Crônica de uma amizade anunciada por Tatyana de Andrade França “Je cherche en gémissant” (traduzindo: “Eu procuro em gemido”). As palavras ecoam por segundos, minutos ou horas, enquanto eu folheio o restante das páginas e me certifico de que sim, o livro está velho, bem velho. Por um momento, eu sinto vergonha por ele estar assim. Quer dizer, não é minha culpa, mas por que afinal eu não comprei um livro novo? Resposta simples: por falta de dinheiro. Resposta confusa: não me lembro, não tenho certeza, não sei. Resposta complexa, baseada na crença em destino: porque eu estava na rua certa, na hora certa, com o dinheiro exato e querendo presentear alguém com uma coisa legal. Qual é a resposta correta? Todas ou nenhuma ou N.D.A (Nenhuma das anteriores), quem sabe. De qualquer forma: folheio o livro todo, colo uma parte da capa e concluo que ele não está velho demais para deixar de ser um presente. O importante são as palavras contidas nele e, claro, a intenção do regalo. O livro é “O encontro marcado”, de Fernando Sabino. A frase em francês é uma referência a Blaise Pascal e é dita pelo personagem Hugo, numa conversa entre amigos. Essa cópia foi comprada para Rogério, um amigo virtual. É meu livro favorito, eu gostaria que ele o lesse também – quem sabe surja daí a possibilidade de “puxar uma angústia” (é uma expressão do livro),conversando sobre os personagens. Há tempos esse exemplar comprado na rua está guardado, esperando por um encontro com o dono ou pela minha iniciativa de enviá-lo a ele. No Rio, é comum encontrar pessoas vendendo livros (e outras coisas) nas ruas. Elas fogem ou se escondem quando a fiscalização passa, pois é proibido vender mercadorias a céu aberto, sem nota fiscal, etc etc etc, blablabla. Da minha parte, encontrar essas pessoas é mais bacana do que qualquer shopping center. Você pode achar do (in) útil ao inusitado. E claro, pode encontrar bons livros a preços bem camaradas. Então, foi num dia qualquer, eu estava andando por uma rua qualquer e vi o livro e ele também me viu. Ele disse: “Psiu, estou aqui!”. “Eu já o tenho”, pensei, “mas ele vai se tornar um presente”. É costume meu dar livros de presente, é um atrevimento da minha parte. Dar um livro é uma coisa tão pessoal! Você pode pensar que está acertando ao dar determinado livro, mas não está. E isso acontece até mesmo quando você conhece bem a pessoa. Mesmo sabendo que o presenteado pode não ler ou gostar do que recebeu, eu continuo me atrevendo e acho que vai ser assim por toda a vida. Rogério virá morar no Rio em alguns dias. Nós marcamos uma cerveja (convenhamos: algumas!) e eu prometi a ele uma festa com confetes, mulatas e um samba escrito por mim e interpretado pela bateria da escola de samba que ele escolher. Será que foi exagero? Após 02 anos e meio, ele deixará de ser virtual. Eu estou levemente nervosa ou nervosamente leve ou os dois. Finalmente será a hora de presenteá-lo. “Je cherche en gémissant” começou a ecoar e eu comecei a embrulhar “O encontro marcado” junto a outro livro (“O tio que flutuava”, de Moacyr Scliar), para que o todo parecesse um presente mais decente. De repente, a frase sumiu. De repente, eu soube que, no fundo, Rogério já deixou de ser virtual, embora eu nunca tenha apertado sua mão ou lhe dado um abraço. E de repente, outras palavras começaram a ecoar e eu comecei a escrever esta crônica de uma amizade anunciada, mas já existente – para os dois lados, é o que acredito.