudes da nova administração. Em 1894, na solenidade de inauguração do majestoso edifício, situado no Largo da República, diversas autoridades administrativas reafirmavam ao nível discursivo os significados dos episódios já expostos e convertiam a inauguração do edifício em mais um referencial do conjunto de fatos que associavam a República à mudança e à instalação da democracia. O monumento arquitetônico em sua ostensiva visibilidade é fixado pelo Dr. Cesário Motta como mais um indício de que a atuação republicana paulista conduzia a nação para a modernidade (Carvalho, 1989). “Esta festa o demonstra. Este templo o affirma. Ponto culminante de nossa architectonica, revela a altura que a Republica collocou desde o seu inicio o problema da instrucção”. (Rodrigues, 1930, p.340) Neste “templo iluminado do saber” projeta-se a diferença que pretendiam instituir em relação às casas escuras e úmidas que a monarquia chamava de escola (Carvalho, 1989). A festa de inauguração deste edifício, assim como a solenidade de lançamento da primeira pedra, realizada quatro anos antes, dava visibilidade a atuação administrativa e ganhavam amplitude em seu alcance pela sua veiculação, feita sempre em tom laudatório, em artigos do jornal “O Estado de São Paulo”. Estes recursos utilizados, freqüentemente, assim como a constante repetição de seus significados produzia a constituição de uma certa memória sobre os feitos dos republicanos. A Reforma de 1890 aparece nos discursos republicanos como um divisor de águas conferindo à República o mérito de ter iniciado não só a reorganização de ensino paulista, mas também de inaugurar a própria instrução pública no país. São inúmeras as projeções em torno de uma imagem de São Paulo como vanguarda neste campo que sugerem a sua difusão para os outros estados como exemplo a ser seguido se não mesmo a ser imposto. Mas do que discutir o alcance da reforma o que me interessou aqui foi apontar a força definidora do discurso administrativo da época. Como primeira interpretação constrói imagens, dotando-as de um determinado sentido. Manifestação do poder instituído, o discurso administrativo, entendido como relato do agente político expressa-se como administração neutra, voltada para os interesses gerais (Vesentini, 1997, p. 129). A implantação da República – realizada com nula participação popular (Carvalho, 1993) assim como a produção da reforma da Escola Normal aparecem como categorias explicativas que se constituem a partir da identificação com o interesse geral do povo, enquanto simultaneamente, situam o exercício e o controle do poder político como administração neutra.(Vesentini, 1997, p. 131). Como camadas interpretativas superpostas, estas categorias foram veiculadas sucessivamente pelos mais diversos canais. A constituição da Reforma da Escola Normal como um objeto se instalou na memória dos homens de sua época e foi referendado pela Historiografia da Educação. O advento da República definido como marco político e os sucessivos atos administrativos organizados em uma cadeia de modo a desembocar na reforma da Escola Normal – referência fundadora da instrução pública paulista – impõemse aqui como a categoria interpretativa da instrução pública. Produzidos pelos discursos dos contemporâneos da época, foram posteriormente repetidos em dimensão ampliada. Inicialmente, pela obra de João Lourenço Rodrigues que retoma estes discursos, em 1930 – como resposta às críticas acirradas direcionadas republicano, naquele ao sistema momento -, político-partridário como documentos históricos, já que considera seus autores como os homenschave da reforma. O autor ordena-os em um conjunto de fatos de modo a constituir uma espécie de período áureo da educação e retirar qualquer significado de outras possibilidades interpretativas (Catani, 1995), notadamente, em relação às novas perspectivas que emergiam dos acirrados debates travados, na década de 20, em torno do significado da realidade brasileira, que operavam pela inversão de sentidos para o par República/Império, na media em que faziam uma revisão da historiografia republicana. Em uma espécie de ritual que se repete, a historiografia de educação, utilizando como fonte, a obra de Rodrigues, tem reproduzido os significados que foram atribuídos pelos republicanos tanto em relação à grandeza de sua obra como pela desfiguração do Império. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CATANI, Denice B. Memória e Biografia: O Poder do Relato e o Relato do Poder. In: Pesquisa Histórica: Retratos da Educação no Brasil. GONDRA, José. Gonçalves & SILVEIRA, Fernando (orgs.). 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